Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | PEDRO AFONSO LUCAS | ||
Descritores: | HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA NEGLIGÊNCIA MÉDICA BENS JURÍDICO PROTEGIDO PENA DE SUBSTITUIÇÃO DE PROIBIÇÃO DO EXERCÍCIO DE PROFISSÃO | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RP202406055961/17,8T9PRT.P1 | ||
Data do Acordão: | 06/05/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL/CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO. | ||
Indicações Eventuais: | 1. ª SECÇÃO CRIMINAL. | ||
Área Temática: | . | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I - A obrigação médica é, regra geral, uma obrigação de meios e não de resultados, mas as falhas comprovadas deverão ser sancionadas desde logo por evidentes motivos de ordem pública, pois que é de uma questão de saúde pública, valor e objectivo constitucionalmente protegido, que se trata : todo o doente tem o direito de ser tratado e bem tratado pelos médicos a que recorre – daí que o direito penal não possa coibir-se de pedir inteira responsabilidade àqueles que, ainda que por mera imprudência e descuido, deixam de cumprir com as exigentes e transcendentes obrigações a que estão vinculados. II - Estamos, também, perante exigências directamente reportadas à dignificação e ao interesse da própria actividade e classe médica, pois que a punição adequada das práticas ilícitas detectadas no respectivo exercício deverá sempre apurar o seu sentido de responsabilidade e estimulá-la a progredir, esmerando-se na tentativa de evitar o erro evitável. III - A pena de substituição de proibição do exercício de profissão de médica, nos serviços públicos ou privados, obstando à efectiva privação da liberdade da arguida, permite fazer incidir cirurgicamente a censura penal sobre a essência dos valores jurídico–penais desrespeitados pela conduta lesiva, satisfazendo toda a amplitude das exigências punitivas – que, passando pela ressocialização, não permitem contudo descurar, a protecção daqueles. IV - A proceder a argumentação de que penas de substituição como a alcançada pelo tribunal a quo não poderiam ser aplicadas a qualquer cidadão que se mostre socialmente inserido, com uma vida aparentemente (profissional e extraprofissional) “normal”, resultaria que a solução legalmente consagrada no artigo 46.º do Código Penal passaria a ter um efeito meramente decorativo, não sendo passível de aplicação prática mesmo em casos – como o dos presentes autos – em que a conduta criminalmente relevante se registou no pleno exercício de profissão e com resultados tão nefastos como a morte de um jovem com apenas 16 (dezasseis) anos de vida. (da responsabilidade do relator) | ||
Reclamações: | |||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Proc. nº 5961/17.8T9PRT.P1
Tribunal de origem: Juízo de Competência Genérica de Arouca – Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Acordam em conferência os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO
No âmbito do processo comum (tribunal singular) nº 5961/17.8T9PRT que corre termos no Juízo de Competência Genérica de Arouca, em 02/06/2023 foi proferida Sentença, cujo dispositivo é do seguinte teor : «V. Decisão Assim, e pelo exposto, decide-se julgar totalmente procedente a acusação/pronúncia e em consequência: 1. Condenar a arguida AA pela prática de um crime de Homicídio por negligência, grosseira, previsto e punido pelo artigo 137º n.º 1 e 2 do Código penal na pena de 3 anos de prisão. 2. Substituir nos termos do art.º 46 do Código Penal a pena de prisão de 3 (três) de prisão aplicada à arguida AA pela pena de proibição do exercício de profissão de médica, quer nos serviços público ou privados do território nacional considerando o cometimento do crime no exercício daquela profissão, por um período de 4 (quatro) anos. 3. Condenar a Arguida nas custas do processo, com 4 (quatro) UC´s de Taxa de Justiça5 - cfr. art. 8º do RCP e tabela III. Notifique, advertindo-se a arguida nos termos do n.º 3 do art.º 46 do CP de que terá de cumprir a pena de 3 anos de prisão que lhe foi aplicada caso viole a proibição do exercício da profissão de médica, cometa crime pela qual venha a ser condenada ou revelar que as finalidades da pena de proibição do exercício de profissão, função ou actividade não poderem ser por meio dela ser alcançadas. Proceda-se a depósito - art.º 372º nº5 do C.P.P. Após transito, remeta boletim, proceda-se às diligências necessárias para recolha do ADN nos termos da Lei n.º 5/2008 de 12.02, remeta certidão com nota de trânsito em julgado à Ordem dos médicos, à Direcção Geral de Saúde e às Direcções Regionais de Saúde dos Governos Regionais dos Açores e da Madeira. Solicite anualmente à autoridade Tributária, no decurso do prazo da pena de proibição do exercício da profissão de médica, o envio de cópia da declaração de rendimentos, quer da arguida, quer de qualquer empresa em que a mesma figure como gerente, ou sócia, designadamente a empresa mencionada nos factos provados ou qualquer outra que venha a ser por ela constituída no decurso do período do cumprimento da pena de substituição aplicada. »
Inconformada com a decisão, dela recorreu, em 07/07/2023, a arguida AA, extraindo da motivação as seguintes conclusões: 1- Vem a Recorrente AA condenada pela prática, de um crime de Homicídio por negligência, grosseira, previsto e punido pelo artigo 137º, nº1 e 2 do Código Penal na pena de 3 anos de prisão, substituída nos termos do artº 46 do Código Penal pela pena de proibição do exercício de profissão de médica, quer nos serviços publico ou privados no território nacional considerando o cometimento do crime no exercício daquela profissão, por um período de 4 (quatro) anos. 2- A Recorrente não se conforma com a sentença proferida, 3- Entendeu o Tribunal “a quo” com base nos documentos juntos aos autos e nos depoimentos das testemunhas ouvidas que a AA, não procedeu a uma avaliação clinica completa, apurando os antecedentes e a história clinica -anamnese- do paciente, prescreveu, e determinou a toma de um agente altamente potenciador de reacções anafiláticas em asmáticos, e provocou, por sua vez, a paragem cardiorrespiratória do jovem BB. 4- Entendeu que a Arguida agiu livre e voluntariamente, não procedendo como cuidado devido, a que estava obrigada e era capaz, tendo em conta o estado do paciente e a sintomatologia que este apresentava, agindo de forma descuidada e desleixada em clamorosa violação das legis artis que regem a sua profissão. 5- Com o decidido não pode a Recorrente conformar-se, pretendendo a reapreciação da prova com consequente alteração da matéria de facto e diferente decisão. 6- Do processo constam todos os elementos de prova que serviram de base à decisão, que incluiu prova documental, prova pericial e testemunhal e depoimento do Arguido, até porque a prova produzida em audiência foi objecto de gravação, impõe-se o pedido de reapreciação da prova, maxime a constante da gravação e inerente modificação da decisão de facto, nos termos previstos pelo artigo nº 410 C.P.P, 7- Entende-se que fundamentos plasmados nos artigos nº 5º, 9º, 13º, 14º, 16º, 17º, 18º, 19º e 29º da matéria factual que integra a sentença em crise, que se consideram incorrectamente julgados. 8- A douta sentença recorrida percebe-se que a decisão de condenar a Recorrente AA tem como forte apoio os depoimentos das testemunhas médico CC, Enfermeira DD, Enf. EE, todos funcionários do ... e presentes à data do episódio sucedido, apoiando-se ainda nos depoimentos da médica de família do BB e na médica FF. 9- No que concerne aos depoimentos dos peritos GG, HH, II, JJ, e por fim KK, são os mesmos desvalorizados, retirando-se desses depoimentos apenas partes especificas sem enquadrar o depoimento no seu todo, abstraindo-se de questões concretas e respostas concretas em relação ao caso em apreço. 10- Analisada a douta sentença verifica-se que a mesma foca as suas considerações ao longo de toda a exposição no que concerne na sua motivação, quase em exclusivo na testemunha CC, FF e LL, esgrimindo desses depoimentos que a doentes asmáticos não se dá anti–flamatórios não esteróides, vulgo AINES, ainda que em sentido contrário ditem os peritos, no entanto recorre o Tribunal ao principio da livre apreciação da prova, pelo que conclui pela condenação da Arguida AA. 11- O Tribunal “a quo” e sem qualquer análise objectiva decide em condenar a Arguida por incúria e desleixo, por falta de observação das boas práticas médicas, facto contrariado pela testemunha KK, médico e perito do Colégio da Especialidade de Medicina Geral e familiar e responsável pelo processo disciplinar, o qual foi arquivado. 12- Uma leitura atenta das testemunhas que infra se indicarão, bem como da prova documental, nomeadamente, o Relatório da Autópsia médico-legal, Consulta técnico -cientifica, e seus esclarecimentos, Relatório do Processo de Inquérito nº.../.../.../2017 ao ACES de ..., Processo Disciplinar, demonstram-se o contrário. 13- O Tribunal Ad quo apoia-se na livre apreciação da prova ainda que estribado nos peritos. 14- Como tem dito o Tribunal Constitucional, a livre apreciação da prova não pode ser entendida como uma atividade puramente subjetiva, emocional e, portanto, não fundamentada juridicamente. Tal princípio, no entendimento do Tribunal, concretiza-se numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permitirá ao julgador objetivar a apreciação dos factos, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão. 15- Trata-se, assim, de um princípio de liberdade para a objetividade, e não para o arbítrio. A motivação da decisão do tribunal não é, nem pode ser mais, um ato de fé, um puro exercício de íntima convicção. Na motivação o juiz tem de «prestar as devidas contas». Tem de convencer quem, a posteriori, com base nela tente reconstruir mentalmente o percurso decisório do juiz. 16- Desta feita a sentença em crise ainda que se socorra dos referidos pareceres das orientações desfavoráveis à Arguida esquecendo-se de ter em consideração e valorar as orientações que lhe são favoráveis e objectivas e que têm especial relevância, tendo em consideração o caso em apreço e todos os envolvidos, nomeadamente o BB. 17- O parecer mencionado e assinado que foi pelo Prof. Dr. HH, refere o mesmo que não lhe é permito afirmar ou negar que tenha sido feita uma avaliação clinica correta, no entanto refere que há menção de ausência de alergias medicamentosas conhecidas, ponderando na hipótese de haver necessidade de recorrer a uma terapêutica antipirética, ao mesmo tempo que refere só uma avaliação clinica no momento permitiria decidir acerca da necessidade de administração de tal medicação. 18- Refere no seu relatório que não é possível afirmar inequivocamente que a paragem cardiorrespiratória tenha sido provocada por uma reacção anafilática ao acetilsalicilato de lisina, ainda que também não possa excluir essa hipótese. Refere ainda que a administração de um salicilato não estava absolutamente contra-indicada, não se podendo aferir da sua administração anterior inócua. Quanto à questão da temperatura timpânica, no caso de 38,4ºC, refere que apesar de geralmente ser cerca de 1º C acima da axilar, indica-se a administração de antipiréticos com temperaturas superiores a 38,5ºC desde que não existam outros sintomas como exijam controlo, como é o caso das cefaleias, que na altura o BB se queixava. 19- Quanto ao relatório da autopsia, se também é verdade que refere que “a pré-existência de asma está associada a um pior decurso deste quadro clínico e reacções anafilácticas, nomeadamente a fármacos do grupo dos anti–inflamatórios não esteróides (AINE), em que se incluem o ibuprofeno e o acetilsalicilato de lisina”. 20- Também não é menos verdade que refere “A asma é uma patologia infamatória crónica caracterizada por obstrução reversível das vias aéreas, como resposta a vários estímulos ambientais com sintomatologia que inclui dispneia, pieira, tosse, entre outros, associados à hiperreactividade brônquica e broncoespasmo que caracterizam essa patologia. A mortalidade associada tem vindo a diminuir, sendo os factores de risco maior para a morte a doença mal controlada com necessidade frequente de broncodilatadores inalatório, má adesão à terapêutica com corticóides inalatórios e admissões hospitalares prévias com episódios de agudização grave e quase fatal da doença. “ 21- Conclui o relatório que ”...a morte de BB foi devida a encefalopatia anóxica, que sobreveio como complicação de paragem cardio-respiratória em vitima com antecedentes de asma brônquica mal controlada e possível alergia a antiflamatóriaos não esteróides-, não sendo possível excluir uma eventual reacção anafilática após a administração de Aspegic endovenoso.” 22- Nenhum dos relatórios médicos conclui pela imputação da acção ao resultado não conseguindo estabelecer uma nexo de causalidade, apenas ponderando como uma hipótese possível o choque anafilático por reacção alérgica ao medicamento. 23- Ao contrário do que refere a sentença, que conclui afirmando que refere que é a própria bula do medicamento que, junto do utilizador, contra-indica a toma do Aspegic por quem tenha já anteriormente manifestado hipersensibilidade (alergia) a um anti-inflamatório não esteróide, como é o caso do Ibuprofeno. 24- A Bula não fala no Ibuprofeno, até porque esta substância não tem reacção cruzada com o acido acetilsalicílico, nem existe noticia de o BB ter feito qualquer reacção anterior a esta última substância. Sem esquecer o facto de existirem inúmeros registos de não existência de reacções alérgicas a medicamentos. Nos registos clínicos não existe nenhuma ocorrência de alergia documentada, como bem refere o relatório da autópsia e o processo de Inquérito nº.../.../.../2017. 25- Ora de tudo o que infra se transcreveu, jamais o Tribunal Ad quo poderia chegar à conclusão a que chegou quando afirma perentoriamente que a Arguida não respeitou a Legis Artis a que estava obrigada, quando pelo depoimento do Prof, Dr. KK, instrutor do processo de Inquérito da Ordem dos Médicos foi claramente explicado, ainda que mal aceite pelo Tribunal, que o procedimento utilizado é um procedimento correcto e adequado, explicando ainda que nada é linear ou matemático, que as decisões que têm que ser tomadas são tomadas de acordo com uma série de factores a enquadrar. 26- No caso o BB era asmático, recorria diversas vezes ao SUB, o seu relatório médico é indiciador que possuía numa asma mal controlada, com febre e dores de cabeça desde o dia anterior, quadro que levou a Arguida a em primeira linha abaixar a febre e de seguida ao prescrever a Hidrocotizona centrar-se nos brônquios, evitando assim uma crise de asma cujo decurso não se sabe. 27- É por demais evidente que o Tribunal Ad Quo não valoriza o depoimento do Dr. KK nem valoriza qualquer outro perito, colocando de lado as conclusões finais que possam ter levado a este desfecho. Na verdade nenhum deles é capaz de imputar tal responsabilidade à toma do Aspegic como competia para imputar o crime à Arguida, tal como o fez o Tribunal Ad Quo. 28- Ao longo da douta sentença o Tribunal estriba-se nos depoimentos da mãe do menor, no médico que se encontrava na urgência, Dr. CC, pessoa que confundiu como sendo um dos médicos que teria já atendido o BB na urgência e que poderia a Arguida socorrer-se do mesmo porque este já conhecia o menor, o que não corresponde à verdade, como se verifica pelo seu depoimento prestado no dia 16/01/2023, depoimento identificado 115659_4159378_2870297 mais concretamente ao minuto 34:49 até ao minuto 35:09. 29- Na Douta sentença o Tribunal cita o Enf. EE mas desvaloriza o seu depoimento na parte em que ele de forma clara explica que a Arguida esteve na sala de emergência a prestar cuidados ao menor BB, desvalorizando a sentença a sua presença como um avistamento, o que não corresponde à verdade. Disso nos dá conta o seu depoimento datado do dia 23/01/23 identificado por 162301_4159378_2870297, mais concretamente ao minuto 14:25 até ao minuto ... 30- Este depoimento contraria a versão do tribunal que refere que a Arguida não compareceu na sala para ajudar nas manobras realizadas para salvar o BB, facto com o qual se discorda totalmente. 31- Não poderia Tribunal chegar à conclusão, não tendo prova disso nem invocando qualquer facto que a Arguida não consultou os registos clínicos do doente aliás a própria refere ter consultado e ter visto registado que o paciente não tinha alergias medicamentosas, como de facto referiram os peritos médicos 32- Todos os factos dados como provados contrariam as provas documentais invocadas desde o Relatório da Autópsia à Consulta Técnico Cientifica já supra indicada. 33- ainda que exaustiva argumentação transcrita na douta sentença o que aqui está em causa é e como refere o Dr. KK é saber se a abordagem terapêutica foi a correcta, que já percebemos que sim, e depois disso perceber se podemos ou conseguimos estabelecer aqui um nexo de causalidade entre a opção e a administração do fármaco com a morte do BB. 34- Não é possível estabelecer um nexo de causalidade. 35- Não pode o Tribunal assumir como certeza que o comportamento da Arguido foi impróprio, desleixado e contra as Legis Artis, porquanto os seus argumentos são parcos e subjectivos. 36- O Tribunal foca a sua decisão num raciocínio pré-definido, tomando como assente que é contra-indicado receitar anti–inflamatários da classe se dos AINES a asmáticos, como Ibuprofeno e Acetilsalicilato, facto sobejamente comprovado que não corresponde à verdade. 37- A Arguida tem juízo critico e não fingiu emocionar-se, a Arguida é uma pessoa humana, podendo não se expressar como o Tribunal entende que esta se devia manifestar mas, e como será facilmente entendido, ninguém fica indiferente a uma situação como a dos autos e muito menos a Arguida que tem filhos e já perdeu dois. 38- A factualidade descrita na decisão aqui recorrida não encontra suporte em qualquer elemento de prova concreto. 39- Entende-se assim, que a Acusação não conseguiu fazer prova cabal dos factos alegados no que concerne à Recorrente. 40- Não existem elementos seguros e suficientes nos autos que possam levar à condenação da Recorrente, que tenha praticado o crime pelo qual foi condenada, nem existe qualquer nexo lógico de imputação dos factos à Recorrente. 41- Assim, nunca se pode ter a factualidade em apreço, maxime no que concerne à Recorrente ter violado a Legis Artis, como provada, 42- O que importa a modificação da decisão de facto dos pontos nº 5 (na parte em que refere - Após observar o jovem, a arguida, sem consultar os registos clínicos anteriores ou a ficha clinica do jovem, ....”), 9º, 13º, 14º, 16º, 17º, 18º 19º, 29º como não provados. 43– Impondo-se uma revogação da decisão de facto decorre inelutável consequência na solução de direito preconizada, absolvendo a Arguida. 44- Da prova produzida, quer documental quer testemunhal não se vislumbra, ao contrário do afirmado na douta sentença, o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do crime de Homicídio por neglicência, grosseira, previsto e punido pelo artigo 137º, nº1 e nº2º do Código Penal. 45– Ora conforme se explanou da prova produzida e dos factos dados como provados, em momento algum se comprova que a Recorrente tenha agido em desconformidade com a legis Artis nem muito menos se provou que a causa da morte do BB adveio pelo ministrar do Aspegic. 45– Entende-se assim não estar preenchido qualquer elemento quer objectivo ou subjectivo do crime que lhe é imputado, impondo-se a absolvição da Recorrente quanto ao mesmo. 46– Ainda que assim não se entenda, o tribunal aplicou uma pena efectiva de três anos à Recorrente, entendendo que a suspensão na sua execução só por si, não se revela eficaz e adequada às necessidades de ressocialização da arguida. 47– Acrescentando ainda que a censura do facto e a ameaça da pena latentes numa pena de prisão suspensa na sua execução, já não serão suficientes 48– Por tal facto entende ser possível formular um juízo de prognose favorável em relação ao comportamento futuro da Recorrente , por ser de concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. 49– Pelo que não suspende a execução da pena de três anos de prisão. 50– Por se lhe afigura que as circunstâncias do caso concreto poderão justificar a aplicação do disposto no artigo 46.º do referido Código, contribuindo para a interiorização por banda da Recorrente da necessidade de observar cuidadosamente todos os procedimentos aptos a prevenir situações como a que nos presentes autos determinaram o fim da vida de um jovem de 16 anos. Atenta a moldura da proibição (1 a 5 anos na redacção da Lei penal aplicável) e o supra exposto decide-se substituir a pena de 3 anos de prisão por 4 (quatro) anos de proibição de exercer a profissão de médica quer nos serviços públicos, quer nos serviços privados de todo o território nacional nos termos do art.º 46º n.º1 do CP 51º O Tribunal apenas valorou os aspectos negativos no que concerne ás exigências de prevenção especial, descurando todas as circunstâncias referentes à Arguida, como colaborar com o tribunal confessando os factos, está social e profissionalmente inserido, não tem antecedentes criminais. 52º Descura totalmente que uma pena de prisão efetiva substituída pelo não exercício da sua profissão apenas terá na Recorrente efeitos negativos e nunca positivos. 53º Nem a pena de prisão efetiva nem a privação do exercício da sua profissão irão ressocializar a recorrente ou habilita-la para o exercício da sua profissão, ficando afastada da prática médica durante quatro anos, então porquê a mesma? 54º A Arguida está reintegrada e socializada, esgotou-se assim o fim da prisão efetiva, não havendo qualquer fundamento para a impedir do exercício da sua profissão o qual já o faz há mais de vinte anos, optando pela pena suspensa.
O recurso foi admitido.
A este recurso respondeu o Ministério Público junto do tribunal de primeira instância, propugnando pela improcedência do recurso, o que faz nos seguintes termos : I- Do objecto do Recurso. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação1, tendo a Recorrente invocado, em síntese, que: 1. O presente recurso tem como objecto a matéria de facto; 2.Atenta a prova produzida, – resulta erro na apreciação crítica da prova e violação do princípio da livre apreciação da prova. 3. Existindo assim manifesto erro na apreciação da prova uma vez que o tribunal valorou o depoimento das testemunhas médico CC, Enfermeira DD, Enf. EE, médica de família do BB e na médica FF. E em contrapartida, desvalorizou os depoimentos dos peritos GG, HH, II, JJ e KK. 4. E em mero caso de improcedência do recurso quanto à impugnação da matéria de facto impugna a medida da Pena. As conclusões reportam-se essencialmente a aspectos de facto. Delimitado, ainda que sumariamente, o fundamento do recurso, passemos agora à sua análise. II - Da apreciação da matéria de facto e da fundamentação a) Quanto à impugnação da matéria de facto Foram dados como provados, entre outros, os seguintes factos: (…) Contrariamente ao entendimento perfilhado pela Recorrente, afigura-se que os factos tidos como provados resultaram, no essencial, de uma correcta apreciação e de uma criteriosa valoração da prova produzida em audiência. A Recorrente alega que o Tribunal a quo desvalorizou os depoimentos dos peritos GG, HH, II, JJ e KK. Ora veja-se o que a propósito se refere na motivação da sentença recorrida: (…) Em momento algum, o Tribunal a quo afasta ou exclui a prova pericial, ou os esclarecimentos dos Srs. Peritos, aliás, recorre a ela para fundamentar a sua decisão. Alega a recorrente que as testemunhas CC, FF e LL são da opinião que a doentes asmáticos não se dá antiflamatórios não esteroides, vulgo AI-NES, ainda que em sentido contrário ditem os peritos (conclusão n.º 10). É ainda referido pela recorrente, na sua conclusão nº 11, que “O Tribunal “a quo” e sem qualquer análise objectiva decide em condenar a Arguida por incúria e desleixo, por falta de observação das boas práticas médicas, facto contrariado pela testemunha KK, médico e perito do Colégio da Especialidade de Medicina Geral e familiar e responsável pelo processo disciplinar, o qual foi arquivado”. Pode-se ler na motivação da sentença que relativamente à testemunha KK, este “reconhece que todos os médicos sabem que é necessária uma precaução especial no caso dos doentes asmáticos. Acabou por admitir, embora com notória dificuldade em o afirmar, que a opção da arguida não seria a dele, que teria prescrito Benuron e que devem sempre ser ponderados os riscos e os benefícios em determinado momento quanto à opção terapêutica que o clínico escolhe. Ficamos com a convicção que bem sabe a testemunha que das 600 hipóteses de indicação possível, a arguida escolheu uma perfeitamente desastrada.”. Ora, se médico e perito do Colégio da Especialidade de Medicina Geral e familiar não optaria por administrar o tal “Aspegic”, não vemos como a sentença aqui recorrida foi contra a prova pericial. Tal circunstância vai, inclusive, contra o alegado nas conclusões 11, porque se não houve falta de observação das boas práticas médicas, porque ficou a Julgadora com a convicção que a testemunha KK sabe que a arguida escolheu uma desastrada? Sempre se diga, que as finalidades de um processo disciplinar e um processo criminal tão diferentes, e que o arquivamento num processo disciplinar não retira a ilicitude do comportamento em crise. O que vemos aqui é que a arguida tomou uma decisão (errada) porque não indagou, com o rigor que lhe era exigida enquanto médica, se podia administrar o referido medicamente num doente como o ofendido BB. E estar numa urgência não é justificação (como a arguida nos queria levar a crer) nem pode ser para não se fazer um diagnóstico certo e rigoroso. Pelo que não se poderá afirmar, em caso algum, que o Tribunal a quo não teve em consideração os depoimentos dos peritos, nomeadamente o Dr. KK. Dos depoimentos das testemunhas e das próprias declarações da arguida ficou bem claro que a arguida não tomou conhecimento da alergia ao Ibuprofeno – simplesmente porque não se deu ao trabalho de o fazer. Segundo a arguida, o jovem BB terá dito que não era alérgico, o que de todo não faz sentido, de acordo com a experiência comum e o bom senso de todos. Porque motivo é que um jovem com uma doença crónica como é a asma iria negar ou desconhecer a sua situação clínica? Na nossa perspectiva, estando perante um menor desacompanhado dos seus pais/representantes legais, a arguida deveria ter tido uma preocupação acrescida em procurar os seus antecedentes clínicos, o que não o fez. Ao longo da audiência de julgamento foi-se discutindo se o Ibuprofeno (BRUFEN) e Acetilsalicilato de lisina (ASPEGIC) eram medicamentos distintos e se pertenciam ao grupo dos Anti-Inflamatórios Não Esteróides (AINE´s), o que ficou devidamente provado que sim. E “a pré-existência de asma está associada a um pior decurso deste quadro clínico e reacções anafilácticas, nomeadamente a fármacos do grupo dos anti-inflamatórios não esteróides (AINE), em que se incluem o ibuprofeno e o acetilsalicilato de lisina” – cfr. parecer médico-legal e relatório de autópsia. Por outro lado, as próprias conclusão da Recorrentes são contraditórias, veja-se a conclusão n.º 18, na parte em que refere que a testemunha Prof. Dr. HH considera que “a administração de um salicilato não estava absolutamente contraindicada”, porém no corpo do recurso é transcrito parte das suas declarações e podemos ler “Primeiro em doente asmático não se deve dar acetilsalicilatos” (cfr. do minuto 22:33 ao minuto 23:22). Se não devemos dar, salvo o devido respeito, não podemos concluir que “não estava absolutamente contraindicada”. Por todo o supra exposto, podemos constatar que os factos dados como assente foram pormenorizadamente fundamentados. Na fundamentação de tal convicção, ficaram claramente evidenciadas as razões que levaram a Senhora Juíza a considerar provados os factos postos em causa pela Recorrente, ou seja, em última análise, e para o que aqui interessa, a considerar provada a prática do crime que lhe vinha imputado na acusação. Tal convicção alicerçou-se, como expressamente se refere na sentença, numa apreciação crítica e global de toda a prova produzida no seu conjunto. Tendo ficado o Tribunal a quo convencido, sem qualquer margem para dúvida, de que a arguida efectivamente praticou o crime pelo qual foi condenada. Dos depoimentos supra referidos, não há dúvidas quanto à matéria de facto dada como provada. Deste modo, não houve, pois, qualquer erro de julgamento, sendo a fundamentação do julgado bem estruturada, ampla e certeira. O Tribunal fundou assim, e muito adequadamente, a sua convicção quanto aos factos. A Recorrente tem é sobre a matéria uma convicção contrária. Apenas isso. Convicção que se não pode substituir à do juiz. Conforme já decidido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 27.05.2015, processo n.º 171/14.9PFCBR.C1, acessível em www.dgsi.pt, “Se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum. II - A crítica à convicção do tribunal a quo sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção do Recorrente sobre a prova produzida.”. Só a demonstração que a convicção do julgador é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais é que, afastando-a, poderia ter a virtualidade de fazer com que uma outra se lhe substituísse. No caso dos autos, o tribunal a quo, apreciando livremente a prova, fazendo apelo a regras da experiência, socorrendo-se de elementos periciais, formou a sua convicção no sentido de dar como provado que a Recorrente praticou os factos pelos quais vinha acusada. Ora, não se vislumbrando qualquer erro ou deficiência no processo lógico que conduziu à formação da convicção respectiva, deve, nos termos expendidos, ser naturalmente preservada e mantida a matéria de facto dada como demonstrada. b) Do vício de erro na apreciação crítica da prova e violação do princípio da livre apreciação da prova: O vício do erro (notório) na apreciação da prova existe quando a prova é valorada contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (Cfr. Germano Marques da Silva in “Curso de Processo Penal”, Vol. III, Verbo, 2ª, Edição, pág. 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (Cfr. Simas Santos e Leal Henriques in “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 6ª Edição, pág., pág. 74). Ora, o erro notório na apreciação da prova consiste em dar-se como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, sendo o erro detectável por qualquer pessoa minimamente atenta, resultando tão evidente que não pode passar despercebido ao comum dos observadores. Nos presentes autos, consideramos que não assiste razão à Recorrente sendo que os factos dados como provados na Decisão Recorrida, que por economia processual se dão por integralmente reproduzidos, mostram-se correctamente julgados, em face da conjugação de toda a prova produzida em audiência. Afigura-se-nos que efectivamente a Recorrente parece confundir a apreciação da prova com a convicção que o próprio tem da prova que foi produzida em julgamento e que, em seu entender, impunha uma decisão diversa. No caso em apreço, inexiste, assim, em face da factualidade dada como provada e acima elencada, o vício de erro notório na apreciação da prova para a decisão da condenação da arguida pela prática do crime de homicídio por negligência sendo os factos apurados suficientes para a decisão de direito. Por outro lado, sempre se dirá que o tribunal de recurso apenas pode controlar e sindicar, o bom uso ou o abuso do princípio da livre convicção, com base na motivação da sua escolha. Na verdade, o depoimento oral de uma testemunha é formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, as suas reacções imediatas, o sentido dado à palavra e à frase, o contexto em que é prestado o depoimento, o ambiente gerado em torno da testemunha, o modo como é feito o interrogatório e surge a resposta, tudo contribuindo para a formação da convicção do julgador. Não significa isto, no entanto, que não haja limites à discricionariedade do julgador, pois o artigo 127.º, do Código de Processo Penal indica, desde logo, um limite: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova. Não é, pois, decisivo para se concluir pela realidade da acusação movida a um qualquer arguido, que haja provas directas e cabais do seu envolvimento nos factos. Condição necessária, mas também suficiente é que os factos demonstrados pelas provas produzidas, na sua globalidade, inculquem a certeza relativa, dentro do que é lógico e normal, de que as coisas sucederam como a acusação as define. Por outro lado, o tribunal de recurso só pode modificar a convicção do julgador quando a mesma violar os seus momentos estritamente vinculados ou então quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum. O juiz deve, pois, ter uma atitude crítica de “avaliação da credibilidade do depoimento” não sendo uma mera caixa receptora de tudo o que a testemunha (ou também o arguido) disser, sem indicar razão de ciência do seu pretenso saber. E, para se impugnar essa credibilidade, não basta procurar substituir a visão do Tribunal recorrido pela visão subjectiva de quem recorre, tornando–se necessário demonstrar que foram, então e aí, violadas as regras de experiência e a lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica, objectivando as razões da discordância, o que na nossa óptica tal não foi feito. III. Da Medida da Pena: O Ministério Público discorda da posição assumida pela Recorrente, considerando que a medida concreta da pena a que a arguida foi condenada mostra-se justa e adequada à satisfação das necessidades da culpa e às exigências da prevenção geral e especial. A medida judicial da pena foi determinada com acerto e com integral respeito pelos critérios a que artigo 71º, do Código Penal manda atender quanto à sua determinação concreta. Ora, com exceção das circunstâncias pessoais, não se provaram quaisquer outras circunstâncias, anteriores ou posteriores ao crime, que depusessem a favor da recorrente. Por outro lado, não tendo optado pelo silêncio, a arguida prestou declarações, porém, nunca assumiu os factos por completo nem mostrou qualquer juízo de censura pela situação em causa. Ao invés, informou que deixou de atender menores justificando-se com o facto de as crianças não contarem a verdade. Da sua conduta processual e do seu comportamento em audiência, não resultaram sinais de arrependimento, nem de resto se vislumbra que os haja. Neste contexto, ponderada a elevada ilicitude dos factos, as exigências de prevenção (que no seu caso se mostram particularmente intensas), situando-se ligeiramente acima do meio da moldura penal abstrata, a medida é ajustada. Nesse particular a sentença, a pecar, não seria certamente por excesso. O que nesta matéria a lei valoriza como atenuante, é a conduta posterior do agente que seja destinada a reparar as consequências do crime (artigo 71º, n.º 2, al. e), do Código Penal). Ora, o recorrente não assumiu qualquer conduta nesse sentido. Daí que, em concreto, se não se possa afirmar, como o faz a recorrente, que seja manifestamente exagerada. É que não pode olvidar-se que a medida concreta da sanção deve ser encontrada dentro da moldura abstrata, sendo essa a única perspetivação que permite aferir da justeza da dosimetria penal. No contexto, crê-se que se não se pode afirmar que os infligidos 3 anos de prisão, substituídos pela pena de proibição do exercício de profissão de médica, quer nos serviços público quer nos privados do território nacional considerando o cometimento do crime no exercício daquela profissão, por um período de 4 (quatro)anos, constituam uma pena exagerada, antes nos parecendo adequada e ajustada às circunstâncias do caso. Daí que se afigure dever ser mantida. IV- O direito Tendo-se considerado provados todos os factos constantes da acusação, e nos precisos termos que dela decorriam, a Recorrente praticou, assim, crime de Homicídio por negligência, grosseira. A pena aplicada afigura-se bem calibrada, sendo justa, respondendo adequadamente às exigências da prevenção. Pelo exposto, a decisão recorrida não violou qualquer normativo legal. Em conclusão: Deve, pois, manter-se a decisão recorrida e negado provimento ao recurso apresentado pela Recorrente.
Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, pugnando também pela improcedência do recurso, exarando as seguintes considerações : [O] recurso da arguida não respeita o legalmente estipulado, assim ficando prejudicadas as respectivas pretensões recursivas. Na realidade, e ressalvado o devido respeito, o que a Recorrente visa é a reapreciação da prova produzida, qual novo julgamento4, pelo Tribunal ad quem, no intuito de lograr vencimento de decisão diversa da recorrida, assim apresentando a sua própria versão, a sua valoração e apreciação sobre a prova produzida, de forma (conveniente ou subjectivamente) diversa e desconforme com a interpretação e valoração feita pelo tribunal recorrido, não demonstrando, apesar do esforço argumentativo, que a prova produzida impunha decisão diversa da recorrida. Com efeito, a recorrente limita-se a atacar a convicção do tribunal a quo, aparentando olvidar que a mesma está vinculada ao princípio da livre apreciação da prova (art. 127.º, do Código de Processo Penal) e às regras de experiência e da lógica comum, sendo que, como se afirma no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de 24 de Março de 2004 (DR, II Série, n.º 129, de 2/6/2004) “A censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão”. (…) Ora analisando a decisão ora submetida a escrutínio do Tribunal da Relação do Porto, verifica-se que na motivação da decisão sobre a matéria de facto, o tribunal a quo não só indicou os meios de prova, como procedeu, de forma que se tem por correcta e ponderada, à análise crítica da prova produzida indicando claramente as razões da credibilidade, ou da sua falta, que lhe mereceram os depoimentos prestados, conjugando e concatenando tais depoimentos entre si, assim como com a demais prova produzida – e.g., a prova pericial colhida nos autos – de forma que pode afirmar-se que os factos provados encontram plena sustentação na(s) prova(s) produzida(s). (…) Assim sendo e analisando, agora, o recurso interposto pela arguida afigura-se que a mesma mais não pretende que, realizando-se novo julgamento da matéria de facto – o que, sublinha-se, não competirá ao tribunal de recurso – seja alcançada conclusão diversa da constante da decisão proferida pelo tribunal recorrido, sem que, contudo, em momento algum, logre indicar qualquer elemento que imponha tal conclusão quando, à luz do regime legal concretamente aplicável, era necessário (rectius, imprescindível) que demonstrasse que a convicção obtida pelo tribunal recorrido traduz uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, não só era necessário que a recorrente demonstrasse a possível incorrecção decisória da decisão recorrida, como mais se impunha que demonstrasse a absoluta imperatividade de uma diferente convicção. Ora analisando os elementos de prova indicados pela Recorrente para sustentar a procedência da pretensão recursiva ora sob apreciação afigura-se que os mesmos se baseiam, exclusivamente, em segmentos de depoimentos que, ouvidos na sua totalidade e ressalvado o devido respeito por distinto e melhor entendimento, não alcançarão o sentido ou efeito que a Recorrente lhes pretende atribuir, sendo que, em momento algum, tanto quanto o signatário consegue alcançar, daqueles depoimentos resulta qualquer elemento que coloque em causa a conclusão a que chegou o tribunal a quo e, muito menos, que imponha conclusão diversa daquela, assim se tornando nítido que, neste segmento e ressalvado distinto entendimento, a pretensão recursiva da Recorrente carece de sustentação suficiente para poder proceder. 3.2. Importa, ainda, referir que se tem como igualmente improcedente a pretensão da Recorrente em ver suspensa na respectiva execução a pena de prisão em que vem condenada, ao invés de cumprir a pena (de substituição) de proibição do exercício de profissão de médica, quer nos serviços público ou privados do território nacional considerando o cometimento do crime no exercício daquela profissão, por um período de 4 (quatro) anos. Insurgindo-se a Recorrente contra o último segmento da decisão condenatória, cabe assinalar que os pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão não se mostram absolutamente coincidentes com aqueles de que depende a Proibição do exercício de profissão, função ou actividade, pois que enquanto o n.º 1 do artigo 46.º do Código Penal dispõe que “A pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos é substituída por pena de proibição, por um período de 2 a 8 anos, do exercício de profissão, função ou atividade, públicas ou privadas, quando o crime tenha sido cometido pelo arguido no respetivo exercício, sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” (sublinhado do signatário), acrescentando o n.º 2 do mesmo normativo que “No caso previsto no número anterior é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos n.ºs 4 a 6 do artigo 66.º e no artigo 68.º”, já o artigo 50.º do mesmo diploma legal, sob a epígrafe de Pressupostos e duração (da suspensão da execução da pena de prisão), dispõe no seu n.º 1 que “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”8 (sublinhado também do signatário). E ainda que a suspensão da execução da pena possa ser sujeita ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta ou, ainda, que seja acompanhada por regime de prova (cfr., por tudo, n.ºs 2 a 4 da mesma norma e artigos 51.º a 54.º do Código Penal), a mesma pressupõe, necessária e inapelavelmente – e para além do pressuposto formal [i. e., a circunstância de, em concreto, não ter sido aplicada (ao agente) pena de prisão superior a 5 (cinco) anos] – que o tribunal alcance um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do condenado, tendo em atenção a respectiva personalidade e as circunstâncias do caso, no sentido de que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarão para o afastar da criminalidade, satisfazendo, simultaneamente, as exigências de prevenção geral, ínsitas nas finalidades da punição, previstas no n.º 1 do artigo 40.º do Código Penal (quais sejam, “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”). Importará, a este propósito, reter o lúcido ensinamento contido no comentário de Simas Santos e Leal Henriques ao citado artigo 50.º do Código Penal9, quando referem que “Na base da decisão … deverá estar uma prognose social favorável ao réu (como lhe chama Jescheck, op. e loc. cit.)… ou seja, a esperança de que o réu sentirá a sua condenação como uma advertência e que não cometerá no futuro nenhum crime. O tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que a esperança não é seguramente uma certeza, mas se tem dúvidas sobre a capacidade do réu para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa” (itálico no original; destaques e sublinhados do signatário). (…) Importa, assim, referir que, ressalvado distinto e melhor entendimento, a pretensão da recorrente em ver suspensa a execução da pena em que vem condenado se mostrará votada ao fracasso, pois que, conforme se lê na decisão ora submetida a superior escrutínio, “… como decorre dos factos provados apesar da sua conduta, a arguida volvidos cinco anos desde a prática dos factos, permanece sem lograr interiorizar o desvalor da sua actuação, denota total ausência de Juízo crítico pelo que só sendo proibida de exercer a sua profissão durante um período de tempo se logrará cumprir as necessidades de prevenção geral e especial que não deixam de ser elevadas, uma vez que a arguida, apesar de se ter demonstrado à saciedade a sua incúria, desleixo, leviandade espelhada permanece impávida e serena continuando a tentar imputar responsabilidades à vitima ao mesmo tempo que tenta desvirtuar os depoimentos da enfermeira e do médico CC” (sublinhado do signatário). Mais se lê na mesma decisão que “Numa derradeira oportunidade de evitar o cumprimento de uma pena de prisão efectiva, a pena de substituição de proibição do exercício da sua profissão por período não despiciendo ligeiramente acima do meio da moldura da pena de substituição prevista, contribuirá para a interiorização por banda da arguida da necessidade de observar cuidadosamente todos os procedimentos aptos a prevenir situações como a que nos presentes autos determinaram o fim da vida de um jovem de 16 anos”. Não se nega que a pena assim imposta possa ser interpretada pela ora Recorrente como “demasiado severa”, obrigando-a mesmo a procurar diferente forma de prover às respectivas necessidades, mas os elementos disponíveis nos autos apontam para que a mesma se apresenta como a solução mais adequada – dir-se-ia mesmo, quase imposta – atenta a devastadora dimensão das funestas consequências que advieram da respectiva negligência, a qual é tão mais difícil de compreender quanto é certo que todos os elementos disponíveis nos autos demonstram, de forma que se tem como inelutável, que os registos clínicos relativos ao infausto BB lhe estarim disponíveis e “à distância de um clique”… E sempre ressalvado o devido respeito, mal se compreende o argumentário invocado pela Recorrente16 de que o tribunal a quo “Descura totalmente que uma pena de prisão efetiva substituída pelo não exercício da sua profissão apenas terá na Recorrente efeitos negativos e nunca positivos”, e de que “Nem a pena de prisão efetiva nem a privação do exercício da sua profissão irão ressocializar a recorrente ou habilitá-la para o exercício da sua profissão, ficando afastada da prática médica durante quatro anos, então porquê a mesma?”, assim clamando que “A Arguida está reintegrada e socializada, esgotou-se assim o fim da prisão efetiva, não havendo qualquer fundamento para a impedir do exercício da sua profissão o qual já o faz há mais de vinte anos”. A proceder tal linha de raciocínio, penas de substituição como a alcançada pelo tribunal a quo não poderiam ser aplicadas a qualquer cidadão que se mostre socialmente inserido, com uma vida aparentemente (profissional e extraprofissional) “normal”, do que resultaria que a solução legalmente consagrada no artigo 46.º do Código Penal passaria a ter um efeito meramente decorativo, não sendo passível de aplicação prática mesmo em casos – como o dos presentes autos – em que a conduta criminalmente relevante se registou no pleno exercício de profissão e com resultados tão nefastos como a morte de um jovem com apenas 16 (dezasseis) anos de vida! Não merecerá, assim, qualquer censura o percurso percorrido pelo tribunal a quo até alcançar a decisão de não suspender a execução da pena de três anos de prisão aplicada à ora Recorrente, antes a tendo substituído pela proibição do exercício de profissão de médica, quer nos serviços público ou privados do território nacional considerando o cometimento do crime no exercício daquela profissão, por um período de 4 (quatro) anos, de harmonia com o disposto no artigo 46.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal. Ora, dispondo o n.º 1 do artigo 40.º do Código Penal que “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, atentos os elementos disponíveis nos autos e o comportamento da ora Recorrente, tem-se como isenta de crítica, também neste segmento final, a decisão recorrida, assim falecendo a pretensão recursiva da arguida. À luz de quanto antecede e permitindo-se o signatário louvar-se também de quanto mais resulta da resposta apresentada pela Exm.ª Procuradora da República junto do tribunal recorrido que, com a devida vénia, se subscreve, emite-se parecer no sentido de que o recurso interposto pela arguida AA não merecerá provimento, assim devendo ser mantida a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Foi cumprido o disposto no artigo 417º/2 do Cód. de Processo Penal, nada veio a ser acrescentado no processo.
* Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir.
* II. APRECIAÇÃO DO RECURSO
O objecto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, devendo assim a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como é designadamente o caso das nulidades insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento (previstas expressamente no art. 119º do Cód. de Processo Penal e noutras disposições dispersas do mesmo código), ou dos vícios previstos no art. 379º ou no art. 410º/2, ambos do Cód. de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Acórdão do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995), podendo o recurso igualmente ter como fundamento a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada, cfr. art. 410º/3 do Cód. de Processo Penal. São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – cfr. arts. 403º, 412º e 417º do Cód. de Processo Penal e, entre outros, Acórdãos do S.T.J. de 29/01/2015 (proc. 91/14.7YFLSB.S1)[[1]], e de 30/06/2016 (proc. 370/13.0PEVFX.L1.S1)[[2]]. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, ‘Curso de Processo Penal’, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».
A esta luz, as questões a conhecer no âmbito do presente acórdão são as de apreciar e decidir sobre : 1. saber se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto ; 2. saber se pela arguida foram preenchidos os pressupostos típicos do crime de homicídio por negligência pelo qual vem condenada ; 3. saber se deve ser determinada a alteração das consequências penais no caso, devendo a pena de prisão em que a arguido vem condenada ser declarada suspensa na respectiva execução.
* Comecemos por fazer aqui presente o teor da decisão recorrida, na parte da mesma que releva para a presente decisão.
a. É a seguinte a matéria de facto considerada pelo tribunal de 1ª Instância : «II. Fundamentação de facto Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos: 1. BB, nascido em ../../2000, recorreu ao Centro de Saúde ... em 07/05/2017 – à data tinha 16 anos - pelas 20h53m apresentando tosse, cefaleia mais intensa quando tosse, desde o dia anterior e febre. 2. Estava, à data da admissão em tal serviço, consciente, colaborante e orientado, com mucosas coradas e hidratadas, eupneico, com temperatura auricular de 38,4º C, TA 112/87 mmHg, ACP sem alterações aparentes. 3. O jovem recorria frequentemente a tal serviço, e tinha como antecedentes clínicos “asma brônquica” e “polipose nasal”, encontrando-se medicado, à data com “Singulair” e “Ventilan inalador”. 4. A arguida AA, que se encontrava de serviço, naquele momento e naquele local, atendeu o jovem, depois de este ter passado pelo serviço de triagem e de lhe ter sido atribuída a prioridade de cor verde (pouco urgente, com atendimento de 2 a 4 horas). 5. Após observar o jovem, a arguida, sem consultar os registos clínicos anteriores ou a ficha clinica do jovem, acessível no sistema informático ao seu dispor, prescreveu a seguinte medicação e forma de administração: - P- 1 gr Aspegic EV - Hidrocortisona 200mg EV - Nebz c/ Atrovent + SF “ (sic) 6. Tal prescrição médica P- 1 gr Aspegic EV foi administrada pela equipa de enfermagem pelas 21h12m nesse mesmo dia. 7. Pouco tempo depois, o jovem indicou à equipa de enfermagem sentir desconforto na garganta e passado pouco tempo já denotava dificuldades de respiração, que se foram agravando nos minutos seguintes 8. Pelas 21h40m a situação clinica do jovem era já considerada “Instável”, e após a intervenção de um outro médico que não a arguida, a situação do jovem foi caracterizada como “quadro clinico de anafilaxia por salicilatos” (sic). 9. Devido ao facto de ter sido prescrito pela arguida que o medicamento fosse administrado por via Endovenosa (EV) – o que à luz da situação clinica do jovem no momento da sua admissão não era de todo necessário - mais difícil se tornou reverter a situação, debelando a reacção anafilática ao Aspegic, (salicilato). 10. Às 21h45m o jovem entrou em paragem cardiorrespiratória, tendo sido sedado, e após estabilizado foi transportado para o Hospital de São João no Porto, sob ventilação mecânica. 11. O jovem BB faleceu no Hospital de S. João do Porto, em ../../2017, pelas 11h30m. 12. Realizada autópsia médico-legal ao cadáver do jovem concluiu-se que “a morte do BB foi devida a encefalopatia anóxica, que sobreveio como complicação de paragem cardiorrespiratória em vitima com antecedentes de asma brônquica mal controlada com possível alergia a antinflamatórios não esteroides, não sendo possível excluir uma eventual reacção anafilática após a administração de Aspegic endovenoso”. 13. Ora, a arguida, sem ter procedido a uma avaliação clínica completa, apurando os antecedentes e a história clinica – anamnese – do paciente, prescreveu e determinou a toma deste de um agente altamente potenciador de reacções anafiláticas em asmáticos, o que veio a suceder e provocou, por sua vez, a paragem cardiorrespiratória do jovem BB. 14. A Arguida não usou da diligência que lhe era exigida segundo as circunstâncias concretas para evitar o resultado supra descrito, altamente provável e expectável naquelas concretas circunstâncias, dever esse decorrente quer de normas legais, quer do uso e experiência comum. 15. Os elementos auxiliadores do diagnostico e de recolha de informação clínica estavam acessíveis à arguida, através do sistema informático – que a arguida utilizou até para inserir os dados da consulta que efectuou ao jovem - onde constam descritos quer registos clínicos anteriores, problemas do utente e indicações de alergias. 16. Tal análise, simples e rápida, que se impunha permitiria que a arguida não se decidisse de forma insensata e irresponsável por uma terapia, medicação e forma de administração que despoletaram uma reacção anafilática no jovem que foi por sua vez, ainda a causa directa da sua morte. 17. A forma de administração do referido medicamento escolhida pela arguida, - intravenosa ou EV – foi também determinante no resultado produzido pois tornou-se quase impossível de reverter a medicação de forma atempada e eficaz. 18. Tal crise/reacção de hipersensibilidade do jovem BB era, à luz dos conhecimentos médicos actuais, altamente provável na decorrência da prescrição de “Aspegic” (um salicilato) a um paciente asmático, pelo que a arguida actuou com grave imprudência e descuido profissional, omitindo os cuidados que teriam garantido a opção de diagnostico, tratamento e forma de administração que não colocassem em risco a vida do jovem BB. 19. Ao agir da forma descrita a arguida agiu livre e voluntariamente, não procedendo com o cuidado devido, a que estava obrigada e era capaz, tendo em conta o estado do paciente e a sintomatologia que este apresentada, agindo de forma descuidada e desleixada em clamorosa violação das legis artis que regem a sua profissão.
Condições Pessoais. 20. A arguida nasceu na Guiné-Bissau e desenvolveu-se no seio da família de origem composta pelos pais e uma fratia de 8 irmãos beneficiando de uma condição socioeconomica equilibrada atendendo aos rendimentos cumulativos da figura paterna como funcionário público e comerciante. 21. Estou medicina na Universidade ..., em Cuba, tendo beneficiado de bolsa de estudo, volvidos dois anos regressou à Guiné-Bissau onde concluiu a licenciatura no ano de 1993/1994. 22.Em 1999 emigrou para Portugal e ao abrigo de um protocolo académico foi integrada como estagiária no Hospital 1... no Porto 23.Integrou o internato para a especialidade de infeciologia no Hospital 2... trabalhando simultaneamente no Centro Hospitalar ... – ..., abandonando o internato para a referida especialidade por não ter conseguido obter as notas pretendidas, 24. Exerceu a sua profissão de médica como tarafeira em urgências hospitalares nível Nacional, tendo em 2008 constituído a empresa A... unipessoal Lda. pela qual tem exercido a sua actividade profissional como médica em regime de prestação de serviços médicos. 25. A arguida, é solteira, tem dois filhos com 37 e 30 anos de idade, encontrando-se o mais velho em cumprimento de pena de prisão efectiva e o mais novo na Guiné-Bissau a estudar, vive em casa própria suportando uma prestação pelo crédito bancário contraído para a sua aquisição no montante de 650,00€, suporta o pagamento de uma prestação de cerca de 90€ devida pela contração de um crédito pessoal, e de cerca de 500€ pelo empréstimo contraído para aquisição de veículo automóvel, é médica, prestando serviços para empresas que têm acordos com diversos hospitais públicos, sendo contratada como tarefeira auferindo por mês quantias entre os 1822€ e os 4413,75€. 26. A arguida é devedora à AT e ao ISS de quantias que se encontram em execução fiscal e no âmbito das quais celebrou acordo de pagamento em prestações respectivamente de 500€ e 265,20€ tendo ainda uma dívida para com o Condomínio valor de 4672,80€. 27. Face aos factos aqui em apreço deixou de exercer urgência pediátrica. 28. Manifesta dificuldades em descentrar-se da sua situação pessoal e efectuar um juízo crítico. 29. Demonstra total falta de empatia para com o sofrimento, quer da vítima, quer da sua família. 30. A arguida não tem antecedentes criminais.
