Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
982/20.6PBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS TEIXEIRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ESPECIFICAÇÃO DAS CONCRETAS PROVAS QUE IMPÕEM DECISÃO DIVERSA DA RECORRIDA
Data do Acordão: 07/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA – JUIZ 2
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 412.º, N.º 3, ALÍNEA B), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
Sumário: I – O requisito da especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, constante da alínea b) do n.º 3 do artigo 412.º do C.P.P., só é observado se, para além da especificação das provas, o recorrente explicitar os motivos e em que termos essas provas indicadas impõem decisão diversa da decisão do tribunal, de modo a fundamentar e tornar convincente que tais provas impõem decisão diferente.

II – Esta exigência corresponde, de algum modo, àquela que é exigida ao julgador para fundamentar os factos provados e não provados, porque do mesmo modo que o julgador tem o dever de fundamentar as decisões, também o recorrente tem que fundamentar o recurso.

III – Não cumpre tal requisito a mera negação dos factos, a discordância quanto à valoração feita pelo tribunal recorrido quanto à prova produzida, considerações e afirmações genéricas, a invocação de dúvidas próprias, sem que se analise o teor dos depoimentos das testemunhas indicados nas respetivas passagens da gravação, com a indicação dos motivos por que tal facto ou factos devem ser dados como provados ou não provados

Decisão Texto Integral:
Relator: Luis Teixeira
1.º Adjunto: Vasques Osório
2.º Adjunta: Maria José Guerra


Acordam em conferência na 4ª Secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

I

1. Nos presentes autos, foi decidido:

A) - condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e em concurso efectivo e como reincidente de:

A.1 - um crime de burla qualificada, previsto e punido nos termos conjugados dos artigos 218º, nº 2, alínea a) e 217º, nº 1, por referência ao artigo 202º, alínea b) e 75º, todos do Código Penal, na pena de quatro anos e nove meses de prisão;

A.2) - um crime de extorsão previsto e punido pelos artigos 223º, nº 1 e 75, ambos do Código Penal, na pena de três anos de prisão;

B) - condenar o arguido AA, em cúmulo jurídico, nos termos do artigo 77º, nº 1, do Código Penal, na pena única de cinco anos e nove meses de prisão efectiva;

(…)

E) - julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por BB e, consequentemente, condenar o demandado AA a pagar-lhe:

E.1 - a quantia de 24.386,20 euros (vinte e quatro mil, trezentos e oitenta e seis euros e vinte cêntimos), a título de indemnização por danos patrimoniais, acrescida de juros legais desde a notificação até efectivo e integral pagamento;

E.2 - a quantia de 1.500,00 euros (mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros legais desde esta decisão até efectivo e integral pagamento;

F) - absolver o demandado AA do mais peticionado para além daquelas condenações;


*

            2. Da sentença recorre o arguido … que formula as seguintes conclusões de recurso[1]:

            …

81º

O Recorrente entende, atenta a prova produzida em audiência de julgamento, que não se mostram verificados todos os pressupostos, objectivos e subjectivos, dos aludidos crimes, …

82º

Impugnou-se a matéria de facto fixada no douto acórdão, designadamente quanto aos factos provados que constam da fundamentação descrita em A) sob os números 5.1, 5.7, 5.8,13, 14,15,16,17,18,19,20 e 21, impondo-se que os mesmos, perante a argumentação apresentada, sejam dados como não provados.

83º

Entende-se que são as seguintes provas que impõem decisão de facto diversa da recorrida: Quanto ao crime de Burla Qualificada:

1. Em primeiro lugar, as declarações prestadas pela Assistente …

2. Em segundo lugar, as declarações prestadas pelo arguido …

3. Por último, os documentos constantes de Despacho de Acusação:

a)         Documentos de fls. 10 e seguintes;

b          Documentos de fls 24 e seguintes.

Quanto ao crime de Extorsão:

1. Em primeiro lugar, as declarações prestadas pela Assistente …

2. Em segundo lugar, as declarações prestadas pelo arguido …

84ª

É imperioso revisitar e reapreciar a prova ora indicada, tendo em vista uma melhor e mais cuidada fixação da matéria de facto provada, imprescindível para a posterior subsunção jurídica a realizar, quanto aos crimes imputados ao Recorrente.

