Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0312/18
Data do Acordão:04/11/2018
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:EXECUÇÃO FISCAL
HIPOTECA LEGAL
AUDIÊNCIA PRÉVIA
Sumário:I - No processo de execução fiscal – que tem natureza judicial (cfr. art. 103.º da LGT) – a AT intervém quer como órgão de execução fiscal, praticando actos processuais sem natureza jurisdicional, quer como sujeito activo da relação tributária que deu origem à dívida exequenda, praticando actos administrativos tributários.
II - A decisão do órgão da execução fiscal de constituir de garantia mediante hipoteca legal [prevista na alínea b) do n.º 2 do art. 50.º da LGT e no n.º 1 do art. 195.º do CPPT] deve qualificar-se como um verdadeiro acto administrativo em matéria tributária, inserido no âmbito de um procedimento tributário autónomo e funcionalmente diferente do procedimento processual dirigido à cobrança coerciva de determinadas quantias.
III - Essa decisão fica, por isso, sujeita aos princípios e normas que disciplinam a actividade administrativa tributária, designadamente aos que se referem ao princípio da participação, a assegurar mediante a notificação para o exercício do direito de audiência prévia (cfr. art. 60.º da LGT, art. 45.º do CPPT e art. 121.º do CPA).
IV - Não tendo o órgão da execução fiscal notificado o executado para aquele efeito, nem tendo ensaiado fundamento alguma para a sua dispensa, é de concluir pela invalidade do acto por preterição de formalidade legal, sancionada com a anulação.
Nº Convencional:JSTA000P23135
Nº do Documento:SA2201804110312
Data de Entrada:03/19/2018
Recorrente:AT-AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A......, LDA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da decisão proferida no processo de reclamação de actos do órgão de execução fiscal com o n.º 1419/17.3BESNT

1. RELATÓRIO

1.1 A Fazenda Pública (adiante Recorrente) recorre para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença por que o Tribunal Tributário de Lisboa, julgando procedente a reclamação deduzida ao abrigo do art. 276.º e segs. do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) pela sociedade denominada “A………, Lda.” (adiante Executada, Reclamante ou Recorrida), anulou o acto do Chefe do Serviço de Finanças de Cascais 1, que indeferiu o pedido de redução da hipoteca legal, com fundamento em violação do direito de audiência prévia.

1.2 Com o requerimento de interposição do recurso apresentou a respectiva motivação, que resumiu em conclusões do seguinte teor:

«A questão essencial a decidir é apenas a de saber se, no âmbito do processo de execução fiscal, era essencial a audição prévia do contribuinte pela Administração Fiscal antes de determinar a hipoteca em causa nos autos.

A. A douta sentença do Tribunal a quo entendeu que não estando em causa “a legitimidade da constituição da hipoteca, seja no âmbito do plano prestacional, seja para assegurar a cobrança coerciva da dívida para efeitos de venda (face à exclusão do plano), mas apenas se aquele acto devia ou ter sido precedido de audiência prévia. Considera-se que sim”.

B. E fê-lo com a fundamentação que se transcreve: “Ainda que estejamos no âmbito do processo de execução fiscal que, nos termos do artigo 103.º da LGT tem natureza judicial em toda a sua extensão e amplitude, existem actos praticados pela Administração Tributária que têm natureza administrativa e que por isso estão sujeitos aos requisitos gerais dos actos administrativos. Aqui se incluem o direito de audição e a sua dispensa, bem como a respectiva fundamentação.
O acto de constituição da hipoteca aqui praticado não se limita a tramitar o processo de execução. Projecta-se externamente na esfera da Reclamante, na sua situação individual e concreta. A actuação da autoridade tributária não foi de simples tramitação processual da execução, mas antes agiu direccionada à composição de interesses, sobre a relação jurídica tributária entre si e o sujeito passivo e sobre a obrigação que dela emana. Por aqui considera-se que há um procedimento administrativo, naturalmente com natureza tributária, enxertado no processo de execução fiscal.”

C. E, posteriormente assinala: “Neste sentido, o acto de constituição da hipoteca constitui um acto administrativo em matéria tributária e que deveria ter sido precedido de audiência prévia da interessada, nos termos do artigo 60.º da LGT, 45.º do CPPT e artigo 121.º do CPA. Não tendo sido notificada para o efeito, verifica-se a preterição de uma formalidade essencial, geradora de anulabilidade da decisão.”

D. Ora, é com este segmento decisório não pode a Fazenda Pública conformar-se, porquanto:

E. Cumpre ter presente que o processo de execução fiscal tem natureza judicial, não sendo um procedimento tributário, pelo que, apesar de no mesmo poderem ser praticados actos que não tenham natureza jurisdicional, designadamente actos administrativos, uma vez que ao chefe do órgão de execução fiscal cabe-lhe uma função administrativa, o certo é que estamos no seio de um processo judicial.

F. O artigo 60.º da LGT regula o direito de audição que assiste aos contribuintes interessados de serem ouvidos num determinado procedimento antes de ser proferida a decisão, com vista a garantir a real observância dos princípios do contraditório, da participação e da transparência procedimental.

G. Analisadas as regras processuais relativas ao processo de execução fiscal, dada a sua natureza judicial, as mesmas não prevêem o exercício do direito de audição antes de tomada uma decisão no âmbito do processo de execução fiscal, excepção feita ao acto de reversão, que antes da decisão fundamentada, tal como previsto na lei – artigo 23.º, n.º 4, da LGT – deverá ser precedido de audição do revertido.

H. Por aqui se vê que as normas do procedimento tributário não são aplicáveis ao processo de execução fiscal, ou seja, no exemplo em concreto, face à não aplicação do princípio da participação previsto no artigo 60.º da LGT aos actos praticados no âmbito do processo de execução fiscal, teve o legislador necessidade de prever expressamente na lei o cumprimento desse princípio aquando do acto de reversão da dívida exequenda.

I. O artigo 60.º da LGT respeita a um direito que os contribuintes têm durante o procedimento tributário, procedimento tributário esse que, tal como refere o artigo 54.º da LGT, onde descreve o âmbito e a forma do procedimento tributário, exclui do mesmo no seu n.º 1, alínea h) “A cobrança das obrigações tributárias, na parte que não tiver natureza judicial”.

J. O facto de a AT poder praticar no processo de execução fiscal actos de natureza não jurisdicional, não implica que todos os actos por ela praticados naquele processo constituam actos administrativos em sentido estrito.

K. Atendendo aos conceitos temos o acto administrativo como o acto jurídico unilateral praticado por um órgão de Administração no exercício do poder administrativo e que visa a produção de efeitos jurídicos sobre uma situação individual num caso concreto.

L. O Código do Procedimento Administrativo usa o termo acto tanto no sentido amplo, mais corrente na doutrina (artigo 1.º, n.º 1, em que se considera o procedimento administrativo uma sucessão ordenada de factos), como num sentido mais restrito, em que o acto se confunde com a decisão, surgindo como a conclusão do procedimento, sentido em que aponta precisamente o artigo 120.º.

M. Por actos materialmente administrativos devem entender-se aqueles que são emanados de um órgão próprio da administração (por exemplo a administração fiscal), no exercício do poder administrativo que lhe é cometido, capazes de produzirem efeitos jurídicos.

N. O procedimento administrativo é entendido como uma cadeia de acções, sucessão encadeada e organizada de actos e formalidades, diferentes entre si mas relacionados, tendentes à obtenção de um resultado, concretizada numa decisão final (artigo 1.º do CPA) e de acordo com a al. h) do n.º 1 do artigo 54.º do CPPT “O procedimento tributário compreende toda a sucessão de actos dirigida à declaração de direitos tributários, designadamente (...) a cobrança das obrigações tributárias, na parte que não tiver natureza judicial”.

