Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
697/23.3TXPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: WILLIAM THEMUDO GILMAN
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
REGIME APLICÁVEL
Nº do Documento: RP20240403697/23.3TXPRT-A.P1
Data do Acordão: 04/03/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELA CONDENADA.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - A liberdade condicional não se confunde com o termo ou fim de cumprimento da pena de prisão.
II - A execução da pena de prisão continua, só que deixa de ser executada na cadeia passando a um regime próximo da suspensão da execução da pena de prisão com regime de prova ou sujeita a deveres e condições.
III - No cumprimento da missão de reintegração do agente na sociedade, a liberdade condicional assume um papel crucial e constitui um incidente, medida ou etapa normal da execução da pena de prisão, desejada pelo legislador como regra em todas as execuções.
IV - Por via de regra e sob pena de fracasso da missão atribuída ao direito penal executivo a execução de uma pena de prisão passará sempre pela liberdade condicional facultativa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 697/23.3TXPRT-A-P1



Sumário (da responsabilidade do relator):
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Relator: William Themudo Gilman
1ª Adjunta: Paula Cristina Jorge Pires
2º Adjunto: Jorge Langweg


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Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:


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1 - RELATÓRIO
No Processo n.º 697/23.3TXPRT-A do Tribunal de Execução das Penas do Porto - Juízo de Execução das Penas do Porto - Juiz 5, em 04.12.2023, a Sra. Juiz proferiu decisão de não colocar a condenada AA em liberdade condicional.
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Não se conformando com esta decisão, recorreu a condenada, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões: (transcrição):
«1- A arguida recorre do despacho que decidiu não a colocar em liberdade   condicional nos ½, 2/3 (!) da pena 2- A arguida aceita os factos dados como provados e vertidos nos Pontos A,B e C
3- Impugna o seguinte ponto, “ l) Confrontada com os factos que deram origem à sua condenação, assume a prática dos mesmos e embora verbalize arrependimento apresenta discurso essencialmente autocentrado nos custos da reclusão para si e para a sua família, sem assunção cabal da culpa pessoal, necessitando de consolidar a reflexão genuína sobre os danos causados às vitimas e à sociedade.”
Prova que merece entendimento diverso,
Declarações prestadas pela arguida (Ficheiro áudio integrado no sistema Citius, referente à diligência de dia 23.11.23 ref 6087697, com inicio entre as 10.01 e terminus 10.12 do mesmo dia
4- Das declarações prestadas pela arguida quer em julgamento e enquanto reclusa no conselho técnico realizado afere-se que a mesma tem consciência da ilicitude e da danosidade da conduta que praticou, descrevendo as ações que desempenhou na prática do crime, sendo que colocou as consequências do crime.
Do relatado não se vislumbra onde o tribunal a quo retira que os custos da prática do crime se centram na sua reclusão e nos custos para a sua família!!, que não deixa de os ter sendo mãe, de crianças de tenra idade tem a consciência da sua culpa, também junto destas, mas igualmente da danosidade junto de terceiros.
O que decorre das suas declarações é precisamente o inverso!
A reclusa sempre apresentou espirito critico, durante o julgamento e após, a mesma apresentava uma culpa mitigada pela sua adição, não fumando há mais de 4 anos.
As consequências junto das vitimas obviamente ocorrem mas o tribunal deve ter em conta que a danosidade do haxixe é menos pernicios do que as drogas duras e mais nesta fase de cumprimento deve ter se em conta razões d e prevenção especial e resulta que as mesmas estão manifestamente acauteladas, veja se o espirito critico da reclusa a inserção social, a estrutura familiar apoio e retaguarda hábitos de trabalho e projetos tendo tido em audiençia de julgamento proposta imediata de trabalho, cremos assim que facilmente ira ingressar no meio e no mundo laboral.
Abstinente há mais de 4 anos.
Que entretanto, já foi mãe novamente tem uma criança com 18 meses. E outra de 4 anos.
Esteve e teve maturidade para se manter nessa condição mais de três anos no regime de permanência na habitação sem que por qualquer forma tenha sido objeto de comunicação ou incidente por qualquer incumprimento muito pelo contrário, manteve capacidade para ponderar o passado reajustar o presente e perspetivar o futuro já em julgamento visava trabalhar no estrangeiro contava com o forte apoio e retaguarda familiar.
O próprio companheiro co arguido no id processo já foi restituído à liberdade e não deixa de ser curioso que o mesmo IRS que ora foi desfavorável foi o que na morada do próprio foi favorável o que e alias compatível, com o descrito supra em h e g.
Pensamos que o facto de não ter beneficiado de medidas de flexibilização no caso não são relevantes pois a condição em que se encontrou patenteia uma medida de flexibilização de duração de mais de três anos.
5- Ocorre por conseguinte nulidade da sentença proferida por violação do disposto no artigo 379º do C.P.P. por remissão ao artigo 374º nº2 do C.P.P. na medida em que face aos factos dados como assentes, não logrou o tribunal a quo justificar a não concessão da liberdade condicional (uma vez que todos os factos dados como assentes são favoráveis à concessão da liberdade condicional).
6- Ocorre ainda erro notório na apreciação da prova por se percecionar de forma grosseira uma conclusão contrária ao meio de prova que o sustenta, ex vi artigo 410º nº 2 b) do C.P.P.
7- A arguida esteve sensivelmente 3 anos em OPHVE, sem registo de qualquer incidente, sendo que para além de assumir o crime pelo qual foi condenada, desde que entrou no EP (em data já posterior ao meio da pena...) manteve comportamento adaptado e procurou atividade profissional na lavandaria
9- Veja-se o decidido no âmbito do Processo: 692/23.2TXPRT- A, Juízo de
Execução das Penas do Porto - Juiz 1, em que a um coarguido do processo pelo qual cumpre pena (sendo uma pena maior), foi colocado em liberdade condicional pelo mesmo tribunal de execução de penas... violando-se o princípio da igualdade, ex vi artigo 13º da C.R.P. ao não conceder à arguida a adaptação à liberdade condicional.
Ao apreciar se o ½ e os 2/3 nesta data viola se direitos fundamentais da reclusa.
Na verdade a mesma atingira processualmente os 2/3 apenas em Março, excede se o período de 60 dias (antecipado) relativamente ao período ou marco ao remeter se para a renovação da instancia a nova apreciação/ponderação viola-se o disposto no artº 62 b do C.E.P.
 Mais, a reclusa so não beneficiou de precária devido ao facto de estar há cerca de 4 meses no E.P. em fevereiro já poderia beneficiar atento o período de permanência a se fosse devidamente ponderado na data a apreciação cremos que a reclusa reuniria todas as condições objetivas e subjetivas para poder beneficiar dessa prerrogativa legal!
 Ao assim se considerar coarctou se de direitos fundamentais mormente o descrito no 62 b do C.E.P
10- Deve a decisão proferida ser substituída por outra que lhe conceda a liberdade condicional, caso tal não se entenda ordenar-se a remessa para nova apreciação nos 2/3 da pena.»
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O Ministério Público, nas suas alegações de resposta, pronunciou-se pela improcedência do recurso, tendo apresentado as seguintes conclusões (transcrição):
«1.- a decisão recorrida não é uma sentença, mas um despacho judicial, pelo que não lhe são oponíveis as nulidades especialmente previstas para aquela;
2.- da decisão recorrida não resultam quaisquer incongruências, falha grosseira, contradição entre factos, ou juízos ilógicos ou arbitrários;
3.- de forma clara e sem margem para qualquer dúvida na decisão recorrida é afirmado ser “… a presente apreciação de eventual concessão de liberdade condicional, é feita em renovação de instância com referência aos dois terços da pena que serão atingidos no dia 09/03/2024, consumindo, deste modo, a prevista no artigo 61.º, n.º 3 do Código Penal;
4.- ex vi o nº 3, da al. a), do nº 2, do artº 61º, do Cód. Penal, decorre que no marco dos dois terços do cumprimento da pena, a concessão de liberdade condicional demanda, exige, que seja possível a formulação de um juízo de prognose favorável quanto à adoção de uma vida readaptada, em liberdade, atendendo, entre os demais pressupostos às circunstâncias do caso e à evolução da personalidade da condenada ao longo do cumprimento da pena;
5.- a reclusa cumpre a pena de 5 Anos e 6 Meses de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, sendo que na pena única em que inicialmente foi condenada, viu ser perdoada a pena parcelar em que também foi condenada pela prática de um crime de detenção de arma proibida;
6.- a reclusa esteve no cumprimento de medida de coação de Obrigação de Permanência na Habitação, com Vigilância Eletrónica até ao trânsito em julgado da sentença, pelo que só em julho de 2022 deu entrada no EP, pelo que está há pouco mais de seis meses em reclusão;
7.- decorre, da comparação entre as declarações prestadas e os factos que foram apurados em sede de julgamento quanto ao modo como praticou o crime, não ajuizar a reclusa o desvalor do mesmo e suas efetivas e verdadeiras consequências nefasta para muitos consumidores a quem vendia estupefacientes;
8.- ao contrário do que pretende fazer crer, a reclusa vendia, também, e em quantidades muito substanciais, cocaína e liamba, estupefacientes que comprava em bruto, e não só haxixe, como pretende fazer crer no recurso, mas igualmente cocaína, como melhor resulta dos factos dados como provados na sentença condenatória;
9.- a reclusa procedia à preparação dos estupefacientes em doses, para o que contratou coarguidos, organizava o seu armazenamento e toda a logística da sua venda, diretamente por si e através de terceiros que para tal contratava;
10.- atendo o modo como organizou e dirigiu toda a atividade de tráfico de estupefacientes não deixa de ser audacioso pretender que uma mera verbalização de arrependimento e afirmação que à data não tinha noção do mal que estava a fazer às pessoas e que optou pela prática do crime para obter dinheiro fácil, e, sublinha-se chamar à colação o ter de cuidar da sua avó, que falecera em 2017, baste à reclusa para demandar, em sede de recurso, a sua colocação em liberdade condicional.
11.- o companheiro e coarguido era consumidor de estupefacientes, tendo a mesma registado um período desse de consumos de estupefacientes pelo que revela hipocrisia se não mesmo sarcasmo, afirmar que não tinha noção do mal que estava a fazer às pessoas;
12.- são declarações da reclusa, que comparadas com os factos que em concreto praticou na atividade delituosa de tráfico de droga, que, fundamentadamente determinaram a decisão a quo no sentido da não concessão da liberdade condicional, por a mesma não apresentar consciência crítica adequada, consistentemente e interiorizada, antes presentando um discurso que crê ser o suficientemente expectável para a concessão daquela;
13.-o Conselho Técnico foi desfavorável à concessão de liberdade condicional;
14.- o recurso não merece provimento.
Nestes termos e nos demais de direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida, assim se fazendo JUSTIÇA»
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Nos termos do artigo 414º, nº 4, do Código de Processo Penal (aplicável ex vi do artigo 239º do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade), a Sra. Juiz a quo sustentou a decisão recorrida e proferiu na mesma ocasião despacho a corrigir lapso de escrita constante da decisão recorrida, porquanto ali se escreveu que os membros do Conselho Técnico emitiram parecer “favorável, por maioria” quando o que se pretendia escrever era “desfavorável, por maioria”. O despacho foi devidamente notificado.
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Nesta instância, o Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP.
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Colhidos os vistos e indo os autos à conferência, cumpre apreciar e decidir.
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2 - FUNDAMENTAÇÃO

