Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | MARIA JOÃO FERREIRA LOPES | ||
| Descritores: | PROCESSO CRIME PROCESSO DISCIPLINAR PRINCÍPIO DA PROVA RESPONSABILIDADE PENAL PRINCÍPIO DA SUFICIÊNCIA DO PROCESSO PENAL TESTEMUNHAS DECLARAÇÕES EM AUDIÊNCIA VALIDADE VALOR PROBATÓRIO CRIME DE COAÇÃO SEXUAL TIPO INCRIMINADOR | ||
| Nº do Documento: | RP202511056949/23.5JAPRT.P1 | ||
| Data do Acordão: | 11/05/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA) | ||
| Decisão: | NÃO PROVIDOS OS RECURSOS INTERPOSTOS PELO ARGUIDO. | ||
| Indicações Eventuais: | 4. ª SECÇÃO CRIMINAL | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - Entre o processo crime e o processo disciplinar vigoram os princípios da autonomia e da independência: as responsabilidades são autónomas, podendo um facto dar origem às duas responsabilidades, sem que a correspondente conjugação de responsabilidades constitua violação do princípio ne bis in idem. II - O princípio da suficiência do processo penal, vertido no artigo 7.º do CPP tem como fundamento manifesto o de arredar obstáculos ao exercício do jus puniendi que, directa ou indirectamente, possam entravar ou paralisar a acção penal e comporta a premissa de que no processo penal só valem as provas aí produzidas e analisadas (salvo as excepções expressamente previstas na lei). III - Da conjugação dos artigos 355.º/1 e 2, 356.º e 357.º todos do CPP, é líquido que fica arredada a possibilidade de leitura das declarações de testemunhas prestadas em processo disciplinar (e, por maioria de razão, em processo de averiguações prévio a processo desta natureza) e, logo, o confronto das testemunhas do processo crime com as declarações por elas prestadas em processo de averiguações ou processo disciplinar. IV - Apenas devem ser produzidos os meios de prova relevantes para a boa decisão da causa (o que é transversal a todas as fases do processo penal) o que vale por dizer que é a necessidade do eficaz exercício da acção penal que está em causa, que podia ser seriamente comprometido com a irrestrita admissão de todos os meios de prova indicados, ainda que completamente inúteis e até com objectivo de entorpecer o processo. V - Do ponto de vista da valoração da prova, a lei processual penal não regula em especial o valor probatório das declarações do assistente e demandante cível nem, tão pouco, se exige qualquer corroboração necessária, quer em geral, quer para aquele meio de prova específico, quer mesmo para a prova de determinados factos. VI - O tipo objetivo da coação sexual consiste no constrangimento de outra pessoa a sofrer ou a praticar com o agente ou com outrem acto sexual de relevo, bastando que o agente imponha à vítima a prática de um acto sexual de relevo, sendo que apenas no n.º 2 do artigo 163.º do C.P. é elemento integrador do tipo a violência, ameaça grave ou colocação da vítima em estado de inconsciência ou impossibilidade de resistir. (Sumário da responsabilidade da relatora) | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Proc. n.º 6949/23.5JAPRT Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo Local Criminal do Porto - ... Acordam, em conferência, na 2 ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto I. Relatório
* II. Fundamentação
* FACTOS NÃO PROVADOS: Com relevância para a decisão da causa, não se provou qualquer outro facto, nomeadamente que: A) Nas circunstancias de tempo e lugar descritas em 11) – o colega de trabalho fosse o EE. B) Em consequência dos factos supra descritos a ofendida sentia repulsa do seu próprio corpo, pensando por termos à sua própria vida; C) A ofendida padece de doença de foro psicológico, à data dos factos controlada e que, na sequência dos factos descritos agravou – tendo-lhe sido diagnosticada perturbação de Stress Pós – Traumatico. D) A ofendida, em consequência dos factos supra descritos, passou a ter consultas de psiquiatria com frequência semanal e foi-lhe prescrito Xanax e, posteriormente, de forma continua Brintellix e Quetamed. E) A medicação supra descrita consubstancia para a ofendida um custo mensal de €35,00, que estima tomar por período não inferior a 2 anos; F) Na sequência dos factos supra descritos – a ofendida deixou de querer conviver com a família e amigos. G) Qualquer proximidade com o sexo masculino deixam-na desconfortável e alerta. Todos os demais factos não elencados, nomeadamente na contestação e pedido civil, que se mostrem em contradição com os factos dados como provados e todos aqueles que consubstanciem matéria conclusiva ou meramente de direito. * MOTIVAÇÃO: A convicção do tribunal fundou-se nas declarações da queixosa e depoimentos das testemunhas prestadas em audiência de julgamento, prova documental existente nos autos, como a troca de mensagens de fls. 60 a 83 e 159 e ss dos autos - tudo analisado de forma crítica e em conjugação com regras de experiência comum. Impõe-se, antes de mais, referir que o arguido, desejou prestar declarações, e no uso das mesmas confirmou ser “superior hierárquico” da ofendida, devendo-lhe a mesma obediência nas orientações/diretivas de trabalho; que se tratou de uma festa de natal e que elogiou a ofendida e dançou com ela – sendo falsos os factos constantes da acusação e, inclusive, que tenha bebido em excesso, estando consciente. Assim, importa aferir da credibilidade das declarações da queixosa e demandante civil que confirmou os factos tal como constam da acusação. De facto, a queixosa, de forma credível, pela forma direta e espontânea como respondeu, confirmou, no essencial, os factos tal como constam da acusação, descrevendo pormenorizadamente, nomeadamente exemplificando gestualmente, a forma como o arguido a agarrou, dançou e apalpou as nádegas, bem como a forma como a empurrou contra o capô do carro, impedindo-a de se mexer, ao mesmo tempo que encostava o seu corpo ao da ofendida, referindo a mesma “ter sentido o sexo do mesmo ereto”. A credibilidade do depoimento da queixosa é também apoiada nos depoimentos das demais testemunhas inquiridas que, admitindo todas elas terem bebido em excesso, dada a ocasião festiva, nomeadamente o arguido, foram descrevendo os factos presenciados e corroborando, no essencial, a versão da ofendida com relação a determinados factos – o que sucedeu com as testemunhas EE (com a qual a ofendida trocou as mensagens escritas existentes nos autos, e para as quais se remete); BB; CC e DD, ainda que com os lapsos de memória decorrentes do tempo e, bem assim, as incongruências e esquecimentos derivados do facto de, em concreto se encontrarem todos em festa e bebidos, como resultou unanime da totalidade da prova – com exceção da ofendida que não bebia e não bebeu. Contudo, a testemunha EE refere que não viu o apalpão das nádegas e refere não ter sido o próprio a retirar a ofendida do capô do carro quando agarrada pelo arguido, não se recorda disso. Quanto a este facto, a ofendida, a testemunha BB e DD referem ter sido a testemunha EE a retirar a ofendida quando se encontrava no capô do carro. Ora, salvo o devido respeito, será irrelevante determinar num ambiente festivo, em que todos terão bebido com algum excesso, quem retirou ou não a ofendida de cima do capô do carro quando agarrada pelo arguido – o relevante é, antes, o facto de ter sido empurrada contra o capô do carro pelo ora arguido, colocada na impossibilidade de se mexer, ao mesmo tempo que o arguido encostava o seu corpo ao da ofendida, de forma à mesma sentir “o sexo ereto do mesmo”. Mais, as testemunhas BB e CC, ainda referem que quando o arguido vai para o carro – “coloca as mãos na zona genital e refere que ela (ofendida) lhe dava tesão” – o que veio também a ser referido pela testemunha FF, que quanto ao mais, nada se apercebeu e levou à extração de certidão. A testemunha EE confirma que o arguido várias vezes puxou a ofendida para dançar, olhava para ela e fazia comentários – tendo a testemunha de a retirar “para evitar coisas”, como a testemunha referiu, e sabendo que a ofendida não queria. A testemunha KK, não se encontrava no local e soube do sucedido, e terá comunicado com ambas as partes para procedimentos posteriores. Nada tinha contra o arguido. A testemunha II que referiu não ter ficado perto da ofendida e arguido – nada se apercebeu. As testemunhas LL; HH; MM e NN referem ter estado na festa, mas não se aperceberam de nada. Sendo que a testemunha LL quis efetuar troca de loja para a ofendida não se encontrar com o arguido, mas a mesma não aceitou. A testemunha OO – não foi à alegada festa. Referiu saber o que falavam e tentou demonstrar existir, dentro do trabalho, dois grupos. Tentou remediar tais factos pela existência dos dois grupos; debilidade da ofendida e não simpatia pelo arguido. Um depoimento sem qualquer suporte, baseado em suposições da testemunha. As testemunhas arroladas no Pedido de indemnização civil foram unanimes quanto ao sofrimento, angustia, vergonha, humilhação, - com os quais a ofendida se deparou na sequência dos factos dados como provados. Todos os demais factos, dados como não provados, resultaram da ausência de prova credível, nomeadamente, do excesso decorrente destes testemunhos, nomeadamente, do pai e irmão da ofendida, meras opiniões e conclusões retiradas e sem qualquer prova do nexo de causalidade entre os factos e os danos - dados como não provados. Nenhuma prova foi efetuada desse nexo de causalidade, nem mesmo com recurso às regras da experiencia comum. Já o facto dado como provado e peticionado a titulo de dano patrimonial relativo à falta de aviso prévio da ofendida e seu despedimento – o mesmo terá sido um ato totalmente voluntario da ofendida que terá sopesado os consequentes constrangimentos, sem nexo causal e, por isso, não passível de indemnização a esse titulo. Assim, por se mostrar credível, nos termos que supra referimos, o tribunal ateve-se, essencialmente, nas declarações da queixosa para dar por provada a conduta do arguido. O facto de a mesma ter continuado a dançar e permanecer até ao final da festa, unanimemente admitido, não é de per si suficiente para afastar a prática de tais factos. Face ao que objetivamente se apurou e regras de experiência comum, o tribunal deu por provada a intenção do arguido em praticar os factos, assim como o conhecimento que tinha de que a sua conduta era proibida e punida por lei. Teve ainda o tribunal em consideração o CRC quanto à ausência de antecedentes criminais do arguido. Os factos nãos provados, resultaram da insuficiência de prova que sobre os mesmos incidiu e nomeadamente, sobre a falta de prova do nexo causal entre os factos e os danos.” 