Não se provaram quaisquer outros enunciados de facto relevantes para a bondade da decisão e que tenham resultado em contrário daqueles que acima constam. Com efeito, não se provou que: a) A arguida beneficia de uma imagem positiva a nível pessoal e profissional tendo sido descrita como trabalhadora, competente e cuidadora dos seus pacientes. b) Agiu conscientemente. »
b. É a seguinte a motivação da decisão de facto apresentada pelo Tribunal de 1.ª Instância : «Motivação da decisão de facto. A motivação da decisão de facto tem como objectivo primacial o de aprimorar junto dos sujeitos processuais, de forma contundente, a força persuasiva do julgamento da matéria de facto. É uma tarefa norteada pelo princípio da livre apreciação da prova e temperada pelas regras da experiência comum, sem nunca olvidar o princípio da imediação da prova – cfr. art.º 127º do Código de Processo Penal. Destarte, para considerar a decisão de facto acima constante, o Tribunal levou em atenção toda a prova testemunhal produzida em audiência. Bem como a prova pericial constante nos autos – mormente o Relatório de autópsia médico-legal de fls. 36, Relatório de anatomia patológica forense de fls. 42, Consulta técnico-cientifica de fls. 166 a 168 com os esclarecimentos de fls. 314 a 316 e a prova Documental, Boletim de informação clínica n.º ...22 de fls. 5, Informação ACES ... de fls. 56, Registos clínicos de fls. 58 a 128, Cópia do assento de nascimento de fls. 135, Registos clínicos de fls. 263 a 271, Anexo 1 (apenso aos presentes autos) – Cópia do relatório do Processo de Inquérito nº.../.../.../2017 ao ACES de ..., instaurado para averiguação dos cuidados de saúde prestados e os factos relativos o episodio de urgência no SUB (Serviço de Urgência Básica) de ... ao utente falecido BB, composto por 164 folhas, Anexo 2 – processo disciplinar; Informação de fls. 387, sobre a validade do medicamento administrado. Informação prestada pelos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, sobre os medicamentos prescritos – fls. 459 e sgs., e respectivo acesso digital; Informação prestada pelos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, sobre acesso ao CPARA e ao Sclínico CSP – fls. 524 e sgs., e respectivo acesso digital e ainda no teor de fls. 613 correspondente ao resultado do exame do serviço de imonologia e relatório social elaborado pela DGRSP. Sabido que a prova pericial tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos (artigo 151º, do CPP), e é o relatório, mencionado no art. 157º do C.P.P., que constitui a prova vinculada, subtraída à livre apreciação do julgador, conforme diz o art. 163º, nº 1, do C.P.P. Representando a prova pericial, em processo penal, um desvio ao princípio da livre apreciação da prova (art. 127º do CPP), dispõe o art. 163.º do CPP, expressamente, que o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial se presume subtraído à livre apreciação do julgador, o qual deve fundamentar a sua divergência sempre que a sua convicção divergir do juízo contido no parecer dos peritos. Porém, tal fundamentação terá sempre de ser efectuada por recurso a outro juízo pericial, e não por recurso á credibilidade dos depoimentos de testemunhas. Não podemos olvidar que a prova pericial é uma das provas de apreciação vinculada que «tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos» - art. 151º do C.P.P. Não tendo o julgador conhecimentos técnicos iguais aos dos peritos, não poderá, sem mais, desconsiderar o resultado obtido pela perícia (artigo 163º, do CPP), com base em prova testemunhal e declarações de arguidos, ainda que com conhecimentos científicos. Isto é, tratando-se de exame pericial o resultado obtido no mesmo apenas pode ser colocado em crise por outro meio de prova idêntico. Não se olvide que para além do relatório pericial também configura prova pericial, o parecer médico-legal cujo valor probatório, tarifado pelo art. 163º do Código de Processo Penal, assume uma enorme relevância, já que o juízo técnico-científico aí expresso se presume subtraído à livre apreciação do julgador – nº 1 -, e este, por isso, tem que fundamentar a sua divergência em relação ao mesmo – nº2. Desta forma assumem particular relevância as conclusões extraídas do parecer médico-legal no qual se conclui, nas repostas aos quesitos formulados, que: (…) tendo em conta o estado de saúde de BB à chegada ao Centro de Saúde ... – tosse, cefaleia e febre, o primeiro procedimento a adoptar seria uma avaliação clínica completa; a administração de Aspegic endovenoso não era essencial face à temperatura timpânica registada de 38º,4C, correspondente a 37º,4C de temperatura axilar, sendo que habitualmente indica-se a administração de antipirético em temperaturas superiores a 38º,5; a haver necessidade de administrar terapêutica antipirética/analgésica, deveria optar-se pelo paracetamol. Antes da administração de fármacos com reconhecido potencial de desencadear reacção alérgica, é indispensável colher uma história clínica completa acerca de alergias anteriores; face à história clínica do doente, não estaria indicado administrar salicilato, porquanto: a temperatura registada não o justificava e não é recomendada a administração de salicilato a doentes com antecedentes de asma brônquica, sabendo-se que os salicilatos podem ser um factor desencadeante; à via de administração usada, endovenosa, pode associar-se reacção de hipersensibilidade de maior gravidade do que a via oral; a paragem cardiorrespiratória pode ter sido provocada pela administração do Aspegic. Para além deste parecer, o relatório de autópsia médico-legal, em 6. do item “Discussão”, explica de forma muito clara o potencial desencadeante de sintomas respiratórios típicos da asma em resposta à administração dos AINE´s, nos quais se inclui o Ibuprofeno e o acetilsalicilato de lisina. Conforme transparece do referido parecer médico-legal, e se escreve também no relatório de autópsia: “a pré-existência de asma está associada a um pior decurso deste quadro clínico e reacções anafilácticas, nomeadamente a fármacos do grupo dos anti-inflamatórios não esteróides (AINE), em que se incluem o ibuprofeno e o acetilsalicilato de lisina” – 6- da Discussão. De resto, consta do folheto informativo para o utilizador do ASPEGIC – junto a fls. 159 do Anexo 1, a seguinte advertência: «Não tome ASPEGIC 1000 se tem: Alergia (hipersensibilidade) ao ácido acetilsalicílico ou a qualquer dos excipientes; História de asma induzida pela administração de salicilatos ou substâncias com acção semelhante, sobretudo anti-inflamatórios não esteróides; (…)». Ou seja, é o próprio fabricante do medicamento que, junto do utilizador, contra-indica a toma do Aspegic por quem tenha já anteriormente manifestado hipersensibilidade (alergia) a um anti-inflamatório não esteróide, como é o caso do Ibuprofeno. A par destes elementos, foram valorados os esclarecimentos prestados pelos Srs.Peritos em audiência, que subscreveram o relatório da autopsia e ainda o do Sr. Perito que foi relator do parecer médico-legal HH que prestou esclarecimentos dos quais resulta que a reacção anafilática poderia estar relacionada com um ataque agudo de asma, mas nada no caso concreto aponta nesse sentido, uma vez que a vítima não se dirigiu à urgência com qualquer queixa nesse sentido. Questionado, desvaloriza os valores dos IGE por ser seguro afirmar que uma colheita realizada sete dias depois da administração do Aspegic com grande probabilidade não detectar a sua presença, o que é corroborado pelos peritos que subscreveram o relatório da autopsia. Os esclarecimentos dos srs. Peritos que subscreveram o relatório da autopsia II e JJ, tendo o primeiro esclarecido que não se verifica edema da laringe porque a vitima foi logo entubada e consequentemente estando lá o tubo não se verifica o edema, esclareceu que o muco esbranquiçado referido em vários pontos do relatório da autopsia não pode ser associado a nada, nem a asma, a vítima segundo as informações prestadas apresentava um estado gripal, e encontrava-se à data do óbito, em contexto hospitalar ligado a um ventilador. Admite que preferencialmente deve ser ministrado paracetamol para baixar a febre, no doente asmático tem de se ter atenção à medicação que pode estar associada a maiores complicações, esclarecendo a segunda, em face do consignado no ponto 12 dos factos provados “a morte do BB foi devida a encefalopatia anóxica, que sobreveio como complicação de paragem cardiorrespiratória em vitima com antecedentes de asma brônquica mal controlada com possível alergia a antinflamatórios não esteroides, não sendo possível excluir uma eventual reacção anafilática após a administração de Aspegic endovenoso” que não foi possível afirmar em termos rigorosos que a encefalopatia anóxica causada pela paragem cardiorrespiratória resultou de uma reacção anafilática, devido à aplicação endovenosa do Aspegic, embora tal hipótese não possa ser excluída. Cumpre desde já salientar que “Não tendo o juiz conhecimentos técnico-científicos de medicina, as conclusões dos peritos médicos e os pareceres dos Colégios da Especialidade da Ordem dos Médicos são fundamentais para o juízo sobre a violação, ou não, das leges artis pelo médico e na avaliação da existência, ou não, dessa relação de causalidade, mas, na reconstituição histórica dos factos, o tribunal não pode ater-se, exclusivamente, a esses meios, antes se lhe impõe que proceda a uma avaliação complexiva e contextualizada da actuação do agente, levando em consideração a globalidade das circunstâncias e factores (endógenos e exógenos) e meios disponibilizados para o juízo de prognose póstuma que tem de formular. Como, a este propósito, alerta o Prof. Germano Marques da Silva (“Curso de Processo Penal”, Vol. II, Verbo, 5.ª edição revista e actualizada, pág. 264), «não obstante o recurso à perícia resultar precisamente da exigência de conhecimentos especializados que, como regra, o tribunal não possui, o tribunal não pode simplesmente descansar na perícia, pois a decisão final sobre a culpabilidade é da sua responsabilidade. O valor probatório especial da perícia não significa que estejamos perante um novo regime de prova legal, obrigando o juiz a submeter-se ao ipse dixit dos peritos; individualiza a regra do exercício racional da sua apreciação. Isto é, importa distinguir a vinculação do juiz ao resultado da perícia e ao princípio da livre convicção. O princípio da livre convicção impõe-se como dever de exercitar a função de valoração probatória segundo os cânones da racionalidade e por isso que quando esteja em causa uma prova pericial fundada sobre regras científicas, artísticas ou técnicas, a adesão ou discordância relativamente ao resultado da perícia não pode senão assentar no mesmo método”». Ainda pertinente para o caso é a chamada de atenção da Prof.ª Paula Ribeiro Faria (“Formas Especiais do Crime”, UCE, 2017, pág. 81) para a necessidade de ter presente «alguma divergência entre os grupos profissionais e os juristas acerca do que constitui objecto da definição da violação das leges artis»[5] e, por outro lado, a «discrepância entre o momento da elaboração do relatório pericial (…) e o momento em que teve lugar a conduta do agente que não ocorreu sempre em circunstâncias ideais de espaço e de tempo, ou pelo menos, em circunstâncias que permitissem grande ponderação ou reflexão». As legis artis são regras de avaliação de conduta segundo critérios valorativos da mesma e tem como obejctivo o avaliar a correção ou não do resultado da dita conduta ou da sua conformação com a técnica normal requerida, ou seja se a actuação medica corresponde ou está conforme à generalidade das condutas profissionais em casos análogas. Trata-se das regras do know – how sobre o tratamento médico que devem estar ao alcance de qualquer clinico no âmbito da sua actividade profissional. São regras de índole não exclusivamente técnico-cientifica, mas também deontológicas ou de ética profissional pois não se vislumbra qualquer razão, antes pelo contrário, para a exclusão destas da arte médica. A indicação do tratamento ou intervenção cirúrgica refere-se ao se do tratamento enquanto a observância das regras referidas respeita ao como de tais realidades. Certo é que um tratamento medicamente indicado in concreto supõe a observância das legis artis e portanto a própria indicação médica se há-se fazer em conformidade com tais regras. Nisso se traduz a objectvidade de tal indicação. A observância de tais regras da arte médica não se limita à fase da escolha do tratamento, antes se estende à aplicação do mesmo e também antecede a própria indicação médica do tratamento, pois tais regras devem presidir à elaboração do próprio diagnóstico, e devem continuar mesmo após a conclusão do tratamento, isto é no acompanhamento ou vigilância da fase do pós operatório ou da convalescença. Postos estes considerandos o Tribunal valorou ainda a prova testemunhal produzida. Atendeu-se às declarações prestadas pela arguida reveladoras de uma total desresponsabilização quanto às circunstancias em que ocorreram os factos e às suas consequências. Assim, a arguida descreveu, em síntese, que a vítima lhe explicou os sintomas, que lhe perguntou se estava sozinho, que não atende normalmente doentes menores sozinhos, mas que o BB lhe disse que estava sozinho (embora depois refira que deduziu que estava sozinho por ter entrado sozinho no consultório), que lhe disse que era asmático mas não lhe disse a medicação que fazia, não vê qualquer inconveniente em prescrever aspegic a um asmático, optou por administração endovenosa por ele ter tosse e poder vomitar (embora admita, quando questionada, que aquele não se queixou de qualquer vómito, em razão da tosse). Sobre o que fez constar da ficha de atendimento (cf. fls. 124) mencionando “sem alergias medicamentosas conhecidas” diz ter sido respondido pelo BB. Quando questionada se alterou algum procedimento depois do sucedido e que teve o desfecho espelhado na acusação, diz que “deixou de atender crianças por serem todos uns mentirosos”, procurou ainda convencer o Tribunal que a reacção pode ter sido causada por outra medicação, uma vez que lhe transmitiram que aquele teria feito na sala de enfermagem onde lhe foi ministrada a medicação por si prescrita, outra medicação que com ele trazia (apurou-se que a medicação que o BB trazia consigo era a Bomba de Ventilan que utilizava) nega que a enfermeira a tenha chamado informando-a que a vítima se estava a sentir mal (mas depois refere que foi lá ver o doente), e que só pela azáfama que se seguiu é que percebeu que algo não estava bem e que também ajudou na reanimação deste. Nas suas últimas declarações prestadas a final, fingiu emocionar-se, reitera que ministra aspegic às duas sobrinhas que são asmáticas e que a enfermeira e o colega médico que estava também de serviço na urgência no dia e hora dos factos aqui em apreço e que procederam à reanimação do BB “falaram muita coisa que não é verdade”. A assistente, MM, mãe da vítima, descreveu que acompanhou o BB à urgência, ficou na sala de espera e explicou porquê. Em dia que não recorda em que acompanhou o BB a uma consulta entrou com ele no consultório como era habitual, mas tinha tendência para responder às perguntas do médico e este rispidamente advertiu-a de que o filho já era capaz de responder ao que era perguntado e desde aí o BB quis passar a entrar sozinho no consultório, por isso ficou na sala de espera da urgência no dia e hora dos factos, onde aguardou, até que a enfermeira DD veio ter com ela - já se tinha apercebido que dentro da urgência algo não estaria a correu normalmente, mas não sabia que era com o seu filho- quando o BB foi transportado para o Hospital de S, João no Porto transmitindo-lhe que “tinha sido um medicamento” questionou a enfermeira se o filho ia ficar bem e que esta lhe terá respondido “não lhe faço promessas”, tendo posteriormente sido informada que no percurso para o hospital o BB terá sofrido outra paragem cardio-respiratória. Mais revelou, os antecedentes de asma de que o BB padecia, que sabia que era alérgico ao Brufen porque uma vez na sequência de uma crise de asma lhe ter dado um comprimido de Brufen e ter notado que o quadro clínico do BB logo piorou pelo que foi com ele à urgência do hospital de ..., tendo sido elucidada pelo pneumologista que “não se dá Brufen” aos asmáticos, nem qualquer medicamento que contenha ácido acetilsalicílico. Foi ainda questionada se o BB se fazia acompanhar de alguma medicação que pudesse tomado já na sala de enfermagem referindo que a única medicação que o acompanhava era a bomba de ventilan que sempre trazia consigo no bolso. Revelou a identificação da médica de família do BB e que o Dr. CC (médico que estava na urgência e que reanimou o BB) o atendia várias vezes na urgência do serviço de .... O depoimento prestado pela testemunha CC, médico, que para além da arguida, estava de serviço na urgência no dia e hora dos factos, descreveu que ouviu a enfermeira em pânico a pedir ajuda, encontrando-se o BB em quadro de anafilaxia (foi questionado atenta a insinuação da arguida no sentido de a automedicação que a vítima teria feito no interior da sala de enfermagem é que podia ter causado a reacção verificada, respondeu de forma lapidar – “se ele tiver usado a Bomba isso nunca contribuiria para agravar o quadro da anafilaxia antes pelo contrario só ajudaria”). O seu depoimento é um assomo de verdade pela forma objectiva, lapidar, circunstanciada com que descreve a situação que vivenciou de forma clara e concisa. Nega que a arguida tenha sequer entrado na sala de enfermagem para ajudar no quadro de extrema gravidade com que se deparou, o BB já não tinha nebulização, já tinha perdido o acesso endovenoso, desenvolveu os procedimentos aptos a reverter a paragem cardiorrespiratória o que alcançou com sucesso e os procedimentos necessários à ventilação mecânica e após transferiu o BB para os cuidados intensivo do Hospital de S. João no Porto tendo-o acompanhado no percurso, no interior da ambulância. Quando regressou, quis confirmar o que tinha acabado de suceder e foi consultar já de madrugada os registos clínicos da urgência disponíveis, à distância de um clik, e verificou pelos mesmos, que o BB, além de asmático era alérgico ao Ipofrufeno. Estavam ainda disponíveis os registos clínicos do centro de saúde e demais elementos clínicos do utente atinentes às consultas da especialidade do hospital da área de residência sito em .... A testemunha, médico, nunca prescreve este tipo de medicamentos a asmáticos, uma vez que mais de 90% das pessoas asmáticas fazem alergias a estes medicamentos, nem tal se afigurava necessário atendendo a que a febre registada corresponde a 37,9.º, uma vez que os 38,4.º mencionados respeitam à febre auricular. A hidrocortisona também fazia baixar a febre, pelo que era de todo desnecessária a prescrição de aspegic, muito menos endovenoso. Explicitou que não atende menores sozinhos, salienta que se a toma tivesse sido oral teria sido mais fácil reverter o quadro do choque anafilático, que sem qualquer dúvida atingiu o BB, sendo certo que no caso concreto nada justificava a administração endovenosa. No mais, referiu que quando saiu do interior da urgência para ir para a ambulância confirmou a presença da mãe do BB no centro de saúde De igual forma valoramos o depoimento da enfermeira DD que prestava serviço na urgência no dia e hora dos factos, que depôs de forma assertiva, merecendo-nos inteira credibilidade, descreveu que foi chamar a arguida porque quando voltou da triagem, o BB manifestou-lhe (já após lhe ter ministrado o aspegic prescrito pela arguida minutos antes, o mau estar que estava a sentir. Foi chamar a arguida que estava sentada e sozinha no respectivo gabinete não se tendo ela deslocado à enfermaria onde se encontrava o BB, voltou a chamar alto pela arguida, por este ter ficado mais aflito, mas a arguida não apareceu, o BB estava de pé, dizia que não conseguia respirar, parecia no inicio uma crise de pânico, a arguida não se deslocou à enfermaria, até que gritou por ajuda pelo Dr. CC que logo o socorreu nos moldes já supra descritos e que a testemunha corrobora. Revela que a arguida tinha sempre “uma certa inércia” “era sempre preciso chamar a arguida várias vezes”. Ficou claro do depoimento de ambos que não a tinham como profissional particularmente atenta cuidadosa, competente. (cf. fls. 104 terá sido ministrado pelas 21:12 e de fls. 124 infere-se que o Médico CC ali fez constar o que de seguida ocorreu tendo sido chamado “por volta das 21:40” ocorrendo a aparagem cardiorrespiratória às 21h45) A médica de família do BB, LL, revelou que é sempre necessário consultar os registo clínicos. Com a febre apurada, a medicação, a não ser num quadro de convulsões, é oral, não se justificando a endovenosa, corrobora que a hidrocortisona só por si ajudaria a baixar a febre, e que perante a informação do registo clínico de alergia ao Brufen, se devem procurar alternativas ao aspegic que é contraindicado para um asmático, sendo certo que existem outras soluções para baixar a febre. Não teria prescrito aspegic ao BB, muito menos endovenoso. Diga-se, desde já, que inexiste qualquer dúvida quanto à existência de benuron em comprimidos disponível na urgência, ficando assim seguramente arredada qualquer possibilidade da decisão da arguida se prender com a falta de outro medicamento para baixar a febre, nunca tendo existido qualquer ruptura de stock de Benuron conforme explicitou também o enfermeiro EE, que ademais revelou que o BB começou a sentir falta de ar, fez a bombinha “não consigo respirar” fez dispneia, ficou agitado, falaram com a arguida (a colega DD), chamaram, tendo a testemunha deduzido que esta estaria ocupada (o que é contrariado pela enfermeira DD que referiu que estava desocupada sentada no interior do gabinete e ali ficou dizemos nós impávida e serena) sendo esta, a única testemunha que parece ter avistado a arguida nos momentos de tensão que se seguiram à asfixia e paragem cardiorrespiratória que o BB sofreu. Nem o Médico CC, nem a enfermeira DD se recordam dela em nenhum momento na sala de enfermagem. GG, médico de medicina geral e familiar, exerceu funções de perito no IML durante 35 anos, foi o instrutor do processo da ACES de ... (anexo 1), descrevendo as diligências por si realizadas, e questionado reconhece que francamente não é recomendável prescrever aspegic a um doente asmático, sendo que reconhece que no caso concreto atendendo ao quadro de dor de cabeça com tosse e a febre apurada nunca ministraria aspegic, tudo indicando que o que ocorreu foi um choque anafilático causado pela administração endovenosa do Aspegic. FF, médica imonoalergolista, desde 1993 exercendo funções 1.º no Hospital Maria Pia e actualmente no Centro Materno Infantil do Porto, esclareceu que quando se refere “asma não controlada” isto resulta do facto de o BB recorrer muitas vezes à urgência. Explicitou que se deve reduzir a temperatura corporal, que numa situação aguda é ainda mais provável uma reacção alérgica ao medicamento, e que o que deve ser feito é tentar sempre a via oral para baixar a febre. Explicitou que o doente asmático mesmo que não esteja em crise, apresenta maior predisposição para fazer alergias. Também sustenta como mais provável, no caso concreto, uma reacção anafilática, relação de causa e efeito entre a toma endovenosa do aspegic. Considera obrigação do médico de medicina geral ter conhecimento de que não devem ser prescritos determinados tipos de medicamentos aos asmáticos, e em contexto de urgência, deve: primeiro verificar o que há nos registos clínicos, segundo se tem alergias, junto do doente e de quem o acompanha, sendo certo que normalmente não receita Aspegic. A Analafixia pode manifestar-se de várias formas, edema das vias respiratórias, de forma cutânea, hipotensão, e parte respiratória. Uma criança asmática e que tinha uma asma mal controlada (distingue da asma não controlada =se teve várias crises nas últimas 4 semanas), tem um risco acrescido e ainda mais grave, o que exige do clínico uma atenção redobrada. A situação clínica diagnosticada não justificava a administração endovenosa do aspegic. Na anafilaxia a parte respiratória é sempre muito difícil de reverter. Relativamente aos serviços de urgência, não consegue aferir quais eram as condições que a arguida tinha, mas questionada pela defesa sobre o tempo da consulta num quadro de urgência, volta a referir que tem de ser consultado o que existe de mais relevante no histórico do registo clinico, se tem alergia medicamentosa, depois verificar junto do doente e de quem o acompanha se tem alergias, se estivesse a ter uma crise de asma era perceptível pela auscultação. Note-se que o registo de fls. 124 refere “eupneico”. Uma infecção respiratória pode degenerar num ataque de asma, mas no contexto do caso concreto não se configura como uma situação de asma aguda. Um doente eupneico é um doente com uma frequência respiratória dentro da normalidade (o que resulta do registo clinico de 07.05.2017 junto a fls.124). Os pressupostos para não ministrar aspegic a um doente com asma controlada ou asma mal controlada são os mesmos. No caso assume particular relevância o evento (administração endovenosa do aspegic) e o que aconteceu a seguir. Não há na histórica clínica do BB nada que justifique que a causa da morte se prenda com um ataque asma agudo. Pelo menos, determinadas características no pulmão indicariam que a causa da morte teria sido asma e não localiza no relatório da autopsia nada que o evidencie. Os choques anafiláticos que ocorrem frequentemente no seu serviço estão relacionados apenas com tratamentos específicos –por exemplo vacina – sei que posso ingerir um choque anafilático com consentimento informado por isso aplico a vacina em contexto hospitalar, para o poder debelar. KK, especialista em medicina geral e familiar responsável pela elaboração do processo disciplinar, enquadra o diagnostico clinico do BB como um quadro gripal, indica como procedimentos mais correctos na prática clinica, primeiro baixar a febre, melhorar o funcionamento dos brônquios, a prescrição do corticoide. Contudo, afirma que das 600 hipóteses de prescrição que a médica tinha ao dispor, escolheu uma, considerando a atitude da médica admissível. Reconhece que todos os médicos sabem que é necessária uma precaução especial no caso dos doentes asmáticos. Acabou por admitir, embora com notória dificuldade em o afirmar, que a opção da arguida não seria a dele, que teria prescrito Benuron e que devem sempre ser ponderados os riscos e os benefícios em determinado momento quanto à opção terapêutica que o clínico escolhe. Ficamos com a convicção que bem sabe a testemunha que das 600 hipóteses de indicação possível, a arguida escolheu uma perfeitamente desastrada. Quanto à demais medicação prescrita pela arguida documentalmente apenas se encontra registada a administração do Aspegic. Tendo presentes os referidos meios de prova, isoladamente ou conjugados entre si, cumpre concretizar como se formou a convicção do Tribunal. Assim, quanto aos factos provados, a matéria vertida nos pontos 1 a 6 não oferece qualquer dúvida porquanto resulta desde logo do teor dos registos clínicos juntos autos. Ademais, se é certo que a defesa, não a própria arguida que nem sequer o negou, ao longo da produção da prova foi procurando criar a dúvida quanto à existência de registo clínicos anteriores àquele episódio de urgência de 07.05.2017 acessíveis à arguida, apurou-se de forma absolutamente segura, que os registos dos anteriores episódios atinentes a todos os momentos em que o BB foi assistindo na urgência estavam à distancia de um clik no computador, que a arguida utilizou para registar o episódio do dia 07.05.2023 e também estavam disponíveis os demais registos das consultas ocorridas, quer no centro de saúde quer no Hospital 3... sito em ..., e sabemos com uma certeza absoluta que estavam disponíveis porque o próprio colega da arguida, o médico CC, os consultou quando regressado do Hospital de S. João ao qual conduziu o BB para internamento nos cuidados intensivos daquele hospital, ao regressar à urgência de ..., os foi consultar para interiorizar cabalmente o que tinha sucedido naquele dia. Os registos existiam, estavam ao dispor da arguida, e deles constava que o BB era asmático e alérgico ao Brufen, bastava que a arguida tivesse consultado os dois registos anteriores para logo visualizar tal factualidade. E não o fez por notória incúria quando sem excepção, todos os médicos, peritos ou não, o descreveram como uma das primeiras práticas a observar no atendimento de um doente, mesmo que seja em contexto de consulta de urgência. E tudo o permitia, até a pulseira verde atribuída na triagem que não exigia nenhuma velocidade de diagnóstico, sem qualquer ponderação, sem ouvir o adulto que acompanhava o doente, como sucedeu, e que infelizmente conduziu como infra melhor se explicitará ao fatídico desfecho – a morte de um jovem com 16 anos. E não se diga que não ficou demonstrado que ele era alérgico ao Brufen. O depoimento da mãe é um assomo de verdade, mãe essa que quando no decurso do julgamento ouviu a descrição dos momentos vivenciados pelo filho até entrar em paragem cardiorrespiratória se emocionou profundamente, o que da parte da arguida apenas mereceu em esgar de incómodo, sem revelar qualquer empatia para com a dor daquela mãe e muito menos pela perda da vida do BB e do sofrimento por aquele vivenciado e bem descrito pela enfermeira e médico que o socorreram. É também isto que se retira das suas declarações quando afirma “deixei de atender crianças por serem todos uns mentirosos”. Neste conspecto, é irrelevante se a plataforma especifica para registo de alergias tinha ou não informações sobre as alergias do BB, como qualquer homem médio alcançará sem grande esforço. O ponto 6 resulta também do teor de fls. 104/105, o ponto 8 de fls. 124/125 cujo teor é ainda relevante para prova do ponto 10. Para prova da matéria vertida no ponto 7 sobre o que sucedeu logo após a administração endovenosa do aspegic o Tribunal fundou a sua convicção nos depoimentos prestados, quer pela enfermeira DD, quer pelo médico que assistiu o BB, Dr. CC, que assim o descreveram de forma absolutamente credível, relevando-se ainda o depoimento deste último para prova da matéria constante do ponto 10 e que também é corroborado pelo enfermeiro EE. O ponto 12 resulta do relatório da autopsia, sendo certo que a matéria vertida em 11 se infere do próprio assento de nascimento- cf. fls. 135- que comprova ainda o referido em 1 dos factos provados. Ademais, quanto aos pontos 13 a 19 cumpre referir que analisada na sua globalidade toda a prova produzida, quer pericial, quer documental, quer testemunhal não permite de modo lógico e racional concluir de forma distinta. Atentando no teor global do relatório de autópsia médico-legal, mormente em 6. do item “Discussão”, explica-se de forma muito clara o potencial desencadeante de sintomas respiratórios típicos da asma em resposta à administração dos AINE´s, nos quais se inclui o Ibuprofeno e o acetilsalicilato de lisina. A especialista em alergologia FF não destoou do sentido geral destes pareceres, antes os corroborou. Ademais, quando confrontados, quer os Srs. Peritos que subscrevaram o relatório da autopsia, quer o perito que subscreveu o parecer do Conselho medico legal, HH, quer a referida testemunha especialista em alergologia, quer os médicos, CC, GG, com as condições físicas com que o BB chegou à urgência a 07.05.2017, febre, (vimos de 37,9.