2.1- QUESTÕES A DECIDIR

Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Face às conclusões extraídas pela recorrente da motivação apresentada, as questões a apreciar e decidir são:
- Nulidade do despacho recorrido, por falta de fundamentação, nos termos dos artigos 374º, n.º 2 e 379º, n.º 1 al. a) do CPP;
- Vícios da decisão - contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova - artigo 410º, n.º 2, als. b) e c) do CPP.
- Impugnação da matéria de facto.    
- Verificação ou não dos pressupostos de que depende a concessão da liberdade condicional.
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2.2 - A DECISÃO RECORRIDA:

É o seguinte o teor da decisão recorrida (transcrição, com exceção das notas de rodapé):
 «I. Relatório
Corre termos o presente processo de liberdade condicional referente à reclusa AA, devidamente identificada nos autos, a qual cumpre a pena à ordem do Processo nº 2/18.0PFGDM da Comarca do Porto - JC Criminal – J11.
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Foi realizada a instrução, com elaboração dos pertinentes relatórios e junção de CRC atualizado.
Reunido o Conselho Técnico, procedeu-se à audição do recluso, o qual consentiu na aplicação da liberdade condicional.
Os elementos do Conselho Técnico emitiram parecer desfavorável, por maioria ( com voto favorável do representante do serviço de vigilância e segurança ) à concessão da liberdade condicional.
O Ministério Público teve vista do processo, emitindo parecer desfavorável à concessão da liberdade condicional.
II. Factos provados
Com relevo para a decisão a proferir, mostram-se assentes os seguintes factos:
A. No âmbito do processo da pena em execução –Processo nº 2/18.0PFGDM da Comarca do Porto - JC Criminal – J11 a reclusa encontra-se atualmente a cumprir uma pena de 5 anos e 6 meses de prisão (após a decisão de aplicação do perdão previsto na Lei 38-A/2023, de 2/08), pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes.
B. A reclusa esteve em OPHVE entre 11/07/2020 e 28/07/2023. Atingiu o meio da pena em 09.04.2023, os dois terços serão alcançados em 09.03.2024, estando o termo previsto para 09.01.2026.
C. Para além da referida em A. tem averbada no seu CRC uma condenação em pena de multa, já extinta, pela prática de um crime de Ofensa à Integridade Física.
D. A reclusa:
a) Nasceu em .../../1992
b) Habilitou-se com o 9.º ano de escolaridade.
c) Concretizou, maioritariamente, atividade laboral na área da restauração e hotelaria.
d) Consumia haxixe, sem aparente relevância disfuncional no seu quadro de saúde e funcionamento social, assumindo abstinência do consumo de estupefacientes há cerca de 4 anos, aquando o nascimento da sua filha mais velha.
e) Em liberdade pretende integrar, juntamente com a mãe e os dois filhos menores, com 4 anos e 18 meses de idade, habitação pertença do marido da irmã, BB, agregado que se encontra emigrado na Irlanda e de quem beneficia de apoio.
f) O companheiro, pai dos seus descendentes, coarguido no presente processo, encontra-se atualmente em liberdade condicional e integra o referido agregado.
g) Trata-se de um apartamento, de tipologia 2, arrendado em nome do marido da irmã, com boas condições de habitabilidade. Este casal encontra-se a viver na Irlanda, vindo a Portugal por ocasião de períodos de férias.
h) A condenada é conhecida no meio comunitário onde pretende fixar residência, não sendo perspetivados sentimentos de rejeição à sua presença.
i) Em liberdade não apresenta projeto concreto em termos laborais. O companheiro ainda não trabalha.
j) Enquanto não dispuser de rendimentos próprios, a subsistência da condenada será assegurada pelos irmãos, todos laboralmente ativos.
l) As despesas fixas mensais com renda do imóvel, eletricidade, água, luz e telecomunicações representam cerca de 650€ mensais, são suportadas pela irmã e cunhado da condenada.
m) Ainda não beneficiou de medidas de flexibilização da pena. n) Em contexto prisional, apresenta comportamento adaptado. o) Frequenta o ensino secundário e trabalha na cozinha.
p) Confrontada com os factos que deram origem à sua condenação, embora verbalize arrependimento, apresenta discurso essencialmente autocentrado nos custos da reclusão para si e para a sua família, com dificuldades em antecipar as consequências da sua conduta, necessitando de evoluir e consolidar a reflexão sobre os danos causados às vitimas e à sociedade.
q) Ouvida, prestou as declarações que se encontram gravadas conforme auto de fls. 73, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

III. Motivação da matéria de facto
Para prova dos factos acima descritos o tribunal atendeu aos seguintes elementos constantes dos autos, analisados de forma objetiva e criteriosa, complementados pelos esclarecimentos prestados em sede de Conselho Técnico:
- Certidão do acórdão condenatório e da liquidação da pena; - Certificado do Registo Criminal;
- Ficha biográfica;
- Relatório dos serviços de educação;
- Relatórios dos serviços de reinserção social; - Declarações da reclusa de fls. 73