O. Estes actos judiciais de tramitação processual sem natureza jurisdicional não dão origem a qualquer procedimento de natureza tributária, tratando-se antes de actos praticados pela AT no processo de execução fiscal, enquanto órgão de execução fiscal e em que age como “auxiliar do juiz” no processo de execução fiscal, enquanto responsável pela prática de actos respeitantes à instauração e prossecução da execução com vista à cobrança dos créditos em cobrança coerciva,

P. subordinado então às regras processuais aplicáveis aos actos de natureza não jurisdicional praticados nos demais processos judiciais tributários e não às regras dos actos administrativos tributários ou do procedimento tributário e, como tal, deve ficar sujeita às regras do Código de Processo Civil, por força do disposto no artigo 2.º, alínea e) do CPPT
Assim,

Q. Apenas podemos concluir que a decisão de constituição de hipoteca legal para garantir o pagamento de uma dívida em cobrança num processo de execução fiscal, sendo um acto judicial de tramitação processual (de natureza não jurisdicional) está sujeito a estritas regras processuais, e não como entendeu o Tribunal a quo, um acto administrativo em matéria tributária,

R. não dá origem a qualquer procedimento de natureza tributária, não tendo assim aplicação o artigo 60.º da LGT respeitante ao princípio da participação dos contribuintes nas decisões da AT no âmbito de um procedimento tributário.

S. Entender-se de forma diversa, retirar-se-ia qualquer efeito útil aos actos consignados no artigo 195.º do CPPT, uma vez que a comunicação prévia poderia originar a subtracção à esfera garantística da administração dos créditos objecto de hipoteca.

T. Este entendimento tem logo acolhimento na redacção dada ao n.º 2 do artigo 195.º do CPPT, transparecendo desta redacção, de forma clara e inequívoca, o afastamento da regra geral da participação dos interessados antes do acto de constituição de hipoteca no processo de execução fiscal.

U. Tal se compreende dadas as características da execução fiscal: “A execução fiscal, dado o seu fim de arrecadação coerciva de dívida ao Estado ou entidades equiparadas, caracteriza-se, em primeira linha, pela sua celeridade (...) [tendo] este princípio geral (...) uma notável premência nesta forma de processo” – cfr. Laurentino da Silva Araújo, Processo de Execução Fiscal, Almedina, p. 27.

V. Como refere, Soares Martinez, in Direito Fiscal, 7.ª edição, p. 444, “no processo de execução fiscal está em causa a cobrança de receitas tributárias que visam “a satisfação das necessidades financeiras do Estado e de outras entidades públicas” e a promoção da justiça social, da igualdade de oportunidades e das necessárias correcções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento – artigo 5.º n.º 1, da Lei Geral Tributária.”

W. E foi em consonância com o interesse público e a maior celeridade processual, de molde a obter-se a mais rápida arrecadação de receitas públicas a cobrar coercivamente, que o legislador fiscal, no processo de execução fiscal, regulou integral e imperativamente o regime de cobrança coerciva, não tendo expressamente previsto o exercício de audição prévia aquando da decisão de constituição de uma hipoteca para garantia da dívida exequenda, face desde logo à natureza judicial que lhe quis imputar.

X. De resto, o processo de execução fiscal como processo judicial que é, permite todos os meios de impugnação próprios dos actos judiciais, garantindo um esclarecido e conveniente exercício e defesa dos direitos do executado, como o presente meio processual – reclamação prevista no artigo 276.º do CPPT, ou seja, a uma decisão proferida pelo órgão de execução fiscal segue-se o respectivo recurso (no caso, reclamação) para o tribunal competente,

Y. acrescendo ainda a possibilidade do órgão de execução fiscal antes da subida da reclamação apresentada ao Tribunal competente, poder revogar o acto reclamado, nos termos do artigo 277.º, n.ºs 1 e 2 do CPPT, caso entenda que os argumentos apresentados pelo reclamante são coerentes com uma decisão em sentido diferente.
Destarte,

Z. No âmbito de um processo de execução fiscal, impõe-se ao órgão de execução fiscal a decisão de tramitação processual em ordem à cobrança da divida exequenda, sem necessidade de previamente facultar ao executado um projecto da decisão ou de ouvi-lo sobre a matéria, uma vez que as normas processuais aplicáveis ao processo de execução judicial não contemplam a necessidade de obter a colaboração do interessado na formação da decisão.

AA. Na jurisprudência do STA tem vindo a afirmar-se a não necessidade de fazer cumprir o disposto no artigo 60.º da LGT. Relembramos que nos autos está em causa hipoteca de bens da executada – acto de trâmite porque previsto e praticado no âmbito da execução fiscal – pelo que não estamos seguramente perante um procedimento administrativo enxertado no processo executivo mas perante um acto praticado no âmbito das competências próprias conferidas ao chefe do Serviço de Finanças competente, pelo que no nosso caso não se impunha a audiência prévia do sujeito passivo/executada.

BB. Vale isto por dizer que não foi violado qualquer preceito legal que preveja a participação dos contribuintes nas decisões a proferir num procedimento tributário, pela simples razão de que o mesmo não se aplica no caso concreto.

CC. Donde, entende a Fazenda Pública que o Douto Tribunal a quo errou no seu julgamento, devendo a sentença ser revogada e substituída por decisão que julgue totalmente improcedente a reclamação e que condene a RR no pagamento das custas processuais.

Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão recorrida, com as legais consequências.

Apesar da reclamação do artigo 276.º do CPPT se encontrar em estrutural dependência em relação à própria execução fiscal na qual é praticado o acto potencialmente lesivo “reclamável” e por isso a tributação daquela reclamação deverá ser feita pela Tabela II-A, do Regulamento das Custas Processuais (RCP) que prevê expressamente a taxa de justiça na execução, e sem prescindir, caso seja diverso o entendimento de V. Exas. requer, atenta a simplicidade da causa e, bem assim, a lisura da sua conduta processual nos presentes autos vem a Fazenda Pública requerer a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça por si devida, nos termos do disposto no n.º 7 do art. 6.º do Regulamento das Custas Processuais».

1.3 O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.

1.4 A Executada contra-alegou o recurso, tendo concluído com a formulação de conclusões do seguinte teor:

«A. O acto de constituição de hipoteca deverá ser anulado, por preterição de formalidades legais, por não ter sido precedido de audição prévia da recorrida nos termos do disposto no art. 50.º da LGT, 45.º do CPPT e 121.º do CPA.

B. A AT nunca notificou ou por qualquer outra forma deu conhecimento à Recorrida de que iria constituir ou havia constituído tal hipoteca legal.

C. A decisão de constituição de hipoteca legal consubstancia um acto administrativo em matéria fiscal e, como tal, carece de fundamentação, deve ser precedida de direito de audição e tem de ser notificada aos destinatários;

D. Como resulta do disposto no art. 103.º da LGT, o processo de execução fiscal tem natureza judicial, na totalidade, e embora a AT nele possa praticar actos que não tenham tal natureza é sempre garantido aos interessados o direito de reclamação para o juiz da execução fiscal dos (actos materialmente administrativos) praticados por um órgão da AT no processo de execução fiscal.

E. A AT nunca notificou a recorrida da constituição da hipoteca legal, nem procedeu à audiência prévia da reclamante, como é obrigatório nos termos do disposto nos arts. 60.º da LGT, 45.º do CPPT e 100.º a 103.º do CPA.

F. Pelo que estamos perante duas preterições de formalidade legais, geradoras da anulação dos respectivos actos. Mais dispõe o 36.º do CPPT que os actos em matéria tributável que afectem os direitos e interesses legítimos das contribuintes só produzem efeitos relativamente a estes quando lhes sejam validamente notificados, sendo que as notificações deverão conter sempre a decisão, os seus fundamentos e os meios de defesa e prazo para reagir contra o acto notificado.

G. Acresce que matéria tratada pela Jurisprudência deste Supremo Tribunal referida pela recorrente não tem aplicação neste caso, porquanto nada tem a ver com o discutido nos presentes autos, ou seja constituição de hipoteca legal.

H. Porém, no Acórdão citado pela AT, proferido pela 2.ª Secção deste STA no processo 983/11 podemos ler “De todo o modo ainda, não há lugar a audição prévia se a decisão for proferida de acordo com a lei e a falta de audição não prejudicou o interessado, uma vez que o que quer que ele viesse trazer ao processo, não permitiria decisão diversa da proferida pelo órgão de execução fiscal”.

I. O que é exactamente o caso oposto dos presentes autos. Porquanto a decisão reclamada não só causou graves prejuízos à Recorrida, como ainda, se esta tivesse sido ouvida em sede de audição prévia, permitiria ao órgão de execução fiscal a tomada de uma decisão diferente.