85º

O facto 5.1 resulta de um claro e notório erro grosseiro na apreciação da prova, em violação do disposto no artigo 410 º nº 2 alínea c) do Código Penal, na parte referente aos eventuais empréstimos, que nem sequer se provaram ter existido, por parte dos terceiros citados no referido documento de fls 22 e 23, pelo que se requerer que seja o facto 5.1 do douto Acórdão seja dado como não provado.

86º

No que concerne aos factos 5.6, 5.7 e 5.8 do douto Acórdão, claro e notório que resulta que a prova foi mal apreciada pelo Colectivo pelo que se procede à impugnação da decisão sobre a matéria de facto constante de tais números, para efeitos do disposto do art.º 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, e que os mesmos sejam dados como não provados.

92º

No que concerne aos factos 14,15,16,17,18,19,20 e 21, é factual que o acórdão recorrido, que está inquinado por uma construção factual e doutrinal débil, arredando-se da realidade e das regras da experiência comum, condenando o Recorrente pela prática de um crime de Extorsão em flagrante violação do PRINCIPIO IN DUBIO PRO REU.

93º

Ao decidir neste sentido, o Tribunal a quo fez ainda incorrecta aplicação do princípio da livre apreciação da prova, plasmado no art. 127º do CPP, e violou, entre outros.

…       


*

3. Admitido que foi o recurso, respondeu o Ministério Público …

*

5. Nesta instância, o Ministério Público emitiu o seguinte parecer …

            6. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.    


II

            Questões suscitadas pelo recorrente:

            1. Erro notório na apreciação da prova.

            2. Erro de julgamento e respetiva impugnação da matéria de facto provada versus a violação do princípio do in dubio pro reo e consequências na medida da pena quanto ao crime de burla qualificada e absolvição do crime de extorsão.

            3. O pedido de indemnização civil.


III

            1. São os seguintes os factos dados como provados e não provados na sentença:

            1- BB conheceu o arguido AA, em virtude de ter sido colega de escola da sua filha, em ..., ....

2- O arguido pediu a BB para ser sócia dele na aquisição de um barco de pesca artesanal, não tendo esta logo aceite.

3- Entretanto, dois desconhecidos, que se identificaram como CC e DD, telefonaram a BB a informar que o barco existia, em virtude de o arguido ter recebido 20.000 euros a fundo perdido da Comunidade Europeia para aquisição do mesmo, que tinha o nome de “EE”.

4- Em Agosto de 2019, BB aceitou ser sócia do arguido, e começou a entregar dinheiro ao mesmo, porque segundo este, aquela, como sócia gerente, era obrigada a fazer o pagamento de diversas quantias relacionadas com o dito barco.

5- A assistente BB realizou as seguintes entregas de dinheiro entre Setembro de 2019 e Novembro de 2020, na ..., segundo as justificações que o arguido lhe apresentava e que estariam todas relacionadas com a actividade do barco:

5.1- entre Setembro de 2019 e Julho de 2020 BB entregou ao arguido, a pedido do mesmo, a quantia de 3014 euros, para que este pudesse efectuar o pagamento de despesas;

5.2- em 20 de Janeiro de 2020, BB entregou ao arguido, a pedido do mesmo, a quantia de 5.093,20 euros, relativo ao valor do avanço dos ordenados dos trabalhadores sobre o pescado;

5.3- entre Janeiro e Outubro de 2020, BB entregou ao arguido, a pedido do mesmo, a quantia de 7.380 euros, para que este procedesse à matrícula do barco, pagamento de multa, pintura e aquisição de material de segurança e pesca;

5.4- entre Julho e Setembro de 2020, BB entregou ao arguido, a pedido do mesmo, a quantia de 4574 euros, para pagamento à Financeira e a particulares a quem o arguido devia dinheiro;

5.5- em Novembro de 2020, BB entregou ao arguido, a pedido do mesmo, a quantia de 1.345 euros, para pagamento à Financeira de empréstimo para o barco;

5.6- em data não concretamente apurada, BB entregou ao arguido, a pedido do mesmo, a quantia de 990 euros, para pagamento de diversas despesas (arranjo do carro do sr. CC e pneus);

5.7- em Outubro de 2020, BB entregou ao arguido, a pedido do mesmo, a quantia de 400 euros, para este comprar um telemóvel para seu uso;

5.8- em Novembro de 2020, BB entregou ao arguido, a pedido do mesmo, a quantia de 900 euros, para pagamento de uma dívida.

