Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | PEDRO AFONSO LUCAS | ||
| Descritores: | BURLA QUALIFICADA BURLA COMO MODO DE VIDA BURLA PRATICADA VIA INTERNET | ||
| Nº do Documento: | RP20251112971/21.3GDVFR.P1 | ||
| Data do Acordão: | 11/12/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | CONFERÊNCIA | ||
| Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO DO ARGUIDO | ||
| Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - Para o preenchimento da circunstância qualificativa de o agente «f[a]zer da burla modo de vida», prevista na alínea b) do nº2 do art. 218º do Cód. Penal, não se exige que a burla levada a cabo no caso concreto seja perpetrada por quem nada mais faz do que burlar. II - O agente dos factos pode ter uma profissão socialmente reconhecida como normal e adequada, que nem por isso deixará de incorrer nesta qualificativa, se a série de burlas que leve a cabo no seu percurso de vida for de tal ordem que nela se reconheça um processo de realizar proventos destinados a contribuir para a sustentação da sua vida. III - A forma de actuação do arguido reveste-se simultaneamente de assinalável audácia e de perigosa facilidade quando, recorrendo a métodos acessíveis a qualquer pessoa e actuando em ambiente internet (forma especialmente susceptível de iludir a sua própria identidade e assim os ofendidos), consegue desenvolver uma actividade cuidadosamente urdida e de difícil detecção. IV - Os crimes praticados com recurso à utilização do ambiente internet, vêm sendo cada vez mais frequentes, sendo que a sua danosidade e a dificuldade muitas vezes experimentada pelas autoridades na oportuna descoberta e detenção dos seus agentes, faz com que com que as exigências de prevenção geral se apresentem, relativamente a tais condutas, com grande intensidade. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo nº 971/21.3GDVFR.P1
Tribunal de origem: Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira - Juiz 2
Acordam em conferência os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO
No âmbito do processo comum (tribunal singular) nº 971/21.3GDVFR que corre termos no Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira - Juiz 2, em 14/05/2025 foi proferida Sentença, cujo dispositivo é do seguinte teor: « IV. DISPOSITIVO Nestes termos e pelos fundamentos acima expostos, o Tribunal decide: a) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 2, alínea b) ambos do Código Penal, como reincidente, na pena de 3 (três) anos e 8 (oito) meses de prisão. b) Condenar o arguido AA, no pagamento ao Estado do montante de €700,00 (setecentos euros) abrigo do disposto no artigo 110º, n.º 1, alínea b) e n.º 4, do Código Penal. c) Condenar o arguido nas custas criminais, fixando a taxa de justiça que se fixa em 3 UC de taxa de justiça, nos termos do disposto no artigo e 513.º e do Código de Processo Penal e artigos 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e da Tabela III anexa ao mesmo. Notifique, e deposite (artigo 372.º, n.º 5 do Código de Processo Penal). »
Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 18/06/2025, o arguido AA, extraindo da motivação as seguintes conclusões: 1. Por sentença proferida nos presentes autos, foi o arguido condenado, pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelo artigo 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 2, alínea b) ambos do Código Penal, como reincidente, na pena de 3 (três) anos e 8 (oito) meses de prisão e ainda condenado no pagamento ao Estado do montante de €700,00 (setecentos euros) abrigo do disposto no artigo 110º, n.º 1, alínea b) e n.º 4, do Código Penal, 2. O recurso, necessariamente circunscrito, confina-se às questões jurídico-penais claramente delimitadas pelo recorrente nas Alegações da respetiva peça recursória e que são os seguintes: a) medida da pena única; b) suspensão da execução da pena única; 3. O Tribunal A Quo não atendeu à informação constante do Relatório Social relativamente ao arguido. 4. Resulta do Relatório Social do arguido junto aos autos que este “Em termos laborais, o arguido, habilitado com o 6º ano de escolaridade, manteve atividade laboral até dezembro de 2021, por conta própria, na área de mecânica auto, área na qual obteve formação profissional, além da realização de outros trabalhos, nomeadamente compra e venda de peças de automóveis e serviços pontuais de mudanças. Segundo o arguido, estas atividades a par do trabalho da companheira, como empresária na área da indústria de vestuário, permitiram que obtivessem rendimentos suficientes para fazer face às despesas de forma equilibrada. 5. Assim, resulta claro que o arguido tinha meios próprios de subsistência, nomeadamente através do exercicio de uma atividade remunerada, que lhe permitiam obter o seu sustento, necessários a prover às suas necessidades diárias. 6. Logo, não pode o Tribunal à quo concluir que o arguido faça da sua atividade criminosa um modo de vida. 7. A questão agora invocada de erro de julgamento quanto à matéria de facto provada para a decisão assume a maior importância e relevo porquanto são as condições pessoais do arguido que influem ao nível da moldura da pena aplicada em concreto ao arguido nos termos do previsto nos artigos 71º, Nº 2, alínea d) do Código Penal. 8. Pelo que o Tribunal à quo deveria ter condenado o arguido pela prática de um crime de burla simples, p.p. pelo artigo 217º, Nº 1 do CP. 9. Nos termos do artigo 217º, Nº1 do CP a moldura penal aplicável pode consistir numa pena de multa ou pena de prisão até três anos. 10. A aplicação ao arguido de uma pena de multa seria suficiente para realizar as necessidades de prevenção quer geral quer especial em relação ao arguido. 11. A pena aplicada pelo Tribunal ao arguido é desproporcional, excessiva, injusta, violando o disposto nos artigos 40º, 50º, e 71º todos do Código Penal. 12. Adequado e justo seria condenar o arguido a uma pena de multa ou, caso assim não se entenda, condenar numa pena de prisão próxima do seu limite minimo, determinando a suspensão da sua execução com regime de prova e vigilância a tutelar pelos serviços de reinserção social. 13. Por tal, a pena única aplicada de três anos e oito meses de prisão efetiva, salvo o devido respeito e melhor entendimento, atento o carácter familiar do arguido, seu percurso de vida e estar socialmente bem integrado, não é a melhor forma de reintegração e recuperação social do arguido, é desproporcional à factualidade dada como provada. 14. Ao condenar o arguido nos termos em que fez, o Tribunal à quo violou assim os critérios contidos nas disposições conjugadas dos art. 40º, 70º, 71º e 77º, 218º, Nº 2, al. b) todos do Código Penal. 15. A este propósito da medida da pena, conforme defende o Prof. Germano Marques da Silva [Direito Penal Português, 3, pág. 130], “que a pena será estabelecida com base na intensidade ou grau de culpabilidade (...). Mas, para além da função repressiva medida pela culpabilidade, a pena deverá também cumprir finalidades preventivas de protecção do bem jurídico e de integração do agente na sociedade. Vale dizer que a pena deverá desencorajar ou intimidar aqueles que pretendem iniciar-se na prática delituosa e deverá ressocializar o delinquente”. 16. Bem como neste sentido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça: ”II- Culpa e prevenção constituem o binómio que preside à determinação da medida da pena, art. 71.º, n.º 1, do CP. A culpa como expressão da responsabilidade individual do agente pelo facto, fundada na existência de liberdade de decisão do ser humano e na vinculação da pessoa aos valores juridicamente protegidos (dever de observância da norma jurídica), é o fundamento ético da pena e, como tal, seu limite inultrapassável – art. 40.º, n.º 2, do CP. Ou seja, a pena é determinada dentro de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando considerações de prevenção especial, In www.dgsi.pt, Proc. nº 315/11.2JELSB.E1.S1, 1-7-2015.” 17. A douta sentença proferida pelo Tribunal à quo não ponderou todas as circunstâncias que pesavam a favor e contra o arguido bem como o Tribunal a quo não teve em consideração, para a escolha e medida da pena aplicada ao arguido, todos os critérios referidos nos arts.40º, 50º, 70º e 71º, do Código Penal, conjugados com os factos que se provaram em audiência de julgamento, mostrando-se a pena de três anos e oito meses de prisão efetiva desfasada da culpa do arguido, esquecendo a sua ressocialização. 18. O Tribunal “a quo” não suspendeu a execução a pena de prisão aplicada ao arguido, o que não se concede, pois, nos termos do artigo 50º, nº1, do Código Penal: ”1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. 19. Assim o Tribunal “a quo” ao condenar da forma como condenou, salvo o devido respeito, que é muito, violou direitos do arguido, bem como violou disposições de Direito Europeu, Constitucional e Criminal. 20. Devendo a Douta sentença recorrida ser substituída por outra que condene o arguido pela prática de um crime de burla simples e, em consequência, condene o arguido numa pena de multa ou, caso assim não entenda, condene o arguido numa pena de prisão próxima do minimo legal suspensa na sua execução, fazendo assim um juízo de prognose mais favorável à ressocialização do arguido. 21. Redução apoiada ainda no princípio da proporcionalidade da pena concreta, 22. Assim, a aplicação de uma pena de prisão suspensa, ainda que sujeita ao cumprimento de injunções, representará para o arguido reprovação social suficiente, atento o meio familiar e social em que o mesmo está integrado. 23. Na determinação da pena concreta a aplicar ao arguido além da necessidade de prevenção geral é necessário aferir da personalidade do autor e aferir se os fatos imputados são expressão de uma inclinação criminosa ou só constituem delitos ocasionais sem relação entre si. Necessariamente nesta pena concreta a aplicar ao arguido ter-se-á de ter em consideração o efeito da pena na vida futura do arguido, tudo nos termos do artigo 40º do Código Penal. 24. Sendo que a pena concreta a aplicar ao arguido terá necessariamente como escopo, também, a reintegração do arguido. 25. Assim, por tudo o exposto sempre seria de aplicar ao arguido pelo cometimento do crime de de burla simples uma pena de multa ou caso assim não se entendesse, uma prisão mais próxima do seu limite minimo. 26. A finalidade politico-criminal da suspensão da execução da pena de prisão é a prevenção da reincidência. 27. Pressuposto para que o Tribunal possa aplicar a dita suspensão da pena de prisão são a personalidade do arguido, nas suas condições de vida, no seu registo criminal, na postura perante os crimes cometidos e o resultado destes e ainda no comportamento adotado posteriormente, possa prever, fundamentadamente, que a condenação e a ameaça de execução da prisão efetiva, são suficientes para que o arguido adeque a sua conduta de modo a respeitar o direito. 28. Assim, o pressuposto da medida da pena aplicada ao agente não seja superior a cinco anos de prisão (art. 50º, nº 1, do C. Penal), e a possibilidade de o tribunal concluir pela formulação de um juízo de prognose favorável ao agente, no sentido de que, atenta a sua personalidade, as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime e as circunstâncias deste, a simples censura do facto e a ameaça da prisão, realizarão de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição (art. 50º, nºs 1 e 2, do C. Penal). 29. Necessariamente se torna, para determinar a medida concreta da pena a aplicar, ter em consideração a natureza e gravidade dos crimes do caso concreto, aferir da conduta do arguido quer antes quer depois da prática criminosa, para concluir se foi um facto esporádico e isolado na sua vida ou se é reiterado, 30. Assim, o douto Acordão recorrido violou o disposto nos artigos 40º, 50º. 70º, 71º, 77º, 218º todos do Código penal e artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.
O recurso foi admitido.