IV. Fundamentação jurídica
O instituto da liberdade condicional, enquanto incidente de execução da pena de prisão que antecipa a libertação do condenado, visa eliminar ou, pelo menos, esbater, o efeito criminógeno da pena e consequente aumento das dificuldades dos condenados em regressarem, de forma integrada, ao seio da comunidade, terminado que seja o respetivo cumprimento (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, págs. 528 e 542).
Pode ler-se, a propósito, no ponto 9 do Preâmbulo do C. Penal (1982): «Definitivamente ultrapassada a sua compreensão como medida de clemência ou de recompensa por boa conduta, a liberdade condicional serve, na política do Código, um objetivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão.».
Não estamos, assim, perante um instituto concebido como medida de clemência ou como mera compensação pela boa conduta prisional, mas antes, como um incentivo e auxílio ao condenado, uma vez colocado em meio livre, a não recair na prática de novos delitos, permitindo-lhe uma adaptação gradual à nova realidade e a consequente adequação da sua conduta aos padrões sociais.
Daí que, sejam razões de prevenção geral positiva e de prevenção especial de socialização que estão na base do instituto, em plena conformidade, aliás, com as finalidades das penas assinalados no art. 40º, nº 1, do Código Penal (cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 528).
Estatui o art. 61º do Código Penal que:
1 - A aplicação da liberdade condicional depende sempre do consentimento do condenado.
2 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses se:
a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e
b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem e da paz social.
3 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo seis meses, desde que se revele preenchido o requisito constante da alínea a) do número anterior.
4 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, o condenado a pena de prisão superior a seis anos é colocado em liberdade condicional logo que houver cumprido cinco sextos da pena.
5 - Em qualquer das modalidades a liberdade condicional tem uma duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, até ao máximo de cinco anos, considerando-se então extinto o excedente da pena.
A concessão da liberdade condicional depende da verificação de pressupostos formais e substanciais.
São pressupostos de natureza formal de tal instituto os seguintes:
a) O consentimento do condenado (artigo 61º, nº 1, do Código Penal (CP);
b) O cumprimento de, pelo menos, seis meses da pena de prisão ou da soma das penas de prisão que se encontram a ser executadas (artigos 61º, nº 2 e 63º, nº 2, do CP);
c) O cumprimento de 1/2, 2/3 ou 5/6 da pena de prisão ou da soma das penas de prisão que se encontram a ser executadas (artigos 61º, nºs 2, 3 e 4 e 63º, nº 2, do CP).
A liberdade condicional quando referida a 1/2 ou a 2/3 da pena (liberdade condicional facultativa) consiste num poder-dever do tribunal vinculado à verificação de todos os pressupostos formais e materiais estipulados na lei, sendo que estes últimos são em número diferente consoante estejamos perante o final do primeiro ou do segundo dos supra referidos períodos de execução da pena de prisão.
Por seu turno, são requisitos substanciais (ou materiais) da concessão da liberdade condicional (exceto na situação do n.º 4):
a) que, de forma consolidada, seja de esperar, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer crimes, tendo-se para tanto em atenção as circunstâncias do caso, a sua vida anterior, a respetiva personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão (que constituem índices de ressocialização a apurar no caso concreto); e
b) a compatibilidade da libertação com a defesa da ordem e da paz social (exceto, também, na situação do n.º 3).
Ora, no que se reporta aos requisitos da liberdade condicional, é comummente aceite e lido que a alínea a) se reporta e assegura finalidades de prevenção especial, ao invés da alínea b) que antes visa finalidades de prevenção geral.
Como tal, dando o efetivo relevo ao fito de reinserção social por parte da liberdade condicional, vislumbrável através da condução de vida por parte do libertado condicional de modo socialmente responsável e sem cometer crimes, haverá para tanto que no caso em análise, para efeitos da alínea a) – no propósito de prevenção especial inerente – atender-se, fundadamente, a tais dimensões subjetivas pelas seguintes vias:
1) circunstâncias do caso: tal análise deve ser concretizada na valoração concreta dos crimes cometidos e pelos quais operou condenação em pena de prisão, o que se deve fazer por via da apreciação da natureza dos crimes e das realidades normativas que deram azo à efetiva determinação concreta da pena, face ao art. 71.º CP e, por efeito inerente, à medida concreta da pena, assim se atendendo ao grau de ilicitude do facto, ao concreto modo de execução deste, bem como à gravidade das suas consequências e ao grau de  violação dos deveres impostos ao agente; determinando a intensidade do dolo ou da negligência considerada; atendendo aos provados sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; acompanhando as condições pessoais do agente e a sua situação económica; atentando na conduta anterior ao facto e na posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; considerando a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta foi censurada através da aplicação da pena.
2) consideração da vida anterior: tal análise deve ser concretizada na valoração concreta do constante do CRC – simples existência, ou não, de antecedentes criminais.
3) personalidade do condenado: tal análise deve ser concretizada na valoração concreta, ainda que por via estatística, do passado criminal postulado nos existentes antecedentes criminais, elemento este que se pode revelar como fortemente indiciador de uma personalidade disforme ao direito e, como tal, não merecedora da liberdade condicional , tudo com o firme propósito de aquilatar e compreender se o determinado percurso criminoso do condenado se gerou em circunstâncias que o mesmo não controlou, ou não controlou inteiramente (a chamada culpa pela condução de vida).
4) evolução da personalidade do condenado durante a execução da pena de prisão: tal análise deve ser concretizada na valoração concreta, não só pelos comportamentos assumidos institucionalmente pelo condenado no seio prisional (a vulgar esfera interna psíquica do condenado), mas essencialmente por via dos padrões comportamentais firmados de modo duradouro e que indiciem um concreto e adequado processo evolutivo de preparação para a vida em meio livre, sempre temperados nos limites da liberdade condicional.
Por seu turno, para efeitos da alínea b) – no propósito de prevenção geral inerente – há que atender a tal dimensão subjetiva através do assegurar do funcionamento da sua vertente positiva, que a lei, outrossim, já prevê como uma das suas valências ao instituir que a mesma serve a defesa da sociedade (art. 42º, nº1 do Cód. Penal.
Por último, em termos de duração da liberdade condicional, fixa o nº5 do art. 61º do Cód. Penal, que esta tem uma duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, até ao máximo de cinco anos, considerando-se então extinto o excedente da pena.
Como questão prévia há que referir que a presente apreciação de eventual concessão de liberdade condicional, é feita em renovação de instância com referência aos dois terços da pena que serão atingidos no dia 09/03/2024, consumindo, deste modo, a prevista no artigo 61.º, n.º 3 do Código Penal. De outro modo, uma hipotética renovação da instância em 09/03/2024, não permitiria (contados da data do trânsito em julgado da presente decisão) cumprir o período de 3 meses previstos no artº 173º, nº 1 do CEP para a solicitação dos relatórios ali previstos e, mesmo assim, imporia que em simultâneo com o cumprimento da notificação desta decisão, fosse solicitado o cumprimento do disposto no artigo 173.º, n.º 1, do Código de Execução das Penas, o que não deixaria de ser contraditório e, em última análise, meramente formal, uma vez que não seria expectável que em tão curto lapso temporal, pudessem ser revertidos os fundamentos que apoiaram a decisão proferida. Acresce que a apreciação com referência já aos dois terços da pena, acaba por ser mais favorável à condenada, porque não é exigível a verificação do requisito previsto no artigo 61.º, n.º 2, b) do Código Penal.
Assim, quanto à prevenção especial, a questão que cumpre ao Tribunal responder é, então, a de saber – num juízo de prognose – se a personalidade da condenada e a evolução desta durante a reclusão, gerou um efectivo e empreendido processo de mudança, em moldes tais que no futuro se pode fundadamente esperar que não volte a cometer crimes
Para tal, nada melhor do que recorrer ao lugar paralelo reportado no Ac. da RP de 27jan2016 (1), onde se pode ler que: “Para poder emitir um juízo favorável à concessão de liberdade condicional o juiz de execução das penas tem de ponderar o passado do condenado, avaliando o seu progresso.” – cit - Ac. RP de 31/10/2012, proc 3536/10.1TXPRT-H.P1, in www.dgsi.pt e é neste seu progresso, finalidade da execução da pena (art. 42º/1CP “A execução da pena de prisão, servindo a defesa da sociedade e prevenindo a prática de crimes, deve orientar-se no sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes”) que o juízo de prognose favorável à libertação do arguido tem o seu fundamento, por ai radicar a necessidade ou não de continuação do cumprimento da pena.
A resposta é ainda negativa.
No caso em apreço, não pode deixar de relevar o facto de a reclusa se encontrar em cumprimento de pena em estabelecimento prisional apenas desde 28/07/2023, ou seja, há pouco mais de três meses, pelo que, pese embora o percurso prisional venha a ser adaptado e investido a nível académico e laboral, essa avaliação carece ainda de consolidação e confirmação.
Acresce que a reclusa não apresenta ainda uma consciência critica adequada, designadamente, quanto às consequências nefastas da sua conduta para as vitimas e para a sociedade, apresentando um discurso adaptado aquilo que julga que o interlocutor quer ouvir, mas superficial e incoerente (basta atentar na afirmação da reclusa quando afirma que não tinha consciência dos danos que o consumo de estupefaciente causava…),verbalizando arrependimento essencialmente centrado nos custos da reclusão para si e para os seus, o que demonstra ainda a existência de necessidades relevantes ao nível da prevenção especial.
Como se refere no Ac. da RC de 25/2/2015 (disponível em www.dgsi.pt) "I – Para se poder concluir por um juízo de prognose favorável tendente à concessão da liberdade condicional, não basta que o condenado tenha em reclusão bom comportamento, e que aparente uma perspectiva de vida de acordo com as regras sociais vigentes. II – Para além da vontade subjectiva do condenado, o que releva decisivamente é a sua "capacidade objectiva de readaptação", de modo que as expectativas de reinserção sejam manifestamente superiores aos riscos que a comunidade deverá suportar com a antecipação da sua restituição à liberdade."
Sem uma consciência critica satisfatória a estes níveis as necessidades de prevenção especial também se mantém elevadas, pois a reclusa nem sequer tem rendimentos próprios (do trabalho ou outros) assegurados, ficando dependente, pelo menos numa primeira fase, de apoio de terceiros, e estará, portanto, novamente exposta a possibilidades e tentações de obtenção de dinheiro fácil.
É certo que no período que esteve em OPHVE não houve notícia de comportamentos desviantes por parte da reclusa mas não se pode esquecer de que se tratava de uma situação especial vivenciada pela reclusa e o que se pretende com o juízo de prognose favorável não é apenas que a reclusa não cometa crimes num período em que está sujeita a medida de coacção e em que decorre contra si um processo crime ou no período da liberdade condicional mas sim que se afaste definitivamente da prática criminosa, para o que se mostra essencial que alcance uma consciência critica satisfatória a todos os níveis.
Assim, pese embora o percurso prisional adaptado e investido e o apoio familiar de que beneficia (mas do qual já dispunha e não foi suficiente para a afastar da prática criminosa, uma vez que, segundo afirmou, a ambição de ganhar dinheiro fácil, falou mais alto), a reintegração social da reclusa e o seu afastamento da prática de novos crimes passará, seguramente, por uma evolução e interiorização sincera das consequências nefastas do tráfico para os outros – as vitimas e a sociedade em geral- deixando de se continuar a centrar nos prejuízos que a reclusão lhe causou a si e aos seus.
Note-se que, como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 11/10/2017, in www.dgsi.pt:
“Não há qualquer princípio de presunção de capacidade de conformação às normas do direito num comportamento futuro, não havendo por isso um dever do julgador de libertar condicionalmente salvo se se demonstrar uma indubitável capacidade de, em liberdade, levar uma vida sem cometer novos crimes.”
Nas palavras de Jescheck (Hans-Heinrich Jescheck e Thomas Weigend, Tratado de Derecho Penal, págs. 1152 e 1153), o tribunal deve correr um risco prudente, mas se tem sérias dúvidas sobre a capacidade do arguido para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa.
Em síntese, sendo de prever que a saída em liberdade condicional neste momento não facilitaria a readaptação da condenada nem alcançaria as finalidades da pena, entendemos que não estão verificadas as condições para que aquela seja concedida.
V. Decisão
Pelo exposto, tudo visto e ponderado, atentas as disposições legais citadas e as considerações expendidas, decide-se não conceder a liberdade condicional à condenada AA, pelo que o cumprimento efetivo da pena de prisão se manterá.
Notifique a condenada, o IDO/IM e o Ministério Público.
Após trânsito em julgado, comunique à equipa de Reinserção Social da DGRSP e ao processo da condenação.
Consigno que para efeitos de renovação anual de instância se deve atender à data de 4 de Dezembro de 2024 (Alarme Citius/Habilus).
Deve a secção, em 4 de Setembro de 2024, levar a cabo as solicitações de referência ao art. 173º do CEP (solicitar relatório aos serviços prisionais e aos serviços de reinserção social).
D.N.
Porto, d.s.»
*

2.3- APRECIAÇÃO DO RECURSO.

