Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | SIMAS SANTOS | ||
Descritores: | ABUSO SEXUAL DE CRIANÇA AGRAVADO COACÇÃO GRAVE OMISSÃO DE PRONÚNCIA RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO CRIME CONTINUADO PRESSUPOSTOS | ||
Nº do Documento: | SJ200707050017665 | ||
Data do Acordão: | 07/05/2007 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO PARCIALMENTE | ||
Sumário : | 1 – Quando o recorrente pretende impugnar a decisão sobre a questão de facto deve dirigir-se, à Relação que tem competência para tal, como dispõem os art.ºs 427.º e 428.º, n.º 1 do CPP. O recurso pode então ter a máxima amplitude, abrangendo toda a questão de facto com vista à modificação da decisão da 1.ª Instância sobre essa matéria, designadamente quando, havendo documentação da prova, esta tiver sido impugnada nos termos do art. 412.º, nº 3 [art. 431.º, al. b)]. 2 – Se a Relação entendeu e decidiu que o recorrente não dera cumprimento, no texto da motivação e nas conclusões, aos comandos dos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP, pelo que não podia proceder àquele reexame alargado da questão de facto e não havia que efectuar o convite dirigida à correcção das conclusões, por o não permitir o texto da motivação, não há omissão de pronuncia por parte da Relação. 3 – Sobre o dever de constarem essas menções, dos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º, das conclusões da motivação, já se pronunciou este Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que "versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição" (…), já o n.º 3 se limita a prescrever que "quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (…)", sem impor que tal aconteça nas conclusões. E que perante esta margem de indefinição legal, e tendo o recorrente procedido à mencionada especificação no texto da motivação e não nas respectivas conclusões, ou a Relação conhece da impugnação da matéria de facto ou, previamente, convida o recorrente a corrigir aquelas conclusões. 4 – Para além da já referida impugnação alargada da decisão de facto, pode sempre o recorrente, em todos os casos, dirigir-se à Relação e criticar a factualidade apurada, com base em qualquer dos vícios das alíneas do n.º 2 do art. 410.º, como o consente o art. 428.º n.º 2 do CPP. 5 – Como é jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça, não pode hoje ser fundado um recurso de revista na existência de vícios da matéria de facto, salvo se se tratar de recurso de decisão do tribunal de júri, caso em que sobe directamente ao Supremo. 8 – Corporiza o crime de coacção grave dos art.ºs 154.°, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. b) do C. Penal a conduta daquele que, depois de cometer crimes de abuso sexual de crianças, entre os 10 e os 11 anos, por várias vezes, disse às menores que lhes partia a boca e desfazia a cara se contassem o sucedido a alguém 9 – A conduta consciente do arguido, dirigida à satisfação dos seus desejos sexuais, consistente em despir a sua filha até ficar de cuecas, colocando-a de joelhos sobre a sua cama, debruçada para a frente e colocando-se em pé atrás dela esfregando o seu pénis no rabo da menor, simulando movimentos de cópula é patentemente um acto sexual de relevo integrante do crime de abuso sexual de criança agravado. 10 – São pressupostos do crime continuado: — a realização plúrima do mesmo tipo de crime (ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico); — a homogeneidade da forma de execução (unidade do injusto objectivo da acção); — a unidade de dolo (unidade do injusto pessoal da acção). As diversas resoluções devem conservar-se dentro de «uma linha psicológica continuada»; — a lesão do mesmo bem jurídico (unidade do injusto de resultado) ; — a persistência de uma «situação exterior» que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente. 11 – Tratando-se de bens jurídicos pessoais, não se pode falar, como o exige o n.º 2 do art. 30.º citado, no mesmo bem jurídico, o que afasta então a continuação criminosa, salvo se for o mesmo ofendido e para que se possa falar de diminuição de culpa na formação das decisões criminosas posteriores é necessário que as mesmas não tenham sido tomadas todas na mesma ocasião. | ||
Decisão Texto Integral: | 1. O Tribunal Colectivo de Loures (proc. n.º 473/03.0 JDLSB da 1.ª Vara Mista) condenou o arguido AA pela prática, em autoria material e em concurso real, de:
— 1 crime de abuso sexual de crianças agravado dos art.ºs 172.°, n.º 1, e 177.°, n.° 1, do C. Penal, na pena de 3 anos de prisão; — 10 crimes de abuso sexual de crianças do art. 172.°, n.º 1, do C. Penal, na pena de 2 anos de prisão por cada um; — 4 crimes de coacção grave dos art.ºs 154.°, n.° 1, e 155.°, n.° 1, al. b), do C. Penal, na pena de 18 meses de prisão por cada um. — Em cúmulo jurídico, na pena única de 9 anos de prisão.
Inconformados, recorreram para a Relação de Lisboa o arguido e a assistente BB. Aquele Tribunal Superior, por acórdão de 1.3.2007, na procedência de uma questão prévia, rejeitou o recurso da assistente (art.ºs 414.º, n.ºs 2 e 3 e 420.º, n.º 1, do CPP) e, entendendo que o acórdão recorrido fizera rigorosa apreciação e valoração da prova produzida em audiência de julgamento, não ocorrendo os vícios assacados, rejeitou «em substância» o recurso do arguido por manifestamente improcedente, confirmando a sentença recorrida. Ainda inconformado recorreu o arguido a este Supremo Tribunal de Justiça, sem que tenha apresentado conclusões devidamente elaboradas, o que veio a fazer, depois do convite que para tal lhe foi dirigido.