º - febre axilar), tosse e cefaleia mais intensa quando tosse, em estado eupneico, o que significa que não tinha qualquer crise de asma em curso - a arguida sabia conforme reconheceu que se tratava de um doente asmático, com 16 anos de idade e perante esta sintomatologia, decidiu –se pela indicação médica de lhe ser administrado 1mg de aspegic endovenoso, sem consultar os registos clínicos ao seu dispor, sem procurar ouvir a mãe do jovem que se encontrava presente na sala de espera da urgência pelos motivos por ela explicitados, tendo-se na investigação realizada pela ACES sido tomada por correcta e fidedigna a inscrição no diário médico da fórmula genérica: “sem alergias medicamentosas conhecidas” e sendo certo que tal inscrição não teria sido inserida se a arguida tivesse tido o cuidado de ler os registos clínicos anteriores, recuando pelos menos aos meses precedentes, e, no limite, o cuidado de falar, ou com o colega que 2 meses antes registou a alergia ao ibuprofeno, e que, por casualidade, estava no mesmo Serviço, a trabalhar naquele dia – CC - ou com o adulto acompanhante do menor, que tinha 16 anos de idade, no caso a sua mãe - resultou manifesto que tal comportamento não seria o adoptado por nenhum deles. Resultou claro que não é conforme a prática da generalidade dos clínicos, tendo de se concluir que toda a actuação da arguida no trajecto que deve anteceder qualquer diagnóstico e no que aqui mais importa considerar o comportamento que antecede a indicação médica viola as legis artis da prática médica. Volvidos poucos minutos o BB começou a manifestar que se estava a sentir mal. A enfermeira chamou a arguida que não se mexeu e permaneceu descansadamente no seu gabinete, volvidos pouco minutos a enfermeira voltou a chamar por ela, agora já sem sair mais de perto do BB, até que teve que gritar pelo Dr. CC que logo a acudiu entrando o BB em paragem cardiorrespiratória por reacção anafilaxia, tendo então sido desencadeados todos os procedimentos médicos necessários a reverter tal situação o que foi alcançado apenas quanto à parte cardíaca, uma vez que não mais respirou por si, foi entubado e ventilado foi transferido para os cuidados intensivos do Hospital de S. João do Porto onde veio a falecer a 15.05.2017. À morte causada pela falta de oxigénio no cérebro devido à paragem cardiorespiratória não é de excluir uma reacção anafilática ao medicamento Aapegic. Diremos que antes é de a incluir pois a origem da paragem cardiorrespiratória não advém, de qualquer problema cardíaco, o coração foi até retirado para transplante, e nada aponta que naquele dia o BB estivesse com qualquer crise de asma, pelo contrário estava eupneico. Neste sentido o parecer médico legal e os esclareceimentos prestados demonstram que tudo concorre para esse sentido. Por isso quando confrontados com o elenco dos factos, o timing entre a administração e a anafilaxia que assolou o BB e a paragem cardiorrespiratória de que padeceu, um jovem com 16 anos, cujo coração foi retirado para transplante, tal como sucedeu com diversos órgãos do BB, conforme consta do relatório de autópsia, o estado eupneico com que chegou à urgência, nada aponta para que a paragem cardiorrespiratória tenha como origem um ataque súbito e agudo de asma, pelo que claramente a causa do que sucedeu escuda-se tão só e apenas na administração endovenosa do aspegic. Todos, uns com mais dificuldade, do que outros, não podem puderam negar que o encadeamento dos factos apurados, conduzem a esta conclusão. É que o encadeamento dos acontecimentos não pode conduzir a expressões lacónicas como “não está excluído choque anafilático” apenas com o fundamento de se tratar de um doente com asma mal controlada (por recorrer várias vezes à urgência) e que é distinto do conceito de asma não controlada (aquele que nas ultimas 4 semanas tem vários episódios de urgência). Ademais, percorrida a história clinica do BB não se vislumbra que este tivesse alguma vez padecido de um ataque agudo de asma capaz de fazer perigar seriamente a sua vida, deles resultando que apenas uma vez, com níveis de oxigénio no sangue superiores a 80% ,terá ficado internado por uma semana. Não temos qualquer dúvida que foi o aspegic endovenoso levianamente indicado pela arguida que despoletou a reacção anafilática que foi causa directa da morte do BB. Não obstante se ter apurado que por vezes, só depois de uma primeira exposição ao AINE é que é desenvolvida a alergia à substância; pode durante muito tempo fazer aquele medicamento sem reacção e a partir de dado momento começa a fazer reacção; isso é possível e frequente. Mas entre os registos clínicos disponibilizados nos autos, acessíveis à arguida para registar a consulta efectuada no dia 07/05/2017, verificam-se os seguintes: - “alérgico ao brufen” (20/06/2014) – fls. 93; - “Alergia ao Ibuprofeno” (12/09/2015) – fls. 100; - “Alergia ao Ibuprofeno” (23/11/2015) – fls. 100; - “alérgico ao brufen” (06/07/2016) – fls. 119; - “alérgico ao Ibuprofeno” (21/02/2017) – fls. 102. Ou seja, independentemente de haver ou não registo específico plataforma especifica para registos de alergias, para aferir da alergia ao Ibuprofeno por parte do BB, bastava consultar o seu historial clínico, bastava ver a inserção realizada pelo Dr. CC em 21/02/2017, pouco mais de 2 meses antes, para obrigatoriamente se ter outro cuidado com a medicação a ministrar ao menor. E se arguida tivesse tido o cuidado de ir ainda mais atrás nos registos clínicos verificaria as outras quatro inserções no mesmo sentido. Ademais de várias inserções que nada dizem sobre alergias medicamentosas e outras usando a fórmula genérica “sem alergias medicamentosas conhecidas”, e intercaladas com estas, constam efectivamente os registos da alergia ao ibuprofeno realizados pelo Dr. CC, em 23/11/2015 (fls. 100) e em 21/02/2017 (fls. 102), este último, pouco mais de 2 meses antes do dia fatídico, numa altura em que o BB já entraria sozinho nos consultórios pelas razões explicadas pela mãe demonstram que o BB se fosse questionado sabia informar que era alérgico ao Brufen. Neste quadro, não é credível a versão da arguida segundo a qual teria expressamente questionado o BB sobre se o mesmo era alérgico a algum medicamento, tendo o mesmo respondido que não. Se em momentos anteriores o menor foi capaz de dar conhecimento da sua alergia, o que levaria o mesmo a, naquela concreta situação, negar ter uma alergia medicamentosa? E isso, certamente a teria impedido de escrever, como escreveu: “sem alergias medicamentosas conhecidas”, e teria recomendado que, tivesse chamado o adulto que acompanhava a criança a fim de, pelo menos, indagar acerca daquela condição de saúde. Conforme consta do CPARA, podem providenciar a informação pertinente sobre a história de hipersensibilidade do utente, para além do próprio e do pessoal médico e de enfermagem, o acompanhante (que pode não estar relacionado com o utente) ou o parente (que possui um grau de parentesco com o utente) - https://www.ctc.min-saude.pt/wp-content/uploads/2019/08/CPARA_V3.2.pdf . De resto, encontrando-se no Serviço de Urgência a trabalhar o próprio Dr. CC, autor daquele registo clínico, bastaria chamá-lo ou contactá-lo por telefone. Nada a este propósito foi feito pela arguida, e considerando ainda aquela inserção feita no dia 07/05/2017 de que não eram conhecidas alergias medicamentosas, na verdade, o que se conclui é que se a arguida não tomou conhecimento da alergia ao Ibuprofeno – sendo nessa medida exacto o registo, pois que não era a mesma sua conhecida -, foi porque não agiu com o cuidado básico que se lhe impunha de ler os registos clínicos anteriores, pelo menos, os relativos aos últimos 3 meses. E se é verdade que Ibuprofeno (BRUFEN) e Acetilsalicilato de lisina (ASPEGIC) são medicamentos distintos, não é menos verdade que ambos pertencem ao grupo dos Anti-Inflamatórios Não Esteróides (AINE´s). Conforme também transparece do parecer médico-legal supra identificado. Tal associação entre os dois medicamentos será evidente na comunidade médica, tendo sido corroborada pela testemunha, FF, mas também por CC, o médico que socorreu BB aquando da paragem cardiorrespiratória após a toma endovenosa de Aspegic, autor de alguns dos registos acima indicados sobre a alergia de BB ao Ibuprofeno; este afirmou peremptoriamente: “a um doente com asma nunca se prescreve Aspegic, Brufen, Aspirina ou outros derivados de ácido acetilsalicílico”. Mostra-se, nesta medida pouco relevante que não constasse do registo clínico de BB a alergia ao acetilsalicilato de lisina ou ASPEGIC; bastava que lá constasse, como constava, e por várias vezes, alergia ao Ibuprofeno, para que, numa leitura atenta, consciente e cientificamente informada desse registo, o médico afastasse a administração do ASPEGIC como antipirético, principalmente quando não era necessário em face da temperatura corporal registada, como afirma categoricamente o parecer médico-legal, e muito menos por via endovenosa, que, como é consensual entre todos, apenas tornou irreversível o processo anafiláctico desencadeado. E que terá sido esta anafilaxia a causa da paragem cardiorrespiratória que determinou a encefalopatia anóxica que determinou a morte de BB e não uma crise aguda de asma, como também se hipotisaria, parece-nos igualmente evidenciado na cronologia dos acontecimentos, como consta do registo clínico da intervenção efectuada nessa noite, em conjugação com os depoimentos da enfermeira que administrou o ASPEGIC e depois também socorreu BB, e do médico que liderou a operação, e enfermeiro que auxiliou. Pelo exposto não pode ficar qualquer dúvida razoável quanto à causa da paragem cardiorrespiratória e subsequente morte de BB. Na verdade, o quadro sintomatológico e diagnóstico diferencial definido naquele relatório para a asma e para a anafilaxia (fls. 40) apontam para: Asma – dispneia (dificuldade respiratória), pieira (sibilância), tosse; são factores de risco major para a morte, a doença mal controlada com necessidade frequente de broncodilatadores inalatórios, má adesão terapêutica com corticóides inalatórios e admissões hospitalares prévias com episódios de agudização grave e quase morte; Anafilaxia – reacção de hipersensibilidade Tipo I a um alergénio (…) [que] ocorre habitualmente minutos após a exposição a um antigénio específico, que pode ser ingerido, inalado ou administrado por via parentérica. Como manifestações clínicas ocorrem dispneia por edema da laringe e/ou broncoespasmo acentuado, frequentemente seguido de colapso cardiovascular ou choque sem dificuldade respiratória precedente. Ora, tendo em conta a forma tranquila como BB entrou no serviço de urgência (sem sintomatologia indicativa de uma crise aguda de asma) e se manteve até à administração do ASPEGIC, as queixas que manifestou minutos depois, ao ponto de levarem a enfermeira a requisitar a observação médica, conjugado com o quadro posterior de dispneia e paragem cardiorrespiratória, cremos não poder senão concluir, como concluíram os profissionais de saúde que intervieram naquela situação, enfermeiros e médico, por um quadro sintomatológico típico da anafilaxia, cuja causa radica na administração daquele medicamento e subsequente reacção alérgica de BB. Por outro lado, consultados os registos hospitalares anteriores, não verificamos que tenha havido admissões hospitalares prévias com episódios de agudização grave e quase morte, como definido pelo Perito Médico-Legal enquanto factor de agravamento do risco de morte. Nestes termos a paragem cardiorrespiratória de BB minutos depois da administração endovenosa do Aspegic ficou a dever-se a um choque anafilático por hipersensibilidade a esta substância. Reacção que a arguida podia e devia prever em face do conhecimento médico existente acerca dos riscos da administração de tal substância em doente asmático e com historial de alergia ao Ibuprofeno. Pelo exposto tivemos por provada a matéria vertida 13 a 19. A matéria vertida nos pontos 20 a 27 resulta do teor do relatório social, conjugada com as declarações da arguida que o corroboram em alguma medida. Os pontos 28 e 29 resulta desde logo igualmente do teor do relatório social elaborado pela DGRSP e postura surreal assumida pela arguida no decurso da audiência de discussão e julgamento que só a imediação permite observar, diga-se de forma chocante. Ademais, afigura-se-nos que a esta manifestação de completa ausência de juízo critico não deixará de estar intimamente relacionada com o desfecho do processo disciplinar. Mas “qualquer das conclusões extraídas nos processos de inquérito e disciplinar instaurados, respectivamente pelo ACES .../... e pela Ordem dos Médicos, que os arquivariam é pouco sustentada, o processo desenvolveu-se como qualquer procedimento administrativo, a partir de e com base em documentação escrita, nomeadamente nas conclusões ali extraídas, sem ouvir a acompanhante do BB, a sua mãe, ora assistente, MM, ou qualquer dos profissionais envolvidos nos cuidados prestados a BB no atendimento de 07/05/2017, nomeadamente a enfermeira DD e o médico CC, cujos depoimentos se mostram essenciais na cabal compreensão do ocorrido, afigurando-se que nessas investigações não se detêm particularmente sobre a conformidade ou desconformidade da actuação dos profissionais de saúde com as legis artis, deixando tal apreciação às respectivas ordens profissionais, como é de resto, expressamente assumido em 49. da Deliberação do Conselho de Administração da Entidade Reguladora da Saúde (ERS), no Anexo 2, concretamente fls. 14. Mas no caso a decisão proferida no processo de averiguação sumária da Ordem dos Médicos, assume na realidade a prova e conclusões extraídas pela ERS no seu relatório, baseando-se este último no relatório final do ACES .../..., que o relatório da ERS reproduz. De tal modo que, estamos, na prática, perante uma única análise e avaliação, reproduzidas nos três relatórios, com origem no primitivo relatório do ACES ... de 08/08/2018. De resto, as conclusões extraídas nas decisões finais dos mesmos acabam por ser, na prática, coincidentes, reproduzindo-se até nos seus fundamentos. O certo é que, mercê da utilização de uma formulação escrita e documental, própria dos procedimentos administrativos, e tendo em vista finalidades que não as que norteiam o presente processo criminal, escaparia a todas estas entidades uma verdadeira análise da conduta profissional da aqui arguida enquanto médica responsável pela administração a BB do medicamento que, como explicitamos supra, terá feito desencadear o quadro sintomático da anafilaxia, com paragem cardiorrespiratória, e por fim a sua morte. Tal resulta patenteado, por exemplo, no facto de nesse relatório matriz dos dois procedimentos – o relatório final do processo de inquérito determinado pelo ACES .../..., junto no Anexo 1 -, erigir como factor de ilibação de responsabilidades do corpo clínico na morte de BB a inexistência de registo clínico anterior que reportasse qualquer alergia ou reacção adversa ao medicamento prescrito – acetilsalicilato de lisina – ASPEGIC. Se tal afirmação é verdadeira, assim como constam de facto vários registos no processo clínico de BB que não aludem a alergias medicamentosas, e alguns que dizem não ser conhecidas, não é menos verdade que, como enunciamos supra, constam outros tantos com o registo de alergia ao Brufen, (20/06/2014) – fls. 93; - “Alergia ao Ibuprofeno” (12/09/2015) – fls. 100; - “Alergia ao Ibuprofeno” (23/11/2015) – fls. 100; - “alérgico ao brufen” (06/07/2016) – fls. 119; - “alérgico ao Ibuprofeno” (21/02/2017) – fls. 102. A julgar pela cronologia de tais registos, conjugada pelo depoimento da sua mãe tudo indica que a alergia ao ibuprofeno teria sido reportada a partir de 2014 pelos motivos que a mãe com grande clareza e de forma absolutamente credível descreveu. Naquele relatório nenhuma consequência se extrai do facto de o historial clínico de BB registado na plataforma a que a arguida acedeu para registar a consulta de 07/05/2017, conter as inserções de alergia ao ibuprofeno e lhe ser acessível sem restrições; avança-se, pois, no processo lógico da fundamentação do relatório como se lá nada constasse ou como se não fosse um dever profissional da arguida, tomar conhecimento de tais registos e história clínica. Por fim a inscrição no diário médico da fórmula genérica: “sem alergias medicamentosas conhecidas”, não teria sido inserida se a arguida tivesse tido o cuidado de ler os registos clínicos anteriores, recuando pelos menos aos meses precedentes, e, no limite, o cuidado de falar, ou com o colega que 2 meses antes registou a alergia ao ibuprofeno, e que, por casualidade, estava no mesmo Serviço, a trabalhar naquele dia – CC - ou com o adulto acompanhante do menor, que tinha 16 anos de idade, no caso a sua mãe. Por último, no próprio relatório da ACES pressupõe-se ter ocorrido um choque anafiláctico e admite-se ter tido o mesmo origem na administração de AINE´s, nos quais se inclui o acetilsalicilato de lisina, no entanto, iliba-se a arguida e demais pessoal clínico de responsabilidades porque não estava registada no processo clínico de BB alergia a tal substância/medicamento e estava o mesmo indicado para ser administrado em estados febris como aquele que o doente apresentava. “ A arguida, médica que efectuou o atendimento do menor e lhe prescreveu a medicação, tinham que conhecer a associação entre o Ibuprofeno e o acetilsalicilato de lisina, por serem ambos AINE´s, e o seu potencial desencadeante de sintomatologia própria da asma, com pior decurso. Conhecendo, como deveria ter conhecido, a alergia de BB ao Ibuprofeno e verificando no mesmo um quadro de asma, não podia a arguida, de acordo com as legis artis, deixar de afastar a administração ao mesmo do ASPEGIC como antipirético, bastando-se com o uso do parecetamol, adequado à temperatura registada; muito menos deveria considerar, por não estar indicada, a sua administração por via endovenosa, procedimento que tornaria todo o processo de anafilaxia desencadeado praticamente irreversível. “Ainda, e por fim, não podemos deixar de registar com estranheza que o Conselho Disciplinar Regional do Norte, valendo-se por inteiro das conclusões vertidas para o relatório do ACES .../..., depois de estas terem sido, por sua vez, vertidas no relatório da ERS, tenha acrescentado na decisão junta ao Anexo 2 (fls. 89 e 90), reproduzida na proposta de arquivamento do processo disciplinar instaurado por comunicação do Ministério Público (fls. 436 e sgs. dos autos principais), as suas dúvidas quanto: - à existência de alergia do doente ao ácido acetilsalicílico ou ao acetilsalicilato de lisina – veja-se que o relatório tido por base nesta decisão pressupôs o choque anafiláctico por administração precisamente de tal medicamento; - ao conhecimento por parte do corpo clínico desta alergia – se existisse esse conhecimento estaríamos porventura a falar de um homicídio doloso, não negligente; o que está em causa é se a arguida fez tudo o que podia e devia para ter esse conhecimento ali se afirmando quanto à causa da morte de BB, aventando como possível o estado de mal asmático – quando, como vimos, o relatório em que se baseia pressupõe a ocorrência de um choque anafiláctico seguido de paragem cardiorrespiratória. Por último para prova da ausência de antecedentes criminais o Tribunal estribou-se no teor do CRC. Uma palavra apenas para referir quanto à matéria de facto tida por não provada, que nenhuma prova cabal foi feita nesse sentido, uma vez que do relatório social ressalta que para fundamentar a boa imagem profissional da arguida apenas recorreu a informações de amiga e colega indicada pela arguida, o que não é de todo suficiente para se afirmar que tem uma imagem de profissional competente junto dos seus pares e elementos da comunidade junto da qual exerce funções, pelo que foi tida por não provada tal factualidade. Não se prova que a arguido quis agir nos moldes apurados conscientemente uma vez que se assim tivesse sucedido então teria praticado o crime na sua forma dolosa. Agiu livre e voluntariamente de forma particularmente censurável, postergador de cuidados básicos revelador de elevado grau de irreflexão ou insensatez e gerador de perigo altamente provável. »
c. É como segue a apreciação e qualificação jurídico–penal da matéria de facto que foi efectuada pelo Tribunal de 1.ª Instância : «III –Fundamentação de Direito Do crime. Apurados os factos, importa proceder ao seu enquadramento jurídico-penal. Questão prévia. Atendendo à data da prática dos factos 07.05.2017 e ao disposto no art.º 2.º n.º 1 e 4.º do Código Penal, e considerando que a aplicação do Código Penal na redacção da Lei n.º94/2017 de 23.08 é mais favorável à arguida porquanto no que respeita a medida da pena a moldura permaneceu inalterável mas no que respeita às penas de substituição é-lhe mais favorável, por permitir com maior amplitude a substituição de penas de prisão e até de penas de prisão em medida mais elevada como sucede no confronto com o disposto no art.º 43 da Lei Penal em vigor à data da prática dos factos (redacção da Lei n.º 59/2007 de 04.09) e que a referida Lei Penal atenta a redacção introduzida no art.º 46.º pela Lei n.º 94/2017 de 23.08 permite a substituição neste conspecto de pena de prisão em medida não superior a 3 anos. Vem a arguida acusada da prática de um crime de homicídio por negligência grosseira, p. e p. nos artigos 137.º, n.º 1 e 2 do Código Penal. Prevê o art.º 137.º, n.º 1 do Código Penal que “quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”. E o n.º 2: Em caso de negligencia grosseira, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos. Nos termos do art.º 15 do Código Penal, age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz, representa como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime, mas actua sem se conformar com essa realização ou não chega sequer a representar a possibilidade de realização do facto. O comportamento negligente pressupõe, assim, ao nível do tipo de ilícito subjectivo a violação de um dever objectivo de cuidado e consubstancia, ao nível do tipo de culpa, a expressão de uma atitude, documentada no facto, leviana ou descuidada perante o dever-ser jurídico penal. Em regra, a previsibilidade e o dever de prever existem sempre naquelas situações em que o evento seja uma consequência de verificação normal ou típica da conduta violadora do dever de cuidado. A adequação consiste na previsibilidade da produção de certo resultado “como consequência normal e típica de uma certa conduta.” Deste modo a causalidade deve considerar-se excluída, não só quando o resultado era imprevisível, mas também quando, sendo previsível, era de verificação anormal ou muito rara. O elemento configurador da censurabilidade da negligência reside na capacidade de cumprimento do dever objectivo de cuidado. Está aqui em causa um critério subjectivo, concreto ou individualizante, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as qualidades e capacidades do agente. Logo, se a adopção de um comportamento diferente for irrazoável ou inexigível, não podemos consubstanciar um juízo de censura dirigido ao agente e não há, por isso fundamento para a punição.3 Além disso, o nexo de antijuridicidade exige que o resultado pudesse ter sido evitado com um comportamento cuidadoso. Por isso, não se verificará o nexo de antijuridicidade quando o autor causou o resultado típico com o seu comportamento contrário ao cuidado, mas esse resultado ter-se-ia produzido igualmente com o comportamento cuidadoso – comportamento alternativo conforme ao Direito. Diversos são os critérios possíveis de imputação do resultado à conduta do agente. Desde a teoria da condição ou da equivalência, que parte da premissa de que todas as condições do resultado são equivalentes e que, por isso, considera que basta, para a afirmação da existência de uma relação causal, que a acção tenha sido uma condição (concausal) do resultado ou que tenha apressado a sua produção, sem considerar a relevância de processos causais hipotéticos ou atípicos, ou sequer da intervenção do lesado ou de terceiros no decurso causal, à teoria da adequação que, diferentemente, considera causa, em sentido jurídico, aquela que é tipicamente adequada a produzir o resultado, pelo que exclui a causalidade se a produção do resultado depender de um suceder anormal ou atípico dos acontecimentos, com o qual se não podia razoavelmente contar. Ou seja, uma acção ou omissão é condição adequada do resultado concreto se, de acordo com a experiência comum, aumentou, de forma não irrelevante, a possibilidade objectiva da sua produção, sendo que tal juízo de adequação se deverá fazer tendo em consideração todas as circunstâncias conhecidas ou cognoscíveis no momento e lugar do facto e que pudessem ser previstas por uma pessoa normal e sensata colocada no lugar do agente (segundo um juízo de prognose póstuma ou ex ante). No entanto, por vezes pode não ser suficiente o recurso à teoria da causalidade adequada para proceder à imputação de um determinado resultado ao comportamento do agente, pelo que, muitas vezes, a doutrina socorre-se de critérios de imputação objectiva do resultado à conduta, sejam eles baseados em juízos de adequação, de incremento do risco permitido ou de compreensão do âmbito de protecção da norma, como “correctores de culpabilidade”. De acordo com esta teoria, a conduta do agente deverá conter um risco implícito, um perigo em si mesma para o bem jurídico, perigo este que deverá considerar-se concretizado no resultado a imputar à conduta do agente. Como refere Figueiredo Dias em anotação ao art.º 137.º CP, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 107, “absolutamente seguro é que o tipo de ilícito do homicídio negligente não é preenchido quando o agente, com a sua conduta, não criou, não assumiu ou não potenciou um perigo típico para a vida da vítima: ou porque o perigo não chegou ao limite do juridicamente relevante (…), ou porque, sendo embora a conduta em si perigosa, se manteve dentro dos limites do risco permitido (…) ou mesmo porque o agente se limitou a contribuir para a autocolocação em perigo dolosa de outra pessoa (…)”. Aquando do juízo da imputação do resultado à conduta do agente importa considerar a eventual violação de um dever objectivo de cuidado, traduzida nomeadamente na violação de normas de cuidado (sejam elas legais, regulamentares, profissionais, da experiência, ou outras), a qual pode constituir indício do preenchimento do tipo de ilícito, mas não dispensa uma indagação autónoma do risco produzido. Exige-se, portanto, do lado objectivo do ilícito em questão a verificação do resultado, a violação de um dever objectivo de cuidado e um nexo de imputação entre esta violação e aquele resultado. A propósito do cuidado exigível ao agente entende-se que a medida do mesmo corresponde ao necessário para evitar a ocorrência do resultado típico, pois que a apreciação do mesmo deverá ser feita tendo em conta o homem sensato e cauteloso do círculo de actividade do agente. Ou seja, deve ser apreciado objectivamente, e não em função das especiais capacidades individuais do agente, mas considerando que tal dever objectivo de cuidado pode ser diferenciado de acordo com as profissões, as actividades sociais e as situações concretas. Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.07.2003, disponível em www.dgsi.pt, “exigindo-se para o preenchimento integral de um tipo ilícito a produção de um resultado, importa verificar não apenas se esse resultado se produziu, como também se ele pode ser atribuído à conduta do arguido. Este modo de problematizar a questão transporta-nos para o conhecido mas sempre renovado mundo da causalidade. Abreviando razões a partir de certo momento compreendeu-se que o problema da imputação objectiva do resultado à conduta, mesmo que deva ter na sua base a categoria cientifico – natural da causalidade, não tem necessariamente de reduzir-se a ela: como problema de imputação objectiva típica, a questão constitui uma questão normativa que, como tal, deve pôr-se e resolver-se segundo a teleologia, a funcionalidade e a racionalidade próprias da dogmática jurídico-penal e, especialmente, da dogmática do tipo. A causalidade naturalisticamente comprovável constitui o limite máximo até onde pode ser levado, sem arbítrio a imputação penal. Questão diversa é a de saber se a imputação deve ser levada até aí, ou ficar aquém, através de uma limitação jurídica da causalidade. O critério geral da teoria da adequação, criada nos finais do século XIX por v. Kries, reside em que para a valoração jurídica da ilicitude serão relevantes não todas as condições, mas só aquelas que, segundo as máximas da experiência e a normalidade do acontecer – e portanto segundo o que é em geral previsível – são idóneas para produzir o resultado [Na exposição desta matéria estamos a seguir de muito perto a lição de Figueiredo Dias, Textos de Direito Penal, Doutrina geral do crime, com a colaboração de Nuno Brandão, 2001, pág. 51 e segts]. Consequências imprevisíveis, anómalas ou de verificação rara serão pois juridicamente irrelevantes. É neste sentido que deve interpretar-se o art.º 10º, n.