2.3.1- Nulidade do despacho recorrido, por falta de fundamentação, nos termos dos artigos 374º, n.º 2 e 379º, n.º 1 al. a) do CPP

Entende a recorrente na sua visão que «ocorre por conseguinte nulidade da sentença proferida por violação do disposto no artigo 379º do C.P.P. por remissão ao artigo 374º nº2 do C.P.P. na medida em que face aos factos dados como assentes, não logrou o tribunal a quo justificar a não concessão da liberdade condicional (uma vez que todos os factos dados como assentes são favoráveis à concessão da liberdade condicional).»
Esta visão da recorrente não tem qualquer sentido, pois a ter razão no que afirma o que se verificaria seria um erro de direito da decisão recorrida pois a correta seria a decisão de concessão de liberdade condicional. Não se trata manifestamente de falta de fundamentação.
Aliás, quanto à questão da falta de fundamentação haverá de se considerar que a decisão que aprecia a concessão da liberdade condicional é, nos termos conjugados dos artigos 177º, n.º 2, do CEPMPL e 97º, n.º 1, al, b) do CPP, um ato decisório do juiz, constituindo um despacho que, não sendo de mero expediente, não é uma sentença, porquanto não conhece a final do objeto do processo.
Claro que sendo uma decisão judicial está sujeita a fundamentação, nos termos do artigo 205º, n.º1 da Constituição da República: «As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei
E compreende-se a razão de ser desta imposição quer na decisão judicial em geral quer no processo penal, pois a fundamentação da decisão, dando a conhecer aos destinatários da decisão, à comunidade em geral e, em caso de recurso, ao tribunal da instância superior, as razões pelas quais o Tribunal decidiu num sentido ou noutro, é uma exigência do Estado de Direito e do direito a um processo justo e equitativo, onde constitui uma garantia de defesa, desde logo através do direito ao recurso, assegurado pelo artigo 32º, n.º 1 da Constituição.
Este princípio constitucional do dever de fundamentação das decisões judiciais é depois concretizado pelo legislador ordinário, variando o grau de fundamentação exigido de acordo com as matérias e relevância das decisões em causa, o que é claramente percetível no Código de Processo Penal na diferença de tratamento dada às sentenças, aos despachos e aos despachos de mero expediente.
Com efeito, de acordo com o artigo 97.º, n.º 5 do CPP, «Os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.», o mesmo dizendo o artigo 146º, n.º 1 do CEPMPL relativamente aos atos decisórios do juiz de execução das penas.
O grau de exigência na fundamentação das sentenças é superior ao dos despachos, conforme se retira do disposto nos artigos 374º, 375º e 379º do CPP.
A decisão que aprecia a liberdade condicional, embora sujeita ao dever geral de fundamentação do artigo 97º, n.º 5 do CPP e do artigo 146º, n.º 1 do CEPML, não está sujeita às exigências de fundamentação das sentenças, pois o artigo 374º do CPP é aplicável apenas às sentenças, conforme resulta logo da sua inserção sistemática.
É certo que na decisão que aprecia a liberdade condicional devem ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão e se estes por fundamentação deficiente impossibilitarem a sindicância da decisão pelo Tribunal de recurso verifica-se um vício daquela.
Atendendo ao princípio da taxatividade das nulidades do artigo 118º d), n.º 1 e 2 do CPP, a deficiente fundamentação da decisão que aprecia a colocação em liberdade condicional constitui mera irregularidade, a arguir no prazo de 10 dias, previsto no artigo 152.º, n.º 1, do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEPMPL)[1].
A recorrente não arguiu a irregularidade atempadamente, pelo que a mesma, a verificar-se, se mostraria sanada.
Não obstante, um despacho de apreciação da liberdade condicional de tal modo insuficientemente fundamentado que impossibilite a apreciação da sua bondade pelo Tribunal de recurso, além de irregular, padece de valor enquanto decisão, pelo que tal irregularidade é de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 123º, n.º 2 do CPP, podendo ser ordenada a sua reparação.
Apreciemos então o despacho de apreciação da liberdade condicional proferido nos autos em ordem a concluir da sua eventual irregularidade de conhecimento oficioso por falta de fundamentação.
A decisão recorrida, na sua estrutura, começando por um relatório, passando a enunciar de seguida os factos que se entenderam com interesse para a decisão, com uma motivação de facto sintética, passando à fundamentação jurídica e concluindo pela decisão de não conceder a liberdade condicional, não só é tecnicamente correta como permite a apreciação da sua bondade pelo Tribunal de recurso.
Concluímos, assim, não se verificar qualquer nulidade ou sequer irregularidade cognoscível que possa afetar o ato decisório em recurso.
Assim, não se verificando qualquer invalidade, passemos a conhecer da questão do invocado erro notório na apreciação da prova.

2.3.2- Vícios da decisão - contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova - artigo 410º, n.º 2, als. b) e c) do CPP.
Como questão prévia adianta-se que sendo a decisão recorrida por definição um ato decisório que tem de ser fundamentado, mais devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão, é-lhe inerente a suscetibilidade de ser afetada por um dos chamados vícios da decisão, previstos no artigo 410º, n.º 2 do CPP, os quais podem ser invocados e conhecidos em recurso.
Com efeito, face a tal necessidade de fundamentação, pode resultar do próprio texto da decisão que não foram considerados todos os factos necessários para alcançar a solução jurídica do caso, ou que a decisão é contraditória nos seus factos e fundamentos, ou ainda que é patente o erro na apreciação da prova.
O facto de a decisão recorrida ser um despacho e não uma sentença não impede que possa sofrer de tais vícios lógicos e endógenos ou que os mesmos não possam ser detetados pela sua simples leitura, invocados perante e conhecidos pelo tribunal de recurso[2].
Entende a recorrente que «a decisão recorrida padece do vício do erro notório na apreciação da prova por se percecionar de forma grosseira uma conclusão contrária ao meio de prova que o sustenta». Mas depois, sem que explique porquê, invoca o artigo 410º, n.º 2, al. b), do CPP que diz respeito à contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão. O que parece resultar lógico é que a recorrente, na dúvida sobre qual dos vícios invocar, invocou um – o erro notório - mas com os fundamentos e a alínea do outro – da contradição insanável – assim parecendo pretender cobrir todas as possibilidades. 
Seja como for, não se verifica nem um nem outro dos vícios, senão vejamos.
De acordo com o artigo 410º, n.º 2 do CPP, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.
O vício que estiver em causa, tal como resulta da norma, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos à decisão.
O vício do erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, ocorre quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Existe erro notório na apreciação da prova quando o tribunal a valoriza contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, dando como provado o que não pode ter acontecido e aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de pela simples leitura da decisão não passar o erro despercebido ao cidadão comum.
Se é certo que por um lado a recorrente invoca expressamente pelo nome o erro notório na apreciação da prova, a verdade é que da simples leitura da decisão não descobrimos qualquer erro clamoroso, que tenha resultado provado algum facto que não possa ter acontecido ou que a prova tenha sido valorada contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados.
Quanto à contradição insanável da decisão cabe referir que a mesma se verifica quando, por exemplo, um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Ora, nada disto resulta da mera leitura da decisão recorrida. Não se vislumbra qualquer das referidas contradições, muito menos insanável.
A única contradição que vimos até ao momento foi a da recorrente ao invocar um vício pelo seu nome e fundamentando-o com a argumentação de outro vício e indicando a alínea deste em vez da do primeiro. Felizmente, tal contradição é explicável pela lógica como acima referimos e, por via das dúvidas, mas sem delongas, procedemos ao conhecimento de ambos os vícios.
Assim é totalmente destituída de sentido a invocação do vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
A recorrente incorre em confusão entre os vícios da decisão e o erro de julgamento quanto à matéria de facto, pois se é certo que por um lado invoca expressamente o vício do erro notório na motivação de recurso, a verdade é que o que resulta da leitura da motivação de recurso é que se pretende impugnar um ponto da matéria de facto. Também aqui, desafortunadamente, se verifica mais um lapso da recorrente, desta vez quanto à indicação e exata transcrição do ponto em causa.
Mas sobre tal matéria de seguida nos pronunciaremos.
Concluindo, não resultam os vícios do artigo 410.º, 2, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal, o que aqui se declara.