2. Do erro notório e violação do princípio in dubio pro reo. 2.1. As razões do recorrente. Alega o arguido que existiu erro notório na apreciação da prova quanto aos pontos 4, 5, 8, 10, 11, 12, 13 da matéria de facto provada, pois que: - o Tribunal a quo valorizou de forma manifestamente desproporcionada as declarações da ofendida, desconsiderando os relevantes elementos probatórios que suscitavam fundadas dúvidas quanto à veracidade da sua versão dos factos; - firmou a sua convicção em torno da prática, pelo arguido, dos factos descritos nos aludidos pontos, todos sustentados maioritariamente - senão exclusivamente - nas declarações da ofendida e no depoimento das testemunhas BB, CC, DD e EE; - embora reconhecendo expressamente que essas testemunhas se encontravam sob o efeito de bebidas alcoólicas, em ambiente festivo e que os seus depoimentos continham lapsos de memória, incongruências e esquecimentos – elementos que, nos termos da lógica e da experiência comum, impõem uma análise crítica e prudente da credibilidade dos mesmos; - o Tribunal optou por considerar tais depoimentos como suficientes para sustentar, de forma inequívoca, a veracidade da versão da ofendida, ignorando não só os sinais evidentes de dúvida quanto à fiabilidade da prova testemunhal, como também as contradições internas nos depoimentos; - a testemunha EE - amigo próximo da Ofendida - declarou, expressamente, não se lembrar de qualquer comportamento por parte do Arguido que se compatibilizasse com os atos sexualmente agressivos descritos nos pontos 5, 10 e 13 da matéria de facto, afirmando que não retirou a ofendida de cima do capô do carro. - também os depoimentos das testemunhas BB, CC e DD não convergem de forma clara nem coincidem com a descrição da Ofendida, apresentando versões dispersas, com omissões relevantes e reconstruções subjetivas e pouco precisas dos factos; - a prova produzida não evidenciou qualquer comportamento anormal por parte da ofendida após os factos alegadamente ocorridos, tendo aquela permanecido na festa até ao fim, convivendo com os colegas e com o arguido, o que enfraquece ou pelo menos torna plausível a dúvida sobre a alegada gravidade da situação e do constrangimento sexual de que se diz vítima; - não existem testemunhas que confirmem os momentos centrais descritos nos factos dados como provados, nomeadamente o alegado apalpão das nádegas, o empurrão contra o capô do carro, a colocação da mão no pescoço e tentativa de beijo forçado, e havendo divergência significativa entre a versão da Ofendida e a do Arguido, corroborada pela ausência de perceção por parte das testemunhas, impunha-se, salvo melhor opinião, a aplicação do princípio in dubio pro reo; - o arguido negou a prática dos factos vertidos na acusação, pelo que os factos sob escrutínio foram indevidamente dados como provados, tendo o depoimento do arguido foi totalmente desvalorizado, com o simples fundamento de ser contraditório com o da ofendida - o que, só por si, não constitui motivo legítimo para desconsiderar a sua versão, sobretudo quando esta se apresenta plausível, coerente e reforçada por testemunhas que se encontravam no local e que o conhecem pessoal e profissionalmente; - a palavra da ofendida prevaleceu, em detrimento da do arguido, o que corresponde a uma total violação do mais elementar princípio de direito penal do in dubio pro reo. 2.2. Apreciando. Como vimos, mostrando discordar do julgamento firmado sobre determinados pontos da matéria de facto da fundamentação, da análise crítica da prova feita para os afirmar, o arguido acaba por enquadrar a questão processualmente, nos institutos do erro notório na apreciação da prova e violação do princípio in dubio pro reo, O recorrente estrutura a sua pretensão – de revogação da decisão recorrida e da sua absolvição - no facto de, na sua óptica, a prova pessoal não ter sido devidamente apreciada, tendo-se dado prevalência às declarações da ofendida em detrimento da versão dos factos apresentada pelo arguido, acabando, no entanto, por concluir que fundamenta a procedência do recurso, na questão da verificação do apontado vício da decisão e na violação do apontado princípio geral da prova em processo penal. Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º do CPP, a decisão, da Primeira Instância, relativa à matéria de facto pode ser modificada - artigo 431.º, alínea b) do CPP - quando a prova tiver sido impugnada de acordo com o disposto no artigo 412.º/3 do mesmo diploma. Estamos, então, perante duas vias que podem conduzir à modificação/alteração do julgamento da matéria de facto. Labora, no entanto, o recorrente em manifesto equívoco ao enquadrar em termos processuais a existência de um vício da decisão, aquilo que em substância trata como erro de julgamento, pois que pretende ser absolvido, pela consideração da sua versão/interpretação dos factos, fazendo crítica à valoração da prova efectuada pelo Tribunal a quo, daqui defendendo estarmos perante o vício do erro notório na apreciação da prova. Se no caso do artigo 412.º CPP - impugnação da matéria de facto – estamos perante erros de julgamento, no caso dos vícios do artigo 410.º/2 CPP estamos perante vícios da decisão. Qualquer das situações referidas no artigo 410.º/2 CPP, traduzem-se, sobretudo em deficiências na construção e estruturação da decisão e ou dos seus fundamentos, maxime na sua perspectiva interna, não sendo por isso o domínio adequado para discutir os diversos sentidos a conferir à prova. Qualquer um dos vícios previstos no n.º 2 do referido artigo 410.º CPP, é inerente ao silogismo da decisão e apenas dela pode ser apurado, nos termos aí definidos - não sendo possível o recurso a outros elementos que não o texto da decisão, para sua afirmação - ainda que conjugado com as regras da experiência, sendo a consequência lógica e imediata da sua existência, salvo o caso de ser possível conhecer da causa, o reenvio do processo nos termos do artigo 426.º do CPP. Na sequência lógica destes pressupostos, a sua emergência, como resulta expressamente referido no artigo 410.º/2 CPP, terá que ser detectada do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum. Em sede de apreciação dos vícios do artigo 410.º CPP, não está em causa a possibilidade de se discutir a bondade do que se considerou provado ou não provado, a maior ou menor abundância de prova para sustentar um facto. Qualquer dos vícios do artigo 410.º/2 CPP pressupõe uma outra evidência, não podendo, nesta sede, como faz o recorrente, proceder a uma diferente avaliação, ponderação e até interpretação das declarações da ofendida, dos depoimento das testemunhas e das suas declarações. O recorrente estrutura a existência daquele apontado vício, não numa análise da decisão na sua componente interna, de racionalidade, de lógica e de coerência das diversas asserções dadas como provadas, mas antes, numa perspectiva de expressar o seu inconformismo com o resultado do julgamento da matéria de facto que lhe foi desfavorável. Em sede de apreciação dos vícios do artigo 410.º CPP, não está em causa a possibilidade de se discutir a bondade do que se considerou provado ou não provado, a maior ou menor abundância de prova para sustentar um facto. Os vícios do artigo 410.º/2 não podem ser confundidos com uma suposta insuficiência dos meios de prova para a decisão tomada em sede de matéria de facto, nem podem emergir da mera divergência entre a convicção pessoal da recorrente sobre a prova produzida em julgamento e a convicção que o tribunal firmou sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inserto no artigo 127.º CPP. A valoração da prova em sentido diverso - fora o caso de erro notório - merece tratamento em sede erro de julgamento, nos termos do artigo 412.º CPP, através do controlo do erro na apreciação das provas (sobre a sua admissibilidade e valoração dos meios de prova) e a consequência imediata da sua procedência, é a modificação da matéria de facto, artigo 431.º CPPenal. Cremos ser evidente que a forma como o recorrente pretende obter a modificação do julgado, está longe de ser modelar, pois que trata questões atinentes à impugnação da matéria de facto, não em sede de erro de julgamento, no âmbito do artigo 412.º CPP, mas antes em sede de vício da decisão, no âmbito do artigo 410.º (que se reporta, de resto, a vícios, do conhecimento oficioso) e na violação do princípio in dubio pro reo. Andou, por isso mal, ao dar a veste processual que deu, à sua pretensão de absolvição, desde logo, com base na sua própria, valoração e apreciação sobre a prova produzida, de forma diversa, oposta, daquela que foi feita pela entidade competente, o tribunal. Todas as invocações feitas no sentido da existência do vício do erro notório e da violação do princípio in dubio pro reo, feitas pelo recorrente laboram em manifesto erro e confusão de conceitos, dado que a sua existência vem estruturada tão só, como corolário da discordância que patenteia com a forma como foi feita a valoração da prova na decisão recorrida. Assim, perante este manifesto erro de enfoque feito pelo recorrente, ao qualificar como vício do artigo 410.º/2 alínea c) do CPP, que a existir constituiria vício da decisão, pretensão esta, estruturada no facto de o tribunal a quo não ter valorado, na sua perspectiva, correctamente a prova produzida, de natureza pessoal, o que, a ocorrer, constituiria erro de julgamento, temos que concluir que não se verificam, pelas razões apontadas, nem outras se vislumbrando para a ocorrência, qualquer dos vícios previstos no artigo 410.º/2 CPP. Com efeito, da leitura da decisão e, designadamente dos segmentos dos factos provados e da motivação, caldeada com as regras da experiência comum, pois que a outros elementos não pode o Tribunal socorrer-se, não se vislumbra que se patenteie, quer o apontado - erro notório na apreciação da prova, pois que não existem pontos de facto fixados na decisão recorrida, manifestamente arbitrários, contraditórios ou violadores das regras da experiência comum, - quer, os não invocados, da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito, pois não se vê que matéria de facto, com utilidade e pertinência, poderia o tribunal, mais ter averiguado, nem da contradição insanável na fundamentação - ou entre esta e a decisão - já que não se descortina a existência de factos ou de afirmações que estejam entre si numa relação de contradição. Do acervo destas noções, resulta manifesto que os fundamentos em que o recorrente estrutura a existência da insuficiência, não têm a virtualidade de o integrar. Com efeito, o que o recorrente, desta forma, inequivocamente, pretende é alterar o sentido da decisão sobre a matéria de facto, de cuja afirmação positiva discorda. Improcede, assim, este segmento do recurso. 2.3. A violação do princípio in dubio pro reo. É certo que se vem, invariavelmente, entendendo que a violação deste princípio geral da prova em processo penal pode ser conhecido em sede apreciação do vício do erro notório na apreciação da prova. Mas uma vez que o arguido suscita ambos ainda que com os mesmos fundamentos e objectivos, também, abordaremos, esta questão de forma autónoma, para melhor definir e precisar conceitos jurídicos que o arguido, patentemente, confunde e de forma a evitar a invocação futura de nulidade por omissão de pronúncia. Depois de analisados os excertos da prova pessoal, que invoca a demonstrar a existência de erro de julgamento, afirma o arguido que se deve concluir pela sua absolvição, pois que, se deu como provados factos sem prova dos mesmos e, não obstante as dúvidas que o recorrente diz que existem, o tribunal não se coibiu de decidir contra si, defendendo, assim, a violação daquele princípio. Ora, como é sabido, “em processo penal, vigora o princípio da presunção de inocência do arguido, com consagração constitucional no artigo 32.