Suscita as seguintes questões: – Nulidade por omissão de pronúncia e erro na apreciação da prova (conclusões A a F e Q); – Condenação pelos crimes de coacção grave e de abuso sexual agravado contra as menores CC e DD (conclusão final e G a I); – Medida da pena (conclusões G a Q). Respondeu o Ministério Público junto do Tribunal recorrido, que se pronunciou pela confirmação da decisão da 1.ª Instância Distribuídos os autos neste Tribunal, teve vista o Ministério Público. Colhidos os vistos, realizou-se a audiência. Nela o Ministério Público pronunciou-se pela nulidade por omissão de pronúncia, face à inexistência de convite para correcção das conclusões, mas quanto à pena considerou-a adequada, embora se tenha afastado do caminho metodológico seguido pela decisão recorrida para a encontrar. A defesa reiterou a motivação, incluindo a questão do erro notório na apreciação da prova. Teve por exagerada a pena, lembrando a vida familiar normal até fins de 2005, sem que tivessem sido praticados quaisquer crimes e pediu a sua diminuição. A assistente sustentou que a Relação se manteve nos limites do seu poder, devendo também ter-se por afastado o crime continuado e considerando a medida da pena adequada, dado o cúmulo jurídico correctamente feito, embora sem indicações de grandes razões. Cumpre, assim, conhecer e decidir.
2.1. E conhecendo. Antes de entrar nas questões que vêm colocadas pelo recorrente, importa lembrar a factualidade apurada pelas instâncias. É ela a seguinte. Factos provados: 1 – O arguido AA é pai de CC, nascida a 6 de Fevereiro de 1993, e tio de DD, nascida a 18 de Julho de 1992 e filha de seu irmão, EE. 2 – Até finais de 2002 ou início de 2003, o arguido AA residiu com a sua mulher, BB , e as duas filhas do casal, CC e M..., esta, então, com 4 anos de idade, na Praceta das Torres, lote...,...º C, em S. João da Talha. 3 – Nesse mesmo prédio, mas no ....° andar, letra C, residia, também, FF, nascida a 10 de Outubro de 1991. 4 – No prédio em frente, sito na Rua 1.° de Maio, lote ..., em S. João da Talha, residia GG, nascida a 3 de Setembro de 1992, e também a DD. 5 – A CC, a DD, a FF e a GG eram amigas e por esse motivo era frequente encontrarem-se todas em casa da primeira para aí brincarem, quer nos fins-de-semana, quer durante a semana, à tarde ou depois do jantar. 6 – Desde data indeterminada do ano de 2001 e até ao final de 2002, o arguido AA aproveitou a presença destas quatro menores em sua casa para nelas satisfazer os seus desejos sexuais, valendo-se da sua inocência de crianças. 7 – Nessas circunstâncias e nesse período temporal, num número indeterminado de vezes, o arguido AA ofereceu-se para brincar com as quatro menores, sugerindo-lhes que brincassem ao "quarto escuro". Nessa brincadeira, levava-as para um dos quartos, normalmente o da CC, fechava a porta e os estores, e apagava as luzes, deixando o local em total escuridão. Depois, brincava com elas "à apanhada", procurando ele agarrá-las e elas dele fugir. Quando "apanhava" uma das meninas, levava-a para o seu quarto, que também estava na escuridão, onde as beijava no rosto e nas mãos e tentava beijar na boca, e as apalpava nas nádegas e região anal e nas maminhas. Em algumas dessas ocasiões, o arguido AA despia-se, agarrava na mão da menor "apanhada" e colocava-a no seu pénis erecto, fazendo-a acariciá-lo até que ejaculava para uma toalha. Noutras ocasiões, o arguido despia as crianças até ficarem de cuecas, deitava-as na cama, amarrava-lhes as mãos à cabeceira da cama, deitava-se sobre elas, estando umas vezes nu e outras vestindo, apenas, umas cuecas, e depois, enquanto as beijava e as apalpava, esfregava o seu pénis no rabo das menores. Noutras ocasiões ainda, o arguido AA despia-as até ficarem de cuecas, colocava-as de joelhos sobre a sua cama, debruçadas para a frente, colocava-se em pé atrás delas e esfregava o seu pénis no rabo das menores, simulando movimentos de cópula. Pelo menos, por uma vez, nessas ocasiões, cada uma das menores GG e FF foi a "apanhada" pelo arguido e este sobre ela praticou os actos aqui descritos. 8 – O "jogo do quarto escuro" tinha uma "variante" em que o arguido levava as quatro crianças para o seu quarto ou para o da CC, onde lhes vendava os olhos e atava as mãos com lenços, ou atrás das costas ou à frente, consoante escolha de cada uma: as que escolhiam ser atadas à frente eram sentadas com as mãos no colo; as que escolhiam ser atadas atrás das costas eram por ele deitadas sobre a cama de barriga para baixo. Às que estavam sentadas o arguido colocava o seu pénis erecto nas mãos atadas e aí o friccionava; às outras, o arguido deitava-se sobre elas e esfregava o seu pénis no rabo delas. Por vezes, o arguido ejaculava sobre as mãos ou a barriga de uma das menores. Pelo menos, por uma vez, cada uma das menores GG, FF e DD foi a "apanhada" pelo arguido e este sobre ela praticou os actos aqui descritos. 9 – O arguido utilizava ainda um outro estratagema para levar as menores para o seu quarto: um jogo a que chamava "das cordas". Nesse "jogo", que se desenrolava no corredor da casa, ele amarrava cordas aos puxadores das portas dos quartos e vendava as quatro menores. Depois de apagada a luz, elas tinham que apanhar uma corda e segui-la para chegar até ele. A primeira a consegui-lo ia com ele para o quarto para receber o seu "prémio", nos termos supra descritos, ou seja, o arguido despia-as até ficarem de cuecas, colocava-as de joelhos sobre a sua cama, debruçadas para a frente, colocava-se em pé atrás delas e esfregava o seu pénis no rabo das menores, simulando movimentos de cópula. Assim aconteceu, pelo menos, uma vez com a menor CC, sobre quem o arguido praticou estes actos. 