2.3.3- Impugnação da matéria de facto.
A recorrente impugna um ponto da matéria de facto da decisão recorrida.
A natureza da decisão, despacho de (não) concessão de liberdade condicional, não impede que em sede de recurso se impugne a matéria de facto, pois que as relações conhecem de facto e de direito, como diz o artigo 428º do CPP, donde resulta que o tribunal da relação deve pronunciar-se sobre a matéria de facto objeto do recurso, analisando a impugnação que sobre ela recair e se for caso disso alterando-a, mais encontrando a solução de direito e concluindo pela procedência ou improcedência do recurso.
Este recurso em matéria de facto dirige-se apenas a uma reapreciação pelo tribunal de segunda instância da razoabilidade da decisão recorrida quanto aos pontos de facto que o recorrente considere incorretamente fixados e com base na avaliação dos elementos de prova que o recorrente indicou e que na sua visão impõem decisão diversa da recorrida, tudo nos termos do artigo 412º do CPP, comparando-os com os elementos indicados na decisão recorrida.
A recorrente indicou o concreto ponto de facto que entende estar incorretamente fixado. Só que, como já atrás referimos, fê-lo de modo deficiente. Com efeito, em primeiro lugar indica como sendo a alínea ‘l’ da decisão quando, bem lidas as coisas, se trata da alínea ‘p’ (‘Confrontada com os factos…’) e depois transcreve mal uma boa parte da referida alínea, tendo obviamente incorrido em erro de escrita, provavelmente de natureza informática, como resulta do texto. No fim, feitas as contas e considerando a experiência da análise de decisões sobre liberdade condicional onde costuma constar quase invariavelmente um ponto da matéria de facto que se inicia com expressão «Confrontado/a com os factos, … disse/verbaliza/apresenta/demonstra …», sabemos qual é o ponto impugnado: a alínea ‘p’ da matéria de facto:
«Confrontada com os factos que deram origem à sua condenação, embora verbalize arrependimento, apresenta discurso essencialmente autocentrado nos custos da reclusão para si e para a sua família, com dificuldades em antecipar as consequências da sua conduta, necessitando de evoluir e consolidar a reflexão sobre os danos causados às vitimas e à sociedade.»
Entende a recorrente que contrariamente ao descrito no referido ponto, «a recorrente das declarações prestadas quer em julgamento quer no conselho técnico resulta que a mesma tem consciência da ilicitude e da danosidade da conduta que praticou, descrevendo as ações que desempenhou na prática do crime, sendo que colocou as consequências do crime» e que «não se vislumbra onde o tribunal a quo retira que os custos da prática do crime se centram na sua reclusão e nos custos para a sua família, que não deixa de os ter sendo mãe…, mas igualmente da danosidade junto de terceiros».
Tudo visto, a recorrente cumpriu, embora deficientemente, com o duplo ónus da especificação do concreto ponto de facto que considera incorretamente fixado e das concretas provas que impõem decisão diversa da tomada, as declarações da recorrente, indicando o registo das declarações gravadas, nos termos do artigo 412º do CPP.
Nesta instância foram ouvidas na íntegra as declarações prestadas pela reclusa em 23.11.2023, ao abrigo do artigo 176º, n.º 5 do CEPMPL, bem como foram analisados os documentos (CRC, ficha biográfica, certidão do acórdão condenatório e da liquidação da pena; Relatório dos serviços de educação; Relatórios dos serviços de reinserção social).
O que resulta das declarações da reclusa, a qual foi inquirida durante cerca de 10 minutos pela Sra. Juiz, é que a reclusa verbaliza arrependimento e consciência das vítimas dos seus atos, consciência essa que agora para ela é evidente, sendo que na altura não tinha essa consciência ou nem tinha parado para pensar nisso. Respondeu a todas as perguntas colocadas, esclarecendo como se iniciou a sua atividade de tráfico de estupefacientes. Respondeu ainda quanto aos seus projetos futuros, designadamente em termos de trabalho e de cuidar dos filhos. Considerando o relatório social de 13.10.2023, lendo especialmente o seu ponto 6 (Relação com o crime cometido), vemos que a reclusa «assume a envolvência em comportamentos desviantes, evidenciando sentimentos de culpa e vergonha em relação à prática crimina. Demonstrou vontade de alterar a sua conduta, tendo apresentado um comportamento normativo durante a medida de coação de permanência na habitação com vigilância eletrónica.»
Ora, conjugando as declarações ouvidas com o relatório da DGRSP não vemos como se possa chegar à conclusão a que chegou a decisão recorrida na alínea «p», ou seja, que confrontada com os factos que deram origem à condenação «a arguida apresente discurso essencialmente autocentrado nos custos da reclusão para si e para a sua família»; tenha «dificuldades em antecipar as consequências da sua conduta»; «ou necessite de evoluir e consolidar a reflexão sobre os danos causados às vitimas e à sociedade».
O que resulta quer da audição das declarações quer da leitura do relatório social é que nas primeiras a reclusa verbalizou arrependimento por várias vezes, pergunta essa que foi feita de várias formas, bem como que respondeu às perguntas que lhe foram feitas sobre o seu futuro, pelo que não vislumbramos o tal discurso autocentrado nos custos da reclusão. Aliás, é de notar que, conforme se refere no relatório da DGRSP no ponto 3.1 (competências adquiridas- competências pessoais e emocionais), a reclusa apresenta boa capacidade de racionalização e gestão emocional, comprovada pelo bom senso de entregar o seu filho de 1 ano à família, após ter percebido que este não estava equilibrado no EP. Nem tão pouco se pode retirar quer do discurso da arguida nas suas declarações quer do relatório social que a arguida tenha «dificuldades em antecipar as consequências da sua conduta»; «ou necessite de evoluir e consolidar a reflexão sobre os danos causados às vitimas e à sociedade».
Lemos os relatórios e ouvimos a reclusa com atenção e não podemos deixar de concluir que o ponto «p» da matéria de facto, para além de a arguida verbalizar arrependimento, se encontra mal assente e deverá ser alterado.
Assim, o ponto «p» da matéria de facto passará a ter a seguinte redação:
«Confrontada com os factos que deram origem à sua condenação, a reclusa verbalizou arrependimento.»