J. Pois, sendo a recorrida uma sociedade cujo objecto é a compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos, a AT constituiu hipoteca legal sobre a totalidade do património da recorrida. Tal hipoteca impende registada sob a Ap. 3128 de 2016/06/01 sobre 98 prédios e 40 fracções autónomas propriedade da ora recorrida

K. Ou seja, sobre todo o património imobiliário da recorrida, o que lhe vem causando enormes e irreparáveis prejuízos, pois viu-se total e irremediavelmente impedida de exercer a sua actividade. Vendo-se impedida de cumprir contratos, celebrar escrituras, etc.

L. Recorrendo-se da douta sentença recorrida “(....) o acto de constituição de hipoteca aqui praticado não se limita a tramitar o processo de execução. Projecta-se externamente na esfera da Reclamante na sua situação individual e concreta. A actuação da Autoridade Tributária não foi de simples tramitação processual da execução, mas antes agiu direccionada à composição de interesses, sobre a relação jurídica tributária entre si e o sujeito passivo e sobre a obrigação que dela emana. Por aqui considera-se que há um procedimento administrativo, naturalmente com natureza tributária, enxertado no processo de execução fiscal (...)”

M. Se ouvida previamente a Recorrida poderia [ter] oferecido em hipoteca imóveis suficientes para garantir o pagamento da dívida da AT, sem manietar/amarrar todo o seu património, bloqueando totalmente a sua actividade como fez a AT

N. Transcreve-se ainda da sentença recorrida “Por outro lado, não subsistem motivos para tornar inoperante aquele efeito invalidante, porque nada permite concluir com certeza que a decisão teria, ainda assim, sido a mesma, caso a Reclamante tivesse sido ouvida. Poderiam ter sido indicados os prédios que a reclamante teria interesse em fazer incidir a hipoteca, bem como poderia ter auxiliado a Administração Tributário na aferição dos reais e efectivos ónus que impendem sobre os imóveis.
Tendo sido preterida aquela formalidade, impõe-se a anulação do acto (...)”

O. Tendo o processo de execução fiscal natureza judicial, a lei permite a intercalação, inserção ou “enxerto” de determinados procedimentos administrativos em que a Autoridade Tributária actua no exercício da sua função tributária, agindo sobre a relação jurídica tributária como sujeito activo e o contribuinte como sujeito passivo.

P. O acto de constituição da hipoteca legal qualifica-se como verdadeiro acto em matéria tributária e não como mero acto de trâmite, uma vez que não se confina nos estreitos limites da ordenação intraprocessual antes projecta externamente efeitos jurídicos numa situação individual concreta – cfr. art 120.º do CPA.

Q. A Autoridade Tributária surge, claramente, como o sujeito activo da relação tributária, agindo com base na verificação de requisitos que só a ela cabe apreciar («quando a garantia se revele necessária à cobrança efectiva da dívida ou quando o imposto incida sobre a propriedade dos bens» – al. b) do n.º 2 do art. 50.º da LGT) ou, no texto do n.º 1 do art. 195.º do CPPT, quando o interesse da eficácia da cobrança o torne recomendável.

R. Pelo que, a decisão da Autoridade Tributária de constituir ou não uma hipoteca legai como forma de garantia sobre os créditos que detém sobre a Recorrida, implica e determina, necessariamente, manifestos reflexos na sua esfera jurídica.

S. «[o]s actos da administração tributária através dos quais se decida a constituição de penhor ou hipoteca legal são actos de natureza administrativa, uma vez que se inserem na definição da pelo art. 120.º do CPA […]. Por isso, a decisão de constituir penhor ou hipoteca legal está sujeita aos requisitos gerais dos actos administrativos em matéria tributária, inclusivamente no que concerne ao direito de audição e sua dispensa arts. 100.º a 103.º do CPA e 45.º do CPPT)» - cf. Jorge Lopes de Sousa.

T. Como acto administrativo em matéria tributária, a constituição da hipoteca legal pressupõe o prévio exercício do direito de audição, nos termos do art. 60.º, n.º 1, al. b) da LGT, não podendo sequer aventar-se a hipótese da dispensa do exercício do direito de audição (art. 60.º, n.º 2, da LGT).

U. No sentido aqui defendido veja-se que este Venerando Tribunal se tem pronunciado, no sentido de que o disposto no n.º 1 do art. 60.º da LGT se aplica em sede de processo executivo:
Ac. STA de 14.12.20 proferido no proc. 01072/11 e respectiva fundamentação [que] damos por reproduzida «É que, por um lado, os artigos 54.º da LGT e 44.º do CPPT contemplam uma definição do âmbito do procedimento tributário em termos latos, que compreende “toda a sucessão de actos dirigida à declaração de direitos tributários”, em ambos se incluindo, aliás, o procedimento de cobrança das obrigações tributárias, na parte em que não tiver natureza judicial (cfr. alínea h) do n.º 1 do art. 54.º da LGT e a alínea g) do n.º 1 do artigo 44.º do CPPT). E, por outro lado [os actos em questão nesses autos, tal como o acto em causa nos presentes autos] são de qualificar como verdadeiros actos administrativos em matéria tributária e não como meros actos de trâmite; e, assim, como actos administrativos definidores de uma situação jurídica que no caso é desfavorável ao contribuinte, impunha-se a sua prévia audição, de acordo com o estatuído nos artigos 100.º do CPA e 60.º da LGT».

V. E ainda o Ac. STA de 11.07.2012, proferido no proc. 0730/12 (seguido pelo Tribunal a quo) e respectiva fundamentação [que] damos por reproduzida “Embora inserida num processo de execução fiscal, a prolação de uma decisão de constituição de garantia (hipoteca legal) – art. 195.º do CPPT – constitui um acto de natureza administrativa, a que têm de ser aplicados os requisitos procedimentais exigidos para tal tipo de actos, entre os quais os da necessidade de fundamentação expressa e acessível, (…). Daí que, em consequência e independentemente da questão atinente à também invocada falta de notificação aos reclamantes da constituição da hipoteca legal, se concorde com a decisão recorrida (…) quando, por outro lado, também conclui que, por não ter ocorrido audiência prévia dos reclamantes, como era imposto pelos arts. 60.º da LGT, 45.º do CPPT e 100.º a 103.º do CPA, ocorre essa alegada preterição de formalidade legal, igualmente geradora da respectiva anulação”.

W. O direito à audição prévia que o artigo da Lei Geral Tributária consagra sob a epígrafe de “princípio da participação” constitui uma concretização do direito de participação dos cidadãos e que visa assegurar-lhes uma tutela preventiva contra lesões dos seus direitos ou interesses legítimos.

X. O argumento da Fazenda de que não haverá direito de audição devido ao estatuído no artigo 195.º do CPPT, não pode proceder.

Y. Pois conforme bem se pode ler na sentença recorrida “(…) Dispõe o artigo 195.º n.º 1 do CPPT que, quando o interesse da eficácia da cobrança o torne recomendável, o órgão de execução fiscal pode constituir hipoteca legal ou penhor. A constituição de uma garantia real sobre o património do executado deve ser concretizada para assegurar os créditos do Estado (cf. artigos 50.º da LGT e 195.º do CPPT), com vista à venda judicial dos bens (cf. artigos 248.º, e seguintes do CPPT) podendo ainda servir para suspender essa cobrança se houver contencioso ou piano de pagamento em prestações (cf. artigos 169.º e 199.º do CPPT) Em causa não está a legitimidade da constituição da hipoteca, seja na âmbito do plano prestacional, seja para assegurar a cobrança coerciva da divida paro efeitos de venda (face à exclusão do plano), mas apenas se aquele acto devia ou ter sido precedido d audiência prévia. Considera-se que sim.(…)».

Z. Assim, e exaltando a imparcialidade e exaustiva análise operada na douta sentença pelo Tribunal a quo é forçoso concluir que não assiste razão à Recorrente e que outra decisão não poderia ter sido proferida pelo Juiz [do Tribunal] a quo.

Nestes termos deve o Recurso interposto ser considerado improcedente, pedindo-se que seja confirmada por esse Supremo Tribunal Administrativo a decisão proferida pelo Tribunal “a quo” a qual determinou a nulidade do acto do órgão de execução fiscal na parte em que indeferiu o pedido de levantamento de hipoteca».