°/2 da Constituição da República Portuguesa e ainda na Declaração Universal dos Direitos do Homem, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, cuja primeira grande incidência, assenta fundamentalmente, na inexistência de ónus probatório do arguido em processo penal, no sentido de que o arguido não tem de provar a sua inocência para ser absolvido; um princípio in dubio pro reo; e ainda que o arguido não é mero objecto ou meio de prova, mas sim um livre contraditor do acusador, com armas iguais às dele. Na verdade, e em primeiro lugar, o princípio da presunção de inocência do arguido isenta-o do ónus de provar a sua inocência, a qual parece imposta (ou ficcionada) pela lei, o que carece de prova é o contrário, ou seja, a culpa do arguido, concentrando a lei o esforço probatório na acusação. Em segundo lugar, do referido princípio da presunção de inocência do arguido decorre um princípio in dubio pro reo, princípio que procurando responder ao problema da dúvida na apreciação do caso criminal (não a dúvida sobre o sentido da norma, mas a dúvida sobre o facto) e, partindo da premissa de que o juiz não pode terminar o julgamento com um non liquet, determina que na dúvida quanto ao sentido em que aponta a prova feita, o arguido seja absolvido” - cfr. Rui Patrício, O princípio da presunção de inocência do arguido na fase do julgamento no actual processo penal português, Ass. Académica da FDL, 2000, 93/94. Como cremos resultar do supra transcrito, que a decisão recorrida procurou demonstrar, na motivação e no exame crítico da prova, a existência das razões pelas quais o tribunal deu como provados os factos, contra cujo julgamento o arguido se insurge, permitindo-lhe, nesta fase, de recurso, todos os meios de defesa, e ao tribunal de recurso, assim como a qualquer cidadão, reconstruir retrospectivamente o iter percorrido na decisão recorrida. O princípio in dubio pro reo como regra de decisão da prova, é a solução que resulta de um conjunto de factores em verificação cumulativa: - necessidade de pôr fim ao processo, com decisão definitiva que não represente, do ponto de vista da paz jurídica do arguido, uma demora intolerável; - a inadmissibilidade da pena de suspeição; - a opção pelo modus probandi de livre apreciação da prova ou livre convicção do tribunal, necessariamente objectivável e motivável; - a possibilidade do surgimento de dúvidas, resistentes à prova e impeditivas da tal convicção, na verificação dos enunciados factuais abrangidos pelo objecto do processo; - a consciência da diferença entre o processo criminal e a lide civilística, que impede a transferência para o primeiro da solução do ónus de prova, típica de um processo de partes; - a convicção de que o Estado não deve exercer o seu ius puniendi quando não obtiver a certeza de o fazer legitimamente. Daí que, este princípio deve ser perspectivado e entendido, como remate da prova irredutivelmente dúbia, destinado a salvaguardar a legitimidade da intervenção criminal do poder público. O Estado não deve exercer o seu ius puniendi quando não obtiver a certeza de o fazer legitimamente. Consequentemente, só releva e restringe o seu âmbito de aplicação à questão de facto, é mais do que o equivalente processual do princípio da culpa, desligando-se, quanto ao fundamento, da presunção de inocência e abarcando, quer as dúvidas sobre o facto crime, quer a incerteza quanto à perseguibilidade do agente. E finalmente o controle da sua efectiva boa ou má aplicação está dependente de os tribunais cumprirem a obrigação de fundamentarem a sua convicção - cfr. Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e in dubio pro reo, 165 e ss., citada no Ac. deste Tribunal de 04-07-2007, que aqui seguimos de perto. Quer isto dizer, que a sua verificação pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, sendo certo, todavia, que a simples existência de versões díspares e até contraditórias sobre os factos relevantes, não implica que se aplique, sem mais, o princípio in dubio pro reo. Não basta a mera probabilidade de existir uma hipótese contrária à da acusação, para que se possa afirmar que tal obsta à condenação do arguido. Será seguramente, necessário para fazer desencadear a aplicação deste princípio, que a versão do arguido seja plausível e demonstrável, pois só uma versão credível subjaz a uma dúvida racional. Não basta a mera plausibilidade e verosimilhança da sua versão para que surja sem mais, a dúvida séria e razoável. Ou seja, o estado de dúvida só pode surgir de duas (ou mais) versões plausíveis dos factos, minimamente fundadas e sustentadas. Se da decisão recorrida resultar que o tribunal chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido, há que concluir pela violação de tal princípio. Da mesma forma é violado o dito princípio se o mesmo for invocado sem fundamento, sério e razoável, seja fora das condições concretas de que depende a sua aplicação e, não obstante, se decretar a absolvição do arguido. A questão que o arguido coloca é a de saber qual a natureza, a dimensão e a característica que deve assumir a dúvida - a que o tribunal chegue - como pressuposto e justificação da aplicação deste princípio. Não pode deixar de ser uma dúvida insanável, razoável, racional, objectiva e séria e, não meramente subjectiva, intuitiva e assente em meras conjecturas ou suposições ou, tão pouco, fundada e estruturada numa errada apreciação da prova. Importa, assim, indagar se no caso, a regra da absolvição na dúvida, foi, ou não, violada. E a resposta a dar depende da apreciação que se fizer sobre se merece censura o processo lógico e racional, subjacente à formação da afirmada convicção; depende do facto de se poder, ou não considerar como suficiente e bastante a fundamentação; depende do facto de se poder, ou não, afirmar que o tribunal errou, notoriamente - na apreciação e na valoração que fez da prova. O que nos remete para a formulação da questão de saber qual o grau de certeza exigível para que se dê determinado facto como provado. Isto, porque a certeza que se visa alcançar será sempre uma certeza possível, uma firme persuasão da verdade, a verdade lógica, racional e processualmente válida resultante da concreta prova produzida nos autos e nunca uma certeza ontológica. Será que se justifica que o Tribunal de Primeira Instância tivesse ficado na dúvida sobre a afirmação do facto cujo julgamento o arguido impugna? Obviamente que, desde logo, a conclusão afirmada pelo recorrente tem subjacente a sua própria, subjectiva, interessada e parcial, valoração do conjunto da prova produzida. E como se sabe, quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum. Nenhuma dúvida assolou o tribunal sobre o modo como os factos se passaram e sobre a culpabilidade do arguido, sendo certo que “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida” - cfr. Roxin, Derecho Processual Penal, Buenos Aires, 111. E a dúvida, que impede o julgamento como provado de determinado facto, é apenas aquela que o tribunal tiver e, não a dúvida que o arguido entende que o tribunal deveria ter tido. Donde, está, também, este segmento do recurso, votado ao fracasso. 3. Erros de julgamento. 3.1. Os factos de cujo julgamento o arguido discorda são os seguintes: “4. Ali, o arguido AA dirigiu-se à ofendida e perguntou-lhe se estava assim vestida para ele e se o queria matar do coração, constrangendo-a. 5. No dia 5 de Dezembro de 2023, cerca das 03h30, quando se encontravam na Alfândega ..., a dançar, após o jantar, o arguido AA dirigiu-se junto da ofendida GG e puxou-a para dançar, tendo-lhe dito que lhe ia partir o coração e, contra a vontade desta e com o propósito exclusivo de satisfazer os seus impulsos sexuais, apalpou-lhe as nádegas. 8. A ofendida GG regressou, então, à pista de dança, tendo o arguido se mantido próximo desta durante o resto da noite, contra a vontade da ofendida. 10. Momentos depois, o arguido chegou e, contra a vontade da ofendida, abraçou-a e disse-lhe que pegava nela e que a “fodia”. De seguida, o arguido empurrou a ofendida contra o capot de um carro, impedindo-a de se mexer, ao mesmo tempo que encostava o seu corpo ao da ofendida, com o único propósito de satisfazer os seus instintos libidinosos. 11. Nessa altura, um dos colegas presentes, apercebendo-se que a ofendida estava incomodada, puxou-a pelo braço e tirou-a dali. 13. O arguido AA seguiu a ofendida e puxou-lhe um braço, virando-a para si, fazendo com que a mesma ficasse encostada ao carro, e de seguida colocou-lhe a mão no pescoço, apertando-lho, e aproximando a sua cara da cara da ofendida, como se a fosse beijar, sempre contra a vontade desta, ao mesmo tempo que lhe dizia que queria ficar com ela.” Pretende que a redacção a dar aos pontos 4. e 5. seja a seguinte: “4. Ali, o arguido AA dirigiu-se à ofendida e perguntou-lhe se estava assim vestida para ele e se o queria matar do coração”. “5. No dia 5 de Dezembro de 2023, cerca das 03h30, quando se encontravam na Alfândega ..., a dançar, após o jantar, o arguido AA dirigiu-se junto da ofendida GG e puxou-a para dançar, tendo-lhe dito que lhe ia partir o coração”. E que sejam julgados como não provados os factos inscritos nos pontos 8, 10, 11 e 13 da matéria de facto provada. 3.2. Preliminarmente, a propósito dos erros de julgamento, cumpre fazer uma breve referência aos poderes conferidos às Relações em termos de modificação da matéria de facto apurada em Primeira Instância. Não obstante, hoje, nos termos do artigo 428.º CPP, as Relações conhecerem de facto e de direito, não basta para que se conheça da matéria de facto que a prova haja sido documentada, o que aliás acontece sempre obrigatoriamente. A decisão, da 1.ª instância, relativa à matéria de facto, pode ser modificada nos termos do artigo 431.º alínea b) do CPP, isto é, quando a prova tiver sido impugnada de acordo com o disposto no artigo 412.º/3 e 4 do mesmo diploma. Como é sabido, o artigo 412.º do CPP é relativamente exigente em relação aos requisitos formais a observar no recurso quando este verse sobre matéria de facto. Se o recorrente pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, tem de dar satisfação cabal aos ónus contidos nos nºs. 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, que dispõe que: “(…) 3. quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) as provas que devem ser renovadas. 4. Quando as provas tenha sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do nº anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do artigo 364º/2, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”. A razão de ser da exigência deste procedimento, está relacionada com o facto de que o recurso sobre matéria de facto não configura um novo julgamento destinado a reapreciar toda a prova produzida perante a primeira instância e documentada no processo, antes se destina a remediar erros de julgamento, que devem ser indicados ponto por ponto e com a menção das provas que demonstram esses erros. A Lei n.