6- Em Agosto do ano 2020, o arguido levou BB e o irmão desta FF à lota da ..., a fim de visualizar o barco, que se chamava “GG”, tendo combinado mudar o nome do mesmo para “HH”.

7- Em 17 de Novembro de 2020, o arguido aceitou ir ao advogado Dr. II, a fim de assinar uma confissão de divida para com BB.

8- Nesse mesmo dia, o Dr. II, pediu ao arguido os documentos do barco, ficando ele de os entregar, o que não aconteceu.

9- A 30 de Novembro de 2020, BB apurou que não existia nenhum barco, que o arguido tenha comprado.

10- O arguido, não tinha qualquer barco registado em seu nome nem o negócio de compra do barco correspondia à realidade, pretendendo com a sua actuação, tão só que o dinheiro lhe fosse entregue sem qualquer encargo para ele.

11- Para concretizar este seu desiderato, o arguido foi fazendo crer a BB que tinha o barco e aquele negócio e todas as conversações relacionadas com o barco e a sua compra em conjunto correspondiam à verdade, assim a levando a lhe entregar as diversas quantias.

12- O arguido bem sabia que BB não lhe teria entregue as quantias se se tivesse apercebido que não existia qualquer barco, nem a dita compra conjunta do barco.

13- Ao agir desta forma, o arguido quis aumentar o seu pecúlio à custa do prejuízo que correspectivamente causava a BB, na quantia de 23.696,20 euros correspondentes ao valor total entregue, como conseguiu.

14- No dia 21 de Dezembro de 2020, cerca das 08:25 horas, no exterior no ..., sito na Rua ..., na ..., o arguido agarrou e empurrou BB, em atitude hostil, levantando os braços na sua direcção, gritando “...tens de me dar o dinheiro do barco, porque eu não posso ter dividas...”.

15- Perante esta atitude do arguido, BB sentiu-se constrangida e entregou-lhe 300,00 trezentos euros em notas do BCE, que levantou no multibanco, tendo o arguido abandonado o local na posse do dinheiro.

16- No dia 22 de Dezembro de 2020, cerca das 12H00, o arguido deslocou-se à residência de BB e exigiu mais dinheiro, dizendo que o que lhe tinha entregado no dia anterior não chegava.

17- O arguido começou a falar muito alto, gritando com BB, de forma a coagi-la, tendo a arguida ficado com medo e deu ao mesmo 390 euros em notas do BCE, tendo ele abandonado o local levando o dinheiro.

18- O arguido fez suas todas as quantias que lhe foram entregues pela assistente.

19- A conduta do arguido, após 30 de Novembro de 2020, acima descrita, teve como único propósito e finalidade conseguir que BB lhe entregasse quantias de dinheiro, bem sabendo que com tais entregas obteria para si um acréscimo patrimonial a que não tinha direito, com o consequente empobrecimento que acarretaria para o património daquela.

20- O arguido agiu com o propósito de intimidar BB com a sua actuação, o que causou a esta medo e receio, devido à hostilidade física e verbal e por acreditar que o arguido podia atentar contra a sua integridade física de forma mais grave, com o desígnio de levar a mesma a entregar as quantias pretendidas, intento esse conseguido, na medida em que BB lhe entregou o dinheiro das duas vezes.

21- O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, em todas as suas condutas, bem sabendo que eram proibidas e punidas por lei.

22- O arguido não manifesta arrependimento.

23- O arguido AA foi condenado nos seguintes processos:


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Factos não provados


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            2. Fundamenta o tribunal recorrido a matéria de facto nos seguintes termos:

            …

As declarações do arguido não mereceram credibilidade na parte em que contrariam a versão de BB porquanto esta se mostrou mais consistente e credível face aos documentos existentes e ao contexto das actuações em causa, bem como pela serenidade e firmeza da mesma, tudo suportado por uma coerente linguagem corporal.

As testemunhas apresentaram depoimentos tranquilos, mostrando-se isentas, serenas e colaboradoras pelo que mereceram credibilidade quanto aos factos de que cada uma tinha conhecimento directo.

Foram analisados os referidos documentos de fls 10 a 16 e 23 a 27; bem como os de fls 18, 20 e 22 (sendo que o teor deste documento deve ser analisado em conjugação com as declarações prestadas pela assistente em audiência de discussão e julgamento) e de fls 155/9 e 160/218 (certidões dos processos 425/12.... e 1032/06...., respectivamente) bem como a informação da DGRSP de fls 222 e os documentos de fls 292/4.