1.5 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo e dada vista ao Ministério Público, o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que seja negado provimento ao recurso, com a seguinte fundamentação:

«[…]
A questão controvertida consiste, pois, em saber se o acto da AT que determina a constituição de hipoteca legal, no âmbito de um processo de execução fiscal, é um verdadeiro acto administrativo e não um mero acto de trâmite.
Vejamos.
Nos termos do estatuído no artigo 103.º/1 da LGT, o processo de execução fiscal tem natureza judicial, sem prejuízo da Administração Tributária participar nos actos que não tenham natureza jurisdicional.
Nos termos do número 2 do citado normativo os interessados podem reclamar para o juiz da execução fiscal dos actos materialmente administrativos praticados pelos órgãos da Administração Tributária.
Portanto, a Administração Tributária no âmbito do processo de execução fiscal pratica actos materialmente administrativos.
Enquanto processo com natureza judicial, todos os actos praticados na execução fiscal pelos sujeitos processuais estão submetidos às regras processuais que regulam o processo tributário e, subsidiariamente às normas do CPC, ex vi do artigo 2.º/e) do CPPT.
Só não é assim quando no processo é enxertado um procedimento administrativo em que a Administração Tributária actua no exercício da sua função tributária, praticando actos materialmente administrativos em matéria tributária, como acontece, a nosso ver, no caso em análise em que é sindicado o acto de indeferimento de pedido de levantamento de hipoteca legal, com o fundamento no facto da recorrida não ter sido notificada da constituição da garantia nem para exercer, previamente, o direito de audição prévia.
De facto, trata-se de uma decisão que no exercício de poderes jurídico-administrativos visa produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta (artigo 148.º do NCPA) (No sentido de que estamos perante um acto materialmente administrativo, CPPT, anotado e comentado, 6.ª edição, 2011, III volume, páginas 390/391, Juiz Conselheiro Jorge Lopes de Sousa e acórdão do STA, de 11/07/2012-P. 0730/12, disponível em www.dgsi.pt).
Note-se que a decisão de constituição de penhora legal é da exclusiva competência da Administração Tributária, enquanto tal, não podendo ser exercida pelo Tribunal em substituição daquela, tendo a actividade deste de resumir-se à verificação da ofensa ou não dos princípios jurídicos que condicionam toda a actividade administrativa, atento o estatuído nos artigos 50.º/2/ b) da LGT e l95.º do CPPT.
A mesma decisão não se confina nos estreitos limites da ordenação intraprocessual, antes projecta extremamente efeitos jurídicos numa situação individual e concreta, pois que a decisão de constituição de hipoteca legal implica e determina manifestos reflexos na esfera jurídica do interessado.
Pelo exposto, ressalvado melhor juízo, a decisão de constituição de hipoteca legal, à semelhança da dispensa/isenção da prestação de garantia, consubstancia um verdadeiro procedimento tributário enxertado no processo de execução fiscal (Neste sentido acórdãos do STA de 26 de Setembro [(Permitimo-nos corrigir o manifesto lapso de escrita: escreveu-se Julho onde se queria dizer Setembro.)] de 2012, proferido no processo 0708/12, proferido em julgamento ampliado, nos termos do estatuído no artigo 148.º do CPTA, de 17 de Dezembro de 2014, proferido no recurso n.º 01315/14 e de 16 de Março de 2016, do PLENO da SCT, proferido no recurso n.º 01315/14, todos eles disponíveis no sítio da Internet www.dgsi.pt).
Assim sendo, haverá que aplicar os princípios gerais regulamentadores da actividade administrativa e as normas da LGT aplicáveis ao procedimento tributário, designadamente a norma constante do artigo 60.º da LGT (princípio da participação), a norma constante do artigo 45.º do CPPT (contraditório), e as normas dos artigos 121.º (direito de audição prévia) e 124.º (dispensa de audição prévia) do CPA.
O procedimento de constituição de hipoteca legal, nos termos legais, não tem natureza urgente pelo que não há motivo legal para a dispensa da audiência do interessado, nos termos do disposto no artigo 124.º/1 /a) do NCPA, ex vi do artigo 2.º/ c) da LGT, sendo certo que não se verificam os restantes pressupostos previstos nesse mesmo normativo de dispensa da audição prévia.
Como resulta do probatório e dos autos não foi dada à recorrida a possibilidade de se pronunciar sobre a intenção/projecto de constituição de hipoteca legal pelo que o acto sindicado é anulável, por vício de forma, por preterição do direito de audição prévia.
Por outro lado, em nosso entendimento, não há que lançar mão do princípio do aproveitamento do administrativo.
Na verdade, por aplicação do princípio do aproveitamento do acto administrativo, nem sempre a omissão desta formalidade (audição prévia) determinará a anulação do acto, “...designadamente não justificando nos casos em que se apure no processo contencioso que, se ela tivesse sido realizada, o interessado não teria possibilidade de apresentar elementos novos nem deixou de pronunciar-se sobre questões relevantes para determinar o conteúdo da decisão final, ou acabou por ter oportunidade de pronunciar-se, em procedimento de segundo grau (reclamação graciosa ou recurso hierárquico), sobre questões sobre as quais foi indevidamente omitida a audiência no procedimento de primeiro grau” (LGT, anotada e comentada, 4.ª edição 2012, página 515, Digo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa).
Ora, no caso em apreciação, parece certo que se a recorrida tivesse podido exercer o direito de audição prévia poderia influenciar o acto de constituição da hipoteca legal, designadamente, indicando os prédios sobre os quais teria interesse em fazer incidir a hipoteca e auxiliando a AT na aferição dos efectivos ónus que impendem sobre os imóveis.
Ocorre, pois, salvo melhor juízo, vício de forma susceptível de determinar a anulação do acto sindicado, nos termos do disposto no 163.º do NCPA.
A sentença recorrida não merece, assim, censura».

1.6 Com dispensa dos vistos dos Conselheiros adjuntos, atento o carácter urgente do processo, cumpre apreciar e decidir.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra procedeu ao julgamento da matéria de facto nos seguintes termos:

«1. Em 03-09-2015 foi homologado o acordo de revitalização, no âmbito do Plano de Especial de Revitalização no processo n.º 3796/15.1T8SNT da Comarca de Lisboa Oeste, Secção de Comércio (cf. certidão do registo comercial da Reclamante. insc. 4, ap. 19, a fls. 368 do PEF);

2. No âmbito do Plano Especial de Revitalização, foi autorizado pela Autoridade Tributária o plano de pagamento em prestações n.º 2015.801 em 150 prestações mensais, cuja primeira se vencia em 30-09-2015 e com a quantia exequenda de € 1.548.669,87 (cf. Plano Prestacional registado no sistema da AT, a fls. 387/388);

3. Em 29-04-2016 a Reclamante foi notificada que se encontrava em incumprimento do plano de pagamento em prestações, onde foi referido o seguinte:
«(…)
Ofício n.º 2016-04-14
(…)
Assunto: INCUMPRIMENTO DO PLANO DE PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES
Fica V. Exa. por este meio notificado de que se encontra em situação de incumprimento do piano de pagamento em prestações autorizado por despacho elaborado no âmbito do PER (homologado no Processo 3796/15.1 T8SNT em 14/09/2015), por falta de pagamento de prestações sucessivos, de acordo com os dados a seguir indicados:
Serviço de Finanças – 1503
N.º do Plano de Pagamento – 2015.801
Fica também notificado que deverá, no prazo de 30 dias o contar da presente notificação, proceder ao pagamento de todas as prestações incumpridas (www.portaldasfinancas.gov.pt) ou requerido junto de qualquer Serviço Local de Finanças, e pago na respectiva Secção de cobrança ou através de Multibanco, Homebanking ou nos CTT.
A falta de pagamento de qualquer das prestações dentro do prazo assinalado dará lugar ao vencimento das prestações restantes, e à interrupção por incumprimento do plano de pagamento em prestações, pelo que os processos de execução fiscal que estiverem abrangidos pelo plano de pagamento em prestações prosseguirão de imediato os seus termos, conforme o n.º 6 do artigo 189.º e n.º 1 do artigo 200.º, ambos do CPPT.
(...)».
(cf. Notificação a fls. 180 dos autos e aviso de recepção assinado a fls. 180 verso dos autos);