A este recurso respondeu o Ministério Público, concluindo da seguinte forma: 1. Para se considerar verificada a qualificativa “burla enquanto modo de vida”, é irrelevante que o arguido exerça ou não uma actividade profissional remunerada. 2. Não se exige sequer qualquer condenação anterior, sendo suficiente a prova de que o agente se vem dedicando à prática de burlas como seu modo de vida, retirando créditos essenciais desta sua atitude penalmente relevante. 3. Assim, resultando dos autos que, para além das condenações já sofridas pela prática de crimes de burla, o número de crimes desta natureza por si praticados e que são objectos destes autos, aliada à circunstância de o modus operandi ser sempre o mesmo, não pode ter outro sentido de que a actividade da prática de burlas constituía um modo de vida, um modo de o arguido prover ao seu sustento, tem-se por verificada tal qualificativa. 4. Na determinação da medida da pena, teve o Tribunal a quo em consideração o disposto no artigo 71º do Código Penal, 5. Atendendo às condenações já anteriormente sofridas pelo arguido, a pena a aplicar ao mesmo nestes autos, terá de ter um efeito dissuasor para prevenir futuras infracções, consubstanciando–se como um verdadeiro esforço que ao arguido se impõe, sob pena da punição perder o seu carácter punitivo e ser quase como uma “absolvição encapotada”, e não surtir o efeito pretendido pela lei, aos olhos do agente e da comunidade em geral. 6. Ora, in casu, a aplicação ao arguido de uma mera pena de multa ou de substituição da prisão por multa, ou de pena de prisão suspensa na sua execução, não realizaria de forma adequada os fins das penas, porquanto tal decisão não ofereceria um nível satisfatório de estabilização contrafáctica das expectativas da comunidade na validade e vigência das normas infringidas — prevenção geral de integração —, bem como da reintegração do agente na comunidade — prevenção especial de reintegração. 7. Assim, e porque o arguido revela uma personalidade contrária ao direito, outra não deveria ter sido a decisão que se encontra plasmada na sentença sub iudice, com a qual concordamos inteiramente.
Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no parecer que emitiu propugna pela improcedência do recurso, referenciando em síntese «Acompanha-se a Resposta ao recurso elaborada pela I. Colega na 1ª instância».
Foi cumprido o disposto no artigo 417º/2 do Cód. de Processo Penal, nada vindo a ser acrescentado no processo. * Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir. * II. APRECIAÇÃO DO RECURSO
O objecto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, devendo assim a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como é designadamente o caso das nulidades insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento (previstas expressamente no art. 119º do Cód. de Processo Penal e noutras disposições dispersas do mesmo código), ou dos vícios previstos no art. 379º ou no art. 410º/2, ambos do Cód. de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Acórdão do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995), podendo o recurso igualmente ter como fundamento a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada, cfr. art. 410º/3 do Cód. de Processo Penal. São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – cfr. arts. 403º, 412º e 417º do Cód. de Processo Penal e, entre outros, Acórdãos do S.T.J. de 29/01/2015 (proc. 91/14.7YFLSB.S1)[[1]], e de 30/06/2016 (proc. 370/13.0PEVFX.L1.S1)[[2]]. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, ‘Curso de Processo Penal’, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».
A esta luz, as questões a conhecer no âmbito do presente acórdão são as de apreciar e decidir sobre: 1. saber se a Sentença recorrida se mostra afectada de nulidade por insuficiência de fundamentação de facto, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 374º/2 e 379º/1/a) do Cód. de Processo Penal ; 2. saber se pelo arguido se mostram preenchidos os pressupostos típicos do crime de burla qualificada por referência ao art. 218º/2/b) do Cód. Penal, e pelo qual vem condenado ; 3. saber se deve ser determinada a alteração das consequências penais dos factos assentes – no que tange quer à natureza da pena aplicada, quer, subsidiariamente, à medida concreta fixada para a pena de prisão cominada ; quer ainda no que respeita à não suspensão da mesma. * Comecemos por fazer aqui presente o teor da decisão recorrida, na parte da mesma que releva para a presente decisão.
a. É a seguinte a matéria de facto considerada pelo tribunal de 1ª Instância: «1.1. Factos Provados Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos: - Constantes da acusação pública: 1. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 25 de novembro de 2021, o arguido AA publicitou para venda na rede social do Facebook, na secção do “...”, um anúncio com os seguintes dizeres: “... só às peças”. 2. Em 25 de novembro de 2021, cerca das 00h09, o ofendido Clube ..., na pessoa do seu Presidente BB viu tal anúncio e contactou com o arguido AA, pela referida rede social com intenção de saber se o motor estaria disponível e qual o valor do mesmo. 3. O arguido AA respondeu ao ofendido solicitando-lhe o seu contacto telefónico, o que este último facultou. 4. Durante o dia, o arguido AA contactou telefonicamente com o ofendido e acordou com este a venda de um motor, pelo valor de € 700,00 (setecentos euros). 5. Assim, estipularam que o ofendido transferia o valor de € 700,00 (setecentos euros) para a conta aberta no Banco 1..., com o IBAN n.º ..., titulada pelo arguido AA e por CC, para pagamento do dito motor e que no dia seguinte ao pagamento o arguido enviaria através de uma transportadora o motor ao ofendido. 6. O arguido AA forneceu o seu IBAN ao ofendido, tendo para esse efeito enviado uma mensagem através do WhatsApp para o contacto telefónico do ofendido. 7. Convicto do negócio celebrado e com o propósito de cumprir o acordado, no dia 27 de novembro de 2021, o ofendido efetuou a transferência bancária da quantia de €700,00 (setecentos euros) para a conta bancária com o IBAN indicado em 5. e co-titulada pelo arguido AA. 8. Sucede que o arguido AA, até à data, não enviou o motor nos termos acordados, tampouco devolveu o montante recebido, deixando de atender as chamadas que o ofendido lhe fez depois de efetuado aquele pagamento. 9. O arguido AA sabia que, ao colocar um anúncio de venda na secção “...” da rede social Facebook, ali se exibindo como vendedor de várias peças do “...”, como se de para venda se tratasse e ao encetar negociações com ofendido para a aquisição de um motor, criava neste a convicção de que o negócio se iria concretizar nos termos anunciados e depois acordados. 10. Mais sabia o arguido AA que a publicação daquele anúncio, no local e pela forma como foi feito, era um meio idóneo a criar convicção no ofendido da concretização do negócio, o que levou a que este efetuasse o pagamento de 700,00 (setecentos euros), provocando-lhe desta forma um empobrecimento pelo menos em igual valor. 11. Ao agir da forma descrita o arguido AA teve com o propósito alcançar para si benefícios e enriquecimento que sabia não lhe serem devidos e como tal ilegítimos, o que conseguiu, enriquecendo o seu património no montante de 700,00 (setecentos euros) à custa do empobrecimento do ofendido Clube ..., que se viu privado deste valor. 12. Nunca foi intenção do arguido AA entregar o objeto cuja venda anunciou, como este bem sabia. 13. O arguido AA agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. 14. O arguido AA, em cumprimento de um plano por si previamente delineado e pensado como forma de obter uma fonte habitual de rendimentos, aquando e com a prática dos factos supra, dedicava-se, com regularidade e de forma reiterada, a praticar factos ilícitos como os acima descritos, obtendo por essa via um rendimento regular, com o qual provinha à sua subsistência. 15. Efetivamente, o arguido não declarou rendimentos auferidos por conta de outrem, nem lhe foram processados subsídios de doença e de desemprego ou consta como pensionista pelo Segurança Social ou CGA, pelo que não lhes são conhecidos rendimentos. 16. O arguido AA, pelo menos desde o ano de 2008, tem vindo a dedicar-se à prática reiterada de crimes de burla, dentro do circunstancialismo acima referido, usando essa mesma atividade para o seu sustento. 17. O arguido AA atuou nesses moldes, de forma habitual e regular, como forma de subsistência do mesmo e/ou manutenção da sua qualidade de vida e além de outras condenações por crimes diversos, já sofreu também as seguintes condenações: a. O arguido foi condenado no âmbito do processo n.º ..., acórdão já transitado em julgado em 16/08/2016, pela prática em 2008, de um crime de burla simples, p.p. pelo artigo 217.º n.º 1 do CP, na pena de 6 meses de prisão efetiva. b. O arguido foi condenado no âmbito do processo n.º ..., por sentença já transitada em julgado em 08/07/2016, pela prática, em 03/04/2014, de um crime de burla simples, p.p. pelo artigo 217.º n.º 1 do CP na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de €5,00; c. O arguido foi condenado no âmbito do processo n.º ..., por sentença já transitada em julgado em 07/01/2019, pela prática, em 08/03/2016, de um crime de burla simples, p.p. pelo artigo 217.º do CP na pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano; d. O arguido foi condenado no âmbito do processo n.º ..., por sentença já transitada em julgado em 03/04/2019, pela prática, em 03/10/2018, de um crime de burla simples, p.p. pelo artigo 217.º n.º 1 do CP na pena de 1 ano de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano; e. O arguido foi condenado no âmbito do processo n.º ..., por sentença já transitada em julgado em 30/09/2021, pela prática, em 29/05/2018, de um crime de burla simples, p.p. pelo artigo 217.º n.º 1 do CP na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano. f. O arguido foi condenado no âmbito do processo n.º ..., por sentença já transitada em julgado em 12/11/2021, pela prática, em 07/03/2019, de um crime de burla qualificada, p.p. pelo artigo 217.º n.º 1 e 218.º n.º 2 al. b) do CP, na pena de 3 anos e 3 meses de prisão efetiva. g. O arguido foi condenado no âmbito do processo n.º ..., por sentença já transitada em julgado em 02/02/2022, pela prática, em março de 2019, de um crime de burla simples, p.p. pelo artigo 217.º n.º 1 do CP, na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de um ano. h. O arguido foi condenado no âmbito do processo n.º ..., por sentença já transitada em julgado em 21/03/2022, pela prática, em 23/01/2020, de um crime de burla simples, p.p. pelo artigo 217.º n.º 1 do CP, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, suspensa com regime de prova, pelo período de um ano e 2 meses. i. O arguido foi condenado no âmbito do processo n.º ..., por sentença já transitada em julgado em 19/04/2022, pela prática, em 10/11/2020, de um crime de burla qualificada, p.p. pelo artigo 217.º n.º 1 e 218.º n.º 2 al. b) do CP, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão efetiva. j. O arguido foi condenado no âmbito do processo n.º ..., por sentença já transitada em julgado em 29/04/2022, pela prática, em 26/06/2019, de um crime de burla simples, p.p. pelo artigo 217.º n.º 1 do CP, na pena de 7 meses de prisão efetiva. k. O arguido foi condenado no âmbito do processo n.º ..., por sentença já transitada em julgado em 03/05/2022, pela prática, em 25/05/2020, de dois crimes de burla simples, p.p. pelo artigo 217.º n.º 1 do CP, na pena única de 2 anos e 3 meses de prisão efetiva. l. O arguido foi condenado no âmbito do processo n.º ..., por sentença já transitada em julgado em 13/05/2022, pela prática, em 26/02/2020, de um crime de burla simples, p.p. pelo artigo 217.º n.º 1 do CP, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão suspensa por 1 ano e 2 meses, com regime de prova. m. O arguido foi condenado no âmbito do processo n.º ..., por sentença já transitada em julgado em 16/05/2022, pela prática, em 27/08/2019, de um crime de burla simples, p.p. pelo artigo 217.º n.º 1 do CP, na pena de 18 meses de prisão efetiva. n. O arguido foi condenado no âmbito do processo n.º ..., por sentença já transitada em julgado em 31/05/2022, pela prática, em 06/10/2020, de um crime de burla simples, p.p. pelo artigo 217.º n.º 1 do CP, na pena de 10 meses de prisão efetiva. o. O arguido foi condenado no âmbito do processo n.º ..., por sentença já transitada em julgado em 09/06/2022, pela prática, em 11/09/2019, de um crime de burla simples, p.p. pelo artigo 217.º n.º 1 do CP, na pena de 7 meses de prisão suspensa por 1 ano, com sujeição a deveres. p. O arguido foi condenado no âmbito do processo n.º ..., por sentença já transitada em julgado em 12/06/2023, pela prática, em 09/10/2019, de um crime de burla simples, p.p. pelo artigo 217.º n.º 1 do CP, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão efetiva. q. O arguido foi condenado no âmbito do processo n.º ..., por sentença já transitada em julgado em 11/09/2023, pela prática, em 06/07/2020, de um crime de burla simples, p.p. pelo artigo 217.º n.º 1 do CP, na pena de 7 meses de prisão suspensa por 1 ano, sujeita a deveres. r. O arguido foi condenado no âmbito do processo n.º ..., por sentença já transitada em julgado em 28/09/2023, pela prática, em 14/10/2019, de dois crimes de burla simples, p.p. pelo artigo 217.º n.º 1 do CP, na pena única de 11 meses de prisão efetiva. s. O arguido foi condenado no âmbito do processo n.º ..., por acórdão já transitado em julgado em 15/11/2023, pela prática, em 18/08/2021, de um crime de burla qualificada, p.p. pelo artigo 217.º n.º 1 e 218.º n.º 2 al. b) do CP, na pena de 3 anos de prisão efetiva. t. O arguido foi condenado no âmbito do processo n.º ..., por sentença já transitada em julgado em 04/12/2023, pela prática, em 21/10/2019, de um crime de burla simples, p.p. pelo artigo 217.º n.º 1 do CP, na pena de 1 ano de prisão efetiva. 18. Por sentença proferida no âmbito do processo n.º ..., já transitada em julgado em 12/11/2021, pela prática, em 07/03/2019, de um crime de burla qualificada, p.p. pelo artigo 217.º n.º 1 e 218.º n.º 2 al. b) do CP, foi o arguido condenado na pena de 3 anos e 3 meses de prisão efetiva. 19. Em virtude de tal condenação, o arguido encontra-se privado da sua liberdade desde 18 de fevereiro de 2022 a cumprir a pena mencionada no ponto 18.