O percurso do tribunal na formação da sua convicção assentou, essencialmente nas declarações do arguido e da assistente, conjugadas com os documentos analisados, sendo que a encenação do engano também se mostra suportada pelos depoimentos das testemunhas.

A convicção do tribunal colectivo acerca da falta de arrependimento do arguido resultou da sua atitude em audiência de discussão e julgamento ao procurar justificar e desconsiderar as suas actuações invocando apenas os problemas de toxicodependência, demonstrando assim que não interiorizou a gravidade dos seus comportamentos. Nesse sentido, o Supremo Tribunal de Justiça salienta que o arrependimento, para ser relevante, há-de ser sincero sendo incompatível com a tendência para a auto-desculpabilização dos actos praticados.


IV

            Apreciando:

            Questão prévia:

Sem prejuízo da alegação pelo recorrente do erro notório na apreciação da prova, que também designa de claro e notório erro grosseiro na apreciação da prova, a verdade é que perante o exato teor da motivação de recurso, este erro se reconduz ou insere no erro de julgamento e consequente impugnação da matéria de facto provada, questão que também suscita. …[2]). …

Daqui já se infere que o que está em causa é a apreciação da prova e eventual erro de julgamento, neste concreto especto e outros, de que o recorrente discorda. Pelo que se passa de imediato ao essencial da 2ª questão que respeita efetivamente à bondade do decidido em termos de factualismo provado e não provado, onde se insere a questão daquele documento e respetiva quantia de 3104€ bem como outras quantias impugnadas que integram outros factos.


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            2ª Questão: o erro de julgamento e respetiva impugnação da matéria de facto provada versus a violação do princípio do in dubio pro reo e consequências na medida da pena quanto ao crime de burla qualificada e absolvição do crime de extorsão.

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            Nos termos do artigo 428º do Código de Processo Penal as relações conhecem de facto e de direito.

            Por sua vez, a sindicância do factualismo provado pode exercer-se por duas vias: desde logo, através da verificação dos vícios do artigo 410º, nº2, do Código de Processo Penal – revista alargada – desde que tais vícios resultem do próprio texto da decisão recorrida conjugada com as regras da experiência comum. E através da designada  impugnação ampla da matéria de facto, alargando-se, pois, à análise e apreciação da prova produzida em audiência.

Tendo como referência o teor da motivação de recurso e respetivas conclusões, a impugnação da matéria provada é feita segundo esta modalidade. Todavia, para que esta impugnação possa considerar-se relevante deve observar os requisitos dos nºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal, exigindo desde logo o nº 3 daquele preceito (412º), que o recorrente , quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.


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- O primeiro requisito - os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados -, está observado pelo recorrente, impugnando o mesmo os factos sob os números 5.1, 5.6, 5.7, 5,8, 13, 14,15,16,17,18,19,20 e 21 – v. artigo 4º da motivação e conclusão nº 82.

- Quanto ao segundo requisito - as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida -, cumpre dizer o seguinte:

É certo que o recorrente na conclusão 83º indica as concretas passagens da gravação em que fundamenta a sua oposição à matéria de facto impugnada – declarações da assistente e do próprio, na qualidade de arguido -, indicando igualmente os documentos de fls 10 e seguintes e 24 e seguintes.

Todavia, à exceção de uma breve análise e considerações sobre os documentos de fls 10 e 22 e 23, já supra mencionados a propósito do erro notório na apreciação da prova, questão de que se falará de novo mais adiante, quanto às concretas passagens da gravação que indica, entende-se que o recorrente ficou aquém do que deveria ter observado. Com efeito, no decorrer da respetiva motivação, o recorrente não realiza, quanto à indicação das passagens da gravação dos depoimentos, a exigida análise da prova indicada de modo a que da mesma se possa concluir que impõe uma decisão diversa da recorrida. Limita-se o recorrente a tecer críticas e observações ao decidido pelo tribunal recorrido, discordando, é certo, do decidido e contrapondo o seu próprio julgamento e versão do ocorrido, mas sem apoio em concretos elementos de prova produzida. São exemplos manifestos desta postura processual do recorrente, quando o mesmo diz e afirma:

            Por que razão dá o Tribunal a quo como provado, que esta quantia fazia parte do tal “ bolo” de 23.696,20 euros que a Assistente entregou ao Recorrente? – artigo 40º.