º 1, do Código Penal. A referência que aí é feita tanto à “acção adequada” a produzir um certo resultado, como à “omissão da acção adequada a evitá-lo” quer significar que o Código Penal adoptou, ao menos como critério básico da imputação objectiva, a teoria da adequação. O nexo de adequação tem de se aferir segundo um juízo ex ante e não ex post, mais rigorosamente, segundo um juízo de prognose póstuma. Tal significa que o juiz se deve deslocar mentalmente para o passado, para o momento em que foi praticada a conduta e ponderar, enquanto observador objectivo, se, dadas as regras da experiência e o normal acontecer dos factos (o id quod plerumque accidit), a acção praticada teria como consequência a produção do evento. Se entender que a produção do resultado era imprevisível ou ainda que, sendo previsível, era improvável ou de verificação muito rara, então a imputação não deverá ter lugar. São várias as situações em que a solução oferecida pela teoria da adequação se mostra insatisfatória. Tal sucede sobretudo em actividades que, comportando em si mesmas riscos consideráveis para bens jurídicos, são todavia permitidas (não proibidas). Domínios como o da circulação rodoviária, transporte de produtos perigosos, intervenções médicas arriscadas, atentados ao ambiente etc. É o caso dos autos. Por isso o degrau da adequação tem ainda de ser completado ou corrigido por aquilo a que Stratenwerth, designou como a conexão ou relação de risco. Assim também, Carlota de Almeida [Casos e matérias de direito penal, pág. 304], que sustenta que a teoria da causalidade adequada, na maior parte dos casos dá solução satisfatória e suficiente ao problema da imputação objectiva. No entanto, em certas circunstâncias, a moderna teoria do risco estará mais vocacionada para fornecer critérios. A ideia mestra que preside à teoria da adequação é a de limitar a imputação do resultado àquelas condutas das quais deriva um perigo idóneo. Segundo a formulação das doutrinas actuais da conexão de risco o resultado só deve ser imputável à conduta quando esta criou um risco proibido para o bem jurídico protegido pelo tipo de ilícito e esse risco se tenha materializado no resultado típico. A imputação está dependente de um duplo factor: primeiro que o agente tenha criado um risco não permitido ou tenha potenciado ou aumentado um risco já existente; depois, que esse risco tenha conduzido à produção do resultado concreto. Quando se não verifique uma destas condições a imputação deve ter-se por excluída [Figueiredo Dias, Textos de Direito Penal, Doutrina geral do crime, com a colaboração de Nuno Brandão, 2001, pág.65, que continuamos a seguir de muito perto]. Para que a conexão de risco possa dizer-se estabelecida em termos de fundar a imputação do resultado á conduta, torna-se ainda necessário que o perigo que se concretizou no resultado é um daqueles em vista dos quais a acção foi proibida, quer dizer, é um daqueles que cabe no âmbito de protecção da norma [Como ninguém desconhece e é hoje salientado por toda a doutrina, o âmbito de protecção da norma é um cânone hermenêutico que ilumina o interprete sobre a teleologia do preceito incriminador, as palavras são de F. Costa, RLJ 134º 189]. Se tal não suceder deve ter-se por excluída a imputação objectiva. Nas sociedades modernas impõe-se a consideração de que certas actividades, em si mesmas perigosas, sejam consideradas lícitas, desde que contidas dentro de certas margens de risco, devendo tais limites de risco ser escrupulosamente observados, sob pena de ilicitude da conduta que os extravasa. Ou seja, é a violação das normas de conduta que delimitam o dever de cuidado objectivamente exigível em determinada situação que determina a ilicitude da conduta.4 A violação de determinas regras traduz um indício de negligência, ou seja, um “indício da efectiva lesão desse dever por parte do seu destinatário, assumindo neste contexto um peso fundamental a específica configuração do caso concreto e a sua análise (grau de perigosidade do comportamento, importância dos bens jurídicos envolvidos, entre outros factores) – Paula Ribeiro de Faria, anotação ao art.º 148.º CP, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 261. Na verdade, impõe-se a todos que exerçam uma actividade perigosa especiais normas de cuidado e deveres de conduta, para além das decorrentes da experiência comum. Como se afirma no Acórdão do TRP proferido pelo Senhor Juiz Desembargador Neto Moura no âmbito do proc. 15849/13.6TDPRT.P1 datado de 30.01.2019 e disponível em www.dgsi.pt, “do conceito legal de negligência fala-nos o art.º 15.º do Código Penal, nos termos do qual age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, representa como possível a realização de um facto correspondente a um tipo de crime, mas actua sem se conformar com essa realização (negligência consciente) ou não chega, sequer, a representar a possibilidade de realização do facto (negligência inconsciente). A violação do dever de cuidado objectivamente devido é elemento essencial e característico dos crimes negligentes, mais precisamente, do tipo de ilícito negligente, com o que se pretende designar a «violação de exigências de comportamento tipicamente específicas, cujo cumprimento o direito requer, na situação concreta respectiva, para evitar o preenchimento de um certo tipo objectivo de ilícito»[6]. Apesar de se reconhecer uma certa indefinição da estrutura dogmática do tipo legal que corresponde ao facto negligente, é a violação do dever de cuidado[7] que caracteriza a negligência. É essa violação que define o tipo de ilícito negligente e lhe confere especificidade. O tipo de ilícito não se basta com a causação de um resultado por determinada conduta do agente, é imprescindível que tenha ocorrido a violação, pelo mesmo agente, do dever objectivo de cuidado que sobre ele impendia e que conduziu à produção do resultado típico[8] [9]. Sabido é que, em regra, as normas que prevêem um crime negligente não delimitam precisamente o facto ilícito, não fornecem qualquer informação sobre a natureza e a medida do cuidado que se requer aos seus destinatários. Entre os critérios concretizadores do cuidado objectivamente devido, para o caso, importa destacar os seguintes : - as normas corporativas, que são normas (não jurídicas) fixadas ou aceites por certos círculos profissionais e análogos destinadas a conformar as actividades respectivas dentro de padrões de qualidade e, nomeadamente, a evitar a concretização de perigos para bens jurídicos que de tais actividade pode resultar, como é o caso das leges artis da actividade médica; - os costumes profissionais comuns ao profissional prudente, ao profissional-padrão. Aqui, o que serve de critério é a não correspondência d0 comportamento àquele que, em idêntica situação, teria um homem fiel aos valores protegidos, prudente e consciencioso. Estreitamente associado ao dever objectivo de cuidado está o conceito de risco enquanto probabilidade de verificação de um resultado contrário ao direito (risco de acidente de viação, risco de uma intervenção cirúrgica, etc.). O dever objectivo de cuidado afirma-se, nomeadamente, como dever de executar cuidadosamente a actividade de risco para evitar que esse risco se converta em lesão efectiva de bens jurídicos[12]. O «risco é (…) uma realidade que pode ser gerida, e que ao ser mal gerido, ao ser descuidada ou intencionalmente mal gerido, pode determinar a responsabilidade daquele que o tem a seu cargo: porque quis a sua concretização, porque tendo tomado consciência dele não adoptou as medidas necessárias para evitar a sua concretização, ou porque desconheceu, ou ignorou indevidamente, não tendo (…) as devidas cautelas na condução da sua conduta». Para se responsabilizar o agente pela produção de um resultado, é necessário que se revele possível prever o curso causal das coisas, os efeitos prováveis de uma conduta. Só estará preenchido o tipo de ilícito objectivo se o resultado produzido for objectivamente previsível. Com a exigência de previsibilidade objectiva pretende-se saber se o processo causal, assim como o resultado produzido, são consequências objectivamente previsíveis da conduta do agente tendo em conta o seu papel concreto, isto é, tendo em conta os seus conhecimentos e experiência profissional. Previsibilidade objectiva do perigo para determinado bem jurídico que só é possível afirmar quando a acção praticada aparecer a pessoa consciente e cuidadosa como susceptível de provocar um resultado desvalioso não querido. Em suma, «a negligência deixa-se apurar com base num critério objectivo de previsibilidade e de cuidado que é definido tendo em conta as regras legais, técnicas e profissionais existentes para aquele sector de actuação, e o que o agente podia e devia fazer dadas as circunstâncias concretas, tal como estabelece a lei. Esse é o padrão médio que corresponde ao que era exigível do agente naquele contexto e face a uma determinada situação de risco». Ainda em sede do tipo de ilícito negligente, convém esclarecer que, embora o crime negligente comporte um momento omissivo - precisamente o não ter o cuidado, ou de prever um certo resultado ou, tendo-o previsto, de evitá-lo - não se confunde com a omissão, que qualifica um tipo criminal em relação à estrutura do comportamento. A violação do dever de cuidado tanto pode traduzir-se numa acção como numa omissão, sendo certo que, nesta hipótese, é necessário que sobre o agente recaia um dever de garante, como exige o n.º 2 do artigo 10.º do Código Penal. Por outro lado, o cuidado exigível há-de ser determinado pela capacidade de cumprimento que, no dizer do Professor Figueiredo Dias ("Pressupostos da Punição" in Jornadas de Direito Criminal, ed. C.E.J., pág. 70), constitui o elemento configurador da censurabilidade da negligência, - o elemento revelador de que no facto se exprimiu uma personalidade leviana ou descuidada perante o dever ser jurídico-penal. «Está aqui verdadeiramente em causa - acrescenta aquele Professor (loc. cit.) - um critério subjectivo e concreto ou individualizante, que deve partir do que seria razoavelmente de esperar de um homem com as qualidades e capacidades do agente. Se for de esperar dele que respondesse às exigências do cuidado objectivamente imposto e devido - mas só nessas condições - é que, em concreto, se deverá afirmar o conteúdo da culpa próprio da negligência e fundamentar, assim, a respectiva punição». Em suma, a negligência determina-se com recurso a uma dupla averiguação: por um lado, há que procurar saber que comportamento era objectivamente devido numa situação de perigo em ordem a evitar a violação não querida do direito e, por outro, se esse comportamento podia ser exigido do agente, atentas as suas características e capacidades individuais. Tendo em perspectiva estas referências dogmáticas sobre a conduta negligente, vejamos se pode falar-se aqui em erro médico penalmente relevante. Resultou provado que BB, nascido em ../../2000, recorreu ao Centro de Saúde ... em 07/05/2017 – à data tinha 16 anos - pelas 20h53m apresentando tosse, cefaleia mais intensa quando tosse, desde o dia anterior e febre. Estava, à data da admissão em tal serviço, consciente, colaborante e orientado, com mucosas coradas e hidratadas, eupneico, com temperatura auricular de 38,4º C, TA 112/87 mmHg, ACP sem alterações aparentes. O jovem recorria frequentemente a tal serviço, e tinha como antecedentes clínicos “asma brônquica” e “polipose nasal”, encontrando-se medicado, à data com “Singulair” e “Ventilan inalador”. Mais de demonstrou que a arguida AA, que se encontrava de serviço, naquele momento e naquele local, atendeu o jovem, depois de este ter passado pelo serviço de triagem e de lhe ter sido atribuída a prioridade de cor verde (pouco urgente, com atendimento de 2 a 4 horas). Após observar o jovem, a arguida, sem consultar os registos clínicos anteriores ou a ficha clinica do jovem, acessível no sistema informático ao seu dispor, prescreveu a seguinte medicação e forma de administração: P- 1 gr Aspegic EV; Hidrocortisona 200mg EV; Nebz c/ Atrovent + SF “ (sic). Tal prescrição médica P- 1 gr Aspegic EV foi administrada pela equipa de enfermagem pelas 21h12m nesse mesmo dia. Pouco tempo depois, o jovem indicou à equipa de enfermagem sentir desconforto na garganta e passado pouco tempo já denotava dificuldades de respiração, que se foram agravando nos minutos seguinte. Pelas 21h40m a situação clinica do jovem era já considerada “Instável”, e após a intervenção de um outro médico que não a arguida, a situação do jovem foi caracterizada como “quadro clinico de anafilaxia por salicilatos” (sic). Devido ao facto de ter sido prescrito pela arguida que o medicamento fosse administrado por via Endovenosa (EV) – o que à luz da situação clinica do jovem no momento da sua admissão não era de todo necessário - mais difícil se tornou reverter a situação, debelando a reacção anafilática ao Aspegic, (salicilato). Às 21h45m o jovem entrou em paragem cardiorrespiratória, tendo sido sedado, e após estabilizado foi transportado para o Hospital de São João no Porto, sob ventilação mecânica, onde acabou em ../../2017, pelas 11h30m. . Realizada autópsia médico-legal ao cadáver do jovem concluiu-se que “a morte do BB foi devida a encefalopatia anóxica, que sobreveio como complicação de paragem cardiorrespiratória em vitima com antecedentes de asma brônquica mal controlada com possível alergia a antinflamatórios não esteroides, não sendo possível excluir uma eventual reacção anafilática após a administração de Aspegic endovenoso”. Ademais ficou demonstrado que a arguida, sem ter procedido a uma avaliação clínica completa, apurando os antecedentes e a história clinica – anamnese – do paciente, prescreveu e determinou a toma deste de um agente altamente potenciador de reacções anafiláticas em asmáticos, o que veio a suceder e provocou, por sua vez, a paragem cardiorrespiratória do jovem BB. De igual modo atentas as resultou claro que a arguida não usou da diligência que lhe era exigida segundo as circunstâncias concretas para evitar o resultado supra descrito, altamente provável e expectável naquelas concretas circunstâncias, dever esse decorrente quer de normas legais, quer do uso e experiência comum. Os elementos auxiliadores do diagnóstico e de recolha de informação clínica estavam acessíveis à arguida, através do sistema informático – que a arguida utilizou até para inserir os dados da consulta que efectuou ao jovem - onde constam descritos quer registos clínicos anteriores, problemas do utente e indicações de alergias. Tal análise, simples e rápida, que se impunha permitiria que a arguida não se decidisse de forma insensata e irresponsável por uma terapia, medicação e forma de administração que despoletaram uma reacção anafilática no jovem que foi por sua vez, ainda a causa directa da sua morte. A forma de administração do referido medicamento escolhida pela arguida, - intravenosa ou EV – foi também determinante no resultado produzido pois tornou-se quase impossível de reverter a medicação de forma atempada e eficaz. Tal crise/reacção de hipersensibilidade do jovem BB era, à luz dos conhecimentos médicos actuais, altamente provável na decorrência da prescrição de “Aspegic” (um salicilato) a um paciente asmático, pelo que a arguida actuou com grave imprudência e descuido profissional, omitindo os cuidados que teriam garantido a opção de diagnostico, tratamento e forma de administração que não colocassem em risco a vida do jovem BB. Ao agir da forma descrita a arguida agiu livre e voluntariamente, não procedendo com o cuidado devido, a que estava obrigada e era capaz, tendo em conta o estado do paciente e a sintomatologia que este apresentada, agindo de forma descuidada e desleixada em clamorosa violação das legis artis que regem a sua profissão. Numa consulta de urgência, como aconteceu “in casu”, há leges artis, regras de conduta normais, recorrentes e impostas por “guide lines” comummente seguidas na prática médica, tal como sucede com o cuidado acrescido que deve nortear a prescrição de determinados medicamentes a doentes asmáticos, e de sobremaneira se já existe conhecimento de alergia ao Brufen (ipobrufeno). Ora, como já supra referimos, a valoração que preside à afirmação da violação do dever de cuidado é um juízo eminentemente jurídico que cabe ao julgador efectuar após ponderação de todas as circunstâncias relevantes da actuação do agente. Ora, dessas circunstâncias relevantes (já supra enunciadas), cabe destacar o facto de a arguida ter errado, claramente, ao omitir a consulta dos registos clínicos, ter medicado BB com uma substancia que conhecidamente é apta a desencadear reacções alérgicas nos asmáticos, bem sabendo que a vítima era asmática, e desconhecendo apenas por culpa sua o registo da alergia ao Brufen, registos que seriam um importante meio auxiliar na ponderação entre o risco e o beneficio na decisão a tomar quanto à indicação médica para tratamento da patologia que afectava a criança. Mas nem só nessa conduta se revela a violação do dever de cuidado. A arguida já depois de decidir a indicação da prescrição, alertada para o facto de aquele não se estar a sentir bem, com a sua conduta posterior, claramente não prestou cuidados à vitima logo que a enfermeira DD lhe foi pedir para ir ver o BB quando este se queixou pela 1.ª vez que se estava a sentir mal e nada fez, ignorando a transmissão da enfermeira, encontrando-se desocupada no interior do seu gabinete. Estes factos legitimam a inferência de que, se a arguida tivesse observado e ponderado os risco e benefícios na sua decisão de medicar um asmático, alérgico ao Brufen, que tinha 37,4 de febre, como se impunha, teria concluído que a administração de antipirético oral de paracetamol, ou ainda com risco mas o Aspegic oral muito provavelmente teria sido possível reverter a reacção anafilática que se seguiu à administração do Aspegic endovenoso, completamente despropositado face ao quadro clinico apresentado pelo BB o que, com razoável probabilidade, teria evitado o óbito da criança. Se um médico com o saber e a experiência da arguida – note que em 1999 ingressou em estágio - não trata de consultar os registos clínicos ao seu dispor, bem sabendo que o doente é asmático e que tal patologia implica cuidados acrescidos, obter os elementos necessários para tratar a patologia que diagnosticou num paciente que está a seu cargo e sob a sua vigilância para além de iniciar, o seu tratamento, nem sequer acompanha a evolução do seu estado apesar de chamada por mais do que uma vez com a noticia de que algo não está bem, terá de concluir-se que não foi uma profissional conscienciosa, sensata e previdente e por isso terá de ser penalmente responsabilizado pelas consequências da sua conduta negligente. Agiu de forma particularmente censurável, postergador de cuidados básicos ou revelador de elevado grau de irreflexão ou insensatez e gerador de perigo quase certo Sempre que determinado comportamento se afasta daquele que era objectivamente devido numa situação de perigo para bens jurídico-penalmente relevantes, considera-se que esse comportamento preenche o tipo de ilícito do facto negligente. Mas a conjugação de uma infracção aos deveres de cuidado com o resultado típico - no caso, a morte de BB - não conduz, necessariamente, a um crime negligente. Impõe-se, ainda, que se verifique o nexo de adequação entre a conduta violadora do cuidado necessário e o resultado. Em que é que se traduz, nos crimes negligentes, esse nexo de imputação? Como é que se pode reconhecer se uma violação do dever de cuidado, à qual se segue uma morte, fundamenta ou não um homicídio negligente? Como refere C. Roxin ("Problemas Fundamentais de Direito Penal ", pág. 238), reúne um largo consenso da doutrina a posição segundo a qual existe o necessário laço causal se a realização da acção requerida impediria o resultado com uma probabilidade quase segura. Dizendo de outro modo e socorrendo-nos de H.H. Jescheck (" Tratado de Derecho Penal ", vol. II, pág. 804), haverá nexo causal desde que o resultado pudesse ser evitado mediante um comportamento cuidadoso, por um lado, e que a norma infringida servisse, precisamente, para evitar o resultado como o produzido no caso concreto. Ora, como é bom de ver, as chamadas guidelines das organizações nacionais e internacionais de médicos, as leges artis pelas quais os médicos devem pautar a sua acção têm um valor particular enquanto regras da experiência adequadas ao afastamento de perigos próximos ou imediatos para bens jurídicos e, no caso, não foram respeitadas pela arguida. Num juízo de prognose póstuma, pode afirmar-se que, com a sua conduta, violadora do dever de garante que sobre ele impendia, a arguida potenciou um risco para o bem jurídico vida humana e assim produziu um resultado proibido, pois é razoavelmente seguro que, pelas razões já explanadas, se tivesse agido de acordo com as leges artis, não teria ministrado Aspegiz, muito menos endovenoso sem que nada o justificasse e não teria sido desencadeada a reacção anafilática que foi causa da paragem cardiorrespiratória e consequente falta de oxigenação que produziu a morte por encefalotopia anóxica que vitimou BB e tal resultado não se teria verificado. Existe, pois, “conexão típica” entre a conduta da arguida e o resultado típico verificado (no caso, a morte de uma pessoa humana). Na linha das anteriores considerações, preenchido que está o tipo de ilícito do homicídio negligente pela conduta do arguido, impõe-se ponderar se lhe era exigível o comportamento devido, ou seja, se a este podia ser exigido que previsse e evitasse o resultado que se verificou no caso sub juditio, de acordo com as suas capacidades individuais, a sua inteligência, a sua formação e a sua experiência profissional. É esta questão que configura aquilo que o Professor Figueiredo Dias designa pela “questão do tipo de culpa negligente”. Para que a culpa negligente se afirme – explica o distinto penalista – não é necessário (nem possível) apelar ao concreto poder do agente de actuar de outro modo na situação. Do que ali se trata é apenas da conclusão de que, de acordo com a experiência, os outros, agindo em condições e sob pressupostos fundamentalmente iguais àqueles que presidiram à conduta do agente, teriam previsto a possibilidade de realização do tipo de ilícito e tê-la-iam evitado. O que significa apenas, por outras palavras, que o conhecimento real das consequências de uma acção e a capacidade de as evitar correspondem à experiência média e que portanto, relativamente ao agente concreto que as não representou ou evitou, se comprova uma deficiência perante o tipo normal. Só que este tipo – e aqui deparamos com o famoso “critério subjectivo” – não é o tipo “médio”, mas o tipo de homem da espécie e com as qualidades e capacidades do agente. Cremos que fundadamente, é de concluir que a arguida podia, razoavelmente, prever que, infelizmente, sucedeu. Para uma médica profissionalmente experiente, como era a arguida, dotada das capacidades que detém o “homem médio” pertencente à categoria intelectual e social e ao círculo de vida da arguida, o trágico resultado (a morte de uma criança), nas referidas condições, era perfeitamente previsível e evitável. * Assim, estão preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de homicídio por negligência grosseira, previsto nos art.º 15.º e 137.º, n.º 1 e 2 CP, e punido em abstracto com pena de prisão até cinco anos impondo-se a sua condenação. »
d. É como segue a apreciação efectuada pelo Tribunal de 1.ª Instância quanto à determinação das consequências penais no caso : « IV.Da medida da pena. A moldura penal abstracta deste tipo de crime vai, assim, de um mês (cfr. artigo 41.º n.º 1 do Código Penal) a cinco anos de prisão (cfr. artigo 137.º n.º 2 do Código Penal). * A determinação da medida da pena, dentro da moldura abstracta definida na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigo 71.º n.º 1 do Código Penal), sendo que a culpa funcionará aqui como o limite máximo e inultrapassável da pena a aplicar (artigo 40.º n.º 2 do Código Penal) e as exigências de prevenção especial e geral determinarão o patamar mínimo, abaixo do qual a pena a aplicar não cumprirá a sua finalidade. Dentro deste enquadramento, e de acordo com o n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, “na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele…”. Assim, nesta sede, é preciso ter em consideração, o grau de violação dos deveres impostos à arguida que assumem gravidade. Militam, em desfavor da arguida as graves consequências que da sua conduta e em consequência da qual resultou, ainda, a morte de um jovem com 16 anos de idade o sofrimento por ele vivenciado nos momentos anteriores à paragem cardiorrespiratória. De outra banda, a circunstância de não apresentar quaisquer antecedentes criminais, mormente pela prática de crimes violadores de bens jurídicos como o que aqui está em causa, será de atender favoravelmente na ponderação da determinação da medida concreta da pena e bem assim ao facto de a arguida estar inserida familiarmente. Isto posto, atendendo ao bem jurídico lesado, ao desvalor da conduta da arguida, ao grau de ilicitude e de culpa, às elevadas exigências de prevenção geral e às expressivas exigências de prevenção especial, atenta a falta de interiorização do desvalor da sua conduta e a falta de juízo critico revelada pela arguida, a falta de empatia revelada para com o sofrimento da própria vitima e seus familiares e às consequências resultantes da conduta criminosa da arguida, justifica-se fixar a medida da pena ligeiramente acima do ponto médio da moldura da pena de prisão prevista no artigo 137.º n.º 2 do Código Penal, o que se nos afigura como equilibrado, favorecendo a inserção social da arguida e revelando-se comunitariamente aceitável, atentas as expectativas na validade da norma violada. Assim, ponderando todas estas circunstâncias, decide-se aplicar à arguida AA a pena de 3 (três) anos de prisão, pela prática do crime de homicídio por negligência grosseira, p. e p. pelo artigo 137.º n.ºs 2 do Código Penal perpetrado na pessoa de BB. * Da substituição da pena de prisão aplicada. Em face da medida concreta da pena determinada, fica desde logo excluída a substituição das penas de prisão aplicada à arguida pelas penas previstas nos artigos 47.º e 58.º do CP. O Tribunal, quando aplique pena de prisão não superior a cinco anos, pode suspender a execução da pena se, “atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” (artigo 50.º n.º 1 do Código Penal), “Na base da decisão de suspensão da execução da pena deverá estar uma prognose social favorável ao arguido, ou seja, a esperança de que ele sentirá a condenação como uma advertência e que não voltará no futuro a delinquir. / O tribunal deverá correr um risco prudente – esperança não é seguramente certeza (…) / Nessa prognose deve atender-se à personalidade do arguido, às suas condições de vida, à conduta anterior e posterior ao facto punível e às circunstâncias deste, ou seja, devem ser valoradas todas as circunstâncias que tornem possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido, atendendo somente às razões da prevenção especial, não sendo de excluir liminarmente do benefício da suspensão da execução da pena determinados grupos de crimes” (SIMAS SANTOS, Manuel e LEAL-HENRIQUES, Manuel, Noções de Direito Penal, 4ª edição, Rei dos Livros, 2011, pág. 200). No caso vertente, a arguida não averba, antecedentes criminais. Já supra demonstrámos que tais penas privativas da liberdade, suspensas na sua execução só por si, não se revelam eficazes e adequadas às necessidades de ressocialização da arguida. Cremos, assim que a censura do facto e a ameaça da pena latentes numa pena de prisão suspensa na sua execução, já não serão suficientes e bastantes satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção da prática de novos crimes, nomeadamente, de novo crime desta natureza, atenta a falta de interiorização do desvalor da sua conduta e marcada ausência de qualquer juízo crítico no que respeita à sua actuação, e ao desfecho trágico que da sua actuação adveio para a vida de BB, pelo que se nos afigura não ser possível formular um juízo de prognose favorável em relação ao comportamento futuro da arguida, por ser de concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Assim, decide-se não suspender a execução da pena de 3 (três) anos de prisão. * Por outro lado, atendendo à concreta medida da pena aplicada, fica afastada a possibilidade de cumprimento da mesma em regime de permanência na habitação, sendo certo que, mesmo que a pena concreta o permitisse, consideramos que tal pena não seria capaz de satisfaz de forma adequada e suficiente as necessidades de prevenção (geral e especial) requeridas pelo caso concreto. Contudo afigura-se-nos que as circunstâncias do caso concreto poderão justificar a aplicação do disposto no artigo 46.º do referido Código. Destinatários desta norma são aqueles que tenham cometido crime no exercício da sua profissão,pública ou privada. Ademais esta regra só admitirá excepções quando em julgamento se conclua que as necessidades de prevenção geral e especial obstam à aplicação de tal pena de substituição. Ora como decorre dos factos provados apesar da sua conduta, a arguida volvidos cinco anos desde a prática dos factos, permanece sem lograr interiorizar o desvalor da sua actuação, denota total ausência de Juízo crítico pelo que só sendo proibida de exercer a sua profissão durante um período de tempo se logrará cumprir as necessidades de prevenção geral e especial que não deixam de ser elevadas, uma vez que a arguida, apesar de se ter demonstrado à saciedade a sua incúria, desleixo, leviandade espelhada permanece impávida e serena continuando a tentar imputar responsabilidades à vitima ao mesmo tempo que tenta desvirtuar os depoimentos da enfermeira e do médico CC. Numa derradeira oportunidade de evitar o cumprimento de uma pena de prisão efectiva, a pena de substituição de proibição do exercício da sua profissão por período não despiciendo ligeiramente acima do meio da moldura da pena de substituição prevista, contribuirá para a interiorização por banda da arguida da necessidade de observar cuidadosamente todos os procedimentos aptos a prevenir situações como a que nos presentes autos determinaram o fim da vida de um jovem de 16 anos. Atenta a moldura da proibição (1 a 5 anos na redacção da Lei penal aplicável) e o supra exposto decide-se substituir a pena de 3 anos de prisão por 4 (quatro) anos de proibição de exercer a profissão de médica quer nos serviços públicos, quer nos serviços privados de todo o território nacional nos termos do art.º 46 n.º1 do CP. »
Apreciemos então as questões suscitadas, pela ordem de prevalência processual sucessiva que revestem.
1. De saber se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto.
A parte substancial da petição recursória apresentada pela arguida AA reporta–se à alegação de haver o tribunal a quo incorrido em erro no julgamento da matéria de facto elencada em sede de fundamentação da decisão recorrida, impugnando assim tal exercício por considerar haver este assentado na errada apreciação dos elementos de prova produzidos nos autos – alegando que, por essa via, não se poderão afinal ter por demonstrados os elementos típicos necessários ao preenchimento do crime pelo qual vem condenada, como adiante melhor se verá.