- Dos antecedentes criminais do arguido: Do CRC do arguido consta para além das condenações de a) a t): 20. Por sentença proferida no âmbito do processo n.º ..., já transitada em julgado em 02.12.2022, pela prática, em 22.03.2021, de do crime de ofensa à integridade física, tendo sido condenado na pena de 150 dias de multa. 21. Por sentença proferida no âmbito do processo n.º ..., já transitada em julgado em 01.03.2024, pela prática, em 30.07.2019, de um crime de burla p.p. pelo artigo 217.º n.º 1, foi o arguido condenado na pena de 1 ano e 1 mês de prisão efetiva. 22. Por sentença proferida no âmbito do processo n.º ..., já transitada em julgado em 22.04.2024, pela prática, em 18.05.2021, de um crime de burla p.p. pelo artigo 217.º n.º 1, foi o arguido condenado na pena de 1 ano de prisão efetiva. 23. Por sentença proferida no âmbito do processo n.º ..., já transitada em julgado em 11.07.2024, pela prática, em 19.11.2020, de crime de burla qualificada, p.p. pelo artigo 217.º n.º 1 e 218.º n.º 2 al. b) do CP, foi o arguido condenado na pena de 3 anos e 8 meses de prisão efetiva. 24. Por sentença proferida no âmbito do processo n.º ..., já transitada em julgado em 20.06.2024, pela prática, em 07.2021, de crime de burla qualificada, p.p. pelo artigo 217.º n.º 1 e 218.º n.º 2 al. b) do CP, foi o arguido condenado na pena de 3 anos de prisão efetiva. 25. Por sentença proferida no âmbito do processo n.º ..., já transitada em julgado em 16.01.2025, pela prática, em 10.01.2022, de crime de burla, p.p. pelo artigo 217.º n.º 1 e um crime de falsidade informática p.p. artigo 3.º, n.º1, Lei n.º 109/09, de 15 de setembro, foi o arguido condenado na pena de 1 ano e 3 meses de prisão efetiva. 26. Por sentença proferida no âmbito do processo n.º ..., já transitada em julgado em 12.07.2024, pela prática, em 26.09.2021, de crime de burla, p.p. pelo artigo 217.º n.º 1, foi o arguido condenado na pena de 1 ano e 1 mês de prisão efetiva. 27. Por sentença proferida no âmbito do processo n.º ..., já transitada em julgado em 16.12.2024, pela prática, em 30.12.2021, de crime de burla, p.p. pelo artigo 217.º n.º 1, foi o arguido condenado na pena de 1 ano e 6 meses de prisão efetiva.
- Condições socio económicas da arguida: 28. O arguido, habilitado com o 6º ano de escolaridade. 29. Na comunidade, o arguido à semelhança do agregado familiar, era considerado como reservado e cordial nas reduzidas interações com os elementos da comunidade de residência, onde passou, contudo, a ter uma imagem negativa após a presente reclusão. 30. Em contexto prisional, AA tem apresentado um comportamento adaptado ao normativo instituído e investido ao nível ocupacional. 1.2. Factos não provados
- Constantes da acusação pública: Inexistem. »
b. É como segue a apreciação e qualificação jurídico–penal da matéria de facto que foi efectuada pelo Tribunal de 1.ª Instância: «2. Direito Tendo por base a factualidade dada como provada cumpre agora fazer o respectivo enquadramento jurídico-penal. O arguido vem acusada da prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real de um crime de burla qualificada, previstos e punidos pelos artigos 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, alínea b), ambos do Código Penal De acordo com o artigo 217.º do Código Penal, comete o crime de burla quem, «com intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial» A incriminação da burla corresponde a mais uma direta forma de proteção do património, entendido numa acepção jurídico-económica e, neste sentido, coincidente com um conjunto de utilidades económicas cuja disponibilidade e fruição o ordenamento jurídico tutela ou, pelo menos, não desaprova A proteção que ao património é, assim, retrospetivamente dispensada coloca-se no momento em que evento danoso ocorre, em que o prejuízo patrimonial se verifica, sendo esse, justamente, o momento da consumação do crime. Deste modo, não se bastando a consumação típica com a simples colocação em perigo do bem jurídico assinalado, antes exigindo a verificação de uma lesão efetiva evidenciada pela concreta produção de um determinado prejuízo, pode dizer-se que o crime de burla é, do ponto de vista da atuação do agente sobre o bem jurídico tutelado, um crime de dano e, uma vez que o evento lesivo se distingue, em termos fenomenológicos, da conduta que lhe dá causa, um crime material ou de resultado. Para que determinada conduta possa ser reconduzida à factualidade ora analisada é, desde logo, necessário que, por meio de erro ou engano astuciosamente provocados pelo agente, seja outrem induzido à prática de determinado ato que lhe cause a si ou a outra pessoa prejuízo patrimonial. No sentido que interessa ao preenchimento do tipo em causa, por erro haverá de entender-se toda a adesão ao falso, caracterizada por um ato positivo de assentimento e por uma aprovação do falso, que se apresenta como verosímil: corresponderá, em suma, à falsa representação ou à falta de representação da realidade, funcionando uma e outra como pressupostos viciantes do consentimento da vítima. Já o engano, intervindo nos mesmos termos, reportar-se-á ao artifício utilizado para induzir alguém ao erro, abusando da sua boa fé, coincidindo, de um modo geral, com a mentira (Carlos Alegre, “Crimes contra o património”, Cadernos da Revista do Ministério Público, 1988, página 109). Erro ou engano terão, em todo o caso, que ter sido astuciosamente provocados pelo agente, ou seja, conseguidos através da utilização de subtis ou ardilosos esquemas de convencimento da vítima. Na sua formulação mais vulgar, a astúcia é equiparada à habilidade para o mal, à manha, à sagacidade, à habilidade para enganar, à subtileza para defraudar, ao ardil, à maquinação ou ao estratagema (cfr. José António Barreiros, Crimes contra o património, 1996, pg.157). Em perspetiva jurídico-criminal, mais propriamente quando se trata de concretizar o sentido a atribuir a tal indeterminado conceito, se certo é que se tende modernamente a prescindir do acionamento de rebuscados processos ou engenhosas encenações destinadas a ludibriar a vítima, verdade é também que se supõe sempre, no plano dos factos, a manipulação de uma outra pessoa, fazendo-se depender o preenchimento do tipo da possibilidade de reconhecer, na conduta empreendida pelo agente, uma sagacidade ou penetração psicológica que combina a antecipação das reações do sujeito passivo com a escolha dos meios idóneos para conseguir o objetivo tido em vista (Almeida Costa, “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, Tomo II, 1999, Coimbra Editora, página 298). Posto é que a astúcia, mais do que corresponder a um mero estado psicológico ou subjetivo do agente, surja evidenciada, enquanto elemento do tipo-objetivo, a partir da conduta exterior prosseguida pelo mesmo (cfr. F. Palma/R. Pereira, O crime de burla no Código Penal de 1982-95, RFDUL, XXXV, 1994, pg. 324). Deste modo e na medida em que o prejuízo patrimonial exigido só é jurídico-penalmente relevante se alcançado ou causado por determinados meios tipicamente previstos recondutíveis, no essencial, a um processo enganatório astucioso, a burla é, do ponto de vista da atuação do agente, um crime de execução vinculada. A possibilidade de reconduzir determinando comportamento à previsão típica da norma incriminadora suporá, por último, a existência naquele que atua de uma ilegítima intenção de enriquecimento, na perspetiva de um aumento patrimonial, diminuição de débitos ou de uma poupança de despesas. Trata-se aqui de um elemento subjetivo especial de ilicitude que comanda e orienta a conduta do agente mas de cuja efetiva concretização não depende, contudo, a realização do tipo: o crime pratica-se e fica consumado logo que se verifica um empobrecimento da vítima não sendo necessário que simetricamente lhe corresponda um aumento das utilidades do património infrator. Neste sentido, e na terminologia de H. Jescheck, pode dizer-se que estamos em presença de um delito que, caracterizando-se pela descontinuidade entre os correspondentes tipos objetivo e subjetivo, se inscreve na categoria do crime de resultado cortado ou de tendência interna transcendente (Tratado de Derecho Penal, Parte General, 1993, 286 e ss.).
Posta assim a descrição típica do crime de burla, importa agora determinar se, com base na factualidade demonstrada, as condutas do arguido devem ser reconduzida ao tipo legal em análise. Com efeito, a atuação desenvolvida pelo arguido nas descritas situação, correspondendo ao comportamento que era necessário empreender com vista à obtenção do visado pagamento da quantia que putativamente corresponderia ao pagamento de aquisição de uma peça automóvel que não existiam, levou a que o ofendido aderisse, de um ponto de vista mental, a uma realidade falsa e, determinados por esta representação mental que se lhes afigurava logicamente como verosímil, se houvessem disposto a entregar as quantias monetárias, confiando na venda daqueles bens que o arguido falsamente anunciava numa plataforma informática o qual, obviamente, nunca seria concretizada porque o arguido não tinha essa vontade. Trata-se, pois, da manipulação de uma ilusória sensação de confiança criada pela ficção de um facto absolutamente relevante para a decisão de entrega das aludidas quantias, reforçada também pela existência de contactos estabelecidos pelo arguido, quer através de mensagens, quer inclusivamente através de telefone, nos quais, entre o mais, indicava o seu nome e o seu IBAN que com ele (o nome do próprio) coincidia e aduzia explicação para aquele modo de pagamento e, desse adequado modo, viciando a perceção da realidade alcançada pelas vítimas, alterando consequentemente a sua capacidade volitiva e conduzindo-as à prática de atos que culminaram numa disposição patrimonial. Estamos, em suma, em presença de um erro ocasionado através de uma ocultação de factos concludente, podendo reconhecer-se na contribuição da arguida a astúcia característica do modus operandi da burla. Acresce que, uma vez entregues tais quantias, não mais o ofendido conseguiu a sua restituição, delas se tendo apoderado o arguido, como também nunca receberam o que quer que fosse, uma vez que, repita-se, também nada realmente fora vendido, vendo-se, assim, o ofendido despojados das aludidas quantias monetárias, verificado se mostra também o resultado previsto no tipo – o aludido prejuízo patrimonial, pelo que estão preenchidos todos os elementos do tipo.