4. Em 30-05-2016 o Chefe do Serviço de Finanças proferiu despacho a determinar a constituição de hipoteca legal sobre prédios da Reclamante que individualiza e o respectivo registo na Conservatória do Registo Predial, indicando ainda que «2.5 A presente hipoteca legal destina-se a garantir a quantia exequenda exigido nos presentes autos e respectivos juros de mora vencidos e vincendos, bem como as custas processuais contadas nesta data e as que vierem a acrescer a final. 2.6 A extensão da presente hipoteca legal é determinada em função do valor atribuído ao bem e nos termos da ordem de preferência emergente das regras de registo.
Serviço de Finanças de Cascais 1 – 30 de Maio de 2016 (...)»
(cf. Despacho a fls. 183 verso/187 dos autos e fls. 186/194 do PEF);

5. Em 01-06-2016 o Serviço de Finanças de Cascais 1 requereu à Conservatória do Registo Predial de Cascais 1 o registo de hipoteca legal nos termos seguintes:
«(…)
Assunto: PEDIDO DE REGISTO DE HIPOTECA LEGAL
Ex.º Sr.(a) Conservador(a):
Em conformidade com o disposto nos n. ºs 1 e 2 do artigo 195.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, venho requerer a V. Exa., que se proceda ao registo da HIPOTECA LEGAL a favor da Fazenda Pública, nos prédios que é pertença de soc A………., LDA NIPC: …………, com a finalidade de assegurar o pagamento da quantia total de € 1.280.263,94 (um milhão duzentos e oitenta mil e duzentos e sessenta e três euros e noventa e quatro cêntimos) e acrescido constituído por juros de mora e custas.
Requer-se ainda a V. Ex.ª, a emissão do respectivo certificado constituído e subsequente envio a este Serviço de Finanças.
Com os melhores cumprimentos,
O Chefe do Serviço de Finanças
(assinatura)
(………..)»
(cf. Ofício a fls. 121 do PEF e aviso de recepção a fls. 122 do PEF);

6. A Conservatória registou a hipoteca legal requerida em 138 prédios da Reclamante (cf. informação da Conservatória onde indica as chaves de acesso às certidões permanentes de cada prédio, a fls. 178/184 do PEF e informação do serviço de finanças a fls. 166 dos autos);

7. Em 13-12-2016 foi autorizada a rectificação de lapsos de escrita no Plano de Revitalização da Reclamante, por despacho judicial proferido no processo 3796/15.1T8SNT, que homologou assim o Plano de Revitalização (rectificado) da Reclamante, bem como declarou em consequência extintas as acções judiciais instauradas para a cobrança de dívidas, com o inerente cancelamento das penhoras incidentes sobre os imóveis penhorados (cf. despacho a fls. 365 do PEF);

8. Em 21-08-2017 a Reclamante apresentou requerimento junto do Serviço de Finanças de Cascais 1, no processo de execução fiscal n.º 1503201001012304 e quanto ao plano prestacional n.º 2015.801, onde requereu a reposição deste plano, bem como o levantamento da hipoteca legal sobre todos os prédios que onera, com excepção dos indicados no requerimento e que perfazem o valor patrimonial de € 2.057.419,70 (cf. requerimento a fls. 195/205 verso do PEF);

9. Em 14-09-2017 o Chefe de Finanças indeferiu os pedidos da Reclamante, nos seguintes termos:
«(…)
DESPACHO
Considerando a informação que antecede, o pedido em referência e elementos dos autos constata-se:
1. Que está em causa dívida executiva abrangida em plano prestacional, implementado nas termos do artigo 196.º, do CPPT e aprovado num PER - P. 3796/15.1T8SNT, interrompido por incumprimento em 29.05.2016, em que a executada coloca agora em crise exactamente esse acto/notificação, alegando não estarem verificados os pressupostos do artigo 200.º, do CPPT.
2. Que para efeitos de garantia dos créditos Tributários exigidos nos autos e em virtude da falia de prestação de garantia, foi constituída hipoteca legal a quase totalidade dos bens imóveis conhecidos da executada e que a executada agora coloca em crise, por alegada extensão da hipoteca realizada.
3. Que inexiste contencioso, administrativo ou judicial, quanto às liquidações subjacentes aos autos de execução fiscal em causa.
4. E finalmente em síntese, que a executada solicita a reposição do plano prestacional e o levantamento parcial das hipotecas legais constituídas sobre o seu património imobiliário.
Pelo que, considerando o previsto pelo artigo 85.º, do CPPT importa essencial e urgentemente decidir quanto à legalidade da interrupção do plano prestacional, visto ser este fundamento, desde que constituída a garantia devida, o único fundamento de suspensão da execução e esta, a existir, é que poderá determinar a reavaliação das hipotecas voluntárias realizadas; caso contrário os autos entram em fase de venda. Assim sendo e verificando-se:
1. Que o plano prestacional em causa, registado informaticamente sob o n.º 2015.801, foi implementado em consequência de sentença de homologação em processo especial de revitalização (PER – n.º 3796/15.1T8SNT), 03.09.2025;
2. E que de acordo com aquela decisão e no que aos créditos tributários respeita (a presente dívida), são de aplicar os artigos 85.º, 196.º e 199.º, do CPPT, isto é, as regras gerais do pagamento em prestações em sede de execução fiscal, inexistindo portando qualquer regime especial e adicionalmente, conforme expressa e especialmente previsto nas condições aprovadas colocadas pelo credor tributário (AT), estas prestações são mensais e sucessivas (logo, não alternadas), vencendo-se a 1.ª até ao final do mês seguinte ao términos do prazo previsto no n.º 5, do artigo 17-D, do CIRE, mostra correcta a exclusão.
3. Que se verifica caduco o direito de acção/recurso previsto pelo artigo 276.º, do CPPT, quanto à exclusão/extinção do plano prestacional referido, notificado em 29.04.2016 nos termos do previsto pelo art. 277.º, igualmente do CPPT.
4. E finalmente, que regime aplicável ao plano prestacional em causa (cf. anteriores pontos 1 e 2) conforme homologação inicial, foi inalterado na subsequente rectificação.
Terá de concluir-se assim que inexistem fundamentos de facto e de direito que permitam conceder provimento ao pedido de reposição do identificado plano prestacional, pelo que, conforme fundamentado na informação que antecede e sintetizado no presente despacho (em matérias de facto e de direito), determino o indeferimento do pedido de reposição do plano prestacional 2015.801.
Em consequência e com os mesmos enunciados fundamentos, determino ainda o indeferimento do pedido de levantamento da hipoteca legal realizada sobre parte dos prédios onerados por aquela por iniciativa deste órgão de execução, porquanto, inexistindo causa suspensiva nos autos, terão os mesmos de seguir seus trâmites incluindo naturalmente a venda de bens, além de que dos autos não se conhecem ainda os reais ónus, aspecto essencial quanto à aferição desta matéria.
Notifique-se
Cascais 14.09.2017
O Chefe de Finanças
(assinatura)
…………»
(cf. Despacho a fls. 378 do PEF);

10. Em 27-09-2017 a Reclamante foi notificada do despacho anterior (cf. Ofício a fls. 379 do PEF e aviso de recepção a fls. 380 do PEF).

11. Em 06-10-2017, deu entrada no Serviço de Finanças de Cascais 1 requerimento da Reclamante onde indica que:
«(…)
Processo: 1503201001012304
V. Ofício de 15-09-2017
A………., LDA. NIF ………., executada nos processos, notificada para o efeito no passado dia 27.09.2017, nos termos do V. ofício e despacho que se anexa, vem juntar certidões dos prédios identificados nos pontos 56 e 57 do requerimento por si apresentado a 21/08/2017, pelas quais se pode comprovar que tais prédios se encontram livres de quaisquer ónus ou encargos adicionais, pelo que garantia oferecida cobre a totalidade do crédito tributário e acrescido, sendo, por isso, uma garantia idónea e suficiente.
Junta:
- Cópia de notificação;
- Certidões do Registo Predial;
- Cadernetas Prediais.
A Requerente
(carimbo e assinatura)»
(cf. documento n.º 9 junto com a reclamação e que corresponde a comprovativo de entrega de documentos na AT, a fls. 165 dos autos);

12. A Reclamante não foi notificada para audiência prévia antes da constituição da hipoteca legal e não foi notificada do despacho que determinou a sua constituição e respectivo registo predial».