10 – No mencionado período, por várias vezes, a DD ficou a dormir em casa do arguido e família. 11 – Em finais do ano de 2002 ou início de 2003, o arguido AA foi residir com a sua mulher e filhas para Santiago do Cacém, primeiro, em casa dos seus sogros e mais tarde em casa própria. 12 – Depois de passar a residir em Santiago do Cacém, por várias vezes, o arguido convidou a DD, sua sobrinha, para ir passar o fim-de-semana ou pequenas férias em sua casa, sob pretexto de manter o contacto desta menor com as primas, suas filhas. 13 – No dia 17 Setembro de 2003, o arguido AA regressou à sua antiga casa de residência, em S. João da Talha, na companhia da mulher e das filhas com a intenção de daí retirar e levar alguns pertences. Nesse dia, a CC, a DD, a GG e a FF encontraram-se em casa da primeira para brincarem. Quando as quatro menores estavam a ver televisão, o arguido aproximou-se da DD, puxou na sua direcção o sofá onde ela estava sentada e beijou-a na boca. Nessa altura, a DD disse-lhe que ia contar tudo à sua mãe. Em atitude e em tom de voz sérios, o arguido AA disse-lhe que, se o fizesse, lhe iria partir a boca toda, tendo a menor ficado com receio de que tal viesse a suceder. 14 – Após a realização dos referidos jogos e da prática dos actos que lhe estavam associados, o arguido, por várias vezes, disse às menores que lhes partia a boca e desfazia a cara se contassem o sucedido a alguém. 15 – Receando que o arguido, efectivamente, lhe batesse, a FF só em Abril de 2003 relatou à sua mãe os factos até então sucedidos. 16 – Pelo mesmo motivo, a DD e a GG só o fizeram às respectivas mães em 17 de Setembro de 2003. 17 – Os factos descritos provocaram sofrimento e tristeza nas quatro menores, sobretudo na CC, e afectaram negativamente o seu desenvolvimento. 18 – Em todas essas ocasiões, o arguido agiu com perfeita noção do que fazia, com liberdade de determinação e sabendo que as suas acções eram penalmente puníveis. Obviamente conhecedor da idade da sua filha CC e das outras três menores, o arguido quis obrigá-las, e efectivamente obrigou, a suportar os descritos actos sexuais que sabia serem fortemente lesivos da sua autodeterminação sexual, tal como sabia que elas não tinham capacidade para entender o significado dos actos que estava a fazê-las suportar. Apurou-se, ainda, que: 19 – O arguido é natural de Abrantes, mas o seu processo de socialização decorreu, até aos 5 anos de idade, em Lisboa, para onde veio com os progenitores e dois irmãos. O ambiente familiar era de conflito entre os progenitores, que acabaram por se divorciar, levando ao desmembramento do agregado. Nessa altura, o arguido AA, bem como os irmãos, ficou ao cuidado de uns tios paternos, por decisão do progenitor, e por isso voltou para Abrantes. Até aos 11 anos de idade, o arguido esteve privado do contacto com o progenitor, que se desvinculou do seu processo educativo, bem como da progenitora, que foi proibida de o contactar. Nesse período, além da perda afectiva que constituiu a separação forçada da mãe, o arguido AA terá sido (segundo refere) vítima de abuso sexual por parte de um vizinho, situação que foi por ele sentida como traumatizante e que lhe provocou baixa auto-estima, receio de rejeição e isolamento. Quando tinha 11 anos de idade, os pais reconciliaram-se e foram buscá-lo para viver com eles em Lisboa, mas, ao fim de dois anos, o mau relacionamento existente entre o casal determinou a ruptura definitiva. Ficou, então, a viver com a progenitora (e os dois irmãos), só deixando de com ela conviver em 1992, quando contraiu matrimónio com a mãe das suas duas filhas. Com o pai, até ao falecimento deste, teve um relacionamento distante e esporádico, pois sentia em relação a ele "raiva ... por aquilo que fez à minha mãe". Frequentou a escola até ao 6.° ano de escolaridade, tendo desistido para ir trabalhar, primeiro, numa pastelaria e depois, durante cerca de 10 anos, como estafeta em agências de publicidade. Entretanto, abriu um bar com um cunhado e, à data dos factos, geria, conjuntamente com a sogra, uma loja de brinquedos que viria a fechar em 2004. Presentemente, integra o agregado materno e é em casa da progenitora que se encontra sob a obrigação de permanência na habitação, fiscalizada por meios de vigilância electrónica. O arguido tem-se manifestado deprimido, embora sem pensamentos auto-destrutivos. Por sua iniciativa, está a ser seguido na consulta de psiquiatria do Hospital Miguel Bombarda. Manifesta vergonha por ser, no presente, desprezado pelo grupo social a que pertencia e por se sentir exposto ao escrutínio crítico dos outros, mas não houve, da sua parte, a formulação de censura pela conduta que lhe é imputada e/ou sobre as suas consequências nas vitimas. Durante a audiência, não teve qualquer atitude que evidenciasse o mínimo arrependimento. O arguido assume, relativamente à situação por que está a passar, uma atitude lamuriosa/chorosa, bem como de vitimização. Atribui a vingança da cunhada em relação a um irmão a queixa crime de abuso sexual de crianças que deu origem a este processo. Preocupa-se em fazer passar uma imagem pessoal abonatória. Manifesta interesse exagerado pelo seu estado de saúde, geralmente por perturbações difíceis de identificar e sem causa orgânica detectável. O arguido revela-se um indivíduo inseguro, defensivo, imaturo, egocêntrico, impulsivo, emocionalmente instável, tenso, preocupado, desconfiado, inibido, com sentimentos de inferioridade, falta de auto-estima e autoconfiança, distante, com grande dificuldade em estabelecer vínculos afectivos e acentuadamente voltado para o mundo de fantasia. O arguido não tem antecedentes criminais. Factos não provados Não se provaram quaisquer outros factos relevantes para a decisão da causa, designadamente: A) que, nas situações descritas no n.