Como é consabido, a decisão da matéria de facto pode ser sindicada em sede de recurso por duas vias alternativas: – no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410º/2 do Cód. de Processo Penal, – ou através da designada impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º/3/4/6, do mesmo diploma. No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do referido art. 410º, cuja indagação, como resulta imposto do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento ; no segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do Cód. de Processo Penal. A questão nesta parte suscitada pelo recorrente insere–se no âmbito do segundo dos caminhos expostos.
Na verdade, e é uma primeira nota que deve consignar–se, pese embora a recorrente a determinado passo do seu requerimento apele à «modificação da decisão de facto, nos termos previstos pelo artigo nº 410 C.P.P», é muito claro que tudo quanto consubstancia o seu recurso nesta parte se traduz na crítica ao exercício do julgamento de facto a que o tribunal a quo procedeu, aludindo invariavelmente aos elementos probatórios produzidos nos autos – referindo liminarmente, aliás, que aquela propugnada modificação da matéria de facto deverá decorrer de uma «reapreciação da prova, maxime a constante da gravação» –, e a quanto de vários segmentos dos mesmos resulta, propugnando deverem os mesmos determinar decisão diversa daquela a que chegou o tribunal a quo. Ao proceder desta forma, nitidamente remete a recorrente a sua impugnação para a sede do erro de julgamento, extrapolando a estrita invocação de qualquer dos vícios intrínsecos previstos no art. 410º/2 do Cód. de Processo Penal. Sempre se dirá, e para que dúvidas não se suscitem, que no caso dos autos não estamos perante qualquer situação configurável como algum desses vícios – a saber, o de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (al. a)), o de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (al. b)), ou o de erro notório na apreciação da prova (al. c)). Na verdade, perscrutado o estrito teor da decisão recorrida, e desconsiderando qualquer elemento externo à mesma – como sucede com o teor das declarações e depoimentos a que a recorrente alude –, não se descortina qualquer erro de raciocínio ou ofensa patente (ou sequer menos patente) a critérios de concordância lógica e de correspondência com regras de experiência comum, tendo também em consideração a globalidade do universo de factos em causa nos autos. Não se detecta igualmente nesta qualquer contradição intrínseca nesta parte de decisão de facto, mais se revelando a matéria factual decidida suficiente para a decisão jurídico–penal que vem a ser depois adoptada.
Prossigamos, pois, assentando em que a questão nesta parte suscitada pela arguida/recorrente gravita no âmbito do segundo dos caminhos acima expostos, isto é, da chamada impugnação ampla da matéria de facto ou, mais apropriadamente, do erro de julgamento, como consagrado no artigo 412º/3 do Cód. de Processo Penal, situação que ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado ; ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Neste caso, e na sequência do já exposto, o recurso quer reapreciar concretos segmentos de prova produzida em primeira instância, havendo assim que a reproduzir tale quale em segunda instância, por forma a apreciar da verificação da específica deficiência suscitada. Notar–se–á, não obstante, que nos casos de tal impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, mas antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, e sempre na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. E é exactamente por o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituir um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, os aludidos erros que o recorrente deverá expressamente indicar, que se impõe a este o ónus de proceder a uma especificação sob três vertentes, conforme estabelecido no art. 412º/3 do Cód. de Processo Penal, onde se impõe que, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar : a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, c) as provas que devem ser renovadas (quando seja o caso). A assim exigida especificação traduz-se, portanto, na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo ademais tal exercício recursivo com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõem decisão diversa da recorrida, com a explicitação da razão pela qual assim se entende. Sendo que, com relação esta última vertente, recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência : estando em causa o apelo a prova objecto de gravação, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal – é o que resulta do nº4 do art. 412º do Cód. de Processo Penal, que exactamente exige que «Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação». Cumpre assinalar que não deixará a instância de recurso de tomar em consideração, para além desses específicos trechos, também outros produzidos em audiência, nos termos previstos no nº 6 do mesmo art. 412º do Cód. de Processo Penal – onde precisamente se prevê que «No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.».
Em suma, e retomando quanto se vinha dizendo, quando se pretenda efectivamente sindicar a decisão recorrida no âmbito desta apreciação mais alargada resultante da impugnação da matéria de facto, resulta do texto do nº3 do art. 412º do Cód. de Processo Penal que não é uma qualquer divergência que pode levar o Tribunal ad quem a decidir pela alteração do julgado em sede de matéria de facto. Quando, no artigo 412º/3/b) do Cód. de Processo Penal se alude às «concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida», deve distinguir-se essa situação daquelas em que as provas em causa, sem imporem decisão diversa, admitiriam decisão diversa da recorrida na base de um outro juízo sobre a sua fidedignidade. Assim, para que a impugnação possa proceder, as provas que o recorrente invoque, e a apreciação que sobre as mesmas se faça recair, em confronto com as valoradas pelo tribunal a quo ou com a valoração que esse tribunal efectuou, devem não apenas revelar que os factos foram incorrectamente julgados, como antes devem determinar a convicção de que se impunha decisão diversa da recorrida em sede do elenco dos factos provados e não provados. Notar–se–á que a remissão para o verbo impor, especificamente estipulada no art. 412º/3/b) do Cód. de Processo Penal, consubstancia a exigência de verificação de uma obrigação impreterível, de um imperativo, de um dever mandatório inquebrável e sem alternativas. Assim, não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo tribunal a quo. Na verdade, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações dos arguidos, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios. Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo não só é vulgar, como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto. O que aqui se mostra necessário é que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido, em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada, à solução por si (recorrente) defendida, e não àquela consignada pelo Tribunal. Estas ideias encontram eco indisputado na jurisprudência, podendo citar–se, por todos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15/12/2005 e de 09/03/2006 (procs. nº 2951/05 e 461/06)[[3]], onde se escreve que «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse: antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros» ; ou ainda o acórdão do mesmo Supremo Tribunal de Justiça de 23/11/2011 (proc. 158/09.3GBAVV.G2.S1)[[4]], onde se consigna o seguinte : « IV – Como o STJ vem decidindo, o reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso não constitui, salvo os casos de renovação da prova (art. 430.º do CPP), uma nova ou suplementar audiência, de e para produção e apreciação de prova, sendo antes uma actividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento – art. 412.º, n.º 2, als. a) e b), do CPP. V - O duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento pela 2.ª instância, dirigindo-se somente ao reexame dos erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido referidos em recurso e às provas que impõem decisão diversa, indicadas pelo recorrente, e não a todas as provas produzidas na audiência. VI - Por isso, o recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida, sendo certo que ao exercício dessa tarefa o tribunal de recurso apenas está obrigado a verificar se o tribunal recorrido valorou e apreciou correctamente as provas, pelo que, se entender que a valoração e apreciação feitas se mostram correctas, se pode limitar a aderir ao exame crítico das provas efectuadas pelo tribunal recorrido. ». É que, como se refere por exemplo no acórdão da Relação do Porto de 26/11/2008 (relatado por Maria do Carmo Silva Dias e publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 139º, nº 3960, pág. 176 e segs.), e citado pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11/05/2022 (proc. 299/20.6GAVGS.P1)[[5]], «não podemos esquecer a percepção e convicção criada pelo julgador na 1.ª instância, decorrente da oralidade da audiência e da imediação das provas. O juízo feito pelo Tribunal da Relação é sempre um juízo distanciado, que não é “colhido directamente e ao vivo”, como sucede com o juízo formado pelo julgador da 1ª. Instância». E com particular acuidade numa situação como aquela aqui presente, adianta–se, cumpre em especial realçar que a credibilidade das provas e a convicção criada pelo julgador da primeira instância «têm de assentar por vezes num enorme conjunto de situações circunstanciais, de tal maneira que essa convicção criada assenta não tanto na quantidade dos depoimentos prestados, mas muito mais em outros factores» (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/01/2003, proc. nº 024324)[[6]], fornecidos pela imediação e oralidade do julgamento. Neste, «para além dos testemunhos pessoais, há reacções, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam» (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/07/2003, proc. nº 3100/02)[[7]]. Como se escreve no supramencionado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11/05/2022, «o recurso da decisão em matéria de facto da primeira instância não serve para suprir ou substituir o juízo que o tribunal da primeira instância formula, apoiado na imediação, sobre a maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. O que a imediação dá, nunca poderá ser suprimido pelo tribunal da segunda instância. Este não é chamado a fazer um novo julgamento, mas a remediar erros que não têm a ver com o juízo de maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. Esses erros ocorrerão quando, por exemplo, o tribunal pura e simplesmente ignora determinado meio de prova (não apenas quando não o valoriza por falta de credibilidade), ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário» – sublinhado agora aposto.
Efectuadas estas considerações – como forma de enquadramento dos limites em que se move a invocação desta forma de impugnação ampliada do exercício de fundamentação de facto por parte do tribunal a quo –, vejamos quanto sucede no caso concreto dos autos.
A arguida tem como ponto de partida do seu recurso uma caracterização que se revela sucintamente adequada dos termos em que a decisão recorrida assentou o preenchimento dos pressupostos de tipicidade, ilicitude e culpa relativamente ao crime de homicídio por negligência pelo qual vem condenada – caracterização essa que se julga pertinente fazer presente para melhor enquadrar o seu exercício impugnatório. Assim, e como bem resume a recorrente, considerou o tribunal resultar factualmente assente que que a arguida AA, não procedeu a uma avaliação clinica completa – nomeadamente apurando os antecedentes e a história clinica (anamnese) do paciente/falecido BB –, e prescreveu e determinou a toma em ambiente hospitalar de um agente (o medicamento Aspegic) potenciador de reacções anafiláticas em asmáticos, o que provocou, por sua vez, a paragem cardiorrespiratória do jovem BB, e as subsequentes e imediatas complicações fisiológicas que vieram a determinar a sua morte ; mais entendeu que a Arguida agiu livre e voluntariamente, não procedendo como cuidado devido, a que estava obrigada e era capaz, tendo em conta o estado do paciente e a sintomatologia que este apresentava, agindo de forma descuidada e desleixada em clamorosa violação das legis artis que regem a sua profissão.
É perante esta conformação do sustento da sua condenação que a arguida vem invocar o incorrecto julgamento da matéria de facto por parte do tribunal de primeira instância, alegando que tal deficiente exercício se prende, fundamentalmente, quer com a ausência de prova suficiente, quer com a desadequada valoração de alguns segmentos probatórios dos autos. Reporta a sua impugnação, nos termos da alínea a) do art. 412º/3 do Cód. de Processo Penal, à consideração como incorrectamente dados como provados dos factos constantes nos pontos 5. (na parte em que refere «Após observar o jovem, a arguida, sem consultar os registos clínicos anteriores ou a ficha clinica do jovem....»), 9., 13., 14., 16., 17., 18., 19. e 29. da matéria de facto provada, propugnando deverem os mesmos ser considerados não provados.
A primeira nota que não pode deixar se efectuar–se é a de que, salvo o devido respeito, os termos do exercício de impugnação efectuado pela recorrente neste caso não são um exemplo de clareza no que à adequação e delimitação dos respectivos fundamentos diz respeito. Assim, e para além de se insurgir contra a aludida larga parcela da matéria de facto enunciada de uma forma que não é completamente clara no que tange à percepção de quais os concretos segmentos de facto que determinada prova impõe não se poderem ter por demonstrados, a invectiva da arguida passa no essencial pela crítica à convicção adquirida pelo tribunal recorrido, pretendendo ver o seu próprio juízo pessoal prevalecer sobre a livre apreciação que serviu de base àquela e ao resultante juízo de condenação formulado pelo tribunal recorrido – propugnando, assim, a substituição da convicção formada pelo tribunal pela sua própria, numa inversão legal de papeis funcionais que não está, de todo, no sustento do regime processual aqui em causa. Os termos em que a recorrente desde logo apresenta a sua pretensão são, aliás, elucidativos, pois que liminarmente anuncia que aquilo que pretende é afinal «a reapreciação da prova com consequente alteração da matéria de facto e diferente decisão». É nesta perspectiva, aliás, que o Digno PGA junto deste Tribunal da Relação alude a que, nesta parte, «o recurso da arguida não respeita o legalmente estipulado, assim ficando prejudicadas as respectivas pretensões recursivas», concretizando tal asserção aditando que «o que a Recorrente visa é a reapreciação da prova produzida, qual novo julgamento, pelo Tribunal ad quem, no intuito de lograr vencimento de decisão diversa da recorrida, assim apresentando a sua própria versão, a sua valoração e apreciação sobre a prova produzida, de forma (conveniente ou subjectivamente) diversa e desconforme com a interpretação e valoração feita pelo tribunal recorrido, não demonstrando, apesar do esforço argumentativo, que a prova produzida impunha decisão diversa da recorrida». E, em bom rigor, é por aí que em grande medida passa a argumentação recursiva. Simplesmente, com essa pretensão, na essência das coisas, o que verdadeiramente questiona é a convicção formada pelo tribunal e não a prova que fundamentou a matéria de facto fixada. Ora, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão” - Acórdão do Tribunal Constitucional nº 198/2004 de 24/03/2004 [[8]]. Recorde–se que o recurso da matéria de facto visa tão só a sindicância da decisão já proferida nesse âmbito, e o tribunal de recurso em matéria de exame critico das provas apenas está obrigado a verificar se o tribunal recorrido valorou e apreciou correctamente as provas. Logo, e a menos que tenham sido indevidamente valoradas provas ilegais ou proibidas, que tenha sido desrespeitada a força probatória plena que a lei confere a alguns meios de prova, ou que se evidencie no juízo alcançado algum atropelo das regras da lógica, da ciência e da experiência comum, a convicção alcançada pelo tribunal que efectuou o julgamento tem de se considerar validamente formada de acordo com a regra estabelecida no art. 127° do Cód. de Processo Penal.
Pois bem, e adiantando desde já o resultado da apreciação recursiva ora efectuada, não se considera manifestamente verificado qualquer erro de julgamento quanto aos pontos e aspectos da matéria de facto da sentença que vêm impugnados. Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16/03/2005 (proc. 05P662)[[9]] «O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular – a fundamentação em matéria de facto –, mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito. (…) O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos de credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção». Foi exactamente aquilo que o tribunal a quo aqui fez, laborando no âmbito de um exercício de indagação incidente sobre vários elementos probatórios e de exame crítico dos mesmos – remetendo–se nesta parte para quanto se expressa em sede de motivação. Ora, na parte relativa a todos estes pontos da matéria de facto impugnados, a argumentação expendida, quer nas motivações, quer nas conclusões do recurso, não é eficiente para produzir qualquer alteração da mesma, porque tudo quanto vem invocado como fontes do erro de julgamento, são ademais elementos de prova ponderados e analisados pelo tribunal recorrido. Ou seja, os trechos da prova que vêm invocados e seccionados pelo recorrente não permitem inquinar, de todo, a leitura que o tribunal a quo, neste concreto aspecto, fez da prova produzida – ou seja, não se demonstra, como seria necessário, a existência de prova que impusesse decisão diversa. E assim sucede, desde logo, porque em parte tais trechos se mostram descontextualizados e desligados de quanto resulta da respectiva conjugação, não só com o demais teor de tais elementos de prova em si mesmos, como também com toda a demais prova produzida nos autos, bastando um percurso pelo exercício de motivação efectuado pelo tribunal a quo para que se percepcione a inapelável falência da pretensão do recorrente. O que também significa, mais relevantemente – e é essa uma primordial nota que cumpre deixar clara ab initio –, que, ao contrário do que aparenta sugestionar a recorrente, todos os elementos probatórios a que agora apela recursivamente (e alternativamente por si interpretados) foram devidamente ponderados pela primeira instância, não se mostrando de todo arredados da sua reflexão probatória, e com relação precisamente à matéria fáctica cujo sentido o recurso pretendia inverter. O que o tribunal a quo fez, porém, e contrariamente ao exercício impugnatório, foi efectuar tal valoração de modo integrado e conjugando todos os vários elementos probatórios do processo – incluindo, pois, aqueles que a recorrente agora vota ao desprezo, considerando não terem valia probatória superior àqueles segmentos por si invocados. Aliás, adianta–se, facilmente se pode comprovar pela audição da produção de prova em audiência que o tribunal recorrido, e muitíssimo bem, não se limitou a ser um mero espectador apático, ou receptor passivo da informação e prova que se produziu nos autos e nomeadamente em imediação e oralidade na audiência de discussão e julgamento. Com efeito, no estrito cumprimento e observância das prerrogativas legais que lhe então funcionalmente atribuídas, interveio activamente, com profundidade e firmeza, pois questionou a arguida, peritos e testemunhas, e interpretou os diversos documentos e depoimentos, sopesando-os a todos, procurando descobrir a verdade material por meios processualmente válidos, articulando–os de uma forma cuidadosa, racional e coerente, de acordo com as regras de normalidade, experiência comum e razoabilidade, assim procurando criar a sua convicção quanto à forma como ocorreram historicamente os factos, tentando reproduzir com a fidedignidade possível esse pedaço-de-vida em julgamento. Ou seja, e para terminar esta introdução, resulta assim muito claro da análise da motivação da decisão da matéria de facto que para o tribunal a quo a imagem global dos factos resultou da firme correlação e conjugação entre múltiplos elementos de prova, e não de uma análise cirurgicamente fragmentada e descontextualizada de alguns deles, como faz a recorrente.
Tudo isto dito, não deixa de seguidamente se percorrer a argumentação da arguida/recorrente nesta parte, procurando na mesma identificar (e assim seguir) um percurso pelos themas de facto que se revele, apesar do já exposto, minimamente consentâneo com as exigências que vimos plasmadas no art. 412º/3/4 do Cód. de Processo Penal.
Começando pelo aspecto que se relaciona com a alegação de não resultar da prova dos autos que seja desaconselhada a administração de anti–inflamatórios não esteróides (vulgo AINEs) a doentes asmáticos. Compreende–se a alegação na medida em que, a inexistir a necessidade de tal cautela clínica – tomada como assente em sede de matéria de facto provada (mormente nos seus pontos 13. e 18.) –, cairia por terra todo o sustento da responsabilidade criminal imputada à arguida. Na verdade, revertendo–se tal asserção, liminarmente se deveria entender não verificados os pressupostos da imprudente anamnese executada pela arguida (ao não atentar no historial e antecedentes clínicos do ofendido BB, no que tange à sua condição asmática e assim à alergia aos AINEs, nos quais se incluem o ibuprofeno e o acetilsalicitato de lisina), e ao determinar a administração, sob sua prescrição, naquelas circunstâncias, do Aspegic (que, precisamente, é um acetilsalicitato de lisina, isto é, uma forma solúvel do ácido acetilsalicílico – cfr. o respectivo folheto informativo, aprovado pelo Infarmed, junto a fl. 159 e segs. do Anexo I, e mencionado na motivação da Sentença). Pois bem, nesta parte a arguida/recorrente refere que o contrário de quanto assim vem considerado em sede de matéria de facto provada é dito «pelos peritos», abrangendo nesta nomenclatura HH (autor do parecer/consulta técnico–científica solicitado pelo Ministério Público em sede de Inquérito nos autos), II e JJ (que executaram a autópsia do ofendido e elaboraram o correspondente relatório), e ainda GG (instrutor do processo da ACES de ...) e KK (instrutor do processo disciplinar instaurado pela Ordem dos Médicos à arguida). Pois bem, independentemente de, em bom rigor, apenas os três primeiros (por motivos que a sentença bem explica e melhor serão recopilados adiante), revestirem, no âmbito da prova produzida, a posição processual de peritos – sendo que, muito curiosamente, outros médicos e clínicos nos quais a recorrente alega haver–se exclusivamente baseado o tribunal a quo, não passam, no recurso, de «testemunhas» –, o primeiro aspecto que cumpre realçar é que, percorridos capilarmente os segmentos que vêm transcritos dos respectivos depoimentos, em parte alguma dos mesmos se encontra prejudicada a consideração daquela cautela ou contra–indicação clínica, e muito menos decorre a imposição da conclusão de que as mesmas não se verifiquem. Muito pelo contrário, o que os clínicos em causa quanto muito sustentam é que a administração terapêutica em causa dever ser executada precisamente com especiais cautelas atento o perigoso potencial de determinar reacções alérgicas em pessoas com determinadas condições clínicas, designadamente asma. O que não é mais nem menos, note–se, do que aquilo que se dá como assente em sede de matéria de facto provada. Na verdade, em parte nenhuma da fundamentação da sentença é dada como assente uma matemática e inevitável relação de causa/efeito entre a administração de AINEs, como o é o Aspegic, em doentes asmáticos (in casu), e o desencadear de uma reacção anafilática – mas sim que tal procedimento é «altamente potenciador de reacções anafiláticas em asmáticos» e que a «crise/reacção de hipersensibilidade do jovem BB era, à luz dos conhecimentos médicos actuais, altamente provável na decorrência da prescrição de “Aspegic” (um salicilato) a um paciente asmático» – sublinhados agora apostos. E é de certa forma jogando com as palavras que a arguida/recorrente procura extrair daqueles depoimentos, e bem assim de quanto consta da bula (folheto informativo) do medicamento Aspegic, que afinal até nem é assim tão contra–indicada a administração desse medicamento em certas circunstâncias. Sendo que, e por directa referência a este último elemento, mal se compreende que imposição probatória contrária ao decidido se poderia retirar da indicação aposta naquele folheto segundo a qual expressamente se adverte do seguinte : « Não tome ASPEGIC 1000 se tem: Alergia (hipersensibilidade) ao ácido acetilsalicílico ou a qualquer dos excipientes; História de asma induzida pela administração de salicilatos ou substâncias com acção semelhante, sobretudo anti-inflamatórios não esteróides; (…)». Ou seja, e como refere o tribunal a quo em sede de motivação, é o próprio fabricante do medicamento que, junto do utilizador, contra-indica a toma do Aspegic por quem tenha já anteriormente manifestado hipersensibilidade (alergia) a um anti-inflamatório não esteróide, como é o caso do Ibuprofeno – como era, precisamente, o caso do ofendido BB, isso mesmo resultando de vários registos do historial clínico do mesmo, acessível informaticamente à arguida naquela ocasião. Aquilo que a arguida esquece no seu recurso é que o que fundamenta a violação dos deveres de cuidado a que estava adstrita no caso é, precisamente, o não se haver assegurado de que estavam reunidas as necessárias circunstâncias e condições para administrar aquela terapêutica, e pela forma como o fez – note–se, já agora, que jamais a recorrente atribui qualquer especial relevo à circunstância, bem realçada em sede de matéria de facto provada e de motivação probatória, de ter ademais prescrito uma administração endovenosa (e não via oral) do medicamento em causa, facto que foi considerado por toda a prova testemunhal e pericial chamada a pronunciar–se quanto ao mesmo, como preponderante na irreversibilidade do processo anafiláctico e de paragem cardio–respiratória subsequente. E que foi essa imprudência que inviabilizou precisamente a correcta análise da situação concreta do doente que tinha perante si, e, assim, uma esclarecida decisão terapêutica, isto é, por via de tal falta de cuidado, a arguida não se muniu da informação necessária para sequer ponderar sobre a adequação da administração do Aspegic por via endovenosa como forma de baixar a sintomatologia febril do ofendido na altura. O que significa que os termos em que a cautela terapêutica aqui em causa se mostra reflectida na matéria de facto provada se revela absolutamente adequada, e, ao invés do alegado pela recorrente, absolutamente sustentada nos elementos probatórios de natureza documental, pericial e testemunhal dos autos – incluindo, repete–se, aqueles mesmos agora invocados pela própria recorrente.
Não deixará de se dizer, já agora (e com pertinência para outros trechos da presente apreciação) que no que tange aos depoimentos dos senhores clínicos – que a arguida apelida também de peritos – GG (instrutor do processo da ACES de ...) e KK (instrutor do processo disciplinar instaurado pela Ordem dos Médicos à arguida), que clínica é a lapidar explicação exarada em sede de motivação da decisão de facto pelo tribunal a quo para a circunstância de o valor probatório, quer dos respectivos depoimentos, quer, antes deles, do teor daqueles elementos de prova documentais, dever ser ponderado com acentuadas reservas, nomeadamente no que tange ao respectivo reporte às concretas circunstâncias ocorridas na ocasião dos factos. Atentemos em quanto consigna a tal propósito o decisor de primeira instância : « “qualquer das conclusões extraídas nos processos de inquérito e disciplinar instaurados, respectivamente pelo ACES .../... e pela Ordem dos Médicos, que os arquivariam é pouco sustentada, o processo desenvolveu-se como qualquer procedimento administrativo, a partir de e com base em documentação escrita, nomeadamente nas conclusões ali extraídas, sem ouvir a acompanhante do BB, a sua mãe, ora assistente, MM, ou qualquer dos profissionais envolvidos nos cuidados prestados a BB no atendimento de 07/05/2017, nomeadamente a enfermeira DD e o médico CC, cujos depoimentos se mostram essenciais na cabal compreensão do ocorrido, afigurando-se que nessas investigações não se detêm particularmente sobre a conformidade ou desconformidade da actuação dos profissionais de saúde com as legis artis, deixando tal apreciação às respectivas ordens profissionais, como é de resto, expressamente assumido em 49. da Deliberação do Conselho de Administração da Entidade Reguladora da Saúde (ERS), no Anexo 2, concretamente fls. 14. Mas no caso a decisão proferida no processo de averiguação sumária da Ordem dos Médicos, assume na realidade a prova e conclusões extraídas pela ERS no seu relatório, baseando-se este último no relatório final do ACES .../..., que o relatório da ERS reproduz. De tal modo que, estamos, na prática, perante uma única análise e avaliação, reproduzidas nos três relatórios, com origem no primitivo relatório do ACES ... de 08/08/2018. De resto, as conclusões extraídas nas decisões finais dos mesmos acabam por ser, na prática, coincidentes, reproduzindo-se até nos seus fundamentos. O certo é que, mercê da utilização de uma formulação escrita e documental, própria dos procedimentos administrativos, e tendo em vista finalidades que não as que norteiam o presente processo criminal, escaparia a todas estas entidades uma verdadeira análise da conduta profissional da aqui arguida enquanto médica responsável pela administração a BB do medicamento que, como explicitamos supra, terá feito desencadear o quadro sintomático da anafilaxia, com paragem cardiorrespiratória, e por fim a sua morte. Tal resulta patenteado, por exemplo, no facto de nesse relatório matriz dos dois procedimentos – o relatório final do processo de inquérito determinado pelo ACES .../..., junto no Anexo 1 -, erigir como factor de ilibação de responsabilidades do corpo clínico na morte de BB a inexistência de registo clínico anterior que reportasse qualquer alergia ou reacção adversa ao medicamento prescrito – acetilsalicilato de lisina – ASPEGIC. Se tal afirmação é verdadeira, assim como constam de facto vários registos no processo clínico de BB que não aludem a alergias medicamentosas, e alguns que dizem não ser conhecidas, não é menos verdade que, como enunciamos supra, constam outros tantos com o registo de alergia ao Brufen, (20/06/2014) – fls. 93; - “Alergia ao Ibuprofeno” (12/09/2015) – fls. 100; - “Alergia ao Ibuprofeno” (23/11/2015) – fls. 100; - “alérgico ao brufen” (06/07/2016) – fls. 119; - “alérgico ao Ibuprofeno” (21/02/2017) – fls. 102. A julgar pela cronologia de tais registos, conjugada pelo depoimento da sua mãe tudo indica que a alergia ao ibuprofeno teria sido reportada a partir de 2014 pelos motivos que a mãe com grande clareza e de forma absolutamente credível descreveu. Naquele relatório nenhuma consequência se extrai do facto de o historial clínico de BB registado na plataforma a que a arguida acedeu para registar a consulta de 07/05/2017, conter as inserções de alergia ao ibuprofeno e lhe ser acessível sem restrições; avança-se, pois, no processo lógico da fundamentação do relatório como se lá nada constasse ou como se não fosse um dever profissional da arguida, tomar conhecimento de tais registos e história clínica. ». São considerações que parte alguma da argumentação recursiva logra rebater, mas que bem sustentam as devidas cautelas no que tange a algumas das conclusões exaradas nos relatórios em causa – e, assim, na razão de ciência testemunhal dos aludidos senhores clínicos, repete–se, pelo menos no que tange às concretas circunstâncias ocorridas na ocasião dos factos, pois que não se colocam em causa as suas valências científicas.