*

2.2 DE DIREITO

2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

No âmbito de uma execução fiscal, a AT entendeu constituir hipoteca legal sobre bens da sociedade executada, a fim de garantir a cobrança efectiva da dívida exequenda, como lho permitem a alínea b) do art. 50.º da Lei Geral Tributária (LGT) e o n.º 1 do art. 195.º do CPPT.
Antes de constituir a hipoteca, o órgão da execução fiscal não permitiu à Executada exercer o direito de participação quanto a esse acto, designadamente não a tendo notificado para o efeito. Note-se que o órgão da execução fiscal também não externou justificação alguma para que se tivesse dispensado de facultar o exercício desse direito.
No que ora nos interessa, a Executada reagiu contra a hipoteca e sua extensão: considerou, em síntese, que a respectiva decisão enferma de ilegalidade por incumprimento do dever de audiência prévia e que a mesma não deveria ter abarcado a totalidade do seu património imobiliário, como sucedeu, mas se deveria ter ficado pelos imóveis necessários para garantir o pagamento da dívida exequenda e do acrescido; indicou mesmo os imóveis que entende que bastariam àquele desiderato e pediu ao Chefe do Serviço de Finanças de Cascais 1 que levantasse a hipoteca sobre os demais imóveis.
O órgão da execução fiscal indeferiu esse pedido e a Executada reagiu contenciosamente contra essa decisão, mediante reclamação deduzida ao abrigo do art. 276.º e segs. do CPPT para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra.
Entre os diversos vícios que assacou a esse acto, invocou que a hipoteca legal foi constituída sem que lhe tivesse sido permitido exercer o direito de audiência prévia, pois não foi notificada para o efeito.
A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, anuindo à alegação da Executada, julgou procedente a reclamação judicial e anulou a decisão reclamada.
Entendeu a sentença, em síntese e louvando-se na doutrina ( JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, III volume, anotação 2 ao art. 195.º, págs. 390/391. ) e em jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo (Citou o seguinte acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 11 de Julho de 2012, proferido no processo n.º 730/12, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/458cae6450c74e5e80257a4500378b5b.), que a decisão de constituir uma hipoteca legal como garantia, embora inserida num processo de execução fiscal, constitui um acto de natureza administrativa, a que têm de ser aplicados os requisitos procedimentais exigidos para tal tipo de actos, entre os quais os da necessidade de observar o princípio da participação, a concretizar mediante a notificação para o exercício do direito de audiência prévia, tal como previsto no art. 60.º do CPPT, no art. 45.º da LGT e no art. 121.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA). Não tendo sido efectuada tal notificação, concluiu que o acto enfermava de invalidade, por preterição de formalidade essencial, a determinar a sua anulação. Ponderou ainda a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra a eventual inoperância daquele efeito invalidante (à luz da denominada teoria do aproveitamento do acto), concluindo pela negativa porque não podia considerar-se que a decisão teria sido a mesmo caso a Executada tivesse sido ouvida.
A Fazenda Pública discorda da sentença.
Considera, em síntese, que a decisão de constituir hipoteca não pode ser tida como um acto administrativo, mas antes como um acto de trâmite da execução fiscal ou, dito de outra forma, um acto sem carácter jurisdicional praticado pela AT no âmbito da execução fiscal enquanto mera “auxiliar do juiz” na prossecução do escopo judicial da execução, sendo que as normas do procedimento tributário não são aplicáveis ao processo de execução fiscal; e tanto assim é que, nos casos em que o legislador entendeu que os actos praticados no âmbito do processo de execução fiscal exigiam que fosse observado o princípio da participação, face à não aplicação do disposto no art. 60.º da LGT, teve necessidade de o prever expressamente, como sucede relativamente ao acto de reversão da dívida exequenda (cfr. art. 23.º, n.º 4, da LGT). Alegou ainda que a possibilidade que a AT tem de praticar actos de natureza não jurisdicional no âmbito do processo de execução fiscal não significa que tais actos tenham natureza administrativa nem que dêem origem a procedimentos administrativos, ainda que “enxertados” na execução fiscal. Mais alegou que entendimento contrário levaria a que ficasse comprometido o efeito útil dos actos previstos no art. 195.º do CPPT (hipoteca legal ou penhor) «uma vez que a comunicação prévia poderia originar a subtracção à esfera garantística da administração dos créditos objecto de hipoteca» e que é este o único entendimento que pode extrair-se do disposto no n.º 2 daquele artigo e da natureza da execução fiscal.
Assim, a questão que importa apreciar e decidir é a de saber se a sentença recorrida fez errado julgamento ao considerar que se impunha que a AT tivesse assegurado à Executada a possibilidade de exercer o direito de audiência prévia à decisão de constituir hipoteca legal e que, não lhe tendo sido facultada essa possibilidade, tal decisão enferma de vício por preterição de formalidade essencial, a determinar a sua anulação.