° 7, o arguido, também, esfregava o seu pénis na zona púbica das menores; B) que, em finais do ano de 2002 ou início de 2003, quando preparava a mudança de residência do agregado para Santiago do Cacém, o arguido, por diversas vezes, chamou a DD e a FF para irem a sua casa, sob o pretexto de ajudar a CC a embalar os seus brinquedos e, quando aí se encontrava com elas, e não estava qualquer outra pessoa presente, beijava-as na boca e apalpava-as; C) que, quando a DD ficava a dormir em casa do arguido, este, sob o pretexto de que ia tapá-las, ia ao quarto onde esta menor dormia com as primas, pegava na mão dela e fazia-a agarrar o seu pénis e massajá-lo para a frente e para trás; D) que, já depois de estar a residir em Santiago do Cacém, por várias vezes, o arguido convidou a DD para ir passar o fim-de-semana ou pequenas férias em sua casa para estar perto dela e para, sempre que pudesse, a" beijar na boca e apalpar; E) que, à noite, o arguido ia ao quarto onde a DD dormia com as primas, pegava-lhe na mão e fazia-a agarrar o seu pénis e massajá-lo para a frente e para trás; F) que, em algumas dessas ocasiões, o arguido AA tentou tirar as cuecas à DD, o que não conseguiu, apenas, porque ela não lho permitiu, gritando para que ele a deixasse; G) que, noutra ocasião, aproveitando o facto de estar sozinho em casa com a DD, o arguido levou-a para o seu quarto, levantou-lhe a camisa para cima, deitou-a sobre a cama, despiu-se completamente, colocou-se sobre as pernas da menor, ficando de joelhos, e massajou com a mão o seu pénis erecto até que ejaculou sobre a barriga nua da criança; H) que, ainda numa outra ocasião desse período, o arguido inventou e concretizou um novo jogo como pretexto para satisfazer os seus desejos sexuais com a DD: colocou-a de um lado da cama do quarto dos seus sogros e a CC no outro lado; depois, estas duas deram as mãos sobre a cama e balançaram-se para a frente e para trás, cada uma tentando fazer com que a outra soltasse as mãos e perdesse o jogo. O arguido colocou-se atrás da DD e balançou-se para a frente e para trás ao mesmo tempo que ela, assim esfregando, como era seu propósito, o pénis no rabo da menor; I) que as ameaças referidas no n.° 14 da matéria de facto provada eram proferidas sempre que o arguido abusava sexualmente das crianças.
2.2. Vejamos então, começando logicamente pela arguida nulidade por omissão de pronúncia e erro na apreciação da prova. Sustenta o recorrente que impugnou para a Relação a matéria fáctica dada como provada e não provada (conclusão A), invocando os vícios do art. 410° n.º 2 als a) e c) do CPP, designadamente o erro na apreciação da prova, tendo sido utilizadas expressões na decisão de 1.ª instância, que não foram proferidas pelas testemunhas em audiência de julgamento, e que dão ao caso uma conotação mais grave e de maior relevo sexual, do que o que na realidade se possa ter passado (conclusão B). Mas que a Relação considerou que a 1.ª Instância fizera rigorosa apreciação e valoração da prova produzida em audiência de julgamento, que não haviam ocorrido os vícios indicados e rejeitou o recurso (conclusão C), não tendo, assim, apreciado devidamente a alegações relativas à impugnação do acórdão, por erro na apreciação da matéria de facto (conclusão D). Deste modo a Relação teria violado o art. 379° n.° 1, al. c) do CPP, pois não se pronunciou sobre questões que deveria ter apreciado, socorrendo-se para isso dos suportes técnicos e da transcrição da prova gravada em audiência de julgamento, antes tendo feito, por simples análise da matéria fáctica dada como provada e invocando o princípio da livre apreciação da prova que terá norteado a decisão do Tribunal da 1.ª Instância (conclusão E), violando ainda o disposto no art. 410.º n.º 2 al. c) do CPP (conclusão F). Vejamos, pois. Quando o recorrente pretende impugnar a decisão sobre a questão de facto deve dirigir-se, como o fez o recorrente, à Relação que tem competência para tal, como dispõem os art.ºs 427.º e 428.º, n.º 1 do CPP. O recurso pode então ter a máxima amplitude, abrangendo toda a questão de facto com vista à modificação da decisão da 1.ª Instância sobre essa matéria, designadamente quando, havendo documentação da prova, esta tiver sido impugnada nos termos do art. 412.º, nº 3 [art. 431.º, al. b)]. Ora, a Relação entendeu e decidiu que o recorrente não dera cumprimento, no texto da motivação e nas conclusões, aos comandos dos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP, pelo que não podia proceder àquele reexame alargado da questão de facto. E isso mesmo foi transposto para a decisão recorrida: «Como questão prévia, há que ponderar que o recorrente pretende impugnar a decisão de facto em conformidade com o que a lei lhe possibilita (art. 428.°, n.º 1 CPP). Para esse efeito haverão de ser cumpridas as regras do art. 412.°, n.° 3 de acordo com o qual quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto o recorrente deve especificar:
a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.