            É assim, claro e notório que a prova foi mal apreciada pelo Colectivo – artigo 41º.

            Dá também como provado o Tribunal a quo, a ponto 5.7 do douto Acórdão, que: “ em Outubro de 2020, BB entregou ao arguido, a pedido do mesmo, a quantia de 400 euros, para este comprar um telemóvel para seu uso;” Ora, a exemplo do já motivado quanto ao anterior facto, não se vislumbra, nem a Assistente assim o confirmou em sede audiência de julgamento, que tal quantia estivesse relacionada com a famigerada compra de um barco – artigos 42º e 43º.

            Por último, dá também como provado o Tribunal a quo, a ponto 5.8 do douto Acórdão que- “em Novembro de 2020, BB entregou ao arguido, a pedido do mesmo, a quantia de 900 euros, para pagamento de uma dívida.”

            Ora, a exemplo do já motivado quanto aos anteriores factos dados como provados, não se vislumbra, nem a Assistente assim o confirmou em sede audiência de julgamento, que tal quantia estivesse relacionada com a famigerada compra de um barco.

            Pelo contrário, quando questionada em sede de declarações prestadas e gravadas em sede de audiência e julgamento, a Assistente é peremptória quando afirma que a referida quantia não estava relacionada com a compra do barco.

Sem prejuízo do uso da expressão Por último, todavia, o recorrente continua no mesmo método de impugnação:

E concretamente quanto ao crime de extorsão, diz o recorrente na motivação:

53º No douto acórdão ora recorrido dão-se como provados os seguintes factos a números 14,15,16,17,18,19,20 e 21.

54º Parece-nos também, com o devido respeito, que os factos acima alinhados não reflectem a prova produzida e examinada em audiência.

55º O Recorrente negou a prática de tais actos, não se produzindo em sede de audiência de julgamento qualquer prova directa de que o Recorrente tenha praticado tais actos.

56º Na verdade, o douto acórdão dá como provado que o Recorrente praticou tais factos, fundamentando tal decisão apenas e só com base nas declarações da Assistente.

57º Ora, não vislumbramos que existam regras da experiência que, com base na prova produzida, permitam inferir se efectivamente os factos dados como provados de número 14 a 21º, tenham ocorrido.

58º Estes elementos de prova-Declarações da Assistente e do Arguido- impõem após reapreciação por parte do Venerando Tribunal da Relação, a reformulação da supra transcrita factualidade, necessária para a apreciação cabal do recorte factual trazido a Juízo e para a boa decisão da causa.

59º Assim, consideramos que os factos provados nº 14 a 21º devem passar a factos não provados.


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            O requisito da especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida traduz-se numa exigência maior que a mera negação dos factos ou considerações e afirmações genéricas e de jaez como as que constam quer na motivação quer nas conclusões de recurso sobre a discordância da apreciação e valoração da prova produzida em audiência pelo tribunal recorrido.

            O pressuposto legal de indicação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida só se encontra preenchido ou observado se, para além da especificação das provas, o recorrente explicitar os motivos e em que termos essas provas indicadas impõem decisão diversa da decisão do tribunal. Ou seja, importa fundamentar e tornar convincente que tais provas impõem decisão diferente. Esta exigência corresponde, de algum modo, àquela que é exigida ao julgador para fundamentar os factos provados e não provados. Pois do mesmo modo que o julgador tem o dever de fundamentar as decisões, esse dever de fundamentação é igualmente exigido ao recorrente. Só deste modo se perceberá ou entenderá qual o raciocínio do recorrente para, em seu entender, dizer ou afirmar que determinado depoimento impõe decisão diversa da recorrida – neste sentido v. Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica, 2ª Edição, fls. 1131, notas 7 a 9, em anotação ao artigo 412º, do Código de Processo Penal, “o recorrente deve explicitar por que razão essa prova “impõe” decisão diversa da recorrida. Este é o cerne do dever de especificação”. V. também ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de maio de 2010, proferido no processo nº 696/05.7TAVCD.S1, “(…) não se pode deixar de ter presente que o legislador, quando se refere à especificação das provas, as restringe àquelas que imponham decisão diversa. A utilização do verbo impor, com o sentido de «obrigar a», não é anódina”.