Porque o crime se inscreve, conforme se disse já, na categoria dos chamados delitos de intenção, resta, finalmente, verificar se, ao proceder pela forma analisada, a arguida agiu com intenção de enriquecimento e, tendo-o feito, esse enriquecimento é ilegítimo. Resta saber se tal crime é qualificado nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 218.º do Código Penal. A qualificativa em apreço difere da alínea a) do pregresso artigo 314.º da versão pré-revista do Código Penal – “o agente se entregar habitualmente à burla –, tratando-se de uma expressão de conteúdo mais restritivo, exigindo-se, para além de o agente se dedicar habitualmente à prática de burlas, que ele faça disso a fonte dos proventos e rendimentos para o seu sustento Não se exige sequer qualquer condenação anterior, sendo suficiente a prova de que o agente se vem dedicando à prática de burlas como seu modo de vida, retirando créditos essenciais desta sua atitude penalmente relevante. Na verdade, tal como se escreveu no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16 e Junho de 2015 (consultado no sítio do dgsi.pt): «Para preenchimento da qualificativa modo de vida, não se exige que o agente se dedique de forma exclusiva à prática de um daqueles tipos legais de crime, mas sim que a série de ilícitos contra o património que o agente pratique seja factor determinante para que se possa concluir que disso também faz modo de vida. Deve entender-se como fazendo da burla modo de vida não é suficiente que as infracções singulares tenham sido cometidas com o escopo de lucro ou com o fim de outro proveito económico, mas o complexo das infracções deve revelar um sistema de vida, como é o caso do ladrão ou do burlão que vivem sem trabalhar, dos proventos dos delitos (Manzini, Tratado, Vol. III, pág. 223)». Entende-se como fazendo “da burla modo de vida”, a entrega habitual à burla, que se basta com a pluri-reincidência, devendo ser tomadas em consideração, não só as eventuais anteriores condenações do agente, constantes do seu registo criminal, como também as denúncias ou participações policiais existentes, além dos factos descritos no acervo acusatório e realmente praticados. Fundamental é a reiteração dos crimes, que representam e fornecem os créditos principais do agente. Em face do expendido e dos factos dados como provados, dúvidas não podem subsistir quanto à sua verificação. Com efeito, para além das condenações já sofridas pela prática de crimes de burla, o número de crimes desta natureza por si praticados e que são objectos destes autos, aliada à circunstância de o modus operandi ser sempre o mesmo, não pode ter outro sentido de que a actividade da prática de burlas constituía um modo de vida, um modo de o arguido prover ao seu sustento. Fica por isso incursa na prática do imputado crime qualificado pela indicada circunstância prevista no artigo 218.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal. »
d. É como segue a apreciação efectuada pelo Tribunal de 1.ª Instância quanto à determinação das consequências penais no caso: «2.2. Determinação da Pena 2.2.1. Da Medida Concreta da Pena. Da conjugação do disposto no preceito incriminador p.p. pelo artigo 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 2, alínea b), ambos do Código Penal com os limites fixados nos artigos 41°, n.º 1 do Código Penal, resulta que o crime de burla qualificada é abstratamente punido com pena de 2 a 8 anos de prisão. Estabelece o n.º 1 do artigo 71º do Código Penal que a “determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, sendo que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa, nos termos do artigo 40º, n.º 2 do mesmo código. Assim sendo, na determinação da exata medida da pena, ter-se-á que atender à fórmula básica interpretativa destes normativos, segundo a qual temos de partir da sua moldura abstratamente prevista, funcionando a culpa do agente como o limite máximo e inultrapassável da pena aplicável, representando esta um juízo de censura à conduta desvaliosa do agente manifestada no facto praticado. As necessidades de prevenção geral de integração, fornecem-nos, por sua vez, uma submoldura, a qual tem por limite máximo a medida ótima de tutela dos bens jurídico-penais violados e por limite mínimo a pena abaixo da qual as expectativas comunitárias na validade do direito sofrem abalo, limite mínimo esse “constituído pelo ponto comunitariamente suportável da medida da tutela dos bens jurídicos” (neste sentido Figueiredo Dias, in «Direito Penal II - Parte Geral», lições ao 5.º ano da FDUC, pág. 279 e ss.). Por último, as exigências de prevenção especial de socialização dão-nos, dentro desta submoldura, a medida exata da pena concreta aplicável ao agente. Na ponderação da medida concreta da pena deverá o juiz atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente (artigo 71º, n.º 2 do Código Penal). Tendo, pois, em conta o princípio geral que acaba de ser formulado, deverão ser neste momento consideradas todas aquelas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal convocado nem tendo sido já atendidas para efeitos de qualificação, sejam expressivas da culpa do arguido e da medida das necessidades de prevenção. Debruçando-nos sobre os concretos fatores de medida da pena, estabelecidos no n.º 2 do artigo 71° do Código Penal.
A. Do crime de Burla qualificada As elevadas exigências de prevenção geral, traduzidas não só na frequência da prática de factos desta natureza e consequente falta de segurança do tráfico jurídico. No que se reporta aos fatores concretos da medida da pena relativos à execução do facto importa valorar o grau de ilicitude do facto, correspondente ao valor em causa (€700), que se revela médio. Contra o arguido importa acentuar o dolo, enquanto elemento subjetivo do ilícito, expressou-se numa sua forma que mais intensa e que corresponde ao dolo direto - a realização do tipo legal foi posta pelo arguido como o fim atingir e por ele representada como uma consequência direta da sua conduta e aceite como tal. - Contra si importa assentar a total falta de juízo critico demonstrada em audiência de julgamento. - Ter-se-á que valorar, ainda, os antecedentes criminais do arguido pela prática, além do mais, de crimes da mesma natureza (seis anteriores, nomeadamente por crime de burla, e vinte e oito posteriores nos quais se destacam o crime de burla qualificada) Assim, tudo ponderado e tendo em conta a moldura abstracta da pena de prisão prevista para o crime de burla qualificada (pena de prisão 2 anos 8 anos -sendo que o tribunal singular não pode condenar a mais de 5 anos), reputamos como proporcional, justa, adequada e pedagógica a aplicação de uma pena concreta de 3 (três) anos e 5 (cinco) meses de prisão
B. Da Condenação pela Reincidência Como resulta da Douta Acusação, foi o arguido acusado como reincidente nos termos dos artigos 75.º e 76.º do Código Penal. Ora, dispõe o artigo 75.º do Código Penal que: «1. É punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação, cometer um crime doloso que deva ser punido com prisão efetiva superior a seis meses, depois deter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efetiva superior a seis meses por outro crime doloso se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime. 2. O crime anterior por que o agente tenha sido condenado não releva para a reincidência se entre a sua prática e a do crime seguinte tiverem decorrido mais de cinco anos; neste prazo não é computado o tempo durante o qual o agente tenha cumprido medida processual, pena ou medida de segurança privativas da liberdade». Os pressupostos formais da reincidência são, assim, o cometimento de um crime doloso que deva ser punido com prisão efetiva superior a seis meses; a condenação anterior, com trânsito em julgado, de um crime doloso, em pena de prisão superior a seis meses e o não decurso de mais de 5 anos entre o crime anterior e a prática do novo crime. O pressuposto material da reincidência é que se mostre que, segundo as circunstâncias do caso, a condenação ou condenações anteriores não serviram ao agente de suficiente advertência contra o crime. No dizer do Prof. Figueiredo Dias, os requisitos da reincidência, que já eram muito apertados em relação do Código Penal de 1886, foram mais restringidos com as alterações ao Código Penal de 1982, introduzidas pelo DL n.º 48/95, de 15 de março, «... respondendo assim à evolução atual no sentido de a agravação por reincidência dever ser eliminada.» Código Penal, Atas e Projeto da Comissão de Revisão”, edição Ministério da Justiça, 1993, pág.480. Ainda no entendimento do Prof. Figueiredo Dias, “o critério essencial da censura ao agente por não ter atendido a admonição contra o crime resultante da condenação ou condenações anteriores, se não implica um regresso à ideia de que verdadeira reincidência é só a homótropa, exige de todo o modo, atentas as circunstâncias do caso, uma íntima conexão entre os crimes reiterados, que deva considerar-se relevante do ponto de vista daquela censura e daquela culpa. Uma tal conexão poderá, em princípio, afirmar-se relativamente a factos de natureza análoga segundo os bens jurídicos violados, os motivos, a espécie e a forma de execução; se bem que ainda aqui possam intervir circunstâncias (v.g., o afeto, a degradação social e económica, a experiência especialmente criminógena da prisão, etc.) que sirvam para excluir a conexão, por terem impedido de atuar a advertência resultante da condenação ou condenações anteriores. Mas já relativamente a factos de diferente natureza será muito mais difícil (se bem que de nenhum modo impossível) afirmar a conexão exigível. Desta maneira, se não é a distinção dogmática entre reincidência homótropa e polítropa que reaparece em toda a sua tradicional dimensão, é em todo o caso a distinção criminológica entre o verdadeiro reincidente e o simples multiocasional que continua aqui a jogar o seu papel”. (- Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime”, notícias editorial, páginas 268/269.) Como advertem os Cons. Simas Santos e Leal Henriques, “a prática do segundo crime pode não indiciar desrespeito pela condenação anterior, a reiteração criminosa pode ficar a dever-se a causas meramente fortuitas ou exclusivamente exógenas. Em tal caso não deve haver lugar a agravação, uma vez que não pode afirmar-se uma maior culpa referida ao facto. Por esta via de agravação ope judicis, exclui-se a delinquência pluriocasional do âmbito da reincidência.” Dito de outro modo, podendo a reiteração criminosa resultar de causas meramente fortuitas, ou exclusivamente exógenas e não operando a qualificativa por mero efeito das condenações anteriores, a comprovação da íntima conexão entre os crimes não se basta com a simples remissão para o CRC do arguido, exigindo-se uma «específica comprovação factual, de enunciação dos factos concretos dos quais se possa retirar a ilação que a recidiva se explica por o arguido não ter sentido e interiorizado a admonição contra o crime veiculada pela anterior condenação transitada em julgado e que conduz à falência desta no que respeita ao desiderato dissuasor» - cfr. entre outros, os acórdãos do STJ de 26.03.08, proc. 4833/07-3ª, e de 04.12.08; proc. 3774/08-3ª, in www.dgsi.pt - sublinhado nosso. Neste âmbito defendemos tal como o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, seguindo o entendimento do Prof. Eduardo Correia, que “Este Elemento material deve ser provado com as regras gerais do processo, não havendo qualquer presunção, mesmo ilidível, de que a anterior condenação não serviu ao delinquente de prevenção contra o crime (…).” - Cfr. “Comentário do Código Penal”, Unv. Católica Editora, 2008, pág. 241. No caso em apreço, verificam-se os pressupostos formais da reincidência, já que o arguido cometeu desta vez crime dolosos punido com uma pena de prisão de 2 anos a 8 anos, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado na prática de um crime de burla qualificada na pena de três anos e três meses de prisão. Também se verifica o pressuposto temporal de funcionamento dessa circunstância agravante, já que entre a data da prática daquele crime anterior (07.03.2019), e a data da prática dos factos aqui em questão, 25.11.2021, não decorreram mais de 5 (cinco) anos. Podemos assim concluir pelo preenchimento dos pressupostos formais pois antes de decorridos 5 anos, nos termos a que se alude no n.º 2 do artigo 75.º do Código Penal, o arguido voltou a cometer, no presente processo, um crimes doloso de condução sem habilitação legal, tendo sido anteriormente condenado com pena efetiva superior a 6 meses, e voltando a ser condenado com pena superior a 6 meses. Passando agora ao conhecimento do pressuposto material da reincidência, verificamos que para além do que consta do CRC, verificamos que foi trazida à acusação pública factualidade da qual se pode retirar a ilação que a recidiva se explica por o arguido não ter sentido e interiorizado a admonição contra o crime veiculada pela anterior condenação transitada em julgado. Atendendo às circunstâncias do caso, o arguido é passível de censura acrescida porque as condenações anteriores – no que ora importa, a condenação do Processo ... não lhe serviram de suficiente advertência contra o crime, pelo que também se verifica, em concreto, o pressuposto material da reincidência. Ora, verificamos que o arguido praticou os ilícitos em apreço depois de várias condenações pela prática do mesmo crime, percorrendo já o catálogo das penas de substituição, sendo que voltou a delinquir no lapso temporal muito curto após ter sido advertido no âmbito do processo ... (Repare-se que o transito em julgado data 12.11.2021 e a data dos factos no âmbitos deste processo datam 25.11.2021). Mas ainda que assim não fosse, a verdade é que os crimes em que o arguido foi anteriormente condenado revestem uma natureza totalmente conexionada ao ilícito ora praticado. A este propósito, a jurisprudência tem entendido que o preenchimento do requisito material da reincidência, e, bem assim, da sua demarcação com a figura da pluriocasionalidade, exige uma íntima conexão entre o novo crime e o crime anterior (cf. a título de exemplo Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28/11/2017; de 13/09/2018 e de 9/05/2019, todos disponíveis em www.dgsi.pt). Para a elaboração deste juízo e consequente conclusão é mister qualificar o tipo de reincidência que está em causa uma vez que a conexão é mais fácil de encontrar na chamada “reincidência homótropa” (crimes da mesma natureza) do que na “reincidência polítropa” (crimes de diferente natureza) (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/09/2018). Com efeito, estando em causa uma reincidência homótropa, a inferência de que a condenação anterior não foi assumida pelo agente com a gravidade que lhe é própria, embora não sendo, naturalmente, automática, é mais fácil de alcançar uma vez que, com a prática do mesmo facto o agente revela que a solene advertência que lhe foi feita não o impediu de praticar o mesmo ilícito. Face ao exposto, quanto aos crimes em causa, há uma clara conexão entre os crimes anteriores e aquele pelo qual o arguido foi condenado nos presentes autos. Desde logo, há um contexto semelhante no modo como os crimes são praticados, não esquecendo que se trata do mesmíssimo tipo legal. O arguido não retirou da condenação antecedente lição suficiente que o arredasse de condutas desconformes ao direito, pois em lugar de seguir com a sua vida de modo ajustado às regras sociais, optou por reiterar na mesma prática criminosa, por sua exclusiva responsabilidade Assim consideram-se verificados os pressupostos material e formal da condenação por reincidência em relação aos crimes de burla qualificada. O artigo 76º, nº 1, do Código Penal dispõe que em caso de reincidência o limite mínimo da pena aplicável ao crime é elevado de um terço e o limite máximo permanece inalterado, não podendo a agravação exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores. Assim, a moldura penal abstrata aplicável, agora tendo em conta a reincidência, em relação ao de burla qualificada é a seguinte: − Limite mínimo: 2 (dois) anos e 4 meses (limite mínimo acrescido de um terço); − Limite máximo: 8 (oito) anos de prisão (permanece inalterado) que aqui corresponde a 5 anos. Sopesando todos os fatores de determinação da medida concreta da pena atrás enunciados, relevantes neste caso concreto, para cujas considerações remetemos, considera-se ajustada, agora tendo em conta a reincidência a pena de 3 anos (três) e 8 (oito) meses de prisão.