Aspecto subsequente relativamente ao qual se descortina, a partir da alegação recursória, a incidência da impugnação da arguida reportada ao julgamento da matéria de facto, é (naturalmente, dir–se–á) o de haver sido considerado assente o necessário nexo de causalidade adequada entre a administração, sob prescrição da arguida, daquele Aspegic (um anti–inflamatório não esteróide) ao ofendido BB e o processo fatalmente mórbido que subsequentemente o afectou. Trata–se de matéria que resulta assente essencialmente nos pontos 9., 13. e 17. da matéria de facto provada. Uma nota prévia para deixar assente que o presente recurso não coloca em causa a caracterização do supra aludido processo fisiológico mórbido que veio a culminar com a morte do ofendido BB – e que se mostra assente desde logo por via do resultado do relatório de autópsia dos autos, conforme exarado no ponto 12-. da matéria de facto provada. O que aqui se impugna é se o que determinou esse processo foi a toma pelo ofendido daquele medicamento Aspegic, para mais por via endovenosa, tal como prescrito pela arguida naquela ocasião. A alegação da recorrente nesta parte começa desde logo por se prefigurar algo sui-generis quando apela ao teor e resultado do Parecer /consulta técnico–científica, elaborado pelo clínico HH, e bem assim ao Relatório de autópsia, cujos resultados, no que aqui especificamente releva, são resumidos pelo tribunal a quo em sede de motivação nos seguintes termos : «Desta forma assumem particular relevância as conclusões extraídas do parecer médico-legal no qual se conclui, nas repostas aos quesitos formulados, que: (…) tendo em conta o estado de saúde de BB à chegada ao Centro de Saúde ... – tosse, cefaleia e febre, o primeiro procedimento a adoptar seria uma avaliação clínica completa; a administração de Aspegic endovenoso não era essencial face à temperatura timpânica registada de 38º,4C, correspondente a 37º,4C de temperatura axilar, sendo que habitualmente indica-se a administração de antipirético em temperaturas superiores a 38º,5; a haver necessidade de administrar terapêutica antipirética/analgésica, deveria optar-se pelo paracetamol. Antes da administração de fármacos com reconhecido potencial de desencadear reacção alérgica, é indispensável colher uma história clínica completa acerca de alergias anteriores; face à história clínica do doente, não estaria indicado administrar salicilato, porquanto: a temperatura registada não o justificava e não é recomendada a administração de salicilato a doentes com antecedentes de asma brônquica, sabendo-se que os salicilatos podem ser um factor desencadeante; à via de administração usada, endovenosa, pode associar-se reacção de hipersensibilidade de maior gravidade do que a via oral; a paragem cardiorrespiratória pode ter sido provocada pela administração do Aspegic. Para além deste parecer, o relatório de autópsia médico-legal, em 6. do item “Discussão”, explica de forma muito clara o potencial desencadeante de sintomas respiratórios típicos da asma em resposta à administração dos AINE´s, nos quais se inclui o Ibuprofeno e o acetilsalicilato de lisina. Conforme transparece do referido parecer médico-legal, e se escreve também no relatório de autópsia: “a pré-existência de asma está associada a um pior decurso deste quadro clínico e reacções anafilácticas, nomeadamente a fármacos do grupo dos anti-inflamatórios não esteróides (AINE), em que se incluem o ibuprofeno e o acetilsalicilato de lisina”» A isto se junte o teor do Esclarecimento ao parecer em causa, apresentado pelo mesmo perito e junto a fls. 315 dos autos, do qual, e sucintamente, se extrai que, sendo conhecidos os antecedentes de asma (do ofendido) seria mais prudente não administrar um salicilato como o Aspegic – aí se clarificando que em tal caso a dosagem é aspecto irrelevante –, e que, quanto à via de administração, «a endovenosa pode associar–se a reacção de hipersensibilidade de maior gravidade do que a via oral». Mais : inclusive o Relatório da anatomia patológica subsequente à autópsia ao ofendido (junto a fl. 40 dos autos), desde logo enuncia, no item “causa provável da morte”, a referência a «Anafilaxia? – PCR após ingestão de medicação.». Ou seja, nenhum destes elementos impõe a inversão da consideração daquela administração medicamentosa concreta como causal do processo fisiológico fatal no presente caso. Assim como também não se vislumbra tal imposição percorridos os segmentos e trechos da prova gravada recortados pela arguida. Quanto muito, e mais uma vez, o que de alguns desses trechos resulta é que, os peritos e testemunhas aí invocadas, não obstante considerarem sempre essa reacção como uma possibilidade, com os elementos de que dispunham não puderam concludentemente atribuir à toma do Aspegic a reacção anafiláctica e paragem cardiorrespiratória imediatas. Porém, repete–se, nenhum excluiu essa possibilidade. Ora, nesta parte, e bem consciente deste contexto – ao contrário do que aparenta sugerir a recorrente –, o exercício de averiguação e avaliação probatória que, muito bem, o tribunal a quo levou a cabo, foi o de, sendo aquele procedimento clínico imputado à arguida uma real e efectiva probabilidade de desencadear o processo causal da morte do ofendido, procurar descortinar na prova produzida, se se verifica ou foi vislumbrada alguma alternativa similarmente adequada – por muito ténue que o fosse – a essa causa. E a resposta encontrada pelo tribunal a quo foi clara e assertivamente negativa, mostrando–se justificada por via de um criterioso e minucioso exercício de apreciação crítica de toda a prova produzida nos autos, conjugada entre si. São, aliás, elucidativos os termos em que o tribunal a quo explana a necessidade de procurar uma tal ponderação global da prova, não desconsiderando – jamais – quanto decorria dos elementos periciais dos autos, mas vincando não poder o dever de procura da verdade a que está vinculado ficar limitado pelos mesmos. Assim, refere o tribunal a quo em sede de motivação o seguinte, com sublinhados agora apostos : «Cumpre desde já salientar que “Não tendo o juiz conhecimentos técnico-científicos de medicina, as conclusões dos peritos médicos e os pareceres dos Colégios da Especialidade da Ordem dos Médicos são fundamentais para o juízo sobre a violação, ou não, das leges artis pelo médico e na avaliação da existência, ou não, dessa relação de causalidade, mas, na reconstituição histórica dos factos, o tribunal não pode ater-se, exclusivamente, a esses meios, antes se lhe impõe que proceda a uma avaliação complexiva e contextualizada da actuação do agente, levando em consideração a globalidade das circunstâncias e factores (endógenos e exógenos) e meios disponibilizados para o juízo de prognose póstuma que tem de formular. Como, a este propósito, alerta o Prof. Germano Marques da Silva (“Curso de Processo Penal”, Vol. II, Verbo, 5.ª edição revista e actualizada, pág. 264), «não obstante o recurso à perícia resultar precisamente da exigência de conhecimentos especializados que, como regra, o tribunal não possui, o tribunal não pode simplesmente descansar na perícia, pois a decisão final sobre a culpabilidade é da sua responsabilidade. O valor probatório especial da perícia não significa que estejamos perante um novo regime de prova legal, obrigando o juiz a submeter-se ao ipse dixit dos peritos; individualiza a regra do exercício racional da sua apreciação. Isto é, importa distinguir a vinculação do juiz ao resultado da perícia e ao princípio da livre convicção. O princípio da livre convicção impõe-se como dever de exercitar a função de valoração probatória segundo os cânones da racionalidade e por isso que quando esteja em causa uma prova pericial fundada sobre regras científicas, artísticas ou técnicas, a adesão ou discordância relativamente ao resultado da perícia não pode senão assentar no mesmo método”». ». Foi precisamente, e muito ao contrário do alegado pela recorrente. quanto o tribunal a quo veio a fazer – repete–se, sem que se descortine um único momento ou passo em que haja sido desconsiderada qualquer conclusão ou facto apenas susceptível de avaliação pericial. Nem, em bom rigor, da alegação recursória resulte a imputação de qualquer concreta tal violação dos limites de valoração probatória por parte do tribunal. Realça–se, mais uma vez, que ao contrário do alegado, de parte alguma dos elementos periciais dos autos ou dos esclarecimentos prestados pelos senhores clínicos que os elaboraram, resulta excluída – pelo contrário – a causalidade terapêutica dada por provada pelo tribunal a quo, e já acima caracterizada. Pois bem, e retomando a crítica ao exercício de averiguação e valoração probatória levado a cabo pelo tribunal a quo, fez o mesmo incidir a sua incisiva averiguação em especial sobre aquela que, em boa verdade, foi a única possibilidade alternativa, suscitada nomeadamente pelos senhores peritos e demais clínicos que prestaram depoimento em julgamento, para o surgir da reacção anafiláctica e paragem cardio–respiratória do ofendido naquela ocasião, qual fosse o de um surto asmático grave e irreversível. Pois bem, é na exaustiva concatenação entre não apenas a prova pericial – em especial a resultante do Relatório de autópsia ao ofendido (e o que ali se reporta haver sido observado no seu organismo) e dos esclarecimentos prestados em audiência pelos peritos que levaram a cabo tal diligência –, mas também prova documental e, em particular, prova testemunhal recolhida junto daqueles que, naquela fatídica ocasião e naquele ambiente hospitalar, estiveram em imediato e directo contacto com o ofendido e presenciaram in loco a sua reacção e evolução fisiológicas, que o tribunal a quo vem a concluir não ter existido qualquer outra possibilidade adequada, viável ou plausível, para que o ofendido haja entrado naquele processo mórbido nos momentos quase imediatos a ser–lhe administrada a medicação prescrita pela arguida. Remetendo–se nesta parte integralmente para o percurso efectuado em sede de motivação pelos vários elementos probatórios dos autos, recopilemos apenas quanto vem a consignar a final do mesmo o tribunal a quo, por serem considerações que se consideram perfeitamente adequadas de acordo com elementares regras de lógica e, inclusive, com aquelas da ciência clínica tal como confirmadas pelos elementos probatórios assim percorridos : « À morte causada pela falta de oxigénio no cérebro devido à paragem cardiorespiratória não é de excluir uma reacção anafilática ao medicamento Aapegic. Diremos que antes é de a incluir pois a origem da paragem cardiorrespiratória não advém, de qualquer problema cardíaco, o coração foi até retirado para transplante, e nada aponta que naquele dia o BB estivesse com qualquer crise de asma, pelo contrário estava eupneico. Neste sentido o parecer médico legal e os esclarecimentos prestados demonstram que tudo concorre para esse sentido. Por isso quando confrontados com o elenco dos factos, o timing entre a administração e a anafilaxia que assolou o BB e a paragem cardiorrespiratória de que padeceu, um jovem com 16 anos, cujo coração foi retirado para transplante, tal como sucedeu com diversos órgãos do BB, conforme consta do relatório de autópsia, o estado eupneico com que chegou à urgência, nada aponta para que a paragem cardiorrespiratória tenha como origem um ataque súbito e agudo de asma, pelo que claramente a causa do que sucedeu escuda-se tão só e apenas na administração endovenosa do aspegic. Todos, uns com mais dificuldade, do que outros, não podem puderam negar que o encadeamento dos factos apurados, conduzem a esta conclusão. É que o encadeamento dos acontecimentos não pode conduzir a expressões lacónicas como “não está excluído choque anafilático” apenas com o fundamento de se tratar de um doente com asma mal controlada (por recorrer várias vezes à urgência) e que é distinto do conceito de asma não controlada (aquele que nas ultimas 4 semanas tem vários episódios de urgência). Ademais, percorrida a história clinica do BB não se vislumbra que este tivesse alguma vez padecido de um ataque agudo de asma capaz de fazer perigar seriamente a sua vida, deles resultando que apenas uma vez, com níveis de oxigénio no sangue superiores a 80% ,terá ficado internado por uma semana. Não temos qualquer dúvida que foi o aspegic endovenoso levianamente indicado pela arguida que despoletou a reacção anafilática que foi causa directa da morte do BB. (…) E que terá sido esta anafilaxia a causa da paragem cardiorrespiratória que determinou a encefalopatia anóxica que determinou a morte de BB e não uma crise aguda de asma, como também se hipotisaria, parece-nos igualmente evidenciado na cronologia dos acontecimentos, como consta do registo clínico da intervenção efectuada nessa noite, em conjugação com os depoimentos da enfermeira que administrou o ASPEGIC e depois também socorreu BB, e do médico que liderou a operação, e enfermeiro que auxiliou. Pelo exposto não pode ficar qualquer dúvida razoável quanto à causa da paragem cardiorrespiratória e subsequente morte de BB. Na verdade, o quadro sintomatológico e diagnóstico diferencial definido naquele relatório para a asma e para a anafilaxia (fls. 40) apontam para: Asma – dispneia (dificuldade respiratória), pieira (sibilância), tosse; são factores de risco major para a morte, a doença mal controlada com necessidade frequente de broncodilatadores inalatórios, má adesão terapêutica com corticóides inalatórios e admissões hospitalares prévias com episódios de agudização grave e quase morte; Anafilaxia – reacção de hipersensibilidade Tipo I a um alergénio (…) [que] ocorre habitualmente minutos após a exposição a um antigénio específico, que pode ser ingerido, inalado ou administrado por via parentérica. Como manifestações clínicas ocorrem dispneia por edema da laringe e/ou broncoespasmo acentuado, frequentemente seguido de colapso cardiovascular ou choque sem dificuldade respiratória precedente. Ora, tendo em conta a forma tranquila como BB entrou no serviço de urgência (sem sintomatologia indicativa de uma crise aguda de asma) e se manteve até à administração do ASPEGIC, as queixas que manifestou minutos depois, ao ponto de levarem a enfermeira a requisitar a observação médica, conjugado com o quadro posterior de dispneia e paragem cardiorrespiratória, cremos não poder senão concluir, como concluíram os profissionais de saúde que intervieram naquela situação, enfermeiros e médico, por um quadro sintomatológico típico da anafilaxia, cuja causa radica na administração daquele medicamento e subsequente reacção alérgica de BB. Por outro lado, consultados os registos hospitalares anteriores, não verificamos que tenha havido admissões hospitalares prévias com episódios de agudização grave e quase morte, como definido pelo Perito Médico-Legal enquanto factor de agravamento do risco de morte. Nestes termos a paragem cardiorrespiratória de BB minutos depois da administração endovenosa do Aspegic ficou a dever-se a um choque anafilático por hipersensibilidade a esta substância. ». Nem um só destes pilares em que o tribunal a quo assenta a sua convicção quanto a esta matéria é abalado por qualquer elemento probatório invocado pela recorrente. E se é absolutamente indiscutível que em processo penal não é o arguido/acusado quem tem de provar a sua inocência, não deixa de ser verdade que, atenta a especial natureza dos factos aqui em causa e as correlativas qualidade e valências profissionais da arguida, seguramente não deixaria de pela mesma haver sido trazido aos autos algum exercício de explicação alternativa para os factos que se mostrasse minimamente robusto e plausível em termos clínicos. No fundo, e bem vistas as coisas, o que resulta da argumentação recursória é uma espécie de crítica ao tribunal a quo por não se ter deixado comodamente ficar no campo da possibilidade que a prova pericial abria em termos de indiciação da causalidade entre a terapêutica prescrita e ministrada e a reacção fisiológica que culminou na morte do ofendido – pretensão que bem denota quando, na conclusão 22º do recurso, afirma que «Nenhum dos relatórios médicos conclui pela imputação da acção ao resultado não conseguindo estabelecer uma nexo de causalidade, apenas ponderando como uma hipótese possível o choque anafilático por reacção alérgica ao medicamento» –, mas antes ter procurado ir mais além e ter procurado esclarecer devidamente se essa possibilidade era, afinal, a única que se revelava adequada, ou se outra haveria que excluísse a segurança probatória necessária à sua consideração. Ou seja, e salvo sempre o devido respeito, o que a recorrente inusitadamente censura na actuação do tribunal a quo é que este tenha cumprido com o dever que lhe incumbe de procurar, com recurso a todos os meios de prova válidos e adequados ao seu dispor, chegar à descoberta da verdade. É um exercício de crítica que, como está bom de ver, não pode merecer qualquer remoto acolhimento.
Temos, e sempre procurando reportar a alegação da arguida/recorrente aos aspectos da matéria de facto provada, a questão mais concretamente ligada à falta de prévia consulta pela arguida dos registos clínicos do ofendido BB, que lhe estavam disponíveis informaticamente naquela ocasião, e nos quais seria possível verificar não ser indicada a prescrição do medicamento Aspegic naquelas circunstâncias. Trata–se, afinal, da pedra de toque que sustenta a violação do dever de cuidado imputada à arguida, traduzida numa imprudente e descuidada anamnese (no sentido de devida avaliação prévia do historial clínico e circunstâncias pessoais do paciente que se apresentava à consulta) enquanto momento liminar do processo terapêutico então desencadeado – sendo matéria vertida no essencial nos pontos 5., 13., 14., 16., 18. e 19. da matéria de facto provada. Pois bem, nesta parte o recurso reduz–se à singela afirmação de que «Não poderia Tribunal chegar à conclusão, não tendo prova disso nem invocando qualquer facto que a Arguida não consultou os registos clínicos do doente aliás a própria refere ter consultado e ter visto registado que o paciente não tinha alergias medicamentosas, como de facto referiram os peritos médicos» – sem que, contudo, sequer recorte qual o trecho da declarações da arguida de onde tal resulte, assim, e desde logo, não cumprindo quanto se mostra exigido no nº4 do art. 412º do Cód. de Processo Penal. Seja como for, sempre se dirá que tal singeleza recursiva nesta parte se deverá, possivelmente, à circunstância de, em si mesma, tal alegação se traduzir num inevitável contradição com regras de elementar senso comum. Na verdade, constatando–se que a arguida inseriu no Boletim de urgência hospitalar (cfr. fl. 124 dos autos) então por si preenchido na consulta ao BB, a referência «sem alergias medicamentosas conhecidas», isso só pode significar que não consultou os registos clínicos do mesmo ofendido, que lhe estavam disponíveis no momento por mera e simples consulta informática, e dos quais, como abundantemente descreve o tribunal a quo em sede de motivação, constam vários registos anteriores de alergia medicamentosa concreta – que, ademais, alertariam a arguida para a contra–indicação na administração de um AINE como o Aspegic ao ofendido, antes devendo optar por outra terapêutica antipirética. Note–se que, se é verdade que daqueles registos clínicos anteriores não resulta qualquer reporte a alergia ou reacção adversa ao medicamento concretamente prescrito – acetilsalicilato de lisina, ASPEGIC –, o que é seguro é que dos mesmos constam vários registos de “alergia ao Brufen”, (20/06/2014 – fl. 93), “alergia ao Ibuprofeno” (12/09/2015 – fl. 100), “alergia ao Ibuprofeno” (23/11/2015 – fl. 100), “alérgico ao brufen” (06/07/2016 – fls. 119), “alérgico ao Ibuprofeno” (21/02/2017 – fls. 102). E não menos certo, como consigna o tribunal a quo em sede de motivação, é que «se é verdade que Ibuprofeno (BRUFEN) e Acetilsalicilato de lisina (ASPEGIC) são medicamentos distintos, não é menos verdade que ambos pertencem ao grupo dos Anti-Inflamatórios Não Esteróides (AINE´s). Conforme também transparece do parecer médico-legal supra identificado. Tal associação entre os dois medicamentos será evidente na comunidade médica, tendo sido corroborada pela testemunha, FF, mas também por CC, o médico que socorreu BB aquando da paragem cardiorrespiratória após a toma endovenosa de Aspegic, autor de alguns dos registos acima indicados sobre a alergia de BB ao Ibuprofeno; este afirmou peremptoriamente: “a um doente com asma nunca se prescreve Aspegic, Brufen, Aspirina ou outros derivados de ácido acetilsalicílico”. Mostra-se, nesta medida pouco relevante que não constasse do registo clínico de BB a alergia ao acetilsalicilato de lisina ou ASPEGIC; bastava que lá constasse, como constava, e por várias vezes, alergia ao Ibuprofeno, para que, numa leitura atenta, consciente e cientificamente informada desse registo, o médico afastasse a administração do ASPEGIC como antipirético, principalmente quando não era necessário em face da temperatura corporal registada, como afirma categoricamente o parecer médico-legal, e muito menos por via endovenosa, que, como é consensual entre todos, apenas tornou irreversível o processo anafiláctico desencadeado. ».
Não deixa de se assinalar que esta alegação da arguida também resulta dificilmente compreensível se se pensar que então, a ter–se como certo – como parece pretender a recorrente – que a mesma teria consultado aquele historial clínico e os correspondentes registos de anteriores intervenções médicas com o ofendido, então ter–se–ia de concluir que os teria ignorado, isto é, que teria desconsiderado conscientemente os registos das aludidas alergias medicamentosas. E isso, no final das contas e em bom rigor, não resultaria de todo em favor da arguida, mas, antes pelo contrário, só poderia agravar a caracterização típica da sua culpa.
Ainda nesta parte, algumas palavras em especial para a alegação da arguida/recorrente segundo a qual, tendo–se o tribunal a quo estribado, para assentar a prova dos factos ora impugnados, além do mais (do muito mais, aditamos nós) no depoimento da testemunha Dr. CC, médico que se encontrava no serviço de urgência na noite dos factos, sendo contudo que este último é «pessoa que [o tribunal] confundiu como sendo um dos médicos que teria já atendido o BB na urgência e que poderia a Arguida socorrer-se do mesmo porque este já conhecia o menor, o que não corresponde à verdade». Em sustento da sua alegação, recorta um trecho do depoimento em causa, prestado na sessão de audiência do dia 16/01/2023 (gravado cfr. ficheiro com a refª 20230116115659_), entre o minuto 34:49 e 35:09, e que transcreve assim : Defensor : O Dr. disse-me se eu percebi bem que não conhecia o BB. Testemunha : Não. Defensor : Eu estou a fazer-lhe est pergunta porque nos relatórios, eu presumo que será o Sr. dr. CC. Testemunha: Havia dois CC. É verdade que, percorrida a motivação da decisão sobre a matéria de facto em sede de Sentença, são reiteradas as referências a que a testemunha CC é um médico que, antes do dia dos factos, já teria consultado o menor/ofendido BB nos serviços do Centro de Saúde ..., sendo mesmo o autor de alguns dos correspondentes registos em que se dá nota da alergia como referenciado supra – assim, ali se consigna que a mãe do menor testemunhou que «[o] Dr. CC (médico que estava na urgência e que reanimou o BB) o atendia várias vezes na urgência do serviço de ...», que a arguida poderia ter tido «no limite, o cuidado de falar, ou com o colega que 2 meses antes registou a alergia ao ibuprofeno, e que, por casualidade, estava no mesmo Serviço, a trabalhar naquele dia – CC - ou com o adulto acompanhante do menor, que tinha 16 anos de idade, no caso a sua mãe», que lhe teria bastado «ver a inserção realizada pelo Dr. CC em 21/02/2017, pouco mais de 2 meses antes, para obrigatoriamente se ter outro cuidado com a medicação a ministrar ao menor», ou ainda que «encontrando-se no Serviço de Urgência a trabalhar o próprio Dr. CC, autor daquele registo clínico, bastaria chamá-lo ou contactá-lo por telefone», mais aditando que dos registos clínicos «constam efectivamente os registos da alergia ao ibuprofeno realizados pelo Dr. CC, em 23/11/2015 (fls. 100) e em 21/02/2017 (fls. 102), este último, pouco mais de 2 meses antes do dia fatídico». E não é menos verdade que, como vemos assinalado pelo tribunal a quo, a assistente MM, mãe do ofendido BB e que, desde sempre, o acompanhava às (inúmeras) consultas e deslocações do mesmo ao Centro de Saúde e ao serviços de Urgência quando necessário, como também sucedeu no dia dos factos, referiu, cerca do minuto 20’10” das suas declarações prestadas na sessão de audiência do dia 16/01/2024 (e gravavas cfr. ficheiro refª 20230116113356_) refere que «O Dr. CC via–o muitas vezes-… O Dr. CC estava lá, e eu estava convencida que ia ser ele que ia vê–lo…». Pois bem, ignora–se se a testemunha CC referiu quanto vem transcrito pela recorrente por alguma falha de memória (atento o tempo decorrido sobre os factos e a circunstância de ter deixado de prestar serviço naquela unidade). Mas o que é facto, e verdadeiramente relevante para quanto interessa no que tange à fundamentação da matéria de facto provada, é que efectivamente constam do histórico clínico do ofendido BB, e que estava disponível á arguida na ocasião dos factos, vários registos inseridos pelo médico “CC”, com o exacto teor reportado pelo tribunal a quo em sede de motivação – não sendo de todo crível que exista outro médico com os mesmos exactos nomes, tanto mais que se constata que, no mesmo historial, existem outros registos subscritos por um médico que apenas utiliza o nome “CC”. E, como se disse, é isso que verdadeiramente releva na perspectiva da presente sindicância da decisão sobre a matéria de facto, ou seja, a constatação da existência de tais registos, e que daquilo que os mesmos assinalavam – a alergia referenciada –, sendo que, em bom rigor, nenhum facto dado por provado depende ou assenta probatoriamente na consideração de que aquela testemunha era o médico que já conhecia o ofendido de consultas anteriores. Aliás, tal verdadeiramente só relevaria se se demonstrasse que a arguida teria efectivamente consultado aquele historial clínico, e tivesse ignorado essa potencial fonte de esclarecimento junto do seu colega. Porém, o que resulta do exercício de motivação é tão apenas uma hipótese que nem sequer se terá colocado na realidade, pois que tal consulta não existiu. Em suma, não é também por esta via que a recorrente logra impor qualquer alteração em qualquer dos pontos da matéria de facto provada – e impugnada.
Finalmente, insurge–se a arguida/recorrente contra a consideração, dada por assente no ponto 29. da matéria de facto provada, de que a arguida demonstra total falta de empatia para com o sofrimento, quer da vítima, quer da sua família. Contra tal consideração argumenta a recorrente que tem juízo crítico e não «fingiu emocionar-se» – como da Sentença consta –, sendo uma pessoa humana, «podendo não se expressar como o Tribunal entende que esta se devia manifestar mas, e como será facilmente entendido, ninguém fica indiferente a uma situação como a dos autos e muito menos a Arguida que tem filhos e já perdeu dois». Desde logo se diga que, por directa e imediata referência ao último trecho desta transcrita alegação (e conclusão) recursória, a recorrente apela a circunstância de facto que não encontra qualquer respaldo na matéria de facto provada, pelo que irreleva tal referenciação. No mais, em boa verdade a arguida não invoca qualquer meio de prova que invalide a caracterização aqui efectuada pelo tribunal a quo da postura da arguida face à ocorrência que é objecto dos autos. Não deixa de se dizer que é verdade que, em imediato sustento desta matéria fáctica, aduz–se na Sentença, em sede de motivação, que «Os pontos 28 e 29 resulta desde logo igualmente do teor do relatório social elaborado pela DGRSP e postura surreal assumida pela arguida no decurso da audiência de discussão e julgamento que só a imediação permite observar, diga-se de forma chocante.». E é também certo que esta instância de recurso, como logo de início se advertiu, está limitada na sindicância da percepção recolhida pelo tribunal de primeira instância a partir da prova que é produzida diante dos seus olhos, isto é, através das insubstituíveis ferramentas da imediação e da oralidade – remetendo–se para todas as considerações que de início ficaram já assinaladas a este propósito. Seja como for, verdade é também que o tribunal a quo não deixa de assinalar alguns factores directamente imanentes dessa imediação que, julga–se, permitem alicerçar com segurança o facto aqui em causa. Assim, ali se consigna em especial que as «declarações prestadas pela arguida reveladoras de uma total desresponsabilização quanto às circunstancias em que ocorreram os factos e às suas consequências», percorrendo depois vários pontos das declarações em causa dos quais retira tal conclusão, nomeadamente assinalando que «Quando questionada [a arguida] se alterou algum procedimento depois do sucedido e que teve o desfecho espelhado na acusação, diz que “deixou de atender crianças por serem todos uns mentirosos”, procurou ainda convencer o Tribunal que a reacção pode ter sido causada por outra medicação» ; ou ainda descrevendo que a assistente, mãe do ofendido, «quando no decurso do julgamento ouviu a descrição dos momentos vivenciados pelo filho até entrar em paragem cardiorrespiratória se emocionou profundamente, o que da parte da arguida apenas mereceu em esgar de incómodo, sem revelar qualquer empatia para com a dor daquela mãe e muito menos pela perda da vida do BB e do sofrimento por aquele vivenciado e bem descrito pela enfermeira e médico que o socorreram. É também isto que se retira das suas declarações quando afirma “deixei de atender crianças por serem todos uns mentirosos”.». Em suma, também nesta parte o exercício de impugnação efectuado é, claramente, estéril quanto à viabilidade de determinar a alteração deste concreto ponto da matéria de facto provada.