Não basta, pois, a mera discordância do recorrente quanto à valoração feita pelo tribunal recorrido quanto à prova produzida, contrapondo apenas os seus argumentos, críticas, a negação dos factos, suscitando dúvidas – próprias que não do julgador -  e não analisando o teor dos depoimentos das indicados nas respetivas passagens da gravação, indicando por que tal facto ou factos devem ser dados como provados ou não provados – quando, como se verá, dessas passagens indicadas não resulta que a prova imponha decisão diferente.


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Sem prejuízo destas observações ou considerandos sobre a impugnação do recorrente, esta Relação ouviu toda a gravação dos depoimentos da assistente e as declarações do arguido, incluindo, claro, as concretas passagens por este indicadas.

Desta audição e dentro do que o princípio da imediação permite avaliar e concluir, conjugando tal audição com a fundamentação da sentença, importa dizer o seguinte:

A contextualização da ocorrência da conduta do arguido – que se prolongou por vários meses - está reproduzida na motivação do tribunal a quo, onde se descreve o início e toda a dinâmica dos acontecimentos, refletindo o que emerge da prova produzida e ouvida por esta Relação.

Com efeito, tudo começou porque a assistente BB que já conhecia o arguido antes, por ter sido colega da sua filha na escola, voltou a encontrá-lo no ano de 2019; e em Setembro desse ano – 2019 -, a mãe do arguido de quem era amiga, foi à casa da assistente e pediu-lhe para ajudar o filho a comprar um barco, que iria receber a mesma parte dos homens do barco, com lucro, e seria a gerente do negócio; o arguido, com quem a assistente falou na altura, convenceu-a de que o barco existia mesmo, que tinha o nome de “GG”, mostrando-lhe fotografias de um barco, dizendo  que era esse. A partir do momento em que a assistente aceitou participar no negócio do barco de pesca, o arguido começou a solicitar-lhe várias quantias para todo o tipo de despesas relacionadas com o barco e até para outras, conexas ou relacionadas com o barco ou trabalhadores deste. O retorno para a assistente seria o lucro do pescado realizado pelo barco na respetiva proporção.

Na conduta do arguido importa distinguir dois momentos e que correspondem aos dois diferentes tipos de crime por que veio a ser condenado: um primeiro momento em que a assistente acreditava na existência do barco e na veracidade do negócio, motivo pelo qual entregou várias quantias de dinheiro em vários momentos ao arguido para as despesas que este lhe transmitia – v. factos 1 a 13. Um segundo momento a partir do qual a assistente já sabia da não existência do barco, que tinha sido enganada pelo arguido, momento a partir do qual já não mais entregou voluntariamente dinheiro a este, pelo que o que entretanto lhe entregou foi mediante medo, ameaça, agressão física e constrangimento – factos 14 a 21.


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Resulta da motivação da sentença e da audição da prova por esta Relação, que o arguido declarou e confirmou que o barco nunca existiu; que solicitou e recebeu dinheiro da assistente; que tal dinheiro era para a droga, que o vício do consumo (heroína) é mais forte que a sua vontade; que trabalha a arrumar carros e tem acompanhamento no CAT ....

Mais confirmou o arguido ter assinado a declaração de dívida. Confirmou as suas assinaturas de fls 10 a 15 e 24/27, mas que não se recorda de ter assinado, apenas se recordando de assinar a declaração de dívida fls 24; que assinou a dívida de 25 mil euros como podia assinar uma dívida de valor superior mas que em seu entender a dívida não era daquele montante.

Mas nega ter ido a casa da assistente exigir-lhe dinheiro bem como os factos do facto provado nº 14, ocorridos junto do ..., na ....


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Perante o teor das declarações do arguido, que se limita a negar alguns factos e a dizer que admite ter solicitado dinheiro à assistente, que assinou documentos de dívida mas que acha que o montante é inferior ao que se deu como provado nos autos, é óbvio e claro que esta indicação de prova pelo recorrente não impõe, de modo algum, uma decisão diversa da recorrida.

E desde já se adianta que também as passagens indicadas da gravação do depoimento da assistente, não impõem igualmente decisão diversa da recorrida. Na verdade, não só não impõem decisão diversa como a confirmam.