2.2.3. Da (não) substituição da pena de prisão No processo de determinação da pena concretamente aplicável, o legislador português procurou, inspirado pela constatação das consequências negativas da pena de prisão aplicável à pequena e média criminalidade, dotar o ordenamento jurídico-criminal em matéria de consequências jurídicas do crime, de alternativas que permitam obviar aos efeitos dessocializadores da reclusão e aos eventuais efeitos criminógenos das penas de prisão, ao mesmo tempo que asseguram as finalidades da punição, realizando-as sem as pôr em causa. Este intento é alcançado através da consagração das penas de substituição e do critério geral que lhes está subjacente: sempre que se verifiquem os pressupostos de aplicação e a pena de substituição se revele adequada às finalidades da punição então a pena de prisão deve ser substituída por uma pena não privativa da liberdade. Destarte, aquando a aplicação de uma pena de prisão que possa, em abstrato, ser substituída, por cumprir os pressupostos formais dessa operação, impõe-se a realização de um juízo de ponderação no qual se analisará se a aplicação de uma pena de substituição, no caso concreto, satisfaz cabalmente as exigências preventivas quer de prevenção geral quer de prevenção especial que o caso convoca. Não entra para esta ponderação considerações relacionadas com a culpa do agente uma vez que a sua função se esgotou na operação antecedente, ao constituir o limite inultrapassável do quantum da pena. Neste conspecto, e atendendo às exigências de prevenção geral e especial, dadas as recidivas criminais manifestadas pelo arguido, temos que concluir que as anteriores penas de multa, prisão suspensa não surtiram o efeito desejado, pelo que resulta claramente insuficiente a substituição da aludida pena prisão por qualquer outra pena em face quer das condenações anteriores aos factos em apreciação nos autos, quer as posteriores, num total de trinta e quatro, além do mais por crimes da mesma natureza, tendo os factos em apreciação nos autos sido praticados após condenação em pena de prisão efetiva pela prática do mesmíssimo crime. Destarte, não sendo possível fazer qualquer juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que qualquer das penas de substituição sejam adequadas e suficientes para realizar as finalidades da punição e prevenir o cometimento de novos ilícitos, veja-se que o arguido já foi condenado oito vezes pela prática do mesmo crime, sendo sete anteriores aos factos objecto dos autos, já beneficiou de todas as penas de substituição previstas no código penal. Afigura-se-nos que o arguido não se revelou permeável às solenes advertências ínsitas nas sentenças condenatórias, no sentido de o afastar do cometimento de crimes, veja-se que, antes da data da prática dos factos aqui em causa, o arguido tinha já sofrido condenações em pena de multa, condenação em pena de prisão, substituída por suspensão da execução da pena de prisão, sujeita a deveres/regras de conduta e também condenações em pena de prisão efectiva pelo mesmo crime, sem olvidar que posteirormente sofreu 28 condenaçãoes, entre as quais pela prática do mesmo crime. Tudo visto e ponderado temos que, face a todo o circunstancialismo provado, às exigências de prevenção geral e, principalmente, especial, suprarreferidas, não se mostram in casu verificadas as condições que permitam ao Tribunal substituir a pena de prisão aplicada ao arguido, uma vez que nenhuma das penas de substituição se mostram adequadas e suficientes às prementes finalidades da punição que no caso vertente se fazem sentir. Pelo exposto, não pode este Tribunal decidir pela substituição da pena de prisão por suspensão da execução da pena, já que consideramos que só o cumprimento efetivo dessa pena cumprirá os objetivos punitivos prescritos pelo artigo 40.º, do Código Penal. Aponte-se, por último, que no caso sub judice não se verifica nenhuma circunstância pessoal que desaconselhe a privação de liberdade do arguido no estabelecimento prisional, muito pelo contrário afigura-se-nos que apenas a pena de prisão efetiva será a única suficiente para suster este processo de recidivas criminais do arguido e inverter este percurso do arguido que exigem, antes de mais, interiorização do desvalor da sua conduta, até porque o mesmo já se encontra em cumprimento de pena de prisão. Tudo visto e ponderado temos que, face a todo o circunstancialismo provado, às exigências de prevenção geral e, principalmente, especial, suprarreferidas, não se mostram in casu verificadas as condições que permitam ao Tribunal substituir a pena de prisão aplicada ao arguido, uma vez que nenhuma das penas de substituição ou forma de execução fora do estabelecimento prisional se mostram adequadas e suficientes às prementes finalidades da punição que no caso vertente se fazem sentir. Face ao exposto e à impossibilidade de se estabelecer um juízo de prognose favorável quanto à aplicação de quaisquer uma das pensas de substituição, a mesma será aplicada de forma efetiva.»
Apreciemos então as questões suscitadas, pela ordem de prevalência processual sucessiva que revestem.
1. De saber se a Sentença recorrida se mostra afectada de nulidade por insuficiência de fundamentação de facto, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 374º/2 e 379º/1/a) do Cód. de Processo Penal.
Pese embora não o configurando especificamente em tais termos, começa o recorrente por imputar à Sentença recorrida a falta de consideração de determinada factualidade que entende essencial à decisão da causa, mormente em sede de adequada qualificação jurídico–criminal e de determinação das consequências penais. Assim, refere o recorrente mostrar–se consignado no relatório social junto aos autos o seguinte: «Em termos laborais, o arguido, habilitado com o 6º ano de escolaridade, manteve atividade laboral até dezembro de 2021, por conta própria, na área de mecânica auto, área na qual obteve formação profissional, além da realização de outros trabalhos, nomeadamente compra e venda de peças de automóveis e serviços pontuais de mudanças. Segundo o arguido, estas atividades a par do trabalho da companheira, como empresária na área da indústria de vestuário, permitiram que obtivessem rendimentos suficientes para fazer face às despesas de forma equilibrada». Ora, alega–se, tal facto não foi considerado na Sentença recorrida, sendo certo que o mesmo, no entender do recorrente, implica que não poderia o tribunal a quo concluir que o arguido fizesse da sua actividade criminosa um modo de vida, para efeitos de qualificação do crime de burla por via da alínea b) do art. 218º/2 do Cód. Penal, de acordo com a qual foi condenado, assim como também são as condições pessoais do arguido influem ao nível da moldura da pena aplicada em concreto ao arguido nos termos do previsto nomeadamente no art. 71º/2/d) do Cód. Penal.
Pese embora o arguido/recorrente aluda a este circunstancialismo processual como um «erro de julgamento quanto à matéria de facto provada para a decisão», a verdade é que a factualidade em causa não se mostra imputada nem alegada em qualquer peça processual dos autos – nomeadamente a acusação, sendo que não foi deduzida contestação pelo arguido. Donde, a mesma não é acolhida no âmbito daqueles que são os «concretos pontos de facto que [se] considera[m] incorrectamente julgados», limite objectivo da impugnação nos termos do art. 412º/3/a) do Cód. de Processo Penal. Daí que não possa esta última forma de impugnação abranger factos que, no entender do recorrente, sejam relevantes para a mesma, mas sobre os quais o tribunal a quo não se pronunciou, não os dando nem como provados nem como não provados. Neste sentido se pronunciou desde logo o Acórdão do S.T.J. de 21/03/2012 (proc. 130/10.0JAFAR.F1.S1)[[3]], consignando nomeadamente que «Quando, então, impugne a decisão proferida ao nível da matéria de facto tal impugnação faz-se por referência à matéria de facto efetivamente provada ou não provada e não àqueloutra que o recorrente, colocado numa perspetiva interessada, não equidistante, com o devido respeito, em relação àquilo que o tribunal tem para si como sendo a boa solução de facto, entende que devia ser provada. Por isso, segundo os termos da lei, a impugnação é restrita à ‘decisão proferida’, e realmente prolatada, e não a qualquer realidade virtual, de sobreposição da sua convicção probatória, pessoal, intimista e subjetiva, à convicção desinteressada formada pelo tribunal.» Esta interpretação normativa foi inclusive submetida à apreciação do Tribunal Constitucional, com vista a aferir se a mesma punha em causa as garantia do direito de defesa do arguido, sendo em resultado proferido o Acórdão nº 268/12, de 20/06/2012 [[4]], em que se decidiu «Não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 410.º, n.º 1, 412.º, n.º 3, e 428.º, conjugados com os artigos 339.º, n.º 4, 368.º, n.º 2, e 374.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal, na interpretação de que não pode ser objeto da impugnação da matéria de facto, num recurso para a Relação, a factualidade objeto da prova produzida na 1ª instância, que o Recorrente-arguido sustente como relevante para a decisão da causa, quando tal matéria não conste do elenco dos factos provados e não provados da decisão recorrida». Não significa isso, porém, que a falta de consideração pela sentença recorrida de factos abordados na discussão da causa, não seja passível de reacção pelo arguido, de forma a assegurar na plenitude os seus direitos de defesa. Como de forma expressiva logo se adita no supra citado aresto do Tribunal Constitucional, «o mecanismo processual que possibilite essa reação não passa necessariamente pela consagração do direito de solicitar a um tribunal de recurso que ajuíze, em primeira mão, se os factos omitidos, face à prova produzida, resultaram demonstrados, sendo suficiente que o arguido tenha a possibilidade de invocar a nulidade resultante da respetiva omissão de pronúncia, cabendo ao tribunal de recurso verificá-la e determinar o seu suprimento (…). Esse meio de reação encontra-se, aliás, previsto no artigo 379.º, do Código de Processo Penal, que no n.º 1, a), sanciona com a nulidade a sentença que não contenha as menções referidas no n.º 2, do artigo 374.º, onde consta a enumeração dos factos provados e não provados, o que inclui aqueles que resultaram da discussão da causa (artigo 368.º, n.º 2), devendo essa nulidade ser arguida ou conhecida em recurso, sem prejuízo do tribunal recorrido a poder suprir (n.º 2, do artigo 379.º)». Ou seja, o mecanismo processual adequado a alcançar tal desiderato será a invocação da nulidade da sentença, prevista no art. 379º/1/a) do Cód. de Processo Penal, traduzida na omissão das menções referidas no nº 2 do art. 374º do Cód. de Processo Penal, ou seja, e no caso, da omissão da consideração como provado de determinado facto que revista relevo para a decisão da causa e resultante da discussão da mesma. Ora, pese embora o ora recorrente não tenha invocado expressamente tal nulidade, além de ser essa afinal a devida configuração substancial e material da sua alegação e conclusões, sempre se entenderia – de acordo aliás com a jurisprudência largamente maioritária nesta matéria, e que se subscreve inteiramente – que as nulidades da sentença previstas no art. 379º/1 do Cód. de Processo Penal são de conhecimento oficioso. Verificada a nulidade em causa, cumprirá à instância de recurso declará–la e determinar o seu suprimento – o que, reunidos que se mostrem no caso todos os elementos necessários para o efeito, poderá ser levado a cabo pela mesma 2ª instância, desde logo nos termos do disposto no nº2 do mesmo art. 379º do Cód. de Processo Penal, onde exactamente se prevê que «As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º».