Aqui chegados, e para terminar nesta parte, reitera–se que o tribunal de recurso não vai rever a causa, e que a possibilidade de sindicância e escrutínio de matéria de facto pela Relação sofre acentuadas limitações e restrições. Ora, no presente caso, julga–se que a forma como o tribunal a quo valorou os elementos probatórios dos autos se integra num exercício de exame crítico criterioso e claro que não merece, neste segmento, qualquer censura, e esta instância de recurso, percorridos também, pela sua parte, os elementos de prova elencados, considera que a apreciação conjugada que o tribunal a quo faz dos mesmos se revela absolutamente coerente com as mais elementares regras da leges artis aplicáveis no presente caso, e ainda com aquelas da lógica e da básica experiência comum. Também constatamos, nesta ordem de ideias, que o julgador não emitiu nenhum dado de raciocínio que pudesse sugerir arbitrariedade ou preconceito na decisão, nem tão pouco subverteu, ocultou ou extrapolou o significado de nenhum dado probatório. Aliás, o Tribunal recorrido fundamentou a sua decisão de forma irrepreensível e fê-lo apoiado em considerações que teceu de forma consistente, abordando inclusive os aspectos que a recorrente invoca terem sido desconsiderados. Assim, os elementos e segmentos de prova que vêm referenciados pela recorrente não demonstram, como seria necessário, que se imponha decisão diversa relativamente a qualquer dos passos da fundamentação de facto da Sentença recorrida. A explicação do tribunal a quo é lógica, assenta em critérios de senso comum, está respaldada nos princípios da imediação, da oralidade e do contraditório que são característicos da audiência, revelando absoluto respeito do princípio de livre apreciação da prova previsto no art. 127º do Cód. de Processo Penal. E terá assim de prevalecer, sobre a divergente convicção da arguida acerca do sentido global da prova. O que decorre dos termos do recurso é exactamente que não agrada à recorrente a convicção a que chegou o tribunal em resultado da avaliação feita pelo mesmo da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, pretendendo afinal substituir a convicção do tribunal a quo pela sua, assente esta última numa valoração diversa dos aludidos elementos probatórios. Não é isso, contudo, que pode só por si sustentar uma sindicância que inquine o julgamento de facto recorrido. A recorrente poderá não concordar com a apreciação que nesta parte é feita pelo julgador – mas em momento algum a sua própria apreciação permite contrapor a decisão que foi adoptada pelo tribunal e os alicerces da mesma.
Não merece, pois, provimento a impugnação do julgamento da matéria de facto que vem efectuado pela arguida, improcedendo assim esta parte do seu recurso.
2. De saber se pela arguida foram preenchidos os pressupostos típicos do crime de homicídio por negligência pelo qual vem condenada.
Propugnava subsequentemente a arguida/recorrente AA pelo não preenchimento dos pressupostos típicos do crime pelo qual vem condenada – recorde–se, um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137º/1/2 do Cód. Penal..
Apreciando se dirá que não pode ter sucesso esta pretensão da recorrente. Sucintamente se dirá que a mesma assentava esta parte do respectivo recurso tão apenas em pressupostos que, como resulta da análise já acima efectuada, não se verificam. Tais pressupostos passavam, naturalmente, pela consideração como não demonstrados, em virtude da impugnação da decisão em sede de matéria de facto que vinha efectuada, dos factos que sustentariam o preenchimento dos elementos típicos objectivos e subjectivos dom aludido crime, o que resultaria, como expressivamente se aduz no ponto 45º das conclusões, recursórias, de «conforme se explanou, da prova produzida e dos factos dados como provados, em momento algum se comprova[r] que a Recorrente tenha agido em desconformidade com a legis Artis nem muito menos se provou que a causa da morte do BB adveio pelo ministrar do Aspegic». Ora, com relação a tais factos – assim como, realça–se, a toda a fundamentação de facto da sede de Sentença recorrida –, vimos já não merecer censura a decisão recorrida, devendo assim ser inteiramente mantida a decisão recorrida quanto a tal matéria. Donde, naturalmente, daí decorre mostrarem–se preenchidos pela arguida os pressupostos típicos objectivos, subjectivos e de culpa do crime em causa, tal como apreciados e decididos nos termos consignados em sede de enquadramento–jurídico–criminal em sede de Sentença, e que não suscitam questionamento.
Pelo que não merece censura a decisão de condenação da arguida pelos crime acima referenciado, devendo manter–se a mesma decisão condenatória, e improcedendo assim o recurso por si interposto também nesta parte.
3. De saber se deve ser determinada a alteração das consequências penais no caso, devendo a pena de prisão em que a arguido vem condenada ser declarada suspensa na respectiva execução.
Finalmente, dirige a recorrente a sua crítica à determinação das consequências penais da sua conduta criminalmente relevante apurada nos autos. Recorda–se que pelo tribunal a quo foi decidido, nesta sede, condenar a arguida como autora material do supra aludido crime de homicídio por negligência grosseira, na pena de 3 (três) anos de prisão, a qual, determinou ser de substituir, nos termos do art. 46º do Cód. Penal, pela pena de proibição do exercício de profissão de médica, quer nos serviços público ou privados do território nacional considerando o cometimento do crime no exercício daquela profissão, por um período de 4 (quatro) anos. Alega (e conclui) a recorrente que, ainda que se entendam preenchidos os pressupostos típicos do crime em causa, sempre a suspensão na sua execução da pena de prisão aplicada – ao invés da sua substituição – se revela eficaz e adequada às necessidades de ressocialização da arguida, sendo possível formular um juízo de prognose favorável em relação ao comportamento futuro da recorrente, e concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Argumenta a recorrente que o tribunal a quo apenas valorou os aspectos negativos no que concerne ás exigências de prevenção especial, «descurando todas as circunstâncias referentes à Arguida, como colaborar com o tribunal confessando os factos», estar social e profissionalmente inserida, e não ter antecedentes criminais. Descura assim que uma pena de prisão substituída pelo não exercício da sua profissão apenas terá na Recorrente efeitos negativos e nunca positivos, não havendo qualquer fundamento para a impedir do exercício da sua profissão o qual já o faz há mais de vinte anos. Propugna, pois, dever antes optar–se pela aplicação do regime de suspensão da execução da pena de prisão aplicada.
Vejamos. Começa por se fazer presente que, nos termos do art. 46º/1 do Cód. Penal, «A pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos é substituída por pena de proibição, por um período de 2 a 8 anos, do exercício de profissão, função ou atividade, públicas ou privadas, quando o crime tenha sido cometido pelo arguido no respetivo exercício, sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.». Estamos perante uma pena de substituição consagrada e introduzida no sistema penal português pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, sendo prevista então nº nº3 do art. 43º do Cód. Penal, e passando a estar estatuída no actual art. 46º do Cód. Penal por via da Lei 94/2017, de 23 de Agosto, que procedeu (além do mais) «À quadragésima quarta alteração ao Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro». No que tange aos termos da fixação concreta da pena de substituição aqui em causa se remete para uma ponderação sobre a respectiva suficiência para realizar as finalidades da punição. Assim, constata–se, por via de expressa consignação no acima transcrito nº1 do art. 46º do Cód. Penal, que na ponderação sobre a aplicabilidade desta pena substitutiva de «Proibição do exercício de profissão, função ou actividade», há a levar em linha de conta desde logo quanto estipula o art. 40º/1 do Cód. Penal, onde se previne que as finalidades das penas são a protecção de bens jurídicos e a socialização do agente do crime. Como, por todos, se resumiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17/12/2014 (proc. 52/14.6GTCBR.C1)[[10]], «A protecção dos bens jurídicos implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração). A prevenção geral negativa ou de intimidação da generalidade, apenas pode surgir como um efeito lateral da necessidade de tutela dos bens jurídicos. A reintegração do agente na sociedade está ligada á prevenção especial ou individual, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de actuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida.» O grau de exigência na protecção dos valores jurídicos que estejam em causa em determinada criminalização, deverá ser objecto de ponderação a partir de dois vectores complementares e indissociáveis : por um lado, e em termos gerais, do respectivo relevo em termos de hierarquia axiológica legal e constitucionalmente estipuladas, e por outro lado, em termos concretos, da intensidade do respectivo desrespeito em que a actuação ilícita do agente se traduziu. Trata–se de vectores que, naturalmente, já se mostram omnipresentes na própria definição a montante dos critérios de estatuição da punibilidade aplicável em cada tipo criminal, mas que mantém, agora em sede de determinação punitiva concreta, o seu relevo por via da sua devida densificação. Quanto às necessidades de ressocialização, na avaliação do grau da respectiva necessidade haverá de se atentar na medida em que os actos do agente são um reflexo quer da sua personalidade, quer das suas circunstâncias – e, estas, quer as específicas verificadas no momento do acto, quer as relativas ao seu percurso e situação de vida –, por forma a aquilatar a medida de exigência punitiva à salvaguarda de um eficaz processo de recondução do agente à conduta de normatividade que é exigência comunitária.
A questão, tal como colocada pela arguida/recorrente, situa–se, pois, no confronto entre a aplicação desta pena de substituição de proibição do exercício de profissão, função ou actividade, e a alternativa, que a medida concreta da pena de prisão que vem fixada também permite, de suspender a execução desta mesma pena de prisão nos termos do art. 50º do Cód. Penal.
No que tange a esta suspensão da pena de prisão, ora propugnada pela recorrente, já vimos que de acordo com o art. 40º/1 do Cód. Penal, as finalidades das penas são a protecção de bens jurídicos e a socialização do agente do crime, ademais se determinando no nº2 do mesmo artigo que a culpa do agente constitui o limite da punição concreta. Fixada ao agente dos factos, de acordo com os parâmetros previstos em especial nos arts. 70º e 71º do Cód. Penal, uma pena de prisão em medida concreta não superior a 5 anos, poderá a mesma ser suspensa na respectiva execução nos termos do disposto no art. 50º/1 do Cód. Penal, onde exactamente se prevê que «o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição ». Não são, pois, considerações de culpa que devem presidir na decisão sobre a suspensão da execução da pena de prisão – mas antes razões ligadas às exigências de prevenção geral e especial, sendo que na ponderação das segundas não pode nunca perder-se de vista a salvaguarda das primeiras. Como refere o Prof. Figueiredo Dias (in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, § 518), «pressuposto material de aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente ; que a simples censura do facto e a ameaça da pena – acompanhadas ou não da imposição de deveres e (ou) regras de conduta – bastarão para afastar o delinquente da criminalidade», acrescentando «para a formulação de um tal juízo – ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto –, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto. Por outro lado, há que ter em conta que a lei torna claro que, na formulação do prognóstico, o tribunal se reporta ao momento da decisão, não ao da prática do facto». Adverte ainda o mesmo Professor (ob. citada, § 520) que, apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável – à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização –, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime. (…) Estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto em causa». Conforme se pode ler no Acórdão do S.T.J. de 25-06-2003 (proc. 2131/03)[[11]], o instituto em causa “constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, de forte exigência no plano individual, particularmente adequada para, em certas circunstâncias e satisfazendo as exigências de prevenção geral, responder eficazmente a imposições de prevenção especial de socialização, ao permitir responder simultaneamente à satisfação das expectativas da comunidade na validade jurídica das normas violadas, e à socialização e integração do agente no respeito pelos valores do direito, através da advertência da condenação e da injunção que esta impõe para que o agente conduza a vida de acordo com os valores inscritos nas normas. (…) Não são, por outro lado, considerações de culpa que devem ser tomadas em conta, mas juízos prognósticos sobre o desempenho da personalidade do agente perante as condições da sua vida, o seu comportamento e as circunstâncias do facto, que permitam supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas». Para avaliar da necessidade da execução da pena de prisão importa, fundamentalmente, atender à personalidade do agente, conduta anterior e circunstâncias dos crimes, para aquilatar da probabilidade de a socialização poder ter êxito sem o cumprimento efectivo daquela pena – o que significa ser necessário que o julgador se convença que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro, evitará a repetição de condutas delituosas e ainda que a suspensão penal não coloque em causa de forma irremediável a necessária tutela dos bens jurídicos. Em suma, pressuposto material de aplicação da suspensão da pena é, pois, que o Tribunal, em face dos factos provados, conclua por um prognóstico favorável com relação ao seu comportamento - mas deve ter-se em consideração sempre em última análise que a suspensão da execução da pena não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção criminal, enquanto exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa e garantia de eficácia do ordenamento jurídico-penal. Ou seja, o pensamento ressocializador não esquece a necessidade de as soluções penais serem suficientemente dissuasoras da criminalidade, impondo-se, consequentemente, que a comunidade não encare a suspensão da execução da pena como um caso de impunidade, retirando toda a sua confiança ao sistema repressivo penal – para a aplicação da suspensão da execução da pena de prisão é necessário que a mesma não coloque irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização das expectativas comunitárias, ou seja, o sentimento de reprovação social do crime ou sentimento jurídico da comunidade. Donde, só quando que as exigências de prevenção fiquem asseguradas, a pena de prisão poderá ser suspensa na sua execução.
In casu (e contrariamente ao sugestionado pela recorrente), o tribunal a quo (como não poderia deixar de fazer) aborda expressamente a possibilidade de suspensão da pena de prisão fixada em concreto à arguida, concluindo, todavia, pela falência dos respectivos pressupostos, o que faz nos seguintes termos: « No caso vertente, a arguida não averba, antecedentes criminais. Já supra demonstrámos que tais penas privativas da liberdade, suspensas na sua execução só por si, não se revelam eficazes e adequadas às necessidades de ressocialização da arguida. Cremos, assim que a censura do facto e a ameaça da pena latentes numa pena de prisão suspensa na sua execução, já não serão suficientes e bastantes satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção da prática de novos crimes, nomeadamente, de novo crime desta natureza, atenta a falta de interiorização do desvalor da sua conduta e marcada ausência de qualquer juízo crítico no que respeita à sua actuação, e ao desfecho trágico que da sua actuação adveio para a vida de BB, pelo que se nos afigura não ser possível formular um juízo de prognose favorável em relação ao comportamento futuro da arguida, por ser de concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Assim, decide-se não suspender a execução da pena de 3 (três) anos de prisão». E concomitantemente veio a decidir pela aplicação da pena de proibição de exercício de profissão, função ou actividade em substituição da pena de prisão considerando o seguinte «Destinatários desta norma [art. 46º do Cód. Penal] são aqueles que tenham cometido crime no exercício da sua profissão, pública ou privada. Ademais esta regra só admitirá excepções quando em julgamento se conclua que as necessidades de prevenção geral e especial obstam à aplicação de tal pena de substituição. Ora como decorre dos factos provados apesar da sua conduta, a arguida volvidos cinco anos desde a prática dos factos, permanece sem lograr interiorizar o desvalor da sua actuação, denota total ausência de Juízo crítico pelo que só sendo proibida de exercer a sua profissão durante um período de tempo se logrará cumprir as necessidades de prevenção geral e especial que não deixam de ser elevadas, uma vez que a arguida, apesar de se ter demonstrado à saciedade a sua incúria, desleixo, leviandade espelhada permanece impávida e serena continuando a tentar imputar responsabilidades à vitima ao mesmo tempo que tenta desvirtuar os depoimentos da enfermeira e do médico CC. Numa derradeira oportunidade de evitar o cumprimento de uma pena de prisão efectiva, a pena de substituição de proibição do exercício da sua profissão por período não despiciendo ligeiramente acima do meio da moldura da pena de substituição prevista, contribuirá para a interiorização por banda da arguida da necessidade de observar cuidadosamente todos os procedimentos aptos a prevenir situações como a que nos presentes autos determinaram o fim da vida de um jovem de 16 anos. Atenta a moldura da proibição (1 a 5 anos na redacção da Lei penal aplicável) e o supra exposto decide-se substituir a pena de 3 anos de prisão por 4 (quatro) anos de proibição de exercer a profissão de médica quer nos serviços públicos, quer nos serviços privados de todo o território nacional nos termos do art.º 46 n.º1 do CP. ».
E crê–se que, decidindo nestes moldes, bem resolveu a primeira instância esta ponderação sobre as consequências penais a aplicar em concreto à arguida no presente caso. Na verdade, sufragam–se as considerações exaradas pelo tribunal a quo no que tange à insuficiente viabilidade de optar pela suspensão da pena de prisão, particularmente atentando ao grau a que aqui se colocam as exigências de prevenção geral e especial. Se é verdade que a obrigação médica é, regra geral, uma obrigação de meios e não de resultados, as suas falhas comprovadas deverão ser sancionadas desde logo por evidentes motivos de ordem pública, pois que é de uma questão de saúde pública, valor e objectivo constitucionalmente protegido, que se trata : todo o doente tem o direito de ser tratado e bem tratado pelos médicos a que recorre – daí que o direito penal não possa coibir-se de pedir inteira responsabilidade àqueles que, ainda que por mera imprudência e descuido, deixam de cumprir com as exigentes e transcendentes obrigações a que estão vinculados. Não pode, na verdade, perder–se aqui de vista, no que em particular respeita aos deveres de actuação que incidem em especial sobre qualquer médico, que desde logo, o art. 64º/1/2/a) da Constituição da República visa assegurar a todos os cidadãos o direito à saúde e impõe o dever de a defender e promover, sendo que tal direito fundamental é realizado, em primeira análise, através de um sistema nacional de saúde universal e geral – sendo que, naturalmente, tal sistema se traduz materialmente na actividade dos seus médicos. Depois, também o Estatuto da Ordem dos Médicos (aprovado pelo D.L. 282/77, de 5 de Julho) prevê, no seu Art. 7º/1/b), ser dever dos médicos cumprir as normas deontológicas que regem o exercício da profissão médica. Ora, exactamente o Código Deontológico dos Médicos, aprovado pelo Regulamento nº 707/2016, de 21 de Julho (e que visa sistematizar o conjunto de regras de natureza ética que, com carácter de permanência, o médico deve observar e em que se deve inspirar no exercício da sua actividade profissional – cfr. art. 1º) prevê, no seu art. 4º/1, que o médico deve exercer a sua profissão “com o maior respeito pelo direito à saúde dos doentes e da comunidade”, completando o Art. 5º que “O médico que aceite o encargo ou tenha o dever de atender um doente obriga-se à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, agindo sempre com correção e delicadeza, no intuito de promover ou restituir a saúde, conservar a vida e a sua qualidade, suavizar os sofrimentos, nomeadamente nos doentes sem esperança de cura ou em fase terminal, no pleno respeito pela dignidade do ser humano.”. Estamos, ademais, perante exigências directamente reportadas à dignificação e ao interesse da própria actividade e classe médica, pois que a punição adequada das práticas ilícitas detectadas no respectivo exercício deverá sempre apurar o seu sentido de responsabilidade e estimulá-la a progredir, esmerando-se na tentativa de evitar o erro evitável. No caso, o desrespeito da arguida pelo cumprimento daquilo que poderá designar–se de actividade médica normal, traduziu–se desde logo numa ostensiva e flagrante violação essencialmente da primeira das quatro fases essenciais e sucessivas em que a mesma poderá cindir–se – isto é, e seguindo-se aqui a enunciação da Procuradora Maria de Fátima Galhardas, no seu artigo denominado “Negligência médica no Código Penal Revisto”, pub. na revista “Sub Judice”, nº11 de Janeiro/Junho de 1996, a pág. 163 e segs., a fase da anamnese, ou seja, da ponderação do historial clínico do doente, e que tem a ver com o dever de preparação e informação prévio. Porém, e por isso mesmo, teve trágicas repercussões na falência da adequação do cumprimento das restantes fases do procedimento clinico, isto é – e seguindo a mesma proposta –, a do diagnóstico (que parte da recolha de todos os dados anamnésicos, da interpretação dos sintomas clínicos, do uso oportuno dos adequados meios complementares de diagnóstico, o conhecimento dos diversos quadros nosográficos – que descrevem, diferenciam e classificam as doenças –, esquematizados pela patologia e suas múltiplas variantes, de acordo com a experiência clínica), do prognóstico (a previsão, na medida do possível, sobre o decurso e o desenlace previsível da doença) e da execução do tratamento (a aplicação concreta da terapia escolhida, com a perícia e o cuidado necessários a alcançar, ou pelo menos potenciar, o fim médico visado). Os valores de natureza pessoal que, por tal via, a arguida veio a violar revestem transcendente relevo social e comunitário, circunstância que coloca desde logo a fasquia da demanda de tutela da ordem jurídica e das exigências de prevenção geral, num patamar elevadíssimo. Também em sede de avaliação da personalidade da arguida e no que isso revela de preponderante em termos de ponderação das exigências de prevenção a nível individual, o juízo não se mostra de todo favorável. A recorrente surge nesta fase dos autos, e considerando toda a matéria de facto tida como assente como alguém que, tendo adoptado a conduta extremamente censurável que adoptou e mesmo depois de todo o tempo decorrido sobre os factos, não revelou uma atitude, um gesto dos quais pudesse extrair–se a interiorização de qualquer grau de reprovabilidade dessa mesma conduta. E não o fez a montante do julgamento, nem o fez em audiência. Como de forma pertinente se assinala na sentença recorrida, decorridos – à data do julgamento – mais quase seis anos sobre os factos, a postura da arguida é a de absolutas desresponsabilização e desconsideração pela violação dos seus deveres detectada nos factos, não assumindo em qualquer grau que da sua parte tenha existido qualquer comportamento sequer indevido – que, inclusive, reverte em certa medida ao próprio ofendido –, assim denotando não haver interiorizado o desvalor da sua conduta. O que, tudo, inquina à partida o juízo de prognose sobre o seu comportamento futuro, tornando o ‘risco’ que, nesta perspectiva, sempre envolve a ponderação pelo tribunal da suspensão da pena de prisão (e ao qual a certo passo alude a decisão recorrida), num risco que não se revela de todo ‘prudente’.
Assim como, e perante todo esta configuração das circunstâncias concretas do caso, também não se crê os factores invocados pela recorrente em abono do peticionado tenham a virtualidade de atenuar aquelas exigências por forma a permitir ponderar da aplicação da suspensão da pena. Assim, e desde logo, apela a recorrente a uma circunstância que não se verifica sequer de todo, qual seja a alegação de que a arguida terá «colaborado com o tribunal, confessando os factos». O que se verificou foi o oposto, como sobressai da decisão recorrida, e com efeitos diametralmente opostos aos alegados no que à avaliação do comportamento da arguida e da sua personalidade diz respeito. A falta de antecedentes criminais, sendo aspecto relevante, reveste um peso acentuadamente relativo em face da gravidade da conduta que aqui se detecta. De igual modo, sendo pertinente assinalar a inserção familiar, social e profissional da arguida, a verdade é que tal aspecto não se configura, de todo, como diverso ou mais favorável à prevenção de reiteração futura do que quanto se verificava à data dos factos.
Concluindo, estamos perante a prática pela arguida de ilícito em que a ofensa a valores jurídicos de ordem pessoal e comunitária assumem acentuadíssimo relevo, e, como já sobejamente se assinalou. As circunstâncias da sua actuação, e principalmente a avaliação da personalidade denotada pela arguida na mesma e na avaliação que dos mesmos a arguida efectua, fazem com que, muito claramente, as exigências de prevenção (geral e especial) se devam ter por elevadas ao ponto de se sobrepor a necessidade de tutela das mesmas a qualquer prognóstico favorável que pudesse ser feito relativamente comportamento futuro da arguida. Na verdade, a resposta que o ordenamento jurídico exige por forma a tutelar todas estas circunstâncias, impõe que o sistema de justiça penal saiba reagir-lhes de forma incisiva, de maneira a obviar ou pelo menos a não se permitir qualquer forma de pactuação, sequer por omissão, no que à prevenção de tão nefasto tipo de conduta diz respeito. Donde entender–se que não se mostram reunidos aqui os necessários requisitos que possibilitam a suspensão da pena de prisão da arguida, e que se mostram previstos no art. 50º do Cód. Penal.
Outrossim, julga–se que a pena de substituição aplicada, obstando ainda à efectiva privação da liberdade da arguida, permite fazer incidir cirurgicamente a censura penal sobre a essência dos valores jurídico–penais aqui desrespeitados pela conduta da arguida, satisfazendo toda a amplitude das exigências punitivas – que, passando pela ressocialização, não permitem contudo descurar, como já se viu, a protecção daqueles. Fazendo aqui presentes as considerações expostas no parecer do Digno PGA junto deste Tribunal da Relação, «Não se nega que a pena assim imposta possa ser interpretada pela ora Recorrente como “demasiado severa”, obrigando-a mesmo a procurar diferente forma de prover às respectivas necessidades, mas os elementos disponíveis nos autos apontam para que a mesma se apresenta como a solução mais adequada – dir-se-ia mesmo, quase imposta – atenta a devastadora dimensão das funestas consequências que advieram da respectiva negligência, a qual é tão mais difícil de compreender quanto é certo que todos os elementos disponíveis nos autos demonstram, de forma que se tem como inelutável, que os registos clínicos relativos ao infausto BB lhe estarim disponíveis e “à distância de um clique”…», ali se aditando ainda, e a propósito da específica alegação recursória de que «A Arguida está reintegrada e socializada, esgotou-se assim o fim da prisão efetiva, não havendo qualquer fundamento para a impedir do exercício da sua profissão o qual já o faz há mais de vinte anos» que «A proceder tal linha de raciocínio, penas de substituição como a alcançada pelo tribunal a quo não poderiam ser aplicadas a qualquer cidadão que se mostre socialmente inserido, com uma vida aparentemente (profissional e extraprofissional) “normal”, do que resultaria que a solução legalmente consagrada no artigo 46.º do Código Penal passaria a ter um efeito meramente decorativo, não sendo passível de aplicação prática mesmo em casos – como o dos presentes autos – em que a conduta criminalmente relevante se registou no pleno exercício de profissão e com resultados tão nefastos como a morte de um jovem com apenas 16 (dezasseis) anos de vida!». São considerações que se subscrevem por inteiro nesta sede.
Improcede, assim o recurso, mantendo–se a decisão recorrida que determinou a substituição da pena de prisão em que a arguida/recorrente foi condenada pela pena de proibição de exercício de profissão, função ou actividade, e nos termos que vêm fixados.
* * III. DECISÃO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em não conceder provimento ao recurso interposto pela arguida AA e, em consequência, confirmar integralmente a decisão recorrida.
Custas da responsabilidade do recorrente, fixando-se em 5 U.C.´s a taxa de justiça (cfr. art. 513º do Cód. de Processo Penal e 8º/9 do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último).
* Porto, 5 de Junho de 2024 Pedro Afonso Lucas Paulo Costa Paula Natércia Rocha (Texto elaborado pelo primeiro signatário como relator, e revisto integralmente pelos subscritores – sendo as respectivas assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo da primeira página) ___________ |