º 48/2007 de 02/08, que conferiu a redacção acabada de descrever ao preceito em causa, mudou profundamente o regime da impugnação da matéria de facto, visando, por um lado, tornar mais exigente a especificação dos pontos de facto impugnados e das provas que impõem, decisão diversa da recorrida e, por outro, colocar fim à transcrição dos registos gravados. A exigência de na motivação do recurso sobre a matéria de facto, se dever especificar os concretos pontos de facto que se considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, deve ser, nesta conformidade, entendida, como, apenas se satisfazendo, com: - a indicação do facto individualizado que consta da decisão recorrida e que se considera incorrectamente julgado e, - a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida. Será insuficiente, no que se refere àquele primeiro requisito, a mera enunciação da totalidade da materialidade descrita na acusação e transposta para a sentença - sem qualquer, diferenciação, distinção ou particular especificação – e, quanto a este último requisito, a mera indicação genérica de um determinado depoimento. O recorrente deve explicitar por que razão essa prova impõe decisão diversa da recorrida. Esta exigência de concretização visa impor a quem recorre a obrigação de relacionar o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado. No caso de depoimentos prestados em audiência, a referência ao suporte magnético apenas se cumpre com a indicação do nº. da “volta” do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento ou agora que a gravação deita no próprio sistema citius, com a indicação do tempo em que consta o trecho de depoimento, que se pretende salientar. Isto não obstante o STJ, através do Acórdão 3/2012, de 18/04, ter fixado jurisprudência assumidamente dando prevalência ao substancial em detrimento do formal, estabelecendo-se que mesmo para os casos em que na acta constem o início e o termo da gravação de cada declaração, “visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta para os efeitos do disposto no artigo 412º/3 alínea b) C P Penal, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações”. Por outro lado, é de reforçar que a procedência da impugnação, com a consequente modificação da decisão sobre a matéria de facto, não se satisfaz com a circunstância de as provas produzidas possibilitarem uma decisão diversa da proferida pelo tribunal a quo. Este decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção, e por isso, não é suficiente para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida. E a demonstração desta imposição recai igualmente sobre o recorrente, que deve relacionar o “conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado” (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 1135). Como se refere no ac. do TRC de 12-07-2023, proc. n.º 982/20.6PBFIG.C1, www.dsi.pt) a impugnação alargada não se satisfaz com “mera discordância do recorrente quanto à valoração feita pelo tribunal recorrido quanto à prova produzida, contrapondo apenas os seus argumentos, críticas, a negação dos factos, suscitando dúvidas – próprias que não do julgador - e não analisando o teor dos depoimentos das indicados nas respetivas passagens da gravação, indicando por que tal facto ou factos devem ser dados como provados ou não provados.” Não obstante, cumpre aqui introduzir uma distinção deveras relevante e, muitas vezes olvidada. Se o recorrente impugna a matéria de facto com o fundamento em que a prova produzida é insuficiente para sustentar uma condenação, que não foi produzida prova com base na qual o Tribunal possa concluir, sem dúvidas, pela culpabilidade do agente, não se lhe pode exigir, naturalmente, que indique, especificadamente, as provas que imponham uma decisão diferente. Como refere Sérgio Gonçalves Poças (Processo Penal, Quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto, in Julgar, n.º 10, 2010, pag. 33) “De facto, no caso de não ter havido quaisquer outras provas para além das indicadas na motivação da decisão, em minha opinião, o procedimento descrito será normal. O recorrente não pode indicar outras provas — que não existem — que imponham decisão diversa, mas pode defender que aqueles depoimentos impõem decisão diversa da recorrida. Como nos parece evidente, o recorrente ao questionar a valoração da prova levada a cabo pelo tribunal está verdadeiramente a impugnar a matéria de facto, apesar de não estar a indicar outras provas que impõem decisão diversa. Aliás o recorrente pode/deve indicar outras passagens dos depoimentos daquelas testemunhas (das mesmas testemunhas) dos quais, em seu entender, se deve concluir com segurança, que o tribunal decidiu mal na valoração que fez daqueles depoimentos. Cada caso tem de ser analisado com ponderação, sob pena de se cair no logro de dizer, em situações como a descrita que o recorrente não impugnou validamente a decisão da matéria de facto quando verdadeiramente o fez.” No caso concreto o recorrente cumpriu, de forma satisfatória, os ónus que sobre ele incumbia nesta sede, tendo concreta e especificadamente apontado os factos que constam da sentença recorrida e que considera incorretamente julgados e, bem assim, assinalou o conteúdo específico dos meios de prova que impõem diferente decisão, com a explicitação das razões que assim o determinam. 3.3. A prova em concreto que o recorrente invoca, localiza no suporte de gravação e transcreve, é a seguinte: No que toca ao ponto 4.º Pretende o arguido, tão somente, que dali se retire a expressão “constrangendo-a”. Ora tal expressão é meramente conclusiva, para além de profundamente equívoca, não se entendendo a respectiva utilização no caso concreto. É que “constranger”, verbo, transitivo, significa “apertar ou impedir os movimentos de” e, em sentido figurado “tolher o meio de acção; coagir; forçar; obrigar pela força, violar”. Não se vislumbra pois, que os ditos comentários dirigidos pelo arguido à ofendida tivessem a virtualidade de a “constranger” nos termos referenciados. Assim sendo, ter-se-á por não escrita a dita expressão “constrangendo-a” no final do ponto 4.º da matéria provada, sendo desnecessário proceder à análise da prova indicada pelo arguido. Ponto 5 da matéria de facto O recorrente pretende seja dele expurgada a factualidade “e, contra a vontade desta e com o propósito exclusivo de satisfazer os seus impulsos sexuais, apalpou-lhe as nádegas”. - transcreveu as suas próprias declarações, reconhecendo que “puxou” a assistente para dançar, tal como fez com outras pessoas, abraçando-a, mas negando perentoriamente ter apalpado as nádegas da primeira (curiosamente, como se referiu já, o arguido, no recurso, não coloca em causa que tenha dito à ofendida que “lhe ia partir o coração” mas transcreve declarações em que nega tal facto: [00:17:18] Mma. Juiz: Quando a puxou para dançar, não disse que lhe ia partir o coração? Que ela lhe ia partir o coração? [00:17:24] AA: Não, Sra. Juiz. Exatamente o que você ia dizer, não disse nada disso a ela…). - depoimento da testemunha EE: “[00:03:24] EE: Ele chamou-a para dançar várias vezes e ela já tinha demonstrado que não queria. Ele estava um bocado alcoolizado. Então, interferi algumas vezes para que ele a deixar quieto, né. Foi basicamente isso que se passou durante a festa, foi o que eu percebi. (…) [00:05:50] Procurador: Consegue-nos descrever melhor (…) como é que ele a convidava para dançar, como é que o senhor reparou que a GG não queria? Como é que o senhor interferiu? [00:06:07] EE: Ele vem mais tipo – vamos lá, vamos dançar aqui (…) E eu percebi que ela não queria (…) Ele vinha puxava-a e tal (…) aconteceu umas, duas, três vezes, não me recordo. [00:06:33] Procurador: (…) Reparou se nalguma algumas dessas tentativas ele conseguiu ainda estar alguns momentos a agarrá-la e conseguiu iniciar a dança? Estavam de frente um para outro? [00:06: 52] EE: Pela minha lembrança, pelo menos nas vezes que eu interferi, nunca chegou à dança porque já sabia que ele estava meio bêbedo e ela não queria, sempre que eu via, eu já vinha puxa-a. Eu sou mais próximo da GG e puxava-a e pronto. [00:07:07] Procurador: Mas olhe não chegou a ver (…) sequer a abraçar? (…) Não chegou sequer a conseguir abraçar no início? (…) Não houve nenhuma situação em que a tenha conseguido abraçar? (…) Colocar as mãos dele totalmente à volta dela, ou na cinta, ou nos ombros, ou atrás das costas? [00:07:32] EE: Sendo muito sincero. Não consigo lembrar de tantos detalhes, mas ele tentava dançar, eu consigo dizer isso. [00:07:41] Procurador: Reparou se em algum momento ele consegue deslizar as mãos pelo corpo da GG (…) um apalpão nas nádegas, no rabo (…)? [00:07:50] EE: Não, na altura a inspetora fez-me a mesma pergunta e eu não vi nada. Não vi nada disso. Ela não comentou nada na altura. [00:08:05] Procurador: Mas o senhor estava sempre a olha para a dona GG? Estava sempre no seu foco de atenção (…) [00:08:17] EE: Era uma festa da empresa (…) foi até um pouco legal nesse sentido (…). Eu dancei com muita gente, bebi bastante e, por acaso, estávamos sempre uns com os outros. Nós dominamos o palco. O meu foco na altura não era a GG, (…) mas quando eu percebia intervim”. - depoimento de DD: “[00:01:25] Procurador: Não se apercebeu de nada? Ok, conversas paralelas, muito bem. Olhe, e depois da festa? Quando… na festa… até à parte da dança, notou alguma coisa entre os dois? Durante o jantar, durante as bebidas? [00:01:37] DD: O que para mim me pareceu, dentro da festa, foi que o AA parecia… notava-se que a GG estava um bocado triste e parecia estar a tentar animar durante a festa. [00:01:46] Procurador: Ok. Então e porque é que estaria triste, a GG? [00:01:50] DD: Não sei, não cheguei a perguntar, não questionei. [00:01:55] Procurador: E como é que o Sr. AA a tentava animar? [00:01:57] DD: Estava a dançar com ela, chamava-a, tentava animá-la para ela dançar, para ela se divertir. [00:02:05] Procurador: E a GG queria dançar com o Sr. AA, a D. GG? [00:02:09] DD: Eu não sei se queria, mas… [00:02:13] Procurador: Se o senhor estava a ver o Sr. AA a tentar dançar com a GG também via o que ela respondia. [00:02:17] DD: não… sim, eu reparei neste caso à distância, não cheguei a ouvir a resposta dela. Eu reparei mesmo que estava a distância que…”. Em síntese, o arguido nega a factualidade em causa e as duas mencionadas testemunhas referiram que o arguido dançou (ou pretendeu dançar) com a ofendida, por diversas vezes, não tendo presenciado que o primeiro tivesse “apalpado as nádegas” à última. Face ao exposto cumpre, pois, perguntar, se a prova invocada pelo recorrente impõe que o Tribunal considere como não provado que “(…) e, contra a vontade desta e com o propósito exclusivo de satisfazer os seus impulsos sexuais, apalpou-lhe as nádegas”. Relembrando, na sentença em análise fez-se constar, na fundamentação da matéria de facto, que “De facto, a queixosa, de forma credível, pela forma direta e espontânea como respondeu, confirmou, no essencial, os factos tal como constam da acusação, descrevendo pormenorizadamente, nomeadamente exemplificando gestualmente, a forma como o arguido a agarrou, dançou e apalpou as nádegas, bem como a forma como a empurrou contra o capô do carro, impedindo-a de se mexer, ao mesmo tempo que encostava o seu corpo ao da ofendida, referindo a mesma “ter sentido o sexo do mesmo ereto”. A valoração do depoimento da assistente por parte do Tribunal a quo mostra-se conforme às actuais regras de direito probatório acolhidas no nosso processo penal, maxime o princípio da prova livre ou não taxatividade dos meios de prova, previsto no artigo 125.º do CPP, relativo à aquisição da prova, e o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127.º do CPP, relativo à sua valoração. Do ponto de vista da aquisição da prova, a lei processual penal inclui genericamente as declarações do assistente e das partes civis entre os meios de prova que expressamente prevê (cfr artigo 145.º do CPP), pelo que não só aquelas declarações não são proibidas por lei, como são expressamente reguladas, sendo claramente admissíveis face ao princípio acolhido no artigo 125.º do CPP. Do ponto de vista da valoração da prova, a lei processual penal não regula em especial o valor probatório daquelas declarações, limitando-se a dispensar o assistente e as partes civis da obrigação de prestar juramento, mas vinculando aqueles sujeitos processuais ao dever de falar com verdade de forma semelhante ao previsto para o depoimento testemunhal, cujo regime lhe é subsidiariamente aplicável (cfr. artigo 145.