A assistente prestou depoimento sereno, embora magoado com tudo o que lhe aconteceu, até porque atravessava na altura um período de saúde debilitada, efetuando diálise. O depoimento foi prestado com coerência, lógico e dinâmico na sequência da descrição dos factos. Pormenorizou o modo e momentos temporais em que o arguido lhe solicitava os montantes para as pretensas despesas do barco. Que chegou a efetuar um empréstimo junto de uma entidade financeira para obter dinheiro para tais despesas. Que confiava e acreditava no tipo de despesas que o arguido lhe transmitia. Que entregava o dinheiro ao arguido mas não confirmou nem sabia onde esta gastava o dinheiro, admitindo só depois de saber que o barco nunca existiu - o que o próprio arguido lhe confirmou -, que o dinheiro que entregou ao arguido jamais se destinou ao que o mesmo lhe dizia. Que sempre tomou nota das despesas realizadas e todos os sábados acertava contas com o arguido, no sentido de lhe falarem e lhe transmitir as quantias que que tinha entregue, ao que o arguido sempre anuiu.


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Quanto ao valor total das quantias entregues pela assistente ao arguido e que o tribunal recorrido fixou em 23.696,20 euros conforme teor do fato provado nº 13, tal valor é a soma dos valores indicados nos itens 5.1 a 5.8 do mesmo factualismo. E ainda que da declaração de dívida de fls 24 conste o montante de 25 mil euros, a assistente explicou que efetivamente a dívida não era desse montante – 25 mil euros -, mas que o arguido manifestou a vontade, perante o advogado Dr. II, que ficasse declarado o valor de 25 000,00€. Mais disse a assistente que, nesse momento, ainda não sabia que o barco não existia!

Todo este depoimento da assistente se afigura credível, pela sua clareza e pelos pormenores descritos, tudo indicando que desde o início a assistente sempre agiu de boa fé, confiando no arguido e em tudo o que lhe transmitia, não descurando, ao mesmo tempo, de tomar notas das quantias que efetivamente entregava em todos os momentos, para as despesas que o arguido lhe apresentava (cuja natureza estão descritas nos documentos de fls. 10 a 16.-

Pelo que, sem prejuízo de o recorrente impugnar o montante da dívida dada como provada, de 23.696,20 euros, contrapondo que deve ser apenas de 18.392,20€ - v. teor do nº 52º da motivação[3] -, com o fundamento de que não devem ser dados como provados os factos nºs 5.1, 5.6, 5.7 e 5.8 – v. teor da motivação nº 50º -, a verdade é que a sua impugnação não tem a virtualidade de alterar o decidido. E não tem porque, por um lado, a assistente sempre anotou todas as quantias que entregou ao arguido e acertava com este tais valores, tendo o arguido assinado essas declarações como o demonstram os documentos de fls 10 a 15 e 24, documentos que o arguido admite ter assinado. Por outro, não existe razão para duvidar ou colocar em causa quer o depoimento da assistente prestado em audiência de julgamento quer o teor dos documentos referidos. Podendo ainda acrescentar-se que, conforme resulta da fundamentação da sentença e não merece qualquer crítica do recorrente, a versão da assistente é corroborada em muitos aspetos, quer quanto à não existência do barco quer quanto às entregas do dinheiro pela assistente ao arguido, pelo depoimento das testemunhas aí referidas.


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Todos os fundamentos aduzidos para ajuizar da credibilidade do depoimento da assistente quanto aos factos que integram o crime de burla praticado pelo arguido, se aplicam aos factos quanto ao crime de extorsão, factos provados nºs 14 a 21 e impugnados pelo mesmo.

É certo que o arguido nega a prática destes factos. Mas o tribunal recorrido deu como provados estes factos com base no depoimento da assistente, vítima, que lhe mereceu inteira credibilidade. E bem, fazendo uso assertivo dos princípios da imediação e da livre apreciação da prova. Apesar de a assistente ter referido que outras pessoas assistiram aos factos, não foi ouvida qualquer outra testemunha sobre os mesmos. Mas tal não é impeditivo de dar tal factualismo como provado, desde que o depoimento da vítima mereça a credibilidade do tribunal como efetivamente mereceu. Credibilidade que assenta em todo o circunstancialismo em que tais factos ocorreram e pela forma como a assistente os descreve.

Pelo exposto, significa que não faz sentido chamar à colação a aplicação do princípio do in dubio pro reo como pretendido pelo recorrente, quanto a estes factos do crime de extorsão – nºs 14, 15, 16 e 17 ; v. nºs 78º e 79º da motivação e conclusão nº 92º.

Com efeito, este princípio só seria de aplicar se o julgador tivesse dúvidas sérias, razoáveis, justificadas e fundamentadas sobre o modo como os factos se passaram e/ou quem os praticou.