2.2.2 DO DIREITO DE AUDIÇÃO PRÉVIA À DECISÃO DE CONSTITUIR HIPOTECA LEGAL AO ABRIGO DO ART. 195.º DO CPPT

A questão prende-se com a natureza dos actos praticados em sede de execução fiscal pela AT.
Como bem salientou a Recorrente, o art. 60.º da LGT – disposição legal ao abrigo da qual a sentença considerou impor-se a participação, a concretizar através do direito de audiência prévia – só logra aplicação em sede do procedimento tributário, como resulta, desde logo, da inserção sistemática da norma, no Título III da LGT, sujeito à epígrafe “Do Procedimento Tributário”.
Ora, o processo de execução fiscal tem natureza judicial, expressamente reconhecida pelo art. 103.º, n.º 1, da LGT («O processo de execução fiscal tem natureza judicial, sem prejuízo da participação dos órgãos da administração tributária nos actos que não têm natureza jurisdicional».). Como resulta deste preceito, admite-se que a AT pratique actos naquele processo, apenas lhe estando vedada a prática daqueles que tenham natureza jurisdicional («De aplicação da norma ao caso em concreto, mas resolvendo um litígio ou um conflito de pretensões» (JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, Lições de Procedimento e Processo Tributário, Coimbra Editora, 2.ª edição, pág. 265).), que os princípios da separação dos poderes e âmbito da função jurisdicional, consagrados nos arts. 110.º, 111.º e 202.º da Constituição da República (CRP), impõem que fique reservada ao tribunal, numa distribuição de competências a que o legislador ordinário deu concretização através dos arts. 10.º, n.º 1, alínea f), e 151.º do CPPT.
Como também bem deu conta a Recorrente, o facto de a AT poder praticar no processo de execução fiscal actos de natureza não jurisdicional não implica que todos os actos por ela praticados naquele processo constituam actos administrativos em sentido estrito. No âmbito do processo de execução fiscal, a AT pratica, não só actos administrativos de natureza tributária (que lhe competem na sua condição de exequente, quando o seja), mas também outros actos processuais, cuja competência lhe está cometida enquanto órgão da execução fiscal, nos termos do disposto no já referido art. 10.º, n.º 1, alínea f), do CPPT. Relativamente a estes últimos, a lei constitucional não impõe que hajam de ser praticados por um juiz, podendo o legislador ordinário atribuir a competência para o efeito a um funcionário ou ao juiz, desde que, no primeiro caso, fique salvaguardada a possibilidade de discutir judicialmente a sua legalidade, sob pena de violação do art. 20.º da CRP (Cfr. o acórdão n.º 80/2003 do Tribunal Constitucional, disponível em
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20030080.html.).
Ou seja, no processo de execução fiscal, sendo certo que está vedada à AT a prática de actos jurisdicionais, é-lhe permitido praticar quer actos administrativos de natureza tributária, que respeitam à dívida tributária e integram procedimentos tributários (v.g., a reversão, a dação em pagamento, o pagamento em prestações, a aprovação de garantias e a dispensa de prestação de garantia), em que estamos perante actos «praticados por entidades diferentes do órgão da execução fiscal, na sequência de procedimentos tributários autónomos, que correm paralelamente ao processo de execução fiscal e em conexão com ele» (Cfr. o acórdão da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 25 de Fevereiro de 2009, proferido no processo com o n.º 1116/08, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/05868b3c29c9dc3c8025756f00556c32.), cuja prática está reservada à AT enquanto exequente, enquanto credora (Podendo, inclusive, não ser do órgão da execução fiscal, mas de outra autoridade da AT.), quer actos de natureza processual, constituindo alguns meras operações materiais (remessa do título executivo ao órgão da execução, instauração da execução) e outros actos judiciais de tramitação processual sem natureza jurisdicional (citação, penhora, venda), cuja prática o legislador pôs a cargo da AT enquanto órgão da execução fiscal (A natureza destes últimos actos, que não tenham natureza administrativo-tributária, é discutível, mas será idêntica à dos actos de natureza não jurisdicional que são praticados no âmbito de todos os processos judiciais.), a qual age aí como um mero “auxiliar” (Aliás, era como juiz auxiliar que o Código de Processo das Contribuições e Impostos se referia ao chefe da repartição de finanças (cfr. art. 40.º, § único), a quem, fora de Lisboa e do Porto, competia instaurar os processos de execução fiscal e realizar os actos a eles respeitantes, com excepção dos de natureza jurisdicional e sempre com recurso para o juiz do tribunal tributário.) na prossecução do escopo da execução (a cobrança das dívidas), numa «colaboração operacional com a administração da justiça segundo os termos em que esta se encontra cometida pela Constituição aos tribunais» (Vide o acórdão referido supra em (7).).
Sobre esta matéria, fazendo um aprofundado estudo da questão, vide o acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 23 de Fevereiro de 2012, proferido no processo n.º 59/12 (Disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/be23336db28e007f802579bc003e8347.).
Certo é que todos estes actos estão sempre sujeitos ao controlo judicial, como resulta do disposto no art. 103.º, n.º 2, da LGT, controlo que, quando efectuado a pedido dos interessados, se concretiza através do meio processual previsto no art. 276.º do CPPT e que o legislador denominou reclamação. É através desse meio que os interessados (executado ou outros) podem reagir contra todos os actos praticados por órgãos administrativos no âmbito da execução fiscal, independentemente da natureza que estes possam revestir. Aliás, é essa diversidade da natureza dos actos praticados pela AT na execução fiscal que gera as consabidas dificuldades de conceptualização deste meio processual (JOAQUIM FREITAS DA ROCHA refere que esta reclamação «tem um misto de recurso contencioso – pois trata-se do controlo de um acto de um órgão administrativo por parte do tribunal – e de recurso jurisdicional – na medida em que o acto a ser controlado pelo tribunal é um acto praticado num processo» (ob. cit., pág. 297).) e dá origem a várias críticas dirigidas à sua inadequada denominação como reclamação (JORGE LOPES DE SOUSA, ob. cit., volume IV, anotação 2 ao art. 276.º, págs. 267/268.).
Dito isto, e regressando ao caso sub judice, afigura-se-nos que bem andou a sentença ao reconhecer o carácter administrativo da constituição de hipoteca legal e, consequentemente, ao entender que o órgão de execução fiscal que pretenda constituir essa garantia especial da dívida exequenda tem que facultar previamente ao executado o exercício do direito de audiência.
Na verdade, como bem sustentou a Juíza do Tribunal a quo – com apoio doutrinal e jurisprudencial (Vide supra notas (2) e (3).) – e contrariamente ao entendimento da Recorrente, o acto de constituição da hipoteca legal deve qualificar-se como verdadeiro acto administrativo em matéria tributária e não como mero acto de trâmite, uma vez que não se confina nos estreitos limites da ordenação intraprocessual, antes projecta externamente efeitos jurídicos numa situação individual e concreta e, por isso, a decisão da AT de proceder à constituição de tal hipoteca implica e determina manifestos reflexos na esfera jurídica dos ora recorridos. A AT surge, ali, nas suas vestes de sujeito activo da relação tributária, agindo com base na verificação de requisitos que só a ela cabe apreciar, quais sejam os da garantia se revelar necessária à cobrança efectiva da dívida ou o imposto incidir sobre a propriedade dos bens [cfr. alínea b) do n.º 2 do art. 50.º da LGT] ou «quando o interesse da eficácia da cobrança o torne recomendável» (n.º 1 do art. 195.º do CPPT).
Como lapidarmente se deixou dito no citado acórdão de 23 de Fevereiro de 2012, proferido no processo n.º 59/12, quando o órgão da execução fiscal «instaura, conduz e tramita a execução fiscal constitui um sujeito processual que age como interlocutor no diálogo processual, “substituindo” o juiz e praticando nele todos os actos que, não contendendo com qualquer composição de interesses, sejam legalmente necessários para a obtenção do fim a que o processo se destina. E a competência que detém o processo não brota, em princípio, da função tributária exercida pela Administração Fiscal nem emana de um poder de autotutela executiva da Administração, resultando, antes, de uma competência que a lei lhe confere para intervir no processo judicial como órgão auxiliar ou colaborador operacional do Juiz. Razão por que, todos os actos inscritos no procedimento processual pelos sujeitos processuais (partes, mandatários, órgão da execução, funcionários, juiz) estão submetidos a estritas regras processuais, que encontram previsão nas normas que regulam o processo tributário e, subsidiariamente, nas normas inscritas no CPC por força do disposto no artigo 2.º, alínea e), do CPPT.
Todavia, já assim não será nos casos em que no procedimento processual surge “enxertado” um procedimento administrativo/tributário, em que a Administração Tributária actua como tal, no exercício da sua função tributária, agindo sobre a relação jurídica tributária estabelecida entre si (como sujeito activo) e o contribuinte (como sujeito passivo) ou sobre a obrigação que dela emana, produzindo actos materialmente administrativos em matéria tributária, pois a estes procedimentos tributários há que aplicar os princípios gerais que regulam a actividade administrativa e as normas que a LGT prevê para os procedimentos tributários […]».
É o que sucede com a constituição da hipoteca legal no âmbito da execução fiscal. Como ficou dito no acórdão que vimos citando, nas situações em que a AT age no âmbito da execução fiscal na sua veste de «na qualidade de credora/exequente […] abre-se no processo de execução fiscal um verdadeiro procedimento administrativo/tributário, que é apreciado e decidido pela administração tributária nessa própria qualidade, enquanto credora/exequente […] produzindo actos materialmente administrativos em matéria tributária […].
Ou seja, nesses casos a Administração Tributária actua como tal, no exercício da sua função tributária, agindo sobre a relação jurídica tributária estabelecida entre si (como sujeito activo) e o contribuinte (como sujeito passivo), produzindo actos materialmente administrativos em matéria tributária, inseridos, assim, no âmbito de um procedimento tributário autónomo e funcionalmente diferente do procedimento processual dirigido à cobrança coerciva de determinadas quantias, embora “enxertado” neste ou a correr paralelamente a ele.
E a esses procedimentos tributários há que aplicar, naturalmente, os princípios gerais que regulam a actividade administrativa e as normas que a Lei Geral Tributária prevê para os procedimentos tributários, designadamente a norma contida no seu artigo 60.º».
Ora, parafraseando o citado acórdão de 23 de Fevereiro de 2012, a constituição de hipoteca legal depende de uma decisão da AT, da prolação de um acto materialmente administrativo em matéria tributária, não podendo qualificar-se como um mero acto administrativo de carácter disciplinador dos termos do processo executivo, nele praticado pelo colaborador operacional do juiz face ao quadro normativo que regula o legal andamento do processo, sujeito a estritas regras e princípios processuais.
A decisão de constituir hipoteca surge como o culminar de um verdadeiro procedimento administrativo/tributário, apreciado e decidido pela AT, por vontade própria, na qualidade de credora e no exercício de uma competência exclusiva.
Por outro lado, a decisão de constituir hipoteca deve também qualificar-se como um verdadeiro acto administrativo em matéria tributária, uma vez que o órgão da execução está ainda a exercer uma actividade materialmente tributária que passa pela expressão de uma vontade própria, enquanto sujeito activo da obrigação tributária, de constituir garantia especial em ordem ao pagamento da dívida exequenda e do acrescido, cabendo-lhe uma avaliação se o “interesse da eficácia da cobrança” recomenda ou não a constituição da hipoteca.
Aliás, a utilização da expressão
“o órgão da execução fiscal pode constituir hipoteca legal”, contida no n.º 1 do art. 195.º do CPPT, tal como a redacção do n.º 2 do art. 50.º da LGT, apontam no sentido de se estar perante um poder discricionário que é atribuído à AT na qualidade de titular do crédito cujo pagamento o executado deve assegurar. Tratar-se-á, pois, de um poder que o sujeito activo da relação tributária obrigacional ou titular do crédito exercerá em conformidade com o juízo que formule, no âmbito de competências próprias, sobre a pertinência da constituição da hipoteca em ordem a assegurar a cobrança, salvaguardando o crédito tributário. Esse juízo deve ser formulado no âmbito de um procedimento específico, “enxertado” no processo executivo, estando a respectiva decisão sujeita aos princípios que regem os procedimentos tributários previstos nos arts. 55.º e segs. da LGT e, entre eles, ao princípio da participação consagrado no art. 60.º.
Assim, acompanhamos a sentença no entendimento da natureza administrativa da decisão de constituição de hipoteca legal e da necessidade de a mesma ser antecedida da possibilidade de exercício do direito de audiência por parte do executado.
Acompanhamo-la também na parte em que considerou não poder degradar-se o vício em não essencial, uma vez que o princípio do aproveitamento do acto administrativo apenas é admissível quando a intervenção do interessado no procedimento tributário for inequivocamente insusceptível de influenciar a decisão final, o que acontece em geral nos casos em que se esteja perante uma situação legal evidente ou se trate de actividade administrativa vinculada, não se vislumbrando a mínima possibilidade de a audiência do interessado poder ter influência sobre o conteúdo da decisão ( Sobre a questão, vide os seguintes acórdãos do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 22 de Janeiro de 2014, proferido no processo n.º 441/13, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/212bcafe7f4d180f80257c6f004ea9c0;
de 15 de Outubro de 2014, proferido no processo n.º 1374/13, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/29e75cff6637cdef80257d7800526d92. ), o que não é o caso.
Nem se diga, como a Recorrente, que a tese sufragada pela sentença compromete o efeito útil dos actos previstos no art. 195.º do CPPT (hipoteca legal ou penhor), porque «a comunicação prévia poderia originar a subtracção à esfera garantística da administração dos créditos objecto de hipoteca», alegação que pensamos referir-se ao risco de alienação de bens. É que, se verificados os respectivos requisitos, a AT tem ao seu dispor as providências cautelares de arresto e arrolamento, nos termos dos arts. 136.º a 142.º e 214.º («Havendo justo receio de insolvência ou de ocultação ou alienação de bens, pode o representante da Fazenda Pública junto do competente tribunal tributário requerer arresto em bens suficientes para garantir a dívida exequenda e o acrescido, com aplicação do disposto pelo presente Código para o arresto no processo judicial tributário».) do CPPT, não sendo através do sacrifício do direito de participação na decisão de constituir hipoteca legal que logrará mitigar o risco de que o executado dissipe o património.
Finalmente, também se não pode extrair argumento algum em favor da tese da Recorrente do n.º 2 do art. 195.º do CPPT. Este normativo apenas estabelece o modo como se constitui a hipoteca, nada referindo quanto ao procedimento prévio à decisão.
Em conclusão, a sentença recorrida não merece censura.