º/2 e 3). O CPP não prevê, ainda, qualquer regra de corroboração necessária, quer em geral, quer para aquele meio de prova específico, quer mesmo para a prova de determinados factos, pelo que a valoração das declarações do assistente deve respeitar apenas o princípio da livre apreciação da prova. Princípio da livre apreciação da prova que, porém, não se confunde com a mera convicção íntima e imotivada, susceptível de conduzir à decisão arbitrária. A apreciação ou valoração da prova, isto é, o juízo formulado pelo tribunal de julgamento quanto à prova dos factos com base nos meios de prova produzidos, pode fazer-se essencialmente de acordo com dois modelos ou sistemas que historicamente se sucederam: o modelo caracterizado pelo princípio da livre apreciação da prova e o sistema, ou sistemas, de prova legal ou tarifada, em que era a lei que estabelecia, de forma abstracta, a suficiência ou necessidade de certos meios para prova de determinados factos e fixava ou hierarquizava o valor ou força probatória a atribuir a cada meio de prova, impondo ao juiz, sob certas regras, considerar provado um facto, ou o contrário, vedando ao tribunal a decisão sobre a prova dos factos com base na convicção deixada pelo conjunto da prova produzida. O princípio da livre apreciação da prova, é compreendido com o sentido de que, contrariamente aos sistemas de prova legal, o juiz não se encontra sujeito a regras, prévia e legalmente fixadas sobre o modo como deve valorar a prova, libertando-o das regras rígidas da prova tarifada, de critérios preestabelecidos pela lei para formar a sua convicção, encontrando-se, porém, sujeito às leis da lógica, da experiência e da ciência, para além de certas regras de direito, devendo motivar as suas decisões em matéria de facto (cf. Eduardo Correia, Les preuves en droit pénal portugais in Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XIV, Janeiro-Junho de 1967, nºs 1-2. p. 29) as quais devem mostrar-se objectiva e racionalmente alicerçadas nos meios de prova validamente produzidos. Ora, não obstante o interesse na causa que, por princípio, se reconhece no assistente (bem assim como nas partes civis e mais ainda no arguido), não há regra legal que limite o seu valor probatório, como aludido, nem tão pouco pode falar-se de regra ou máxima da experiência que, de forma apriorística e abstracta, afirme a falta de credibilidade das declarações da vítima, ofendido ou arguido em termos tais que se exigisse – pelo menos – a sua corroboração por outros meios de prova. Em síntese, como se refere no Ac. RC de 17-05-2017 (proc. n.º 430/15.3PAPNI.C1), “A prova por declarações do assistente é livremente valorada, também quando se confronta com o resultado da prova por declarações de arguido. A lei não proíbe que possa, por si só, conduzir à condenação. Não o reconhecer, seria não só uma prática contra legem, como um retrocesso ilegal ao sistema da prova vinculada ou tarifada. Inviabilizaria também a perseguição de crimes que ocorrem na absoluta privacidade, ou nos casos em que não existam testemunhas. O Tribunal pode formar a sua convicção apenas num único depoimento, mesmo que se trate do assistente. O importante é que esta o preste de forma séria e credível e o Tribunal de forma clara e concisa explicite as razões do seu convencimento.” E, no caso concreto é apenas isto que está em causa. A circunstância de as testemunhas não terem presenciado os factos em causa não significa, como parece líquido e óbvio, que os mesmos não tenham acontecido. Tanto mais que os mesmos ocorreram (como reitera o recorrente) num ambiente festivo, com pessoas a dançar, movimentarem-se, conversarem e bebendo em que cada testemunha tinha diversos “focos de atenção”, sendo que o gesto intrusivo do arguido foi necessariamente breve. Não obstante, cumpre referir que a testemunha EE mencionou que a assistente não queria dançar com o arguido que “já estava meio bêbado”, levando-a a “intervir”, para que o último deixasse a primeira “quieta”. Por sua vez, a testemunha DD mencionou que a assistente estaria “triste” e o arguido a tentava “animar”. Depoimentos que, desta forma, acabam por corroborar a existência de comportamentos indesejados do arguido relativamente à assistente e que provocaram na última uma alteração do seu estado de ânimo. Como vimos, a assistente afirmou a ocorrência do dito “apalpão”, sem a sua vontade, e fê-lo de forma convincente, como consta da decisão recorrida, sendo que tudo quanto acima se mencionou se aplica às declarações do arguido: estas não merecem, de per si, qualquer credibilidade acrescida relativamente às declarações da assistente. Tudo depende de juízo de credibilidade, verosimilhança e seriedade que se efectue relativamente aos dois meios de prova em confronto. Ponto 8 da matéria de facto Pretende o arguido que a factualidade aí vertida não encontra correspondência na prova testemunhal, sendo que diversas testemunhas, descreveram a atitude da Ofendida durante a festa como descontraída, alegre e participativa, sem qualquer indício de mau estar ou constrangimento que permitisse inferir que se sentia desconfortável com a presença do arguido. E para o efeito passa a citar o depoimento de EE respondendo à pergunta se, na sua perspetiva e naquilo que viu na pista de dança, inibiu a GG de continuar a participar na festa, de se divertir, de estar com os outros colegas: “[00:28:47] EE: Na minha opinião continuo normal, continuamos dançando, fazendo vídeos, etc.; [00:28:55 ] Advogado: Olhe, pergunto-lhe também se a Dona GG dançou com outros colegas nessa festa? [00:29:01] EE: (…) Sim, comigo, por exemplo.” Desde logo cumpre salientar que a testemunha em causa não viu o “apalpão” já sobejamente referenciado. E não tendo visto nada de registo (para além da “meia” embriaguez do arguido e da sua insistência em “puxar” a ofendida para dançar) como poderia a testemunha responder cabalmente à pergunta que lhe foi feita? Sendo certo, ainda assim que a referenciada resposta em nada infirma a factualidade provada: a testemunha disse apenas que se estiveram a divertir e que a assistente dançou com outras pessoas, o que nada colide, pelo contrário, com a circunstância de a assistente ter regressado “(…)à pista de dança, tendo o arguido se mantido próximo desta durante o resto da noite, contra a vontade da ofendida” Como cita também o depoimento de BB que, depois de afirmar que por causa de uma “boca” da testemunha a assistente começou a chorar, disse que se a mesma estivesse deprimida ou triste não “não vai estar a dançar à frente de um DJ em cima do palco para toda a gente ver…”. Também tal depoimento, passe incongruência anotada, não tem qualquer virtualidade para impor uma decisão diversa quanto ao que se deu como provado no ponto 8.º. O mesmo acontecendo com o depoimento de CC. Este disse que a assistente “[00:07:56] Estava lá tranquila….;” “[00:07:59] estava a dançar no palco” e que depois da festa lhe disseram que tinha aí tinha acontecido alguma coisa e que “[00:08:07] … Se aconteceu ou não, eu não sei. Mas agora é assim, se aconteceu e ela depois estava em cima do palco a dançar, eu acho que isso é um bocadinho… não sei, na minha perspetiva, não é? Tipo, aconteceu algo de mal que ela não gosta e depois está em cima do palco a dançar, toda contente… acho que é um bocadinho…”. Tal depoimento, contendo uma crítica implícita ao comportamento da ofendida, corrobora, efectivamente que a ofendida voltou a dançar. O que não significa, porque tal não foi afirmado por quem quer que fosse, que o arguido não se manteve próximo da assistente, de forma não desejada por esta. E o mesmo se diga relativamente às considerações feitas pelo arguido a propósito do depoimento de HH e que têm subjacente um entendimento limitado, paternalista e completamente ultrapassado da realidade de que a mulher vítima de qualquer comportamento sexualmente repreensível, de qualquer abordagem indesejada, se deve esconder, anular, abandonar o local e deixar de se divertir, de fazer vídeos ou tirar fotografias. Nenhum destes comportamentos é incompatível com a presença insistente e indesejada do arguido e, eventualmente, poderá até ter sido a forma que a assistente encontrou para se alhear do que a estava a incomodar. Pelo facto de a assistente não se ter retirado do local, não ter pedido ajuda, não se pode concluir que nada lhe estava a acontecer. Com efeito, o comportamento das vítimas deste tipo de crimes de natureza sexual está longe de ser algo linear, lógico e sempre consistente. Na verdade, respeitando os factos a matéria do foro sexual, estamos sempre perante algo altamente sensível. E mesmo quando as vítimas parecem ter um comportamento em “que nada se passou”, não seria um fenómeno estranho à realidade de uma vítima de violência sexual. As reações das vítimas são sempre individuais, subjetivas e dependem de caso para caso, o normal é existirem muitos constrangimentos associados a estas realidades, como sentimentos de negação e culpa, que justificam muitos comportamentos que, à partida, podem ser considerados pouco comuns., quando na verdade não o são Pontos 10.º e 11.º dos factos provados. - mais uma vez invoca o arguido as suas declarações, tendo apenas dito “[00:19:23]: À volta de cinco e meia, seis da manhã, talvez, Sra. Juiz. À volta dessa hora. E quando eu cheguei, eu abracei a GG, abracei o EE, abracei o PP na conversa. Então, naquele ambiente de festa. E houve um momento que eu virei para a GG e disse: “GG, estás mesmo bonita. Se eu não tivesse mulher, íamos ter outro tipo de conversa.” e negando todos os demais factos. - a testemunha BB, presente no local dos factos, afirmou que quando o arguido chegou ao local, “um bocado tocado com o álcool”, se dirigiu à assistente perguntando-lhe “se queria que ele a aquecesse”; “Chegou à beira dela e disse se ele queria aquecer a GG”; “Se ela queria ser aquecida por ele”. - o CC disse que ouviu o arguido perguntar à GG se estava com frio, acrescentando que “nesse exato momento não a agarrou”. No entanto, a testemunha disse mais: “[00:02:32] Procurador: Muito bem. Olhe, portanto, ele perguntou se estava com frio e depois agarrou-a. Olhe, mas o Sr. AA encostou-a ao carro? Não encostou ao carro? [00:02:44] CC: Sim, sim, sim. Isso foi na segunda vez. [00:02:47] Procurador: Olhe, e encostou aonde? Foi no capô, na porta lateral? Na mala? [00:02:48] CC: Não, foi na lateral do carro direito, à beira do capô. Porque estava o carro do AA, que estava neste lado, do lado esquerdo, que é onde eu estava. Depois tinha o carro da GG do lado direito. [00:03:01] Procurador: Olhe, nesse momento em que a agarrou e colocou… e que estavam à beira do capô, o Sr. AA encostou o corpo a... [00:03:08] CC: Ah! Agarrou-a assim e puxou-a assim para baixo. [00:03:10] Procurador: Pronto, o senhor está… deixe-me só… [00:03:14] CC: Agora, se é (impercetível)… [00:03:15] Procurador: … ele agarrou-a, abraçou-a… [00:03:18] CC: … isso aí eu não vi, eu só ouvi tipo o facto de ele fazer assim, não vi mais nada. [00:03:20] Procurador: Mas ouça o que eu estou a dizer, ele encostou-se a ela como se estivesse a dar um abraço? [00:03:22] CC: Sim, sim. Tipo um abraço. [00:03:24] Procurador: Tipo um abraço. Olhe, e ele encostou-se de tal maneira que eles dois ficaram com o corpo um bocadinho inclinado para trás? [00:03:30] CC: É. Era assim, exato, ela fez assim e ele ficou assim um