            Como decidiu o STJ, a violação do princípio do in dubio pro reo só se verifica “quando o Tribunal, colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação das provas, decidir, em tal situação, contra o arguido” – v. ac. do STJ de 18.3.98, proc. nº 1543/97 e ac. do STJ de 24.3.99, Col. Jurisp., Acs. do STJ, I, 247.

Ou, como se decide no ac. desta Relação de Coimbra de 25.10.2017, proc. nº 403/16.9GASEI.C1[4]: “Se produzida a prova, subsiste na mente do julgador um estado de incerteza, objectiva, razoável e intransponível, sobre a verificação, ou não, de determinado facto ou complexo factual, impõe-se-lhe proferir uma decisão favorável ao arguido. Se, pelo contrário, a incerteza não existe, se a convicção do julgador foi alcançada para além de toda a dúvida razoável, não há lugar à aplicação do princípio.

Conforme se acrescenta ainda neste acórdão, “Na fase de recurso, a demonstração da violação do pro reo passa pela sua notoriedade, aferida pelo texto da sentença, devendo, por isso, resultar dos termos desta, de forma clara e inequívoca, que o juiz, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao agente, o considerou provado ou, inversamente, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto favorável ao agente, o considerou não provado; A dúvida relevante para este efeito não é, no entanto, a dúvida que o recorrente entende que deveria ter permanecido no espírito do julgador após a produção da prova, em conformidade com a apreciação que dela, por si [recorrente], foi feita, mas antes, a dúvida que o julgador não logrou ultrapassar e fez constar da sentença ou que por esta é evidenciada.

A fundamentação do julgador a quo não evidencia qualquer dúvida sobre o decidido quanto a esta matéria de facto. Ou seja, ao tribunal recorrido não se suscitou qualquer dúvida que justificasse a aplicação do princípio do in dubio pro reo. Nem motivo para a equacionar. Por sua vez, da análise deste tribunal de recurso sobre a prova gravada nos termos supra apreciados, não existe fundamento válido para que seja chamado à colação tal princípio, sendo de manter integralmente a factualidade impugnada pelo recorrente.


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O acórdão recorrido procede à integração jurídica do factualismo provado, da verificação da reincidência, à determinação da medida das penas parcelares e da pena única.

… inexiste fundamento para alterar a qualificação jurídica quanto ao crime de burla agravada e respetiva pena parcelar aplicada bem como a absolvição do crime de extorsão, cuja pena será de manter.

Consequentemente, inexiste fundamento para alterar quer as penas parcelares aplicadas quer a respetiva pena única.


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3ª Questão: o  pedido de indemnização civil.

O recorrente, enquanto demandado civil, foi condenado a pagar à demandante e assistente, a quantia de 24.386,20 euros …

Na motivação de recurso o arguido não apresenta quaisquer outros fundamentos para a redução desta condenação da Indemnização Civil, a não ser a impugnação da matéria de facto como provada. De onde é legítimo concluir que esta pretensão do recorrente apenas possa advir como consequência lógica em deverem ser dados como não provados os factos nºs 5.6, 5.7 e 5.8 e nesta medida ser reformulada e considerar-se apenas e só a quantia de 18.392,20€, quanto ao crime de burla bem como deverem ser dados como não provados os factos nºs 14,15,16,17,18,19,20 e 21 quanto ao crime de extorsão.

 Ora, como se apreciou na questão anterior, a matéria de facto impugnada pelo recorrente improcede. O que significa que inexiste fundamento para alterar a condenação do recorrente no montante da indemnização civil, que se deve manter.


V

Dispositivo

Por todo o exposto, decide-se julgar improcedente o recurso do recorrente AA, mantendo-se a decisão recorrida.


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Custas a cargo do recorrente com a taxa de justiça que se fixa em 5 (cinco) UCs.

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Coimbra, 12.7.2023.

Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos signatários.





[1] A numeração é a que consta da peça processual do recorrente, sendo a continuação da numeração das motivações de recurso.
[2] As referências que se seguem referem-se aos artigos desta peça processual.
[3] Com o seguinte teor: “Ora, Venerandos, em face do exposto anteriormente, mais se requer a impugnação da matéria de facto descrita no artigo anterior, devendo a mesmo ser reformulada e considerar-se apenas e só a quantia de 18.392,20€”.
[4] Relator Vasques Osório