Assim devidamente emoldurada em termos processuais este segmento da alegação do recorrente, vejamos, pois, se lhe assiste razão, e se se verifica a nulidade da sentença recorrida por omissão da consideração como provado de determinado facto que revista relevo para a decisão da causa e resultante da discussão da mesma, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 379º/1/a) e 374º/2 do Cód. de Processo Penal. Temos, portanto, que de acordo com o disposto no nº 2 do art. 374º do Cód. de Processo Penal, a fundamentação da sentença consta, nomeadamente, da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que contribuíram para a formação da convicção do tribunal. Por seu lado, em face do disposto no art. 368º/2 do Cód. de Processo Penal, a enumeração dos factos provados e dos factos não provados traduz-se na tomada de posição por parte do tribunal sobre todos os factos sujeitos à sua apreciação e sobre os quais a decisão terá de incidir, isto é, sobre os factos constantes da acusação ou da pronúncia, da contestação e do pedido de indemnização, e ainda sobre os factos com relevância para a decisão que, embora não constem de nenhuma daquelas peças processuais, tenham resultado da discussão da causa – resultando do nº 4 do art. 339º do Cód. de Processo Penal que a discussão da causa tem exactamente por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência. Quanto ao critério de acordo com o qual deve aferir–se se determinado facto é ou não relevante para a decisão da causa, temos desde logo o vislumbre do mesmo no art. 124º/1 do Cód. de Processo Penal, onde se prevê que «Constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis» – complementando o nº2 que «Se tiver lugar pedido civil, constituem igualmente objecto da prova os factos relevantes para a determinação da responsabilidade civil».
Tendo todas estas considerações presentes, e revertendo, enfim, directamente à concreta alegação do aqui recorrente, cumpre desde logo consignar que não se julga que a sentença ora recorrida padeça da referida nulidade. De facto, e desde logo, salienta–se que, como bem refere o Ministério Público na sua resposta ao recurso – e melhor veremos mais adiante aquando da sindicância sobre a adequação da qualificação jurídico–criminal levada a cabo pela primeira instância –, para se considerar verificada a qualificativa modo de vida reportada a uma actuação típica de burla, é irrelevante que o arguido exerça ou não uma outra actividade profissional remunerada, sendo tão apenas suficiente a demonstração de que o agente se vem dedicando à prática de burlas como seu modo de vida, isto é, retirando rendimentos importantes e regulares desta sua atitude penalmente relevante. Depois, também cumpre sublinhar que, percorrido o elenco da matéria de facto provada, se constata que o tribunal a quo não deixou de reportar ao thema a que se refere o circunstancialismo que o recorrente alega em falta – fá–lo é num sentido não coincidente com aquele que resulta dos termos alegados, e que se revela, aliás, em directa oposição com o mesmo. Assim, no ponto 15. da matéria de facto provada, e por referência ao período em que ocorreram os factos, consigna o tribunal a quo como assente que «o arguido não declarou rendimentos auferidos por conta de outrem, nem lhe foram processados subsídios de doença e de desemprego ou consta como pensionista pelo Segurança Social ou CGA, pelo que não lhes são conhecidos rendimentos». Ou seja, aquilo que o tribunal a quo considera provado, e exara em sede de fundamentação de facto da Sentença, é que o arguido não tinha, afinal, outros rendimentos (senão os decorrentes da prática reiterada de burlas), o que contraria frontalmente a circunstância de facto que o arguido/recorrente alega estar indevidamente ausente da decisão recorrida. Donde, e precisamente para os efeitos que o recorrente entende ser relevante a consideração das condições sócio–económicas do arguido à data dos factos, o tribunal a quo consigna em sede de fundamentação a matéria de facto relevante para tal efeito. Que a mesma contrarie o desiderato almejado pelo recorrente, é questão que já nada tem a ver com qualquer falta de fundamentação. Donde, e retomando a essência do vício processual aqui invocado, constata–se que à luz dos termos e fundamentos que fazem o teor da decisão recorrida, a factualidade invocada pelo arguido não se mostra susceptível de afectar a montante a consideração sobre o enquadramento jurídico–criminal da sua actuação, nem sobre a determinação das respectivas consequências penais.
Pelo que, não se constatando a existência de qualquer omissão relevante na fundamentação de facto da decisão recorrida, improcede esta liminar parte da alegação do recorrente.
2. De saber se pelo arguido se mostram preenchidos os pressupostos típicos do crime de burla qualificada por referência ao art. 218º/2/b) do Cód. Penal, e pelo qual vem condenado.
Conforme se constata, a decisão recorrida condenou o arguido/recorrente pela prática, como reincidente, de um crime de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos arts. 217º/1 e 218º/2/b) do Código Penal. Ou seja, relativamente ao crime de burla praticado pelo arguido – imputação que o recorrente não discute –, operou a circunstância qualificativa estatuída na alínea b) do nº1 do art. 218º do Cód. Penal – onde se prevê a actuação do agente que «fizer da burla modo de vida». Vem o arguido/recorrente insurgir–se contra a consideração pelo tribunal a quo de tal circunstância qualificativa com relação ao crime de burla por si praticado e pelo qual vem condenado. Alega (e conclui), em síntese, que resulta do relatório social juntos autos que o arguido «Em termos laborais, o arguido, habilitado com o 6º ano de escolaridade, manteve atividade laboral até dezembro de 2021, por conta própria, na área de mecânica auto, área na qual obteve formação profissional, além da realização de outros trabalhos, nomeadamente compra e venda de peças de automóveis e serviços pontuais de mudanças. Segundo o arguido, estas atividades a par do trabalho da companheira, como empresária na área da indústria de vestuário, permitiram que obtivessem rendimentos suficientes para fazer face às despesas de forma equilibrada». Donde, propugna, resulta claro que o arguido tinha meios próprios de subsistência que lhe permitiam obter o seu sustento, necessários a prover às suas necessidades diárias, e não poderia assim o tribunal a quo ter concluído que o arguido fizesse da sua actividade criminosa um modo de vida. Pelo que, conclui, deveria o arguido ser antes condenado pela prática de um crime de burla simples, previsto no tipo base do art. 217º/1 do Cód. Penal.
Apreciando, liminarmente se consigna que não lhe assiste razão.
Na verdade, esta pretensão recursória assentava em primeira linha – aliás, como desde logo o próprio recorrente claramente a delimita – em pressupostos que não se verificam, tal como resulta da análise que vem de ser efectuada. Tais pressupostos passavam pela alteração da matéria de facto nos termos propugnados pelo recorrente no segmento em que alegava falta de fundamentação de facto da Sentença. Era, pois, a prevalência de determinado circunstancialismo de facto que o recorrente entendia dever ser considerado, que sustentaria – e sempre na tese recursória, claro está – a não verificação dos pressupostos de acrescida ilicitude e culpa por parte do arguido que preenchem a concreta qualificativa aqui em causa. Ora, e como já vimos, não merece censura a sentença recorrida no que tange ao exercício de fundamentação na mesma considerado, devendo assim ser mantida integralmente a sua decisão quanto a tal matéria. Donde, logo por tal via, soçobraria a pretensão recursória.
Sempre se diga, para que dúvidas se não suscitem, que não seria só por si uma tal alteração da matéria de facto que determinaria a questionabilidade do preenchimento pelo arguido dos pressupostos do crime de burla qualificada aqui em causa. Começando por procurar delimitar a qualificativa da al. b), do art. 218º/2 do Cód. Penal, temos que a caracterização da actuação enquanto modo de vida assenta numa dupla vertente. Por um lado, temos quanto respeita à relevância económica dos ganhos obtidos com a prática de burlas no conjunto do orçamento do arguido, não sendo porém determinante que tais ganhos sejam a fonte sequer primordial dos seus proventos. Nesta primeira perspectiva, como assinalam Simas Santos e Manuel Leal–Henriques (em “Código Penal Anotado – Parte Especial”, 2023, pág. 826), o modo de vida supõe que «o agente satisfaz as suas necessidades quotidianas através dos proventos obtidos na prática das actividades ilícitas, afectando, pois, à satisfação dos seus gastos do dia a dia os quantitativos recolhidos das condutas criminosas em que participa». Depois, e por outro lado, é determinante verificar que a prática dos crimes em causa fez parte do modo de viver do arguido no período a que se reportou essa prática, sendo os mesmos executados como um dos aspectos da vida normal do agente naquele período. Como escrevem Miguez Garcia e Castela Rio (em “Código Penal – Parte geral e especial, notas e comentários”, 2015, pág. 893), ainda que a propósito do crime de furto qualificado de acordo com similar circunstância qualificativa mas em termos por isso absolutamente transponíveis para o tipo criminal de burla, «Pratica furtos como modo de vida quem tem a intenção de conseguir uma fonte contínua de rendimentos com a repetição mais ou menos regular de factos dessa natureza. (…) O rendimento do crime não tem que ser a única fonte nem a maior fatia dos proventos do ladrão que, com sorte, pode até viver do produto dum só furto durante uma larga temporada sem que isso constitua caso de agravação. Note-se que este modo de vida criminoso acarreta o perigo da especialização e do domínio de certas "artes" e inculca a ideia de vadiagem e de marginalidade, aproximando-se duma característica pessoal de pendor subjetivo.». Ou seja, e é isso particularmente relevante à luz da presente alegação recursória, para o preenchimento desta qualificativa que prevê a circunstância de o agente «f[a]zer da burla modo de vida», não se exige que a burla levada a cabo no caso concreto seja perpetrada por quem nada mais faz do que burlar. Assim, o agente pode até ter uma profissão socialmente reconhecida como normal e adequada, que nem por isso deixará de incorrer nesta qualificativa, se a série de burlas que leve a cabo no seu percurso de vida for de tal ordem que nela se reconheça um processo de realizar proventos destinados a contribuir para a sustentação da sua vida. Também, Paulo Pinto de Albuquerque (em “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da CEDH”, 2024, p. 925), a propósito desta qualificativa, defende que “Não é necessário que se trate de uma ocupação exclusiva, nem contínua, podendo até ser intermitente ou esporádica, desde que ela contribua significativamente para o sustento do agente (…). O conceito de modo de vida pode ser aproximado ao de exercício “profissional” de uma atividade (…), que inclui a pluralidade de ações, a intenção de aquisição de meios de subsistência através dessas ações e a disponibilidade para realizar outras ações do mesmo tipo”. Em termos similares, José de Faria Costa (em “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II”, 1999, pág. 70 e segs. – em anotação ao crime de furto qualificado de acordo com a mesma qualificativa, sendo tais considerações também absolutamente transponíveis para o crime de burla) refere que «Modo de vida é a maneira - em uma ótica estritamente objetiva, isto é, sem qualquer espécie de valoração sobre o sentido lícito ou ilícito do comportamento assumido no quotidiano - pela qual quem quer que seja consegue os proventos necessários à própria vida em comunidade (…). As pessoas tendem a fazer vários coisas ao mesmo tempo, e isso é o seu modo de vida. Ora, se isto é assim em uma chamada vida normal não temos a menor dúvida em considerar que o mesmo se passa quando alguém se lança na carreira criminosa da prática de furtos. Quer isto significar de forma muito clara que não é absolutamente preciso que o delinquente se dedique, de jeito exclusivo, aos furtos para que se possa dizer que dessa prática faz um modo de vida. Bem pode ter uma profissão socialmente visível – o que não poucas vezes até facilita a atividade ilícita que se realiza às ocultas – e, mesmo assim, poder considerar-se que a série de furtos que pratica seja factor determinante para que se possa concluir que ele disso – isto é, desse pedaço da vida – faça também um modo de vida». No sentido assim propugnado, e por todos, referência para os Acórdãos do S.T.J. de 13/01/2022 (proc. 90/17.7GBFND.C2.S1)[[5]], do Tribunal da Relação de Coimbra de 16/06/2015 (proc. 202/10.1PBCVL.C1)[[6]], do Tribunal da Relação do Porto de 09/12/2015 (proc. 801/10.1TAESP.P1)[[7]], e do Tribunal da Relação de Coimbra de 27/01/2021 (proc. 111/19.9PBCVL.C1)[[8]]. Em suma, entende-se como fazendo «da burla modo de vida», a actuação de quem se entrega habitualmente à burla, devendo ser, numa tal ponderação de pluri–recidiva, tomadas em consideração, não só as anteriores condenações similares do agente, mas também as denúncias existentes e todos os outros elementos testemunhais ou documentais valoráveis probatoriamente Tendo por base todas estas considerações, constatamos que a Sentença recorrida relativamente a esta questão, e depois de percorrer referências doutrinárias e jurisprudenciais, vem a concluir que, no caso, «para além das condenações já sofridas pela prática de crimes de burla, o número de crimes desta natureza por si praticados e que são objectos destes autos, aliada à circunstância de o modus operandi ser sempre o mesmo, não pode ter outro sentido de que a actividade da prática de burlas constituía um modo de vida, um modo de o arguido prover ao seu sustento. Fica por isso incursa na prática do imputado crime qualificado pela indicada circunstância prevista no artigo 218.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal.». São considerações que se julgam isentas de censura, e que, por isso, se subscrevem – e que, reitera–se, inclusive em nada se mostrariam afectadas por via da putativa consideração, em sede de matéria de facto provada, do circunstancialismo a que apelava o recorrente, e já acima analisado.