bocadinho mais para a frente. [00:03:37] Procurador: Eles estavam deitados mesmo no capô ou só foi inclinado? [00:03:39] CC: Não, não. Deitados, não, só inclinados. [00:03:40] Procurador: Só inclinados? [00:03:42] CC: Só. [00:03:46] Procurador: A dona… percebia-se que a D. GG não queria isso? [00:03:52] CC: assim, eu acho que não. Daquilo que me aparece, acho que não, acho que nenhuma mulher quer passar por isso. [00:03:58] Procurador: Pronto, mas… certo, mas percebia-se… ela disse que não? Ela disse alguma… disse que não? [00:04:04] CC: Não… que não, não. Fez só o gesto do tipo… como quem “sai daqui”. [00:04:06] Procurador: Afastar? [00:04:07] CC: Exato”. - a testemunha EE disse que no parque de estacionamento, depois da festa, não se apercebeu de o arguido agarrar a assistente [00:10:48]; que “[00:11:03] Nessa parte do estacionamento, a única coisa que me lembro é ter ido com o pessoal, os outros funcionários e eles não estava (…). Na minha lembrança quando ele chegou eu pedi para ele abrir o carro porque eu estava morrendo de frio. Eu queria entrar no carro.”; “[00:11:40] Não consigo dizer o tempo que isso demorou (…). Não me lembro de ele a ter colocado no capô como foi dito (…). A única coisa que eu me recordo é realmente isso, de estarmos lá, entrar no carro e irmos embora. Não tenho lembrança de ele ter contacto com ela no estacionamento”. - BB disse que “[00:02:50] E depois começaram a chegar perto do capô do AA”; [00:02:55] Não, ela foi encostada ao capô, ela foi encostada ao capô e nisto o EE puxa-lhe o braço, e diz para a GG vir para a beira, pronto…”; “o AA foi o último a entrar no carro e quando entra no carro, disse uma coisa, não sei se posso dizer? [00:03:20] Ele entra no carro e agarra nos genitais assim; [00:03:24] BB: Ele estava tocado, coitado, ele não é assim normalmente, conheço-o minimamente, ele não é assim normalmente, ele agarra tipo nos genitais e diz que a GG lhe deu uma grande tesão. E saiu fora do carro e foi esta parte, aquela parte que o carro da GG estava ali, o carro do AA estava aqui, o carro da GG estava ali ao fundo e eles foram para o outro lado do carro da GG e eu aí o que se passou nunca mais vi, o AA retorna ao carro e nós seguimos viagem todos juntos foi basicamente isto que se passou”. “[00:04:12] Procurador: Muito bem, olhe, isso de encostar ao capô, houve algum momento em que foi só encostar de lado ou deitaram-se em cima do capô, ele forçou sobre o corpo dela e deitou-se? [00:04:24] BB: Ele forçou um bocadinho, mas ninguém se deitou. Deitaram-se, é deitar-se mesmo, ninguém se deitou, ela encostou-se com os pés no chão. [00:04:32] BB: Assim encostada ao carro e o EE, em questão, isto nem durou um minuto. [00:04:34] BB: Ela encostou-se e foi puxada. O EE disse venha para a minha beira. Eu também, eu queria agir. (…) [00:05:27] Procurador: Então, o Sr. AA encostou o corpo dele à… à… [00:05:30] BB: GG, [00:05:33] Procurador: à Dona GG foi isso? E a D. GG ainda se inclinou um bocadinho para trás, não deitada… [00:05:37] BB: Não deitada não, ela continuou assim”. Ora, do exposto, resulta linear e líquido que as testemunhas CC e BB, descrevem a forma como o arguido pressionou o corpo da ofendida contra a viatura, inclinando-a para trás, sendo perceptível que o dito comportamento do arguido não era desejado pela ofendida, forçando-a, comportamento que cessou porque a testemunha EE a puxou, retirando-a debaixo do arguido. Assim, os depoimentos mencionados não só não têm qualquer virtualidade de impor uma decisão de facto diferente da efectuada em Primeira Instância, como demonstram claramente o acerto daquela decisão, corroborando a versão dos factos apresentada pela ofendida que descreveu “(…) a forma como (o arguido) a empurrou contra o capô do carro, impedindo-a de se mexer, ao mesmo tempo que encostava o seu corpo” ao dela, ofendida. Ponto 13.º dos factos provados. - depoimento de DD “[00:02:55] Procurador: O senhor estava no carro da D. GG. [00:02:57] DD: Exatamente, só que eu ainda não estava dentro, estava na parte de fora. Estava no outro lado e pareceu-me ter visto… parecia-me ter visto, não alego ter visto, porque não foi bem visível do meu ponto de vista. [00:03:08] Procurador: Eles estavam do outro lado do carro? [00:03:11] DD: Imagine, o carro estava aqui, eu estava do lado direito e isso aconteceu no outro lado. Então, como eu estava deste lado e eu também não sou muito alto... [00:03:18] Procurador: Muito bem. Olhe, mas… muito bem mas pareceu-lhe ver um...mas o senhor nota um gesto do Sr. AA do braço de ir na direção do pescoço? [00:03:30] DD: Exato, eu reparei o gesto do braço, agora o que é que fez com o braço eu não reparei. [00:03:35] Procurador: Ok. Portanto, nota o gesto do braço para o pescoço mas depois exatamente o que... [00:03:40] DD: O que aconteceu exatamente não sei [00:03:46] Procurador: Olhe, mas deu conta que houve uma tentativa de um beijo? Nesse momento? [00:03:50] DD: Que eu saiba, não. [00:03:52] Procurador: Não percebeu? [00:03:53] DD: Não me apercebi. [00:03:54] Procurador: Mas o que é que aconteceu de seguida? Há esse movimento do braço do Sr. AA e a D. GG? O corpo dela fica quieto, é puxado junto dele? [00:04:01] DD: Não reparei. [00:04:03] Procurador: Ela vira a cara? [00:04:06] DD: Eu acho que ela estava encostada no carro, mas não tenho a certeza que estava ali meio… como eu disse, não conseguia ver muito bem. [00:04:13] Procurador: Não conseguiu ver bem, é isso? [00:04:16] DD: Exatamente. [00:04:18] Procurador: Mas eles… foi rápida a situação? O Sr. AA depois saiu logo a seguir ou ainda ficaram ali há algum tempo? [00:04:25] DD: Que eu me lembre acho que foi rápido. Foi uma coisa, depois cada um foi para o seu carro, entramos todos no carro e fomos embora”. (…) - depoimento de II declarou que viu o arguido a conversar com a ofendida e a mexer o braço, sem conseguir concretizar o conteúdo da interação ou identificar qualquer gesto de violência ou contacto físico agressivo. Alega o arguido que estes dois depoimentos são manifestamente insuficientes, ambíguos e baseados em perceções parciais, sem qualquer grau de certeza ou descrição objetiva. Desde logo cumpre referir que o Tribunal não se fundamentou única e exclusivamente no depoimentos das mencionadas testemunhas para dar como provada a factualidade em causa, tendo-se ancorado, também e de forma decisiva, nas declarações da assistente, como temos vindo a repetir. Diga-se ainda que toda a prova testemunhal tem subjacente “percepções parciais”, sendo quase impossível que qualquer testemunha descreva todos os factos em causa. O normal é que as testemunhas assistam ou percecionem, subjectivamente, pequenas parcelas da realidade, cabendo ao julgador articular esses depoimentos de forma aproximar-se, o mais possível, da verdade material. Assim, da articulação dos mencionados depoimentos com as declarações da assistente cremos não poder afirmar-se, como faz o recorrente, que a prova é manifestamente insuficiente para se afirma como provado o descrito em 13.º. Convém não descurar que a “prova indiciária (em que utilizando-se a “experiência, relacionam-se os factos e extrai-se dos mesmos um juízo; a partir dos factos, infere-se que um determinado conjunto de factos conduz regularmente a um conjunto igualmente determinado de factos, o que permite afirmar com um elevado grau de probabilidade um certo facto histórico” - cf. ac. RC de 11.10.2023, proc. n.º 417/18.4PCCBR.C1. Note-se que é perfeitamente legítimo o recurso a presunções simples ou naturais, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (artigo 125.º do Código de Processo Penal) e o artigo 349.º do Código Civil prescreve que as presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido, sendo as presunções judiciais admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (artigo 351.º do Código Civil). Depois, as presunções simples ou naturais (as aqui em causa) são simples meios de convicção, pois que se encontram na base de qualquer juízo. O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto conhecido para um facto desconhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções. “As presunções simples ou naturais são, assim, meios lógicos de apreciação das provas; são meios de convicção. Cedem perante a simples dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto” – Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I, 333 e seguintes. A prova indiciária é uma prova indirecta, de suma importância no processo penal, pois são mais frequentes os casos em que a prova é essencialmente indirecta do que aqueles em que se mostra possível uma prova directa. Da prova indiciária induz-se, por meio de raciocínio alicerçado em regras de experiência comum ou da ciência ou da técnica, o facto probando. A prova deste reside fundamentalmente na inferência do facto conhecido – indício ou facto indiciante – para o facto desconhecido a provar, ou tema último da prova. É do facto indiciante que se infere um facto conclusivo quanto ao facto probando, juridicamente relevante no processo. Não se pode ignorar, porém, que o recurso a este tipo de prova consente erros, na medida em que a convicção terá que se obter através de conclusões baseadas em raciocínios e não directamente verificadas e, por outro lado, um indício revela, com tanto mais segurança o facto probando, quanto menos consinta a ilação de factos diferentes. Ou seja, quando um facto não possa ser atribuído senão a uma causa – facto indiciante –, o indício diz-se necessário e o seu valor probatório aproxima-se do da prova directa. Quando o facto pode ser atribuído a várias causas, a prova de um facto que constitui uma destas causas prováveis é também somente um indício provável ou possível. Para dar consistência à prova será necessário afastar toda a espécie de condicionamento possível do facto probando menos uma. A prova só se obterá, assim, excluindo hipóteses eventuais divergentes, conciliáveis com a existência do facto indiciante. Não obstante, tendo presentes tais elementares regras lógicas e de raciocínio, há que concluir que a prova indiciária assume grande relevo e importância decisiva, desde logo, em termos de maior credibilidade, de fiabilidade e de verosimilhança, do que a prova directa, precisamente porque não está sujeita às percepções individuais e subjectivas da realidade a esta inerentes – por todos cf. Ac. RC de 02-02-2000, CJ, I, 51, onde se se defende a superioridade da prova indiciária, entre elementos objectivos e regras objectivas, sobre outro tipo de provas, nomeadamente a prova directa e testemunhal, pois que nesta também intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais difícil de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho. É que se pode afirmar que “vi o arguido a colocar a mão no pescoço da ofendida, apertando-o e a aproximar a sua cara da cara da ofendida” e não ter visto. Mas se disser que viu fazer um gesto, compatível e concordante e se depois a ofendida apresentar uma versão dos factos consonante com esse depoimento, não ocorrendo, nem se vislumbrando qualquer outra causa próxima para o dito gesto, então, indesmentivelmente, que esta última posição está muito mais reforçada do que aquela primeira. E quanto às declarações da assistente e valor probatório das mesmas já nos pronunciamos abundantemente, sendo ainda irrelevante que as demais pessoas presentes, depois de uma noite de festa, álcool e sentindo, na altura, bastante frio, todos querendo retirar-se e distribuindo-se por diferentes veículos, não tivessem visualizado os factos em causa. Susceptível de estranheza era se todos os presentes tivessem presenciados todos os factos, narrando-os de forma síncrona e sem qualquer discrepância, como parece pretender o recorrente ao longo de toda a motivação do recurso. Pelo exposto improcede este segmento do recurso, julgando-se definitivamente fixada a matéria de facto (retirando-se apenas a palavra “constrangendo-a” do ponto 4.