2.3.4- Verificação ou não dos pressupostos de que depende a concessão da liberdade condicional.
Entende a recorrente que lhe deve ser concedida a liberdade condicional ou então caso assim não se decida se ordene a remessa para nova apreciação nos 2/3 da pena pois que os 2/3 da pena apenas ocorreriam em 09.03.2024 sendo que o meio ocorreu e, 09.04.2023 e o despacho recorrido foi proferido em 04.12.2023, ou seja, mais de três meses antes do terço da pena.
O despacho recorrido, conforme nele referido como questão prévia, decidiu proceder à apreciação de eventual concessão de liberdade condicional em renovação de instância com referência aos dois terços da pena que seriam atingidos no dia 9.03.2024, consumindo a apreciação prevista no artigo 61º, n.º 3 do Código Penal, pois a hipotética renovação da instância em 9.03.2024 não permitiria, na visão do despacho recorrido, cumprir o período de 3 meses previstos no artigo 173º, n.º 1 do CEP.
Uma vez que a recorrente apenas subsidiariamente põe em causa o conhecimento antecipado da concessão da liberdade condicional aos 2/3 da pena, para o caso de poderem ser juntos novos elementos que eventualmente a beneficiassem, entendemos ser de proceder primeiro à apreciação da decisão tal qual foi proferida – apreciando antecipadamente os 2/3 da pena, pois que sendo procedente o recurso torna-se desnecessário proceder a nova avaliação da concessão da liberdade condicional, ficando prejudicado o pedido subsidiário da recorrente.
Vejamos.
Dispõe o artigo 61º do Código Penal o seguinte:
«1 - A aplicação da liberdade condicional depende sempre do consentimento do condenado.
2 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses se:
a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e
b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem e da paz social.
3 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo seis meses, desde que se revele preenchido o requisito constante da alínea a) do número anterior.
4 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, o condenado a pena de prisão superior a seis anos é colocado em liberdade condicional logo que houver cumprido cinco sextos da pena.
5 - Em qualquer das modalidades a liberdade condicional tem uma duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, até ao máximo de cinco anos, considerando-se então extinto o excedente da pena.»
A execução da pena de prisão, como resulta dos artigos 42º do Código Penal e do artigo 2º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, servindo a defesa da sociedade, deve orientar-se no sentido da socialização do condenado, obedecendo a uma dinâmica progressiva de preparação para a liberdade[3].
O principal instrumento desta dinâmica progressiva de preparação do condenado para uma vida no futuro em liberdade sem cometer crimes é o instituto da liberdade condicional.
A liberdade condicional assume assim um papel crucial na parte final da atuação do sistema de justiça penal, na execução da pena de prisão, nessa fase em que se prepara o cidadão condenado e recluso para retornar à vida livre em sociedade sem cometer crimes.
Como se explica no preâmbulo do Código Penal é no quadro da política de combate ao carácter criminógeno das penas detentivas que se deve compreender o instituto da liberdade condicional com um objetivo bem definido: «o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão.»
Por outro lado, num sistema penal de cariz humanista e baseado na dignidade da pessoa humana como o da nossa República (artigo 1º da Constituição)  em que a privação da liberdade é a ultima ratio da política criminal, a liberdade condicional assegura que o regime de execução da pena de prisão, servindo a prevenção do crime e a ressocialização do condenado, seja o menos restritivo possível do direito à liberdade e, por isso, a concessão da liberdade condicional constitui um objetivo teleológico normal da execução das penas de prisão[4].
Depois, não nos podemos esquecer que a violência dos mecanismos de dissuasão do direito penal, designadamente da ameaça e efetiva aplicação da pena, é democraticamente legitimada e controlada, estando sujeita à exigência do «mínimo dano social» ou da «mínima violência»[5].
Acresce que em termos de ressocialização do recluso, temos de ter em conta que o primeiro objetivo da execução da pena de prisão é o de evitar a dessocialização do recluso que entrando na prisão fica sujeito a duas tensões de sinal contrário: uma no sentido da intimidação para a adaptação às regras de vida em sociedade; outra de sentido contrário, sendo segregado da sociedade e sujeito às subculturas delinquentes e à aprendizagem de novas técnicas criminosas.[6]
Ora, o instituto da liberdade condicional é a principal via de prossecução dos fins que o direito penal - a prevenção do crime e reintegração do condenado na sociedade – quando concretizado numa pena de prisão efetiva visa atingir sem perder a legitimação material de causar o mínimo mal possível, a mínima violência ao condenado.
Nessa sua missão, a liberdade condicional assume um carácter de última fase de execução da pena a que o delinquente foi condenado e, assim, a natureza jurídica – que ainda hoje continua a ser-lhe predominantemente assinalada – de um incidente (ou de uma medida) de execução da pena de prisão[7].
O agente, uma vez cumprida parte da pena de prisão a que foi condenado (pelo menos metade em certos casos, dois terços noutros casos) vê recair sobre ele um juízo de prognose favorável sobre o seu comportamento futuro em liberdade, eventualmente condicionado pelo cumprimento de determinadas condições – substancialmente análogas aos deveres e regras de conduta que fazem parte das penas de substituição da prisão – que lhe são aplicadas[8].
Foi, desta forma, uma finalidade específica de prevenção especial positiva ou de socialização que conformou a intenção político-criminal básica da liberdade condicional desde o seu surgimento[9].
A concessão da liberdade condicional, não só na modalidade obrigatória como também na modalidade facultativa que pode ocorrer a partir do meio da pena, constitui uma etapa normal da execução das penas de prisão, podendo afirmar-se que, por regra, uma execução de pena bem sucedida, cumpridora das finalidades que lhe estão atribuídas no n.º 1 do artigo 42º do CP, culminará na concessão da liberdade condicional[10].
Nas penas superiores a 6 anos de prisão a liberdade condicional é obrigatoriamente concedida aos 5/6 da pena.
Assim, por via de regra e sob pena de fracasso da missão atribuída ao direito penal (executivo) a execução de uma pena de prisão passará sempre pela liberdade condicional facultativa, ao meio ou aos dois terços da pena.
Aliás, desta normalidade da passagem da execução da pena de prisão pela fase da liberdade condicional facultativa ao meio ou aos dois terços da pena tem dado conta a maioria da jurisprudência dos tribunais superiores, confirmando a tendência jurisprudencial de se considerar, em obediência à intenção expressa do legislador no preâmbulo do Código Penal[11], como «definitivamente ultrapassada a sua compreensão como medida de clemência ou de recompensa por boa conduta» do recluso e sendo a liberdade condicional concedida com naturalidade quer a meio quer aos dois terços da pena, independentemente da gravidade do crime cometido ou da pena aplicada, desde que verificados os pressupostos formais e materiais daquela.
Como exemplo recente desta jurisprudência maioritária que encara com naturalidade a aplicação da liberdade condicional temos, desde logo, o claro e assertivo acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21.02.2024, onde se decidiu, revogando a decisão do TEP do Porto, conceder a liberdade condicional ao meio da pena a um recluso em cumprimento de 5 anos e 4 meses de prisão pelo cometimento do crime de tráfico de estupefacientes.[12]
Depois, também assinalável é o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.02.2023, onde se decidiu, revogando a decisão do TEP de Lisboa, conceder a liberdade condicional aos dois terços da pena a um recluso em cumprimento de  13 anos de prisão pelo cometimento dos crimes de homicídio e detenção de arma proibida.[13]
Os exemplos jurisprudenciais desta natural concessão de liberdade condicional quer ao meio da pena[14] quer aos dois terços[15] da pena são muitos e variados são os crimes e o número de anos penados.
Esta forma de encarar com normalidade e naturalidade a fase da liberdade condicional ao meio ou aos dois terços da execução da pena, tal como o legislador quis e pôs na letra da lei, está de acordo não só com os princípios humanísticos de solidariedade e de respeito pela dignidade da pessoa humana por que se rege a nossa República, como também com o nosso modo de pensar comunitário, como o modo pelo qual o cidadão mediano habitualmente cumpridor das leis encara o problema do encarceramento dos seus concidadãos e pensa na melhor forma de os trazer de volta ao cumprimento das regras básicas da comunidade. Com efeito, o tal cidadão mediano pressuposto pela ordem jurídica constitucional e penal haverá de ter em si, no seu pensamento, que aquele que hoje, em virtude dos crimes cometidos, sofre as agruras e a violência do cárcere é um de nós, da nossa comunidade e há de voltar para o meio livre o melhor preparado possível para conduzir a sua vida no futuro sem cometer crimes. Ora, a melhor forma que se conhece de preparar o cidadão encarcerado para o seu regresso à comunidade livre é a da sua progressiva preparação para a liberdade, aí assumindo papel central o instituto da liberdade condicional, esse meio, incidente ou fase de execução da pena de prisão.
Sinal do acerto desta visão é o papel que o legislador deu às considerações de prevenção geral, em termos de defesa do ordenamento jurídico, como limitação à concessão da liberdade condicional. Tal papel está limitado à aplicação do instituto ao meio da pena, já não sendo tidas em conta aos dois terços.
Enquadrado na sua teleologia e valores, atentemos agora no concreto regime jurídico do instituto da liberdade condicional.    
Resulta do citado artigo 61º que a liberdade condicional facultativa, enunciada nos seus ns.º 2, 3 e 4, depende de pressupostos formais e materiais.
Constituem pressupostos formais:
a) O consentimento do condenado (artigo 61.º, nº1, do Código Penal);
b) O cumprimento de, pelo menos, seis meses da pena de prisão ou da soma das penas de prisão que se encontram a ser executadas (artigos 61.º, nº2 e 63.º, nº2, ambos do Código Penal);
c) O cumprimento de 1/2, 2/3 ou 5/6, da pena de prisão ou da soma das penas de prisão que se encontram a ser executadas (artigos 61.º, nº2 e 63.º, nº2, do Código Penal).
Constituem pressupostos de natureza material:
a) O juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do condenado quando colocado em liberdade (art.º 61.º, nº 2, al a) do Código Penal);
b) O juízo de prognose favorável sobre o reflexo da libertação do condenado na sociedade (juízo atinente à prevenção geral positiva), dito de outro modo, sobre o seu impacto nas exigências de ordem e paz social (artigo 61.ºnº2, al b) do Código Penal).
Uma vez verificados os pressupostos – formais e materiais – de que depende, o Tribunal de Execução de Penas tem o poder-dever de colocar o condenado em liberdade condicional.
No caso em apreço estão verificados os pressupostos formais de concessão do regime de liberdade condicional, pois:
- a decisão recorrida foi antecipada tendo considerado a data em que os dois terços da pena seriam e foram atingidos (em 09.03.2024);
- a recorrente prestou consentimento à concessão do regime de liberdade condicional.
Relativamente aos pressupostos de natureza material haverá de se ter em conta que, como já decorreram dois terços da pena aplicada, tem lugar uma presunção iuris et de iure - artigo 61º, n.º 3 do Código Penal – de que a libertação é compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social[16].
Assim, resta considerar o pressuposto de natureza material relativo ao juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do condenado quando colocado em liberdade (art.º 61.º, nº 2, al a) do Código Penal).
Perguntemo-nos, pois, se é fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes?
A condenada insurge-se contra a decisão recorrida entendendo, contrariamente a esta, que sim, o Ministério Público na sua resposta ao recurso entende que não, sendo de manter a decisão.
Ponderemos.
Em primeiro lugar haverá de se assinalar que a decisão recorrida, em nosso entender, incorre num erro quanto ao conceito de liberdade condicional, confundindo-o com o fim do cumprimento da pena. Com efeito, quando na decisão recorrida se afirma, após se aludir ao juízo de prognose e se a personalidade da condenada evoluiu, refere-se, citando jurisprudência desta Relação, que «(…) é neste seu progresso, …, que o juízo de prognose favorável à libertação do arguido tem o seu fundamento, por aí radicar a necessidade ou não de continuação do cumprimento da pena.[17]»
Ora, a liberdade condicional não se confunde com qualquer termo ou fim de cumprimento da pena, qualquer libertação definitiva e livre de ónus ou encargos. Com a liberdade condicional continua a execução da pena de prisão, só que deixa de ser executada em meio carcerário, na cadeia, passando a um regime próximo ou parecido com a suspensão da execução da pena de prisão com regime de prova ou sujeita a deveres e condições. A liberdade condicional como já referimos e insistimos é um mero incidente, forma ou fase de execução da pena de prisão (efetiva), não se confunde de modo nenhum com o termo da pena.
Esta confusão de conceitos constitui um problema de grande importância para toda a comunidade e que de algum modo tem dificultado o caminho para bom porto, nomeadamente em termos de reforço da confiança dos cidadãos nas normas que protegem os bens jurídicos fundamentais, do programa político criminal humanista que o nosso legislador consagrou no direito penal, entendido este como direito penal em sentido amplo ou ordenamento jurídico-penal que abrange para além do direito penal substantivo, o direito processual, adjetivo ou formal, e o direito de execução das penas e medidas de segurança ou direito penal executivo[18].
Se lermos os índices e os estudos dos últimos anos, relativamente ao ano de 2023 Portugal foi considerado pelo Institute for Economics & Peace o 7º país mais seguro do mundo[19]. Em 2023 Portugal teve uma taxa de homicídios de 0.8 por 100.000 habitantes, abaixo de França (1.08), acima de Espanha (0.61)[20] e a um oceano de distância dos Estados Unidos da América (6.3 em 2022)[21]. Quanto à taxa de ocupação dos estabelecimentos prisionais, verificava-se, em 31.12.2020 uma taxa de ocupação geral dos estabelecimentos prisionais de 87,1%, sendo que 14 estabelecimentos prisionais tinham uma taxa de ocupação superior a 100% , com o Estabelecimento Prisional do Porto a apresentar uma taxa de ocupação de 140,7%, a maior das registadas[22] e em 2022 com 964 reclusos para 675 lugares, ou seja mantendo a mesma taxa de sobrelotação[23].