Entende-se, pois, ter sido correcta a subsunção da conduta do arguido, no que ao crime de burla por si praticado diz respeito, na previsão da al. b) do art. 218º/2 do Cód. Penal.
Termos em que improcede também nesta parte o recurso.
3. De saber se deve ser determinada a alteração das consequências penais dos factos assentes – no que tange quer à natureza da pena aplicada, quer, subsidiariamente, à medida concreta fixada para a pena de prisão cominada ; quer ainda no que respeita à não suspensão da mesma.
Vem seguidamente o arguido recorrente insurgir–se contra a determinação das consequências penais em que vem condenado, o que faz em três vertentes sucessivamente: – por um lado, considerando que as circunstâncias do caso permitiam a aplicação ao arguido de uma pena de multa e não de uma pena de prisão, – depois, e sendo mantida a cominação de pena de prisão, considera que a mesma deverá ser reduzida na sua medida concreta, – finalmente, propugna dever ser considerada a suspensão da execução da pena de prisão.
Apreciemos, pois, este derradeiro passo recursório, e começando pela pretensão de aplicação de uma pena de multa e não de prisão. E para neste segmento liminarmente dizer que é desde logo manifesta a inviabilidade legal de sequer ponderar no pretendido pelo recorrente. Na verdade, nos presentes autos o arguido vem condenado pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos arts. 217º/1 e 218º/2/b), ambos do Cód. Penal, o que significa que ao arguido é tão apenas aplicável pena de prisão. Assim, e pese embora seja certo que o art. 70º do Cód. Penal determina que «se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição», imprescindível será, para ser possível uma tal ponderação, que na estatuição típica que no caso concreto esteja em equação se preveja a punibilidade alternativa entre pena privativa e pena não privativa da liberdade. O que aqui, repete–se, não sucede. Donde, e sem necessidade de maiores considerandos, claramente soçobra esta primeira vertente da pretensão do recorrente nesta parte.
Passemos então a apreciar o demais peticionado.
Da adequação da medida concreta da pena de prisão aplicada.
O arguido/recorrente vem, pois, impugnar a decisão recorrida no que tange à determinação da medida concreta da pena de prisão fixada pela prática do crime pelo qual vem condenado, entendendo–a desadequada porque excessiva, e considerando dever a mesma fixar–se próxima do seu limite mínimo.
De acordo com o art. 40º do Cód. Penal, as finalidades das penas são a protecção de bens jurídicos e a socialização do agente do crime, determinando-se que a culpa constitui o seu limite. Como factores de escolha e graduação da pena concreta há a considerar os parâmetros dos arts. 70º e 71º do Cód. Penal. A primeira destas disposições – que, como vem de se sublinhar, aqui não releva – determina que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Já o art. 71º do Cód. Penal estabelece que tal determinação deve fazer-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção da prática de condutas criminalmente puníveis, devendo atender-se a todas as circunstâncias que - não fazendo parte do tipo de crime - depuserem a favor ou contra o arguido. Ora, estipulada a natureza da sanção a aplicar, o respectivo limite máximo da punição do caso concreto deve fixar-se na medida considerada como adequada para a protecção dos bens jurídicos e para a tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade e vigência das normas infringidas, ainda consentida pela culpa do agente, enquanto o limite inferior há-de corresponder a um mínimo, ainda admissível pela comunidade para satisfação dessas exigências tutelares. Por fim, entre tais balizas assim determinadas, o tribunal deve fixar a pena num quantum que traduza a concordância prática dos valores decorrentes das necessidades de prevenção geral com as exigências de prevenção especial que se revelam no caso concreto, quer na vertente da socialização, quer na de advertência individual de segurança ou dissuasão futura do delinquente Nesta tarefa de individualização assim imposta, o tribunal dispõe dos critérios de vinculação na escolha da medida da pena constantes do já citado art. 71.º do Código Penal, designadamente os susceptíveis de “contribuírem tanto para determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento) ao mesmo tempo que transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente. Observados estes critérios de dosimetria concreta da pena, há uma margem de actuação do julgador dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar” – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/04/2008, cit. por A. Lourenço Martins, ‘Medida da Pena’, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, pág. 242). Assim, na escolha e determinação da medida da pena não poderá ultrapassar-se a medida da culpa, mas não poderá também ficar–se aquém do exigido pelos ditames da prevenção especial (centrados na tutela de bens jurídicos), abaixo dos quais não pode optar–se por ou fixar-se determinada sanção, sob pena de perda de confiança da comunidade no restabelecimento da vigência da norma violada.
Antes de prosseguir, cumpre ademais salientar que, como é consabido e resulta de pacífico critério jurisprudencial, o recurso dirigido à medida da pena visa tão-só o controlo da desproporcionalidade da sua fixação ou a correcção dos critérios de determinação, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso. Donde, e em tal sede, a intervenção correctiva do tribunal superior só se justifica quando o processo da sua determinação revelar que foram violadas as regras da experiência ou a quantificação se mostrar desproporcionada. Nesta matéria, tem, pois, plena aplicação aos tribunais de 2ª instância a jurisprudência, relativa à intervenção do STJ na determinação concreta das penas, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/05/2009 (proc. 09P0484)[[9]], onde – com profusa e exaustiva referenciação jurisprudencial – se consigna que “A intervenção [da instância de recurso] em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”
Pois bem, e revertendo ao caso concreto, começa por se recordar que nos autos o arguido vem condenado pela prática, como reincidente, de um crime de burla qualificada, previsto pelas disposições conjugadas dos arts. 217º/1 e 218º/2/b) do Cód. Penal, e punível – em conjugação também com o art. 76º do mesmo código – com pena de prisão a fixar entre 2 anos e 4 meses e 8 anos, sendo–lhe aplicada em concreto a pena de 3 anos e 8 meses de prisão. E cumpre referir que na Sentença recorrida o tribunal a quo referencia os elementos com relevo na determinação da medida concreta da pena, e que não se devam considerar–se já valorados na tipificação do crime objecto de punição. E crê–se que esse exercício se mostra, apesar da critica do recorrente, razoável e suficiente, revelando acima de tudo a necessidade de salvaguardar a crença da comunidade na validade das normas incriminadoras violadas, e emanando um apropriado juízo na censurabilidade do comportamento do arguido e na prevenção e segurança dos valores que as normas penais visam resguardar, e aqui feridas com a actuação criminosa daquele – tomando em especial em cautelar ponderação, como se julga inevitável ter de suceder no caso, o percurso de vida do recorrente, caracterizado por um extenso e reiterado registo de prática de factos criminalmente relevantes de natureza jurídico–penal. Seja como for, e em contraponto à alegação do recorrente segundo a qual o tribunal a quo «não ponderou todas as circunstâncias que pesavam a favor e contra o arguido bem como o Tribunal a quo não teve em consideração, para a escolha e medida da pena aplicada ao arguido», sempre se adita que a forma de actuação do arguido reveste-se simultaneamente de assinalável audácia e de perigosa facilidade – na verdade, recorrendo a métodos acessíveis a qualquer pessoa e actuando em ambiente internet, forma especialmente susceptível de iludir a sua própria identidade e assim os ofendidos, o arguido conseguiu desenvolver uma actividade cuidadosamente urdida e de difícil detecção, propiciando assim, mais uma vez – à luz daquele que é o seu percurso de vida neste contexto – uma situação prejudicial para terceiros. Sublinha–se que os crimes praticados com recurso à utilização do ambiente internet, vêm sendo cada vez mais frequentes, assistindo-se a um acentuado aumento do alarme social que, por isso, vêm provocando. A frequência com que tais práticas tem lugar, a sua danosidade e a dificuldade muitas vezes experimentada pelas autoridades na oportuna descoberta e detenção dos seus agentes faz com que com que as exigências de prevenção geral se apresentem, relativamente às evocadas condutas, com grande intensidade. Desde logo por tudo isto são também prementes as exigências de prevenção especial, mostrando–se necessária uma dissuasão individual sem a qual se não conseguirá uma verdadeira dissuasão comunitária. E no caso concreto do arguido são em particular de assinalar tais exigências, pois que se constata que o mesmo já regista múltiplas outras condenações de natureza similar, exacerbando as preocupações ligadas às exigências de prevenção especial positiva – tudo como amplamente se elenca em sede de matéria de facto provada, como acima transcrita. Acresce que, como resulta da Sentença recorrida, o arguido surge nesta fase como como alguém que, tendo adoptado a conduta criminalmente censurável que adoptou, e em que vem agora condenado, não revela uma atitude de que pudesse extrair–se a interiorização em algum grau da reprovabilidade dessa mesma conduta, denotando assim uma personalidade absente de espirito critico negativo em relação àquela – não podendo sequer beneficiar, designadamente, e neste âmbito da determinação da medida concreta da pena, da consideração das usuais atenuantes ligadas à confissão, arrependimento ou desenvolvimento de consciência critica em relação aos actos que empreendeu. Como contraponto a estas considerações, e sempre nos limites da matéria de facto provada, apenas se poderá considerar que à luz do critério do valor do prejuízo concretamente determinado, a ilicitude objectiva dos factos se situa num grau que, tendo embora alguma relevância, não é excessivamente elevado, e que em situação de reclusão o arguido tem mantido bom comportamento prisional.
Em suma, e voltando à sindicância do mérito da decisão recorrida, de forma muito clara o que aqui primordialmente releva é que as circunstâncias expostas revelam a persistência numa vontade de delinquir, com indiferença pelas normas e revelando insusceptibilidade de ser influenciado pelas penas, do que decorre que as necessidades de prevenção especial são prementes, sendo que as necessidades de prevenção geral são igualmente relevantes, como forma de ser recuperada a confiança na validade e vigência da norma violada, considerando também os sentimentos de insegurança e alarme social que geram condutas como a apreciada nos autos. Todas estas considerações, além de denotarem que o grau de censura incidente sobre o comportamento do arguido não se mostra (de todo) inflacionado na avaliação do tribunal a quo, salientam, pois, que, à luz das exigências de prevenção aqui colocadas, a pena de prisão concretamente aplicada de modo algum se podem considerar excessiva ou desajustada – julgando–se que uma pena fixada em medida concreta inferior seria, ela sim, uma reacção absolutamente desajustada à salvaguarda das necessidades da punição aqui impostas. Não tem, pois, acolhimento a censura que o recurso efectua dos fundamentos em que se estriba a determinação da pena aplicada, a qual assim se confirma tale quale fixada na decisão recorrida.