º). C) Do recurso em matéria de direito. 1. As razões do recorrente. Defende o recorrente que atenta a descrição dos factos vertidos nos autos, as condutas que lhe foram imputadas não têm o relevo, gravidade, intensidade ou carga sexual exigido pelo artigo 163.º/1 do CP. Paradoxalmente, volta a repetir que nenhum do actos dados como provados tem “o mínimo respaldo na prova produzida”, e retorna à apreciação própria, subjectiva e interessada que faz da prova e que pretende sobrepor à do Tribunal. Quanto a este ponto já nos pronunciamos supra, julgando intangível a matéria fixada em Primeira Instância sendo, aliás, perfeitamente inusitadas as considerações, porque afastadas da materialidade que se provou, tecidas sobre os “contactos físicos ligeiros, dança entre colegas, brincadeiras, abraços e comentários, por vezes mais expansivos”, que são comuns existirem em eventos sociais como o que ocorreu in casu. Alega depois que o contacto físico (ainda que se admitisse o toque descrito, o que contesta) não possui intensidade suficiente para ser elevado à categoria de ato sexual de relevo, tratando-se, na pior das hipóteses, de um gesto reprovável ou deselegante, sem repercussão real ou gravosa na liberdade sexual da ofendida, nem com intenção manifesta de satisfação sexual à custa da dignidade da mesma, podendo, quando muito, integrar a prática de um crime de importunação sexual previsto no artigo 170.º do Código Penal. 2. Na decisão recorrida fez-se constar o seguinte, quanto à subsunção jurídica dos factos: “Vem o arguido acusado da prática, como autor material, de um crime de coação sexual, p. e p. pelo art.º 163.º, n.º 1- agravado nos termos do nº1 al. b) do art. 177º, ambos do C. Penal - e, bem assim, nas sanções acessórias previstas nos arts. 69º -B nº1 e 69º -C nº1 do Código Penal. Dispõe o citado normativo que “quem, sozinho ou acompanhado por outrem, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, ato sexual de relevo é punido com pena de prisão até 5 anos”. Nos termos do seu nº3- “para efeitos do disposto no nº1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no numero anterior, empregue para a prática de ato sexual de relevo contra a vontade cognoscível da vitima”. O bem jurídico protegido neste crime é a autodeterminação sexual. Neste crime, a ação do agente traduz-se em constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar consigo própria ou com terceiro ato sexual de relevo, por uma das formas não descritas no seu nº2 (com violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir). Assim, o tipo objetivo da coação sexual consiste no constrangimento de uma outra pessoa a sofrer ou a praticar com o agente ou terceiro ato sexual de relevo. Ora, ato sexual é o comportamento que objetivamente assume um conteúdo ou significado reportado ao domínio da sexualidade da vítima, independentemente da motivação do agente. É de relevo o ato que represente uma importante obstrução à liberdade de determinação sexual da vítima e que seja considerado pela comunidade geral como gravemente ofensivo da intimidade sexual. Também como elemento típico temos que o agente tem que constranger a vítima – a praticar ou a sofrer o ato - “constrangimento” que, no entanto, não tem que ser determinado por um padrão específico de gravidade, bastando que seja o idóneo, segundo as circunstâncias do caso, a vencer a resistência efetiva ou esperada da vítima. O elemento subjetivo traduz-se na existência do dolo, em qualquer das modalidades previstas no art.º 14.º do C. Penal. Da factualidade dada por provada, resulta que: o arguido, “ab initio”, dirigiu-se à ofendida e perguntou-lhe se estava assim vestida para ele e se o queria matar do coração; cerca das 03h30, quando se encontravam na Alfândega ..., a dançar, após o jantar, o arguido dirigiu-se junto da ofendida e puxou-a para dançar, tendo-lhe dito que lhe ia partir o coração e, contra a vontade desta, apalpou-lhe as nádegas. Nessa altura EE, apercebendo-se que a ofendida estava incomodada, puxou-a para dançar consigo. Decorrido algum tempo, o arguido chamou todos os elementos da equipa de trabalho para tirarem uma fotografia de grupo, e, depois, dirigindo-se à ofendida perguntou-lhe se já tinha encontrado alguém. Perante a resposta negativa desta, o arguido disse-lhe que não precisava porque o tinha a ele, ao que a ofendida retorquiu que não, porque o arguido era casado e seu gerente. A ofendida regressou, então, à pista de dança, tendo o arguido se mantido próximo desta durante o resto da noite, contra a vontade da ofendida. Cerca das 06h30, a ofendida e os colegas dirigiram-se para o parque de estacionamento da Alfândega, onde aguardaram o arguido junto dos carros deste e da ofendida. Momentos depois, o arguido chegou e, contra a vontade da ofendida, abraçou-a e disse-lhe que pegava nela e que a “fodia”. De seguida, o arguido empurrou a ofendida contra o capot do carro, impedindo-a de se mexer, ao mesmo tempo que encostava o seu corpo ao da ofendida, com o único propósito de satisfazer os seus instintos libidinosos. Nessa altura, um dos colegas presentes, apercebendo-se que a ofendida estava incomodada, puxou-a pelo braço e tirou-a dali. A ofendida dirigiu-se, então, para o seu carro. O arguido seguiu a ofendida e puxou-lhe um braço, virando-a para si, fazendo com que a mesma ficasse encostada ao carro, e de seguida colocou-lhe a mão no pescoço, apertando-lho, e aproximando a sua cara da cara da ofendida, como se a fosse beijar, sempre contra a vontade desta, ao mesmo tempo que lhe dizia que queria ficar com ela. A ofendida, com força, soltou-se do arguido e entrou no seu carro. Depois, o arguido aproximou-se do vidro do carro da ofendida e mandou-lhe um beijo. Face a tal factualidade, resultam preenchidos os elementos objetivos do crime de coação sexual. De facto, há que concluir pelo carácter sexual dos atos praticados pelo arguido – empurrar a ofendida contra o capô do carro, dizendo que a “fodia”, encostar o seu corpo ao da ofendida, impedindo-a de se mexer; apalpar-lhe as nádegas, agarrar a ofendida e aproximar a sua cara da dela como se a fosse beijar – com o único propósito de satisfazer os seus instintos libidinosos. Trata-se de atos relevantes para o envolvimento sexual, praticados com esse fim e ofensivos da intimidade e sentimento de pudor de qualquer mulher quando praticado sem ou contra a sua vontade. Assim, o primeiro elemento está preenchido – ato sexual de relevo -. Como tal, a conduta do arguido preenche os elementos objetivos do crime de coação sexual. Na verdade, tal como decorre do Ac. TRC de 15.06.2022, in www.dgsi.pt “ (…) constranger significa obrigar, submeter à sua vontade, sem que a vitima tenha liberdade de escolha ou determinação.” Refere ainda que: “Ao invés do que sucede (…) na importunação sexual (art. 170º do Código Penal) o agente não chega a praticar acto sexual de relevo, …”. Em anotação ao mesmo pode ainda ler-se que Ato sexual de relevo é “toda a ação que tenha uma conotação sexual e seja suficientemente ofensiva ou condicionante da liberdade e da autonomia sexual que cada um tem pleno direito a preservar e a desenvolver.” Resulta ainda do acórdão do TRP de 19.04.2023, in www.dgsi.pt, no seu ponto VI e com referencia ao art. 163º nº2 – com maior gravidade – que “(…) não é necessário qualquer ato de agressão ou sequer uma especial intensidade (…), antes sendo suficiente que o contato físico executado pelo agente sobre o corpo da vitima seja tão só o mínimo adequado e suficiente para impedir a reação desta ultima”. Quanto ao elemento subjetivo, resultou provado que o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de satisfazer os seus instintos libidinosos, bem sabendo que tal facto ocorria contra vontade desta que, naqueles momentos, perdeu a sua liberdade sexual e que tinha perfeito conhecimento que a sua conduta era proibida por lei penal – sabia ainda que a ofendida se encontrava numa relação de dependência hierárquica em relação a si - arguido. Atuou, assim, o arguido com dolo direto – art.º 14.º, n.º 1 do C. Penal. Encontram-se, assim, preenchidos os elementos objetivos e subjetivo do crime de coação sexual, p. e p. pelo art.º 163.º, n.º 1 e da agravação contemplada no art. 177º nº1 b) – dada a dependência hierárquica - do C. Penal. Inexistem quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, pelo que terá o arguido de ser responsabilizado pela prática de tal ilícito criminal. Entende-se, contudo, em face dos factos praticados e contexto em causa - não ser caso de aplicação de qualquer pena acessória contemplada nos arts. 69º -B nº1 e 69º -C nº1 do Código Penal.” 3. O quadro legal. Nos termos do artigo 163.º do Código Penal, “1 - Quem, sozinho ou acompanhado por outrem, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar ato sexual de relevo é punido com pena de prisão até 5 anos. 2 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, acto sexual de relevo é punido com pena de prisão de um a oito anos. 3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática de ato sexual de relevo contra a vontade cognoscível da vítima.” Nos termos do artigo 177.º/1, b) do C.P., as penas previstas nos artigos 163.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação. Mais uma vez cumpre salientar que não houve qualquer alteração relativamente à matéria de facto apurada no acórdão recorrido, com excepção da supressão da expressão “constrangendo-a”, na parte final do ponto 4.º. Assim sendo, há apenas que considerar a pretensão do recorrente de não terá praticado um acto sexual e muito menos um “acto sexual de relevo”, devendo a sua conduta ser punida apenas pelo crime de importunação sexual, previsto no artigo 170.º do Código Penal. O crime de coação sexual integra os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual (Capitulo V, Titulo I, do Livro II do Código Penal), em que os bens jurídicos se prendem com a natureza sexual da pessoa, como parte integrante do direito geral de personalidade. O bem jurídico protegido é a liberdade da pessoa escolher o seu parceiro sexual e de dispor livremente do seu corpo. Conforme se entendeu no ac. do TRC de 13-01-2016 (proc. n.º 53/13.1GESRT.C1) “Esta liberdade de decisão e liberdade de acção são como que o lado interno e o lado externo da liberdade de acção. Nesta medida, o crime de coacção não só abrange as acções que apenas restringem a liberdade de (decisão) e de acção – as acções de constrangimento em sentido estrito, ou seja a tradicional vis compulsiva –, mas também as acções que eliminam, em absoluto, a possibilidade de resistência – a chamada vis absoluta – bem como as acções que afectem os pressupostos psicológico-mentais da liberdade de decisão, isto é a própria capacidade de decidir”. Quanto ao tipo objetivo da coação sexual consiste no constrangimento de outra pessoa a sofrer ou a praticar com o agente ou com outrem acto sexual de relevo, sendo certo que o n.