E ainda também o que determina o n.° 4 do citado art. 412.° segundo o qual quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) daquele n.° 3 fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição. A consequência dessa omissão é a impossibilidade de apreciação da matéria de facto que é o fundamento do recurso, o que determina a sua manifesta improcedência, devendo ter-se por insindicável a factualidade dada como assente nos termos do art.ºs 426.º, 430.º e 431.º do Código de Processo Penal, sem prejuízo, porém, do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art. 410º do mesmo diploma e tendo, evidentemente, presente o Acórdão do STJ de 95.10.19 (DR 1ª Série A, de 95.12.28) que fixou jurisprudência no sentido de que é oficioso o conhecimento pelo tribunal de recurso dos vícios indicados no citado n.º 2 do art. 410.º CPP, mesmo para além, portanto, daqueles que o recorrente invoca. No caso presente, foi documentada a prova produzida em audiência mediante a sua gravação sonora, a qual se encontra perfeitamente audível. No entanto, ao impugnar a matéria de facto dada como provada, o Recorrente fê-lo de uma forma generalizada. Nem na Motivação nem nas respectivas "conclusões" é feita a especificação das provas que, relativamente a cada um dos assinalados pontos de facto, impunham que cada um deles tivesse sido julgado como provado. Antes, limita-se a afirmar que os factos dados como provados não o deveriam ter sido, não indicando especificamente as provas que imporiam uma diferente decisão referente a cada um daqueles factos que o Tribunal "a quo" não considerou terem sido provados. O Recorrente não só não cumpre a prescrição contida na norma da al. b) do n° 3 do referido art° 412°, como também não observa o comando legal a que alude o n° 4 do supracitado art° 412°, isto é, não faz a necessária especificação por referência aos suportes técnicos das gravações relativas à prova oralmente produzida em Audiência.»
Importa notar, face a esta decisão, que não se vê que devesse ter havido lugar a convite para complementação das conclusões da motivação, para quem entenda que aquelas menções dos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º devem aí ser referidas, pois que não se vê que elas constem do próprio texto da motivação. Sobre o dever de constarem essas menções das conclusões da motivação, já se pronunciou este Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que "versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição" (…), já o n.º 3 se limita a prescrever que "quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (…)", sem impor que tal aconteça nas conclusões. E que perante esta margem de indefinição legal, e tendo o recorrente procedido à mencionada especificação no texto da motivação e não nas respectivas conclusões, ou a Relação conhece da impugnação da matéria de facto ou, previamente, convida o recorrente a corrigir aquelas conclusões (AcSTJ de 16/06/2005, proc. n.º 1577/05-5, com o mesmo Relator). Referimo-nos ao texto da motivação, pois que sujeita, como está a apresentação da motivação a um prazo peremptório, apresentada a mesma, não pode ser aditada, através da correcção das conclusões, de matéria que o seu texto não contenha. O que vale por dizer que se o texto da motivação não contem os elementos, tidos em falta ou deficientemente expostos nas conclusões, não há lugar ao convite para correcção, por não poderem, nesse caso, ser aditados. Assim o vem entendendo este Tribunal e o Tribunal Constitucional: o texto da motivação constitui o limite inultrapassável daquele convite. O que não constar da motivação no seu todo, não pode depois ser introduzido na lide por via do convite (cfr., por todos, o AcSTJ de 27.4.2006, proc. n.º 1287/06-5, com o mesmo Relator). Não haveria, pois e em todo caso, lugar ao convite a correcção quanto ás especificações a que se refere o acórdão. Para além da já referida impugnação alargada da decisão de facto, pode sempre o recorrente, em todos os casos, dirigir-se à Relação e criticar a factualidade apurada, com base em qualquer dos vícios das alíneas do n.º 2 do art. 410.º, como o consente o art. 428.º n.º 2 do CPP. E a Relação, embora tenha afastado, pelas razões indicadas, a impugnação alargada da matéria de facto, entrou, como lhe competia, na análise dos vícios da decisão indicados pelo recorrente: insuficiência da matéria de facto provada para a decisão e erro notório na apreciação da prova. Como resulta do disposto no corpo do n.º 2 do art. 410.º, tais vícios, para serem operantes, hão-de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. E foi neste contexto que a Relação invocou o princípio da livre apreciação da prova aplicado na decisão da 1.ª Instância, e não para se furtar à apreciação alargada da matéria de facto (que já estava afastada), caso em que este Supremo Tribunal de Justiça tem entendido ser ilegítima essa invocação, pois que também a 2.ª Instância se pode socorrer, em recurso, de tal princípio. Tendo sido usado tal princípio, em conjugação com o teor cuidado da fundamentação decisão da 1.ª Instância, para afastar o carácter notório do erro invocado e considerar a exigência de que os vícios invocados resultem do texto da decisão, por si ou conjugada com as regras de experiência, não deve ser por tal penalizada a decisão recorrida. Temos, assim, que a Relação também se pronunciou sobre os invocados vícios da decisão, essencialmente nos termos seguintes: «O relacionamento dessa síntese com a matéria de facto dada como provada revela, claramente, quais os elementos que foram relevantes para a convicção do tribunal e que levaram à fixação dos factos provados. Tais elementos foram avaliados no seu conjunto e a prova globalmente considerada resulta dessa avaliação. E o raciocínio no mesmo plasmado revela-se perfeitamente cristalino e clarividente para qualquer destinatário normal e médio, que é o suposto ser querido pela ordem jurídica. A matéria de facto há-de permitir um encadeado de reflexões atinentes à determinação da responsabilidade penal, já que, é sobre ela que se constrói todo o edifício lógico que legitima uma condenação ou uma absolvição. Se não fosse assim, em lugar de uma decisão, teríamos a fixação de matéria de facto e a matéria de facto deixada ao entendimento de quem a lesse. Como não pode ser assim, nem tudo o que se diz, laborando a matéria de facto, há-de estar contido na matéria de facto apurada. E o caso apontado pelo recorrente é esse. O tribunal a quo correctamente fixou na sentença revidenda, dela eliminando todos os factos alheios, incluindo os factos objecto do processo, mas também aqueles que permitem inferir a verificação dos primeiros e a idoneidade dos meios de prova. Quanto à alegada insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, para que exista aquele vício, que não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto (mas que o recorrente confunde assim como se esquece da regra da livre apreciação da prova inserta no art. 127.º, do CPPenal) é necessário que a matéria de facto fixada se apresente insuficiente para a decisão sobre o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos dos tipos legais de crime verificáveis e dos demais requisitos necessários à decisão de direito e é de concluir que o tribunal a quo podia ter alargado a sua investigação a outro circunstancialismo fáctico suporte bastante dessa decisão ( v. Ac. do STJ de 20-10-99, Proc. nº 1452/98-3ª Secção, que traduz jurisprudência pacífica). Não ocorre esse vício quando o tribunal investigou tudo o que podia e devia investigar. E o princípio da investigação oficiosa no processo penal, conferido ao tribunal pelos art.ºs 323.°, al. a) e 340.°, n.° 1, ambos do CPPenal, tem os seus limites na lei e está condicionado pelo princípio da necessidade, dado que só os meios de prova cujo conhecimento se afigure necessário para habilitarem o julgador a uma decisão justa devem ser produzidos por determinação do tribunal na fase de julgamento, ou a requerimento dos sujeitos processuais.