2.2.3 DA DISPENSA DO REMANESCENTE DA TAXA DE JUSTIÇA

Resta apreciar se se justifica o pedido de dispensa do remanescente da taxa de justiça formulado pela Recorrente.
A favor da sua pretensão argumenta, exclusivamente, com «a simplicidade da causa e, bem assim, a lisura da sua conduta processual nos presentes autos» e invoca o disposto no n.º 7 do art. 6.º do Regulamento das Custas Processuais (RCP).
Nos termos do n.º 7 do art. 6.º do RCP, «[n]as causas de valor superior a (euro) 275.000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento».
Ou seja, como este Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a afirmar, a dispensa do remanescente da taxa de justiça tem natureza excepcional, pressupõe uma menor complexidade da causa e uma simplificação da tramitação processual aferida pela especificidade da situação processual e pela conduta das partes. A jurisprudência tem vindo também a admitir essa dispensa quando o montante da taxa de justiça devida se afigurar manifestamente desproporcionado em face do concreto serviço prestado, pondo em causa a relação sinalagmática que a taxa pressupõe, configurando uma violação dos princípios constitucionais do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efectiva, da proporcionalidade e da necessidade (Vide o seguinte acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 1 de Fevereiro de 2017, proferido no processo n.º 891/16, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/bc712805391451a8802580c00036138a.).
No caso sub judice, afigura-se-nos difícil dispensar o pagamento do remanescente com fundamento na “simplicidade da causa”. Na verdade, essa invocada simplicidade é desmentida pela motivação do recurso (e só da taxa de justiça respeitante ao recurso nos ocupamos), com a qual a Recorrente ocupou 19 folhas. Mesmo as conclusões ocupam 8 folhas e, sujeitas que foram pela Recorrente a letras, mais do que esgotaram o alfabeto, chegando até à CC.
Por outro lado, a invocada “lisura do comportamento processual” não é senão o cumprimento do que se espera das partes em termos de comportamento processual.
Tal não significa que este Supremo Tribunal se possa eximir à apreciação da questão à luz de outros parâmetros que não os invocados, uma vez que a mesma é do conhecimento oficioso, nos termos do n.º 7 do art. 6.º do RCP.
No entanto, afigura-se-nos que o valor a pagar a título de remanescente [segundo o nosso cálculo, porque o valor fixado à causa foi de € 1.548.668,87, o remanescente da taxa da justiça devida pelo recurso totaliza € 7.803,00 [€ 1.548.668,87 – € 275.000,00 = € 1.273.668,87; € 1.273.668,87 / 25.000,00 = 50,946; 51 x (1,5 x € 102) = € 7.803,00] não se revela desproporcionado em face do serviço prestado, a justificar a dispensa do pagamento do remanescente como modo de obviar à violação dos princípios constitucionais do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efectiva, da proporcionalidade e da necessidade. Sobretudo tendo em conta que nos encontramos no âmbito de um recurso interposto para o Supremo Tribunal Administrativo e em processo urgente, que demandou trabalho em medida não inferior à média requerida por cada recurso, da Secção, do Procurador-Geral Adjunto e de três Conselheiros.
Tudo visto, o requerimento não pode proceder.

2.2.4 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - No processo de execução fiscal – que tem natureza judicial (cfr. art. 103.º da LGT) – a AT intervém quer como órgão de execução fiscal, praticando actos processuais sem natureza jurisdicional, quer como sujeito activo da relação tributária que deu origem à dívida exequenda, praticando actos administrativos tributários.
II - A decisão do órgão da execução fiscal de constituir de garantia mediante hipoteca legal [prevista na alínea b) do n.º 2 do art. 50.º da LGT e no n.º 1 do art. 195.º do CPPT] deve qualificar-se como um verdadeiro acto administrativo em matéria tributária, inserido no âmbito de um procedimento tributário autónomo e funcionalmente diferente do procedimento processual dirigido à cobrança coerciva de determinadas quantias.
III - Essa decisão fica, por isso, sujeita aos princípios e normas que disciplinam a actividade administrativa tributária, designadamente aos que se referem ao princípio da participação, a assegurar mediante a notificação para o exercício do direito de audiência prévia (cfr. art. 60.º da LGT, art. 45.º do CPPT e art. 121.º do CPA).
IV - Não tendo o órgão da execução fiscal notificado o executado para aquele efeito, nem tendo ensaiado fundamento alguma para a sua dispensa, é de concluir pela invalidade do acto por preterição de formalidade legal, sancionada com a anulação.


* * *

3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes deste Supremo Tribunal Administrativo, em conferência, acordam em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.

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Lisboa, 11 de Abril de 2018. - Francisco Rothes (relator) - Aragão Seia - Dulce Neto.