º 2 na versão vigente exige que a conduta coativa do agente seja exercida através de violência ou com ameaça grave ou depois de, para esse fim, ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir a vítima. A dificuldade mais premente do tipo objetivo é a definição de “acto sexual de relevo” e, em especial, a subsunção do facto a este conceito indeterminado. A respeito do que releva como acto sexual para efeitos típicos, salienta-se que o Professor Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense do Código Penal, 2.ª edição, p. 718 a 720) releva que existem a este propósito três posições: uma interpretação objetivista, segundo a qual constitui acto sexual típico aquele que, atenta a sua manifestação externa, revela uma conexão com a sexualidade; uma outra que exige não só a conexão objetivista, como ainda a subjetivista do conceito, traduzida na dita intenção libidinosa; e uma terceira, a menos exigente, que defende ser o conceito integrado tanto pela sua aceção objetivista como subjetivista. Optando decididamente, por via de princípio, pela interpretação objetivista do acto sexual típico, concede que em casos excecionais, como aqueles em que o significado do acto é ambivalente, àquela deva acrescer a interpretação subjetiva, traduzida na intenção do agente de despertar ou satisfazer, em si mesmo ou em outrem, a excitação sexual. Prosseguindo na integração do conceito de “acto sexual de relevo”, defende o mesmo Professor que a exigência de “relevo” para a tipificação do acto sexual não tem apenas uma função negativa, destinada a excluir do tipo os actos considerados insignificantes ou bagatelares, mas ainda uma função positiva, traduzida na exigência ao intérprete de investigação do seu relevo na perspetiva do bem jurídico protegido, isto é, se de um ponto de vista objetivo o acto representa um entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima. O valor decisivo neste contexto é o grau de perigosidade da acção para o bem jurídico, em função da sua espécie, intensidade ou duração. Segundo o Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2.ª edição, UCE, p. 504), “O acto sexual de relevo é a acção de conotação sexual de uma certa gravidade objectiva realizada na vítima. (...). Portanto, estão abrangidos actos em que o agente assume uma posição sexual activa (constranger a “praticar”) ou passiva (constranger a “sofrer”), mas não os actos sexuais diante da vítima, que constituem “actos exibicionistas” (...). O acto sexual de relevo inclui a cópula vulvar e o toque, com objectos ou parte do corpo, nos órgãos genitais, seios, nádegas, coxas e boca (...).” Seguindo esta doutrina e o que cremos ser a maioria da jurisprudência, diremos que “acto sexual de relevo” será todo aquele comportamento que de um ponto de vista essencialmente objetivo pode ser reconhecido por um observador comum como possuindo carácter sexual e que em face da espécie, intensidade ou duração ofende em elevado grau a liberdade de determinação sexual da vítima. “Relevante é a idoneidade dos actos praticados sobre a vítima para cercear a sua livre autodeterminação sexual, e decisivo é que o acto sexual de relevo, pelo seu modo de execução, denote ausência de consentimento da vítima, em nexo causal com a violência sobre o corpo ou psiquismo da vítima, uma e outra aferidas segundo as condições pessoais e particulares daquela” – Ac. do STJ de 17-03-2004, proc. n.º 439/04-3, citado no Ac. do mesmo Colendo Tribunal, de 05-07-2007, proc. n.º 07P1766. Os motivos do agente e as representações de moralidade da comunidade não integram nem o tipo objetivo, nem o tipo subjetivo do crime de coação sexual. O que importa é saber se o acto sexual, em si, atentas as circunstâncias em que foi cometido tem capacidade de ofender gravemente a liberdade sexual da vítima. Sendo o crime de coação sexual um tipo doloso, o preenchimento do mesmo exige o conhecimento e vontade de constranger a vítima a sofrer ou a praticar um acto sexual de relevo, com consciência da ilicitude da sua conduta, em qualquer das modalidades a que alude o artigo 14.º do Código Penal. No caso em apreço, o arguido, ao - apalpar as nádegas da ofendida, contra a vontade desta e com o propósito exclusivo de satisfazer os seus impulsos sexuais, enquanto com ela dançava; - abraçar a ofendida, contra a sua vontade, dizendo-lhe que pegava nela e que a “fodia”; - empurrá-la contra o capot de um carro, impedindo-a de se mexer, ao mesmo tempo que encostava o seu corpo ao da ofendida, com o único propósito de satisfazer os seus instintos libidinosos; - seguir a ofendida e puxar-lhe um braço, virando-a para si, fazendo com que a mesma ficasse encostada ao carro, colocar-lhe a mão no pescoço, apertando-lho, e aproximar a sua cara da cara da ofendida, como se a fosse beijar, sempre contra a vontade desta, ao mesmo tempo que lhe dizia que queria ficar com ela; - sempre agindo de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito de satisfazer os seus instintos libidinosos, sabendo que atuava contra a vontade da assistente e que ofendia o seu pudor e a sua liberdade sexual; praticou actos que, definitivamente, se enquadram no conceito de acto sexual de relevo. O tipo objetivo de crime preenchido pelo arguido é, pois, o crime de coação sexual traduzido no constrangimento da ofendida a sofrer acto sexual de relevo, enquadrado no artigo 163.º/1, do Código Penal, norma que prescinde da “violência” “ameaça grave” ou colocação da vítima numa estado de inconsciência ou na impossibilidade de resistir (conceitos integradores do n.º 2 do artigo 163.º do CP, norma pela qual o arguido não foi condenado, assim ficando arredadas as considerações pelo mesmo efectuadas sobre a inexistência de violência no caso concreto). Note-se que, de acordo com Pedro Caeiro, a expressão “constranger a sofrer ou a praticar ato sexual” representa: - a prática de atos de natureza coerciva que - conduzem a vítima a praticar ou a sofrer um ato sexual contra a sua vontade. No caso sub judice, os actos praticados foram-no de forma coerciva e contra a vontade da vítima. Como se refere no ac. desta Relação, de 30-11-2016 (proc. n.º 43/13.4JAPRT.P1) constranger significa “(…) coagir, compelir, forçar, impor, obrigar”. Basta, assim, que o agente imponha à vítima – como ocorreu no caso em apreço – a prática de um acto sexual de relevo, para que exista constrangimento, o qual pode ocorrer com distintas ações. Aliás, face à transposição da Convenção de Istambul para a lei nacional, atualmente, muitos autores defendem uma noção ampla de violência/constrangimento que deverá bastar-se com o dissentimento. Face a tudo quanto acima já se deixou referido relativamente ao crime de coação sexual, facilmente se constata que os factos praticados pelo arguido preenchem inequivocamente o tipo objetivo do crime em causal, uma vez que o arguido constrangeu (dando-se aqui por reproduzido o que acima se expôs quanto ao que deve ser entendido por constrangimento) a ofendida a suportar actos sexuais de relevo. Nestes termos, o arguido com a sua conduta preencheu, sem margem para dúvidas, o tipo de crime de coação sexual, p. e p. pelo artigo 163.º, n.º 1, do Código Penal.Dado que se provou que o arguido actuou de forma livre deliberada e consciente ao manter com a assistente os actos acima descritos, agindo com o propósito de satisfazer os seus instintos libidinosos, bem sabendo que agia contra a sua vontade e que colocava em crise os sentimentos de pudor com o propósito de satisfazer os seus instintos libidinosos, sabendo que atuava contra a vontade da assistente e que ofendia o seu pudor e a sua liberdade sexual está preenchida também a vertente subjetiva do tipo, pois o arguido agiu com dolo direto (artigo 14.º do Código Penal). Mas para que exista crime é necessário que a ação do agente para além de típica seja ilícita e culposa. Diz-se ilícita toda a conduta, típica no âmbito penal, que seja contrária à ordem jurídica vigente. E essa contrariedade poderá ser afastada se se verificar qualquer causa que exclua a ilicitude, o que no caso vertente não ocorreu, sendo a conduta do arguido ilícita. No que toca à culpa, ela existirá quando o arguido ao agir de forma típica e ilícita, tenha consciência da ilicitude da sua conduta e vontade de se motivar de acordo com essa consciência. Também aqui, a culpabilidade do arguido poderá ser afastada se existir qualquer causa que exclua a culpa, pois nesse caso a sua conduta não merece censura ético-jurídica. Não sendo o que acontece nesta situação, a conduta do arguido é igualmente culposa. Resta analisar a agravante que vem imputada ao arguido e que está consagrada no artigo 177.º/1, alínea b) do Código Penal, traduzida na circunstância de entre o arguido e a vítima existir uma relação de trabalho e o crime ter sido praticado com aproveitamento desta relação. Como resulta claro do texto legal, não basta a existência de um relação de trabalho entre o agente e a vítima. É necessário que os factos tenham sido praticados com aproveitamento, por parte do agente, dessa relação. “Aproveitar-se de", no sentido utilizado pela lei, significa obter vantagem de alguém ou de algo, geralmente de forma negativa, ou seja, tirar proveito de uma situação, muitas vezes às custas de outra pessoa. Ora, no caso dos autos provou-se que: - à data dos factos o arguido era chefe de operações do estabelecimento de restauração “A...”, sito no Centro Comercial ..., em ..., no qual também era funcionária e sua subordinada a ofendida GG, que ali exercia a função de aprendiz; - os factos dados como provados ocorreram antes, durante e depois do jantar de Natal dos funcionários do estabelecimento de restauração “A...”, a decorrer na Alfândega ...; - o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, aproveitando-se do facto de exercer funções de chefia relativamente à ofendida na empresa em que trabalhavam. Do exposto resulta a integração, no caso concreto, da agravante do artigo 177.º/1, b) do CP. Isto desde logo, atendendo ao contexto sócio profissional em que o arguido e a assistente estão inseridos, ele chefe de operações, ela sua subordinada e aprendiz (com a precaridade que caracteriza esta situação), por conta da mesma entidade patronal e com o mesmo local de trabalho fixo, acrescido pelo circunstancialismo concreto de tempo e de espaço em que os factos se desenrolaram no âmbito de um evento organizado pela entidade patronal para os seus funcionários. O que não podia deixar de ser do conhecimento do arguido e, que segundo as regras da experiência comum, terá estado na origem e na base dos comportamentos do arguido e no que ele próprio não poderá ter deixado de antecipar, de inacção ou falta de reacção da vítima relativamente aos comportamentos que sobre ela adoptou. E, assim, se conclui pela improcedência total do recurso. * III. Dispositivo Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam as Juízas que compõem este Tribunal em julgar não providos os recursos interpostos pelo arguido AA e, consequentemente, manter, na íntegra, as decisões recorridas. * Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs. - artigos 513.º e 514.º, ambos do Código de Processo Penal e tabela III do Regulamento das Custas Processuais aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro. * Notifique. * Porto, 05-11-2025 Elaborado e integralmente revisto pela Relatora, nos termos do artigo 94.º/2 do CPP. Assinado digitalmente pela Relatora e pelas Senhoras Juízas Desembargadoras Adjuntas Maria João Lopes Liliana de Páris Dias Manuela Trocado |