Aquele juízo de oportunidade, de necessidade de diligências de prova não vinculada, dada a imediação e a vivência do julgamento, sede do contraditório, constitui pura questão de facto não subsumível ao art.° 410.°, n.º 2, als. a), b) e c) e n.° 3, do C.P.Penal e, portanto, insusceptível de ser sindicada pelo tribunal de recurso. Está-se na presença da insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito quando os factos colhidos, após o julgamento, não consentem, quer na sua objectividade quer na sua subjectividade, o ilícito dado como provado. (Ac. do STJ de 98.03.25, BMJ 475-502). Tudo o mais que se pretendesse fazer investigado ou vertido no acórdão, era desnecessário e irrelevante para se decidir pela verificação dos elementos típicos do crime por que foi condenado, era acessório ao themma. O tribunal investigou tudo o que podia e devia investigar. Os meios de prova admissíveis são aqueles cujo conhecimento se afigure necessário para a descoberta da verdade e boa decisão da causa – e o arbítrio da necessidade é o tribunal. E o princípio da investigação oficiosa no processo penal, conferido ao tribunal pelos art.ºs 323.°, al. a) e 340.°, n.° 1, ambos do CPPenal, tem os seus limites na lei e está condicionado pelo princípio da necessidade, dado que só os meios de prova cujo conhecimento se afigure necessário para habilitarem o julgador a uma decisão justa devem ser produzidos por determinação do tribunal na fase de julgamento, ou a requerimento dos sujeitos processuais. Invoca o arguido recorrente erro notório na apreciação da prova. Porém, analisadas os autos, com as limitações que os mesmos contêm, a matéria de facto dada como provada e não provada no acórdão revidendo, é clara e incontroversa, não se vislumbrando quaisquer vícios de apreciação da prova, previstos no art. 410.º n.º. 2 do C.P.Penal e de conhecimento oficioso. Como atrás se disse, os meios de prova admissíveis são aqueles cujo conhecimento se afigure necessário para a descoberta da verdade e boa decisão da causa – e o arbítrio da necessidade é o tribunal. E toda a prova analisada em julgamento foi legalmente produzida, em obediência aos artigos 340.º n.ºs 1 e 3 ex vi 125.º do C.Penal. E no que tange ao invocado erro na apreciação da prova, previsto no art. 410.º n.º. 2 al. c) do C.P.Penal, é óbvio não resultar ele do próprio texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. É que, como se escreveu no Ac. do STJ de 19.12.90, proc. 413271/3.ª Secção: " I – Como resulta expressis verbis do art. 410.° do C.P.Penal, os vícios nele referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução ou até mesmo no julgamento (...). IV É portanto inoperante alegar o que os declarantes afirmaram no inquérito, na instrução ou no julgamento em motivação de recursos interpostos". Assim, em síntese conclusiva, da análise de toda a documentação, conjugada com os depoimentos prestados e acima apontados, ancoradas, fundamentalmente, nas regras da experiência comum para lograr estabelecer, com racionalidade e lógica, a forma como os factos ocorreram e quem os praticou concluiu o tribunal a quo e conclui este tribunal ad quem, sem qualquer reserva, pela prova dos factos acima dados como provados. O arguido recorrente esgrime a sua discordância apontando à decisão que o condenou, insuficiências, utilizando e (des)valorizando depoimentos. A prova testemunhal, que continua a ser fatalmente, no nosso sistema processual penal, considerada a “prova rainha” é uma prova sobejamente falível, deteriorável pelo decurso do tempo e facilmente contaminada com as demais circunstâncias que envolvem o modo como cada ser humano estriba a forma de elaborar o seu processo de entendimento da realidade Por isso o Tribunal a quo, ao apreciar a prova e ainda que o tenha de fazer de uma forma lógica e racional, sempre segundo as regras da experiência comum, soube dosear a capacidade de analisar os factos relatados em julgamento, com as provas técnicas (documentais) obtidas legalmente. Assim, o que o recorrente pretende é pôr em crise o princípio da investigação oficiosa do processo penal e o princípio da livre apreciação da prova. Quanto ao primeiro – princípio da investigação oficiosa do processo penal – vale o que acima se disse. Quanto ao segundo – princípio da livre apreciação da prova – está consagrado no art. 127.º do C.P.Penal e aí, se diz que «... a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente». E embora este Tribunal da Relação tenha poderes de intromissão em aspectos fácticos, e que são os referidos no art. 410.º, n.°s 2 e 3 do C. P. P., não pode sindicar a valoração das provas feitas pelo colectivo em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra. A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto. E na formação dessa convicção entram, necessariamente, elementos que em caso algum podem mesmo ser importados para a gravação da prova por mais fiel que ela seja das incidências concretas da audiência. Na formação da convicção do juiz não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis, referindo-se a relevância que têm para a formação da convicção do julgador «elementos intraduzíveis e subtis», tais como «a mímica e todo o aspecto exterior do depoente» e «as próprias reacções, quase reacções, quase imperceptíveis, do auditório» que vão agitando o espírito de quem julga (Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, vol. III, pág. 211, para acrescentar depois, a págs. 271, que «existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados ou valorizados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores»). O que é necessário e imprescindível é que, como se afirmou atrás, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado».