 As penas aplicadas no nosso país, face ao  facto de ser um dos mais pacíficos do mundo e à taxa de encarceramento por 100 mil habitantes (113)[24], não só não são baixas como não se encontra justificação para uma taxa de encarceramento tão elevada que leva à sobrelotação de alguns estabelecimentos prisionais e consequentemente à diminuição das condições em que se encontram os reclusos.[25] A liberdade condicional não se confunde com o fim do cumprimento da pena. A prevenção da criminalidade tem mais a ver com a certeza e rapidez da aplicação das penas do que da sua gravidade.
Sintetizando:
A liberdade condicional não se confunde com o termo ou fim de cumprimento da pena de prisão.
A execução da pena de prisão continua, só que deixa de ser executada na cadeia passando a um regime próximo da suspensão da execução da pena de prisão com regime de prova ou sujeita a deveres e condições.
 No cumprimento da missão de reintegração do agente na sociedade, a liberdade condicional assume um papel crucial e constitui um incidente, medida ou etapa normal da execução da pena de prisão, desejada pelo legislador como regra em todas as execuções.
Por via de regra e sob pena de fracasso da missão atribuída ao direito penal executivo a execução de uma pena de prisão passará sempre pela liberdade condicional facultativa.
Avancemos então, seguindo com o pressuposto enunciado de que a liberdade condicional é uma mera forma ou incidente do cumprimento da pena de prisão.
É certo, como se alude na decisão recorrida, que a reclusa entrou para cumprimento de pena no estabelecimento prisional em 28.07.2023, ou seja, cerca de 7 meses antes dos 2/3 da pena, mas a verdade é que esteve em prisão preventiva na cadeia desde 11.07.2020 até 03.09.2022 e desde esta data em obrigação de permanência na habitação presa em casa até 28.07.2023 e desde esta data até hoje em cumprimento de pena.  Ou seja, a recorrente já está privada da liberdade – seja na cadeia ou em casa (cerca de 10 meses) - há mais de 3 anos e não tarda atinge 4 anos, dos 6 anos e 3 meses em que foi condenada e à qual foram perdoados 9 meses.
Todos sabemos o que custa a liberdade ou, melhor dizendo, a perda dela. Ainda devem estar na memória de todos nós os confinamentos, recolheres obrigatórios ou ‘prisões domiciliárias’ que sofremos nos tempos da pandemia, em que só podíamos sair de casa para ir às compras, para um breve exercício ou para passear o cão – o nosso ou o do vizinho. Dessa memória ainda retemos o que custou a perda da liberdade e melhor poderemos avaliar o penar daqueles a quem é retirada a liberdade, seja em casa ou na cadeia. O próprio legislador disso teve plena consciência ao preferir a execução da pena de prisão efetiva até dois anos em casa através do regime de permanência na habitação, equiparando-o ao cumprimento da pena de prisão efetiva na cadeia. Só tendo na base do seu pensamento que o mal da pena de prisão é a pura perda de liberdade - um mero encarceramento, seja em casa ou na cadeia – é que poderia o legislador, de jure presumido razoável[26], equiparar o cumprimento da pena de prisão efetiva em casa ao cumprimento na cadeia. Esse é o princípio, devido pelo respeito da dignidade da pessoa humana: a pena de prisão como mal, pena ou sofrimento a aplicar ao autor de um crime não deve ser nada mais além da privação da liberdade. Foi por esse devido respeito pela dignidade da pessoa humana que a pena de morte, as penas corporais, bem como as infamantes ou indignas ficaram banidas do direito penal dos Estados civilizados, entre os quais nos esforçamos por estar.
Mas haveremos de cuidar que o mal da pena de prisão efetiva quando cumprida na cadeia não é só um – o da pura perda da liberdade -, é muito mais que isso, especialmente nos países em que os estabelecimentos prisionais estão antiquados, decadentes, com salubridade reduzida ou sobrelotados. A pressão dos horários e das regras totais, a hora de fechar a luz, o férreo bater das portas e portões, o ter de viver em camarata ou em quartos duplos, as instalações sanitárias comungadas entre todos, a falta de privacidade, a disciplina férrea e constante, as subculturas violentas. Enfim, os resultados do encarceramento nas cadeias são conhecidos pelos efeitos de dessocialização da pessoa e pela enorme pressão sofrida naquele meio, na prisão, nessa ‘região mais sombria do aparelho de justiça’, como lhe chama Michel Foucault[27].
O facto de um recluso ter passado parte do tempo de privação da liberdade sujeito à medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, penando um tanto menos nesse período por não ter estado em prisão preventiva e sujeito aos efeitos colaterais da permanência na cadeia, em nada influencia a sua aptidão para ter acesso à concessão de liberdade condicional e muito menos pode ter qualquer efeito na decisão do juiz de execução de penas de não fazer uso desse instituto central da execução da pena de prisão. Com efeito, são apenas exigências preventivas, além do consentimento do condenado, que constituem pressupostos da concessão da liberdade condicional a meio ou 2/3 da pena e não quaisquer considerações de retribuição pelo mal cometido, de vingança comunitária ou similares conceções de origem religiosa, taliónica ou outra. O mal do crime não se apaga com o mal da pena, antes este se soma àquele e só se pode justificar por exigências de prevenção do crime e com a limitação da medida da pena pela da culpa do agente pelo facto.
Assim e para a concessão da liberdade condicional aos 2/3 é indiferente que a reclusa tenha passado os 2/3 da privação da liberdade divididos por prisão preventiva na cadeia, obrigação de permanência na habitação e cumprimento de pena na cadeia. O que importa é que a reclusa tenha passado tal tempo privada da liberdade, seja por força das medidas de coação seja por cumprimento da pena de prisão.
Se atentarmos nos factos e nos documentos citados na decisão recorrida, a verdade é que a reclusa apresenta comportamento adaptado ao meio prisional, frequenta o ensino secundário e trabalha na cozinha, sendo que no relatório social se vê com detalhe a situação da condenada a nível de personalidade e sua evolução é-lhe favorável. Com efeito, a recorrente apresenta boa capacidade de racionalização e gestão emocional, comprovada pelo bom senso de entregar o filho de 1 ano à família, após ter percebido que este não estava equilibrado no EP. Decisão que não deve ter sido fácil tomar para quem é mãe. Tem boa capacidade de manter relações interpessoais e boa capacidade de adaptação ao meio com interação social adequada. Está a terminar no EP o 12º Ano de escolaridade, tem sido assídua. Trabalhou em meio livre. Desde o primeiro dia no EP que demonstrou interesse em trabalhar. Está disponível para frequentar programas psicoeducativos. Durante a reclusão tem recebido apoio dos familiares e visitas regulares. Frequenta atividades desportivas no EP. Assume a envolvência em comportamentos desviantes, evidenciando sentimentos de culpa e vergonha em relação à prática criminal. Demonstrou vontade de alterar a sua conduta, tendo apresentado um comportamento normativo durante a OPHVE.
Face a estes factos e elementos constantes dos autos não vemos como se possa concluir, como se fez na decisão recorrida, que a reclusa não apresenta ainda uma consciência crítica adequada às consequências nefastas da sua conduta e que apresente um discurso adequado aquilo que julga que o interlocutor quer ouvir, mas superficial e incoerente (basta atentar na afirmação da reclusa quando afirma que não tinha consciência dos danos que o consumo de estupefaciente causava…). Com efeito, não só lemos os referidos documentos juntos aos autos, como também ouvimos na íntegra as declarações da reclusa. E o que a arguida afirmou, ouvindo-se o total da inquirição, foi que na altura não tinha bem a consciência do mal que os estupefacientes faziam às pessoas, mas que depois compreendeu o mal que fazia, bem como o seu comportamento errado. Em toda a inquirição não vemos nada que não seja um discurso normal, adequado, emocionalmente intenso em que o reconhecimento do mal que fez e do erro que cometeu ao traficar estupefacientes são claramente assumidos.
 Afigura-se haver na decisão recorrida uma sobrevalorização da eventual ‘estratégia processual’ da reclusa e uma excessiva desvalorização da referida postura da condenada. Com efeito, rejeitar liminarmente a validade do discurso da reclusa, empurrando-a para a zona da mera atuação teatral, é algo que não nos parece conforme não só com a verbalização lógica e coerente do arrependimento visto pelo modo como respondeu numa já algo longa inquirição, com as perguntas a sucederem-se umas às outras e por vezes voltando ao mesmo tema, mantendo a reclusa sempre um discurso lógico e emocionado. Acresce que a consciência crítica e o arrependimento vêm também documentados no relatório para a liberdade condicional elaborado pela DGRSP, o que vem consolidar e comprovar o arrependimento e a consciência crítica que a reclusa verbalizou. Soma-se ainda a integração da reclusa no meio prisional, com a frequência escolar, o curso profissional, o trabalho na cozinha, a participação no desporto do EP, a entrega do filho à família. Ora, tudo junto, como não crer que a reclusa falou verdade quando se declarou arrependida e demonstrou consciência crítica ?
Considerando a vida anterior ao crime cometido, vemos que a condenada tinha um antecedente criminal por ofensa à integridade física com condenação em pena de multa já extinta, em área bem diversa da presente condenação. Não lhe são conhecidas outras condenações, ainda que posteriores, sendo que deixou de consumir haxixe. Por outro lado, em liberdade, pretende integrar, juntamente com a mãe e os dois filhos menores, com 4 anos e 18 meses de idade, habitação pertença do marido da irmã, agregado que se encontra emigrado na Irlanda e de quem beneficia de apoio. O companheiro, pai dos seus descendentes, coarguido no presente processo, encontra-se atualmente em liberdade condicional e integra o referido agregado. Enquanto não dispuser de rendimentos próprios, a subsistência da condenada será assegurada pelos irmãos, todos laboralmente ativos. Em suma, nesta parte, vemos que a reclusa tem um percurso prisional adaptado e investiu na formação escolar profissional, tendo revelado por aí uma vontade de investir em si própria, ganhando competências e demonstrando empenho em levar uma vida diferente.
É certo que a reclusa ainda não teve uma saída jurisdicional, mas a verdade é que, entretanto, como consta dos autos, pediu uma em 2.11.2023 e foi-lhe recusada em 07.12.2023. A reclusa havia pedido a saída jurisdicional a ter início em 23.12.2023 para ter a oportunidade de passar o Natal junto dos filhos. Após reunião, do Conselho Técnico em 7.12.2023, este, por unanimidade, votou favoravelmente à concessão da licença de saída jurisdicional. O Ministério Público emitiu parecer desfavorável. A Sra. Juiz de execução de penas decidiu não conceder a requerida licença de saída jurisdicional por (segundo a leitura que fazemos das cruzes colocadas no formulário de despacho), dadas as evidenciadas circunstâncias do caso, carecer de consolidar o seu percurso pessoal/prisional, atenta a sua apurada evolução no decurso da execução da pena.        
Como é evidente, este despacho, lavrado segundo o modelo das cruzes nas quadrículas correspondentes às frases que servem ao caso, não é objeto do presente recurso, mas mencionamo-lo apenas para dizer que se a reclusa ainda não teve nenhuma saída jurisdicional foi porque não lha concederam, não obstante dizer respeito à altura do Natal e ter a finalidade de ir visitar os seus dois filhos menores. A reclusa tentou, mas não conseguiu a saída jurisdicional natalícia.
Resumindo, vemos que a reclusa tem a seu favor como fatores positivos para a ressocialização em liberdade: o facto de ter verbalizado arrependimento e demonstrado consciência crítica face ao crime cometido; em meio livre ter apoio familiar, residência onde ficar juntamente com a mãe e os dois filhos menores, com 4 anos e 18 meses de idade e com o atual companheiro; o antecedente criminal que tem é de pouca gravidade e em diferente área de criminalidade; ausência de outras condenações; a integração da reclusa no meio prisional com percurso prisional adaptado com trabalho na cozinha,  participação no desporto do EP e investimento na formação escolar e profissional, tendo revelado por aí uma vontade de investir em si própria, ganhando competências e demonstrando empenho em levar uma vida diferente; o bom senso de entregar o filho de 1 ano à família, após ter percebido que este não estava equilibrado no EP, decisão que não deve ter sido fácil tomar para quem é mãe, mas que demonstra o cuidado que tem pelos outros e, tudo junto, a evolução positiva da personalidade da reclusa, após o cumprimento de mais de 3 anos de prisão; o tempo de privação da liberdade já sofrido de mais de três anos, primeiro na cadeia, depois em casa e a seguir na cadeia outra vez, considerável como meio de consciencialização e de persuasão para seguir a sua vida no futuro sem cometer crimes.
Acresce que o instituto da liberdade condicional, com as regras de conduta e deveres que lhe podem ser associados, contribuirá certamente para que a condenada no futuro não cometa crimes ou, dito de outro modo, para a sua ressocialização.
Ponderada toda a situação emergente dos autos e os índices de ressocialização em liberdade da condenada atrás enunciados é de esperar, fundadamente, que a condenada, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer novos crimes.
Deste modo,  se por um lado, estando cumpridos dois terços da pena aplicada, tem lugar uma presunção iuris et de iure - artigo 61º, n.º 3 do Código Penal – de que a libertação é compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social, e se, por outro, ponderada toda a situação emergente dos autos e os índices de ressocialização em liberdade, é de esperar, fundadamente, que a condenada, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer novos crimes, a conclusão é a de que a recorrente deverá beneficiar do regime de liberdade condicional, pois que se verifica o pressuposto referido na alínea a) do nº 2 do artigo 61º do Código Penal.
Concluindo, com a verificação dos pressupostos – formais e materiais – de que depende a concessão da liberdade condicional, importa determinar a colocação da condenada em liberdade condicional, que se afigura ser adequado sujeitar, nos termos do artigo 64º do Código Penal, às seguintes obrigações e regras de conduta: a recorrente deverá residir em morada certa a fixar pelo tribunal; colaborar com a equipa de Reinserção Social da DGRSP; dedicar-se à procura ativa de emprego/atividade profissional e, uma vez este obtido, dedicar-se ao trabalho com regularidade; não deter, nem consumir qualquer estupefaciente ilícito.       
Tudo visto, caberá dar provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido e concedendo-se a liberdade condicional à condenada, sujeita às obrigações e regras de conduta adequadas à situação.
*

3- DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em dar provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, concedendo-se a liberdade condicional à recorrente AA, pelo tempo de prisão que, a contar desta data, lhe faltaria cumprir, ou seja, até 9 de janeiro de 2026, ao abrigo do disposto no artigo 61º nº 5 do Código Penal.
A reclusa fica vinculada, nos termos dos artigos 64.º e 52.º do Código Penal e 177.º, n.º 2, al. c) do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, sob pena de eventual revogação da liberdade condicional, ao cumprimento das seguintes obrigações e regras de conduta: 1) apresentar-se no prazo de cinco dias na equipa da DGRSP da área da sua residência, cuja direção lhe será indicada no ato de libertação, tomando-se do facto o competente registo; 2) residir na morada indicada no relatório da DGRSP; 3) colaborar com os serviços de reinserção social que ficarão responsáveis pelo acompanhamento da medida; 4) dedicar-se à procura ativa de emprego/atividade profissional e, uma vez obtido, dedicar-se ao trabalho com regularidade; 5) não deter, nem consumir qualquer estupefaciente ilícito. 
          
Sem custas.

Comunique ao TEP, ao EP e à DGRSP.

Passe e remeta ao EP mandados para imediata libertação da reclusa, caso não interesse a sua prisão à ordem de outros autos.
*





Porto, 3 de abril de 2024
William Themudo Gilman
Paula Cristina Jorge Pires
Jorge Langweg
_____________________
[1] Cfr. neste sentido, entre outros: o Ac. TRP de 7.10.2020, proc. 580/18.4TXPRT-H.P1, não publicado em dgsi.pt mas disponível para consulta no livro de registo de sentenças desta Relação na plataforma citius; bem, como o Ac. TRP de 17.01.2024, proc. 732-21.0TXPRT-G.P1 (Paula Pires), in https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/267af9aae2d392de80258aca005227ca?OpenDocument ; e ainda os Acs.: TRP de 03-10-2012, proc. 821/11.9TXPRT-G.P1 (CoelhoViera) in https://www.dgsi.pt/JTRP.NSF/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/7822aa95d03d485180257a980045a2ad?OpenDocument  ; e TRP de 04-07-2012, proc.  1751/10.7TXPRT-H.P1 (Joaquim Gomes), in  https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/-/7A5E107991E3067980257A4400397469 todos in dgsi.pt.
[2] Nesta parte do conhecimento dos vícios nos despachos o relator revê posição anteriormente tomada, embora apenas como argumento subsidiário, no Ac. TRP de 28 de outubro de 2021, Processo n.º 784/19.2PHVNG.P2, não publicado em www.dgsi.pt, mas disponível para consulta no livro de registo de sentenças desta Relação, na plataforma citius.
[3] Cfr. Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2022, 2ª edição, p. 105-106.
[4] Cfr. quanto ao objetivo teleológico, Joaquim Boavida, A Flexibilização da Prisão, 2018, p. 123.
[5] Cfr. sobre a «mínima violência» Anabela Miranda Rodrigues, Novo Olhar Sobre A Questão Penitenciária, 2002, 2ª edição, p. 34
[6] Cfr. Anabela Miranda Rodrigues, Novo Olhar Sobre a Questão Penitenciária, 2002, 2ª edição, p. 46-47.
[7] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, p. 528; Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2022, 2ª edição, p. 115-116.
[8] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, op. e loc. cit.
[9] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, op. e loc. cit.
[10] Cfr. Joaquim Boavida, A Flexibilização da Prisão, 2018, p. 123-124; e, ainda, o Ac. TRP de 10/03/2021 (processo n.º 147/11.8TXPRT-AL.P1), o Ac. TRP  de 24/03/2021 (processo n.º 131/15.2TXCBR-P.P1), o Ac. TRP  de 26/05/2021 (processo n.º 358/14.4TXPRT-E.P1), o Ac. TRP  de 15/12/2021 (processo n.º 1075/18.1TXPRT-G.P1) e o Ac. TRP de 2.02.2022, proc. 535/17.6TXPRT-M.P1; nenhum deles publicado em dgsi.pt, mas consultáveis na plataforma Citius no livro de registo de sentenças do Tribunal da Relação do Porto .
[11] Cfr. preâmbulo do Código Penal, ponto 9.
[12] Ac. TRP de 21.02.2024, proc. 606/20.1TXPRT-G.P1 (Jorge Langweg), in https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/98d9e6e941e1c99380258ae6004ce441?OpenDocument
[13] Cfr. Ac. TRL de 09.02.2023, proc. 408/14.4TXLSB-Q.L1-9 (Renata Whytton da Terra), in http://www.gde.mj.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/7d187e79e9f8fd39802589580031c33e?OpenDocument
[14] Cfr. para o ½ da pena, entre outros: Ac. TRP de 17.01.2024, proc. 732/21.0TXPRT-G.P1 (Paula Pires),  3A9M por um crime de fraude fiscal, in https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/267af9aae2d392de80258aca005227ca?OpenDocument ; Ac. TRP de 27.11.2019, proc.           
924/16.3TXPRT-G.P1 (Pedro Vaz Pato), 6A por tráfico estupefacientes, in http://www.gde.mj.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/51de2e1d4015edc6802585050051fa84?OpenDocument ; Ac. TRL de 22.05.2018, proc.  1630/13.6TXLSB-C.L1-3 (Adelina Barradas), 5A6M por trafico de estupefacientes, in https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/d0346fc14edeff65802583440036d5d5?OpenDocument ; Ac. TRP de 18.04.2018, proc. 678/14.8TXPRT-K.P1 (Manuel Soares), 8A10M por tráfico estupefacientes.
[15] Cfr. para os 2/3 da pena, entre outros: o Ac. TRL de 07.07.2016, proc. 824/13.9TXLSB-J.L1-3 (Adelina Barradas), 6 A por abuso sexual de crianças, in http://www.gde.mj.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/45af2734073801658025806000407c7d?OpenDocument; Ac. TRC de 12.06.2019, proc. 3371/10.7TXPRT-M.C1 (Vasques Osório), 2A2M por violência doméstica, in https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/cc39be90713bb46980258419003651da?OpenDocument; Ac. TRP de 03.10.2012, proc. 1671/10.5TXPRT-C.P1 (Joaquim Gomes), 4A6M por tráfico de estupefacientes, in https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/2e221e2addb6f65e80257a9b003bd2f0?OpenDocument .
[16] Cfr. Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2022, 2ª edição, p. 120.
[17] Sublinhado na decisão recorrida.
[18] Cfr. sobre a noção ampla de direito penal, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, 2007, p. 6-7.
[19] Cfr. Global Peace Index , in  https://www.visionofhumanity.org/maps/#/ .
[20] Cfr. https://www.statista.com/statistics/1268504/homicide-rate-europe-country/ .
[21] Cfr. https://www.statista.com/chart/31062/us-homicide-rate/ .
[22] Cfr. ESTATÍSTICAS PRISIONAIS PORTUGUESAS, 2020, Karla Tayumi Ishiy, Coimbra 2021.
[23] Cfr. https://dgrsp.justica.gov.pt/Portals/16/Estatisticas/%C3%81rea%20Prisional/Anuais/2022/Q-03-Rcls.pdf?ver=DfvcYTHi3B_jrVnMZ_4JYA%3d%3d
[24] Cfr. https://www.prisonstudies.org/sites/default/files/resources/downloads/world_prison_population_list_13th_edition.pdf .
[25] Cfr. sobre esta questão das taxas de encarceramento e sobre população prisional, William Themudo Gilman, Aspetos da aplicação e execução da pena de trabalho a favor da comunidade, comunicação - 22.05.2022, in https://prialteur.pt/application/files/3716/5349/0594/W._Themudo_Gilman_-_ASPETOS_DA_APLICACAO_E_EXECUCAO_DA_PENA_DE_TRABALHO_A_FAVOR_DA_COMUNIDADE.pdf .
[26] Artigo 9º, n.º 3 do Código Civil.
[27] Michel Foucault, Vigiar e Punir, tradução, Petrópolis, 2000, 23ª edição, p. 214.