De saber se a pena única de prisão em que o arguido vem condenado deveria ser declarada suspensa na respectiva execução. No derradeiro segmento do seu recurso, vem o recorrente/arguido pleitear por que deva ser determinada a suspensão da pena de prisão que se lhe considere aplicada no âmbito da presente decisão – e que, aqui chegados, se conclui ser, em concreto, precisamente aquela fixada em primeira instância. Em síntese, alega o recorrente que atento o carácter familiar do arguido, seu percurso de vida e estar socialmente bem integrado, a efectividade da pena não é a melhor forma de reintegração e recuperação social do arguido, é desproporcional à factualidade dada como provada. Donde, conclui, a aplicação de uma pena de prisão suspensa, ainda que sujeita ao cumprimento de injunções, representará para reprovação social suficiente, atento o meio familiar e social em que o mesmo está integrado. Vejamos.
Fixada ao agente dos factos, de acordo com os parâmetros previstos em especial nos arts. 70º e 71º do Cód. Penal, uma pena de prisão em medida concreta não superior a 5 anos, poderá a mesma ser suspensa na respectiva execução nos termos do disposto no art. 50º/1 do Cód. Penal, onde exactamente se prevê que «o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição». Não são, pois, considerações de culpa que devem presidir na decisão sobre a decisão de suspensão da execução da pena ou não – mas antes razões ligadas às exigências de prevenção geral e especial, sendo que na ponderação das segundas não pode nunca perder-se de vista a salvaguarda das primeiras. Como refere o Prof. Figueiredo Dias (in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, § 518), «pressuposto material de aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente ; que a simples censura do facto e a ameaça da pena – acompanhadas ou não da imposição de deveres e (ou) regras de conduta – bastarão para afastar o delinquente da criminalidade», acrescentando «para a formulação de um tal juízo – ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto –, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto. Por outro lado, há que ter em conta que a lei torna claro que, na formulação do prognóstico, o tribunal se reporta ao momento da decisão, não ao da prática do facto». Adverte ainda o citado Professor (ob. citada, § 520) que, apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável – à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização –, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime. (…) Estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto em causa». Conforme se pode ler no Acórdão do S.T.J. de 25-06-2003 (proc. 2131/03)[[10]], o instituto em causa «constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, de forte exigência no plano individual, particularmente adequada para, em certas circunstâncias e satisfazendo as exigências de prevenção geral, responder eficazmente a imposições de prevenção especial de socialização, ao permitir responder simultaneamente à satisfação das expectativas da comunidade na validade jurídica das normas violadas, e à socialização e integração do agente no respeito pelos valores do direito, através da advertência da condenação e da injunção que esta impõe para que o agente conduza a vida de acordo com os valores inscritos nas normas. (…) Não são, por outro lado, considerações de culpa que devem ser tomadas em conta, mas juízos prognósticos sobre o desempenho da personalidade do agente perante as condições da sua vida, o seu comportamento e as circunstâncias do facto, que permitam supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas». Em suma, pressuposto material de aplicação da suspensão da pena é, pois, que o Tribunal, em face dos factos provados, conclua, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do seu facto e do seu percurso de vida, por um prognóstico favorável com relação ao seu comportamento - mas deve ter-se em consideração sempre em última análise que a suspensão da execução da pena não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção criminal, enquanto exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa e garantia de eficácia do ordenamento jurídico-penal. Ou seja, o pensamento ressocializador não esquece a necessidade de as soluções penais serem suficientemente dissuasoras da criminalidade, impondo-se, consequentemente, que a comunidade não encare a suspensão da execução da pena como um caso de impunidade, retirando toda a sua confiança ao sistema repressivo penal – para a aplicação da suspensão da execução da pena de prisão é necessário que a mesma não coloque irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização das expectativas comunitárias, ou seja, o sentimento de reprovação social do crime ou sentimento jurídico da comunidade. Donde, só quando que as exigências de prevenção fiquem asseguradas, a pena de prisão poderá ser suspensa na sua execução.
Revertendo ao caso dos autos, vem o arguido/recorrente condenado, pela prática, como reincidente, de um crime de burla qualificada, previsto nos arts. 217º/1 e 218º/2/b) do Cód. Penal, na pena de 3 anos e 8 meses de prisão, a qual foi determinado dever ser efectiva na sua execução, tendo–se afastado, nos termos da decisão recorrida, a aplicação do regime de suspensão da pena de prisão acima enunciado. Vem o recorrente pleitear pela aplicação do regime em causa, requerendo dever se suspensa na respectiva execução a pena de prisão. Adianta–se desde já que não assiste qualquer razão ao recorrente, à luz daquilo que se julga ser, no caso concreto, a falência absoluta dos pressupostos de que deveria depender a aplicação da suspensão de pena peticionada.
Começando desde logo pela ponderação daquele que já se indicou como o limite aquém do qual não é permitida a aplicação do instituto da suspensão da pena de prisão, entende–se que no caso é elevada a necessidade de tutela dos bens jurídicos que aqui foram materialmente lesados pelo comportamento criminoso do arguido. Pese embora a sua mediana gravidade, a conduta do arguido não pode aqui deixar de ser objecto de ponderação na medida do respectivo reflexo nas exigências de prevenção geral que aqui se colocam – porque é disto que aqui agora se trata. Porém, a verdade é que no caso releva quanto tange à avaliação da personalidade do arguido, factor preponderante na decisão aqui a adoptar. Como já acima se assinalou, o recorrente surge nesta fase dos autos, e considerando toda a matéria de facto tida como assente, como alguém que, tendo adoptado a conduta censurável que adoptou, não revela qualquer atitude de que pudesse extrair–se a interiorização de algum grau de reprovabilidade dessa mesma conduta, primeiro e determinante passo na avaliação do juízo de prognose quanto ao seu comportamento futuro no que tange ao cometimento de actos similares. Notar–se–á ainda, e mais relevantemente, que – sempre por apelo directo à matéria de facto provada em sede de sentença recorrida – estamos perante uma reiteração no cometimento de factos da mesma natureza por parte do arguido, que já vem sendo condenado, desde 2016, pela prática reiterada de crimes nomeadamente de burla e de burla qualificada, registando inclusive condenações transitadas em julgado pouquíssimo tempo antes da prática dos factos dos autos – nomeadamente em Abril, Setembro e Novembro de 2021, sendo precisamente neste último mês que praticou os factos da sua presente condenação. Foi, antes dos factos, condenado em penas de variada natureza, desde pena de multa, a penas de prisão suspensa na sua execução, e inclusive também em penas de prisão efectiva. Ou seja, de forma muito vincada se denota que todas as anteriores condenações do arguido em medidas punitivas detentivas e não detentivas, não serviram de suficiente dissuasor da reiteração criminosa do arguido, e nomeadamente por reporte a ilícitos que colocam em causa precisamente os mesmos valores jurídico–penais de ordem pessoal e patrimonial. O que, tudo, não pode deixar de acentuar numa perspectiva muitíssimo desfavorável, a avaliação que se faz sobre a personalidade do arguido, que revela assim uma deficiente preparação para assumir o respeito por valores jurídicos básicos, o que inquina à partida o juízo de prognose sobre o seu comportamento futuro, tornando o ‘risco’ que, nesta perspectiva, sempre envolve a ponderação pelo tribunal da suspensão da pena de prisão, num risco que não se revela de todo ‘prudente’. Ou seja, sobrepõem-se claramente aqui exigências de prevenção especial, face ao desrespeito que o arguido revelou nos seus actos, mesmo em face de anteriores oportunidades que lhe foram concedidas sob a forma de decisões judicias, e particularmente tendo em conta a reiteração na prática de ilícitos de similar natureza aos dos autos. Como com cirúrgico acerto consigna a decisão recorrida, «atendendo às exigências de prevenção geral e especial, dadas as recidivas criminais manifestadas pelo arguido, temos que concluir que as anteriores penas de multa, prisão suspensa não surtiram o efeito desejado, pelo que resulta claramente insuficiente a substituição da aludida pena prisão por qualquer outra pena em face quer das condenações anteriores aos factos em apreciação nos autos, quer as posteriores, num total de trinta e quatro, além do mais por crimes da mesma natureza, tendo os factos em apreciação nos autos sido praticados após condenação em pena de prisão efetiva pela prática do mesmíssimo crime. Destarte, não sendo possível fazer qualquer juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que qualquer das penas de substituição sejam adequadas e suficientes para realizar as finalidades da punição e prevenir o cometimento de novos ilícitos, veja-se que o arguido já foi condenado oito vezes pela prática do mesmo crime, sendo sete anteriores aos factos objecto dos autos, já beneficiou de todas as penas de substituição previstas no código penal. Afigura-se-nos que o arguido não se revelou permeável às solenes advertências ínsitas nas sentenças condenatórias, no sentido de o afastar do cometimento de crimes, veja-se que, antes da data da prática dos factos aqui em causa, o arguido tinha já sofrido condenações em pena de multa, condenação em pena de prisão, substituída por suspensão da execução da pena de prisão, sujeita a deveres/regras de conduta e também condenações em pena de prisão efectiva pelo mesmo crime, sem olvidar que posteriormente sofreu 28 condenações, entre as quais pela prática do mesmo crime.» Diga–se que, como contraponto, não deflui da matéria de facto provada qualquer sustento para a alegação recursória segundo a qual o meio familiar e social em que o arguido está integrado justificaria a suspensão penal pretendida. Tudo acentua, pois, e num sentido muitíssimo desfavorável, a avaliação que se faz sobre a personalidade do arguido, que revela assim uma deficiente preparação para assumir o respeito por valores jurídicos básicos, o que inquina à partida o juízo de prognose sobre o seu comportamento futuro, tornando o ‘risco’ que, nesta perspectiva, sempre envolve a ponderação pelo tribunal da suspensão da pena de prisão, num risco que não se revela de todo ‘prudente’.
Os aspectos mencionados impõem, pois, a conclusão de que, como muito bem concluiu o tribunal a quo, não oferece o arguido garantias suficientes de que a simples ameaça de execução da pena sejam ainda suficientes para o afastar do cometimento de novos crimes, e, deste modo, de que seja possível formular um juízo favorável da sua adequação futura às regras de convivência sociais, sobrepondo-se aqui muito claramente exigências de prevenção. Donde entender–se que não se mostram reunidos aqui os necessários requisitos que possibilitam a suspensão da pena de prisão do arguido, e que se mostram previstos no art. 50º do Cód. Penal, mantendo–se a decisão recorrida que determinou a efectividade do cumprimento da pena de prisão em que o arguido/recorrente foi condenado.
Em conclusão, improcede in tottum também assim esta derradeira parte do recurso. * * III. DECISÃO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em não conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas da responsabilidade do recorrente, fixando-se em 4 (quatro) U.C.´s a taxa de justiça (cfr. art. 513º do Cód. de Processo Penal e 8º/9 do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último). * Pedro Afonso Lucas José Quaresma Lígia Trovão (Texto elaborado pelo primeiro signatário como relator, e revisto integralmente pelos subscritores – sendo as respectivas assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo da primeira página) ______________ [[1]] Relatado por Nuno Gomes da Silva, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf [[2]] Relatado por Arménio Sottomayor, acedido em https://www.stj.pt [[3]] Relatado por Armindo Monteiro, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf [[4]] Disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20120312.html [[5]] Relatado por M. Carmo Silva Dias, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf [[6]] Relatado por Inácio Monteiro, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf [[7]] Relatado por Cravo Roxo, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf [[8]] Relatado por Rosa Pinto, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf [[9]] Relatado por Raúl Borges, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf [[10]] Relatado por Henriques Gaspar, disponível em Col. Jurisprudência – STJ, 2003, t. II, pág. 221 |