E convém referir que tendo o colectivo formado a sua convicção com provas não proibidas por lei prevalece a convicção que da prova teve àquela que formulou o Recorrente. Esta é irrelevante.» Esta longa, mas necessária transcrição, impõe a conclusão de que a Relação, diversamente do pretendido pelo recorrente, não omitiu pronúncia sobre a questão de facto, antes a emitiu, quer no âmbito da impugnação alargada da questão de facto, que afastou por razões formais, quer da impugnação restrita aos vícios do art. 410.º, n.º 2, que afastou por razões substantivas. Como é sabido, não se verifica omissão de pronúncia quando o Tribunal conhece da questão que lhe é colocada, mesmo que não aprecie todos os argumentos invocados pela parte em apoio da sua pretensão. A omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos, opiniões ou doutrinas expendidos pelas partes na defesa das teses em presença. (cfr. Acs de 16-11-00, proc. n.º 2287/00-7, de 28-3-00, proc. n.º 126/00, de 14-2-02, proc. n.º 3732/01-5, de 16-01-03, proc. n.º 3569/02-5 e de Ac. de 15/12/2005, proc. n.º 2951/05-5, os três últimos com o mesmo relator) Impressivamente, aliás, prescreve a al. c) do n.º 1 do art. 379.º do CPP que «é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento» (sublinhado acrescentado). Ora a Relação conheceu da questão colocada pelo recorrente e pronunciou-se expressamente sobre o mérito da invocação dos vícios das mencionadas alíneas do n.º 2 do art. 410.º do CPP. Saber se essa decisão foi acertada ou não, envolveria eventual erro de julgamento, que não nulidade, como sustenta o recorrente. O que basta para afastar tal nulidade. Mas continua o recorrente a clamar, neste recurso (cfr. designadamente a conclusão F), que se verifica erro na apreciação da prova, pelas instâncias. Ora, como é jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal de Justiça, não pode hoje ser fundado um recurso de revista na existência de vícios da matéria de facto, salvo se se tratar de recurso de decisão do tribunal de júri, caso em que sobe directamente ao Supremo. Nos restantes casos, designadamente quando a questão de facto já foi suscitada perante a Relação, considera-se definitivamente fixada a matéria de facto e é a essa luz que o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça deve ser apreciado. No entanto, este Tribunal pode entender oficiosamente que a decisão recorrida padece de algum desses vícios, como resulta da Jurisprudência fixada pelo acórdão nº 7/95 de 19/10/1995, DR IS-A de 28-12-95, BMJ 450-72 (“é oficioso, pelo Tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”). Não pode, pois, ser apreciada essa questão, enquanto fundamento do recurso trazido pelo arguido. Mas poderá ser apreciada oficiosamente pelo Supremo Tribunal de Justiça, como também o consente o art. 729.º, n.º 3 do CPC (“O processo só volta ao tribunal recorrido quando o Supremo entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito”). Pode ver-se, por todos, o Ac. de 18.10.01 (proc. n.º 2537/01-5, e AcSTJ de 21/06/2007, proc. n.º 2268/07-5, com o mesmo Relator): «(3) - A norma do corpo do artigo 434.º do CPP só fixa os poderes de cognição do Supremo Tribunal em relação às decisões objecto de recurso referidas nas alíneas a), b) e c) do artigo 432.º, e não também às da alínea d), pois, em relação a estas, o âmbito do conhecimento é fixado na própria alínea, o que significa, que, relativamente aos acórdãos finais do tribunal colectivo, o recurso para o Supremo só pode visar o reexame da matéria de direito. (4) - Assim, o recurso que verse [ou verse também] matéria de facto, designadamente os vícios referidos do artigo 410.º, terá sempre de ser dirigido à Relação, em cujos poderes de cognição está incluída a apreciação de uma e outro, sem prejuízo de o Supremo poder conhecer, oficiosamente, daqueles vícios como condição do conhecimento de direito. (5) - Não se verifica contradição entre esta posição e a possibilidade que assiste ao STJ de conhecer oficiosamente dos falados vícios. Enquanto a invocação expressa dos apontados vícios da matéria de facto visa sempre a reavaliação da matéria de facto que a Relação tem, em princípio, condições de conhecer e colmatar, se for caso disso, sendo claros os benefícios em sede de economia e celeridade processuais que, em casos tais, se conseguem, se o recurso para ali for logo encaminhado. O conhecimento oficioso pelo STJ é imposto pela sua natureza de tribunal de revista, que se vê privado de matéria de facto adequadamente provada e suficiente para constituir a necessária base de aplicação do direito. Um remédio, que, ao contrário do que em regra sucede na Relação, terá de ser solicitado a quem de direito (art.º 426.º, n.º 1, do CPP).» Não pode, pois, ser apreciado, como fundamento do presente recurso, o, invocado pelo recorrente, erro notório na apreciação da prova. Por outro lado, não vê este Supremo Tribunal de Justiça qualquer vício d matéria de facto fixada pelas instâncias, de que deva conhecer oficiosamente. É, pois, da matéria de facto acima indicada que serão decididas as restantes questões suscitadas neste recurso.
2.3. Condenação pelos crimes de coacção grave e de abuso sexual contra as menores CC e DD. Na síntese final das conclusões escreve o recorrente: «termos em que (...), devendo (ser) (…) absolvido o arguido dos crimes de coacção grave, bem como do crime de abuso sexual agravado contra a sua filha bem como dos crimes contra a menor DD. Refere ainda o recorrente, a propósito da medida da pena nas conclusões H e I, «acresce que sobre as menores nunca foi exercida qualquer tipo de violência física nem psicológica, como ficou provado e consta de relatórios médicos junto aos autos, as menores não ficaram traumatizadas nem física nem psicologicamente.» Vejamos em primeiro lugar os crimes de coacção grave dos art.ºs 154.°, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. b) do C. Penal. Comete este crime quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade (art. 154.º, n.º 1), sendo agravado quando a coacção for realizada, contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez [art. 155.º, n.º 1, al. b)]. Trata-se, pois, de uma agravação pela qualidade da vítima. Está provado que a CC , filha do arguido, nasceu a 6.2.1993, e DD , sua sobrinha, nasceu a 18.7.1992 (facto n.º 1), FF, nasceu a 10.10.1991 (facto n.º 3) e GG, nasceu a 3.9.1992 (facto n.º 4). Os factos tiveram lugar até finais de 2002 ou início de 2003 (facto n.º 2). Após a realização dos referidos jogos e da prática dos actos que lhe estavam associados (actos de abuso sexual), o arguido, por várias vezes, disse às menores que lhes partia a boca e desfazia a cara se contassem o sucedido a alguém (facto n.º 14), receando que o arguido, efectivamente, lhe batesse, a FF só em Abril de 2003 relatou à sua mãe os factos até então sucedidos (facto n.º 15), pelo mesmo motivo, a DD e a GG só o fizeram às respectivas mães em 17 de Setembro de 2003 (facto n.º 16). Os factos descritos provocaram sofrimento e tristeza nas quatro menores, sobretudo na CC, e afectaram negativamente o seu desenvolvimento (facto n.º 17) Ou, seja trata-se da ameaça de um mal importante “partir a boca e desfazer a cara se contassem o sucedido a alguém” dirigida a crianças, uma sua filha e outra sua sobrinha, que tinham então entre 10 e 11 anos de idade que, no contexto, se devem haver como particularmente indefesas em razão da idade e que na verdade as levou a relatar os factos mais tarde, três das quais só depois de verem que desse relato não resultava o cumprimento da ameaça. Daí que não mereça censura o Tribunal a quo quando escreve, a propósito: «Quanto ao crime de coacção, resultou provado que o arguido, após a realização do jogos e da prática dos actos que lhe estavam associados, devidamente escritos na matéria de facto dada como provada no Acórdão, por diversas vezes, disse às menores que lhes partia a boca e desfazia a cara se contassem o sucedido a alguém. Atendendo à particular debilidade das vítimas, resultante do facto de serem crianças, o tribunal concluiu, e subscrevemos, que o arguido coagiu todas as menores, ofendidas nos autos, recorrendo à ameaça com mal importante, cometendo o crime de coacção grave, p. e p. pelo art° 154°, n° 1 e 155°, n° 1, al. b) do C. Penal.»
Questiona igualmente neste domínio a condenação por abuso sexual agravado em relação à sua filha CC. Mas, como se vê da sua motivação, essa discordância é tributária da impugnação que faz da matéria de facto provada e que já vimos ser improcedente. Face aos factos provados não merece censura o enquadramento jurídico encontrado pelas instâncias: art.ºs 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º1. Dispõe-se no art. 172.º, n.º 1, que comete o crime de abuso sexual de crianças, quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo. Conduta que é agravada quando a vítima for descendente do agente (art. 177.º, n.º 1), como sucede com a CC em relação ao arguido.
Ora, está provado que: 5 – A CC, a DD, a FF e a GG eram amigas e por esse motivo era frequente encontrarem-se todas em casa da primeira para aí brincarem, quer nos fins-de-semana, quer durante a semana, à tarde ou depois do jantar. 6 – Desde data indeterminada do ano de 2001 e até ao final de 2002, o arguido AA aproveitou a presença destas quatro menores em sua casa para nelas satisfazer os seus desejos sexuais, valendo-se da sua inocência de crianças. (…) 9 – O arguido utilizava ainda um outro estratagema para levar as menores para o seu quarto: um jogo a que chamava "das cordas". Nesse "jogo", que se desenrolava no corredor da casa, ele amarrava cordas aos puxadores das portas dos quartos e vendava as quatro menores. Depois de apagada a luz, elas tinham que apanhar uma corda e segui-la para chegar até ele. A primeira a consegui-lo ia com ele para o quarto para receber o seu "prémio", nos termos supra descritos, ou seja, o arguido despia-as até ficarem de cuecas, colocava-as de joelhos sobre a sua cama, debruçadas para a frente, colocava-se em pé atrás delas e esfregava o seu pénis no rabo das menores, simulando movimentos de cópula. Assim aconteceu, pelo menos, uma vez com a menor CC, sobre quem o arguido praticou estes actos. (…) 18 – Em todas essas ocasiões, o arguido agiu com perfeita noção do que fazia, com liberdade de determinação e sabendo que as suas acções eram penalmente puníveis. Obviamente conhecedor da idade da sua filha CC e das outras três menores, o arguido quis obrigá-las, e efectivamente obrigou, a suportar os descritos actos sexuais que sabia serem fortemente lesivos da sua autodeterminação sexual, tal como sabia que elas não tinham capacidade para entender o significado dos actos que estava a fazê-las suportar. A conduta consciente do arguido, dirigida à satisfação dos seus desejos sexuais, consistente em despir a sua filha até ficar de cuecas, colocando-a de joelhos sobre a sua cama, debruçada para a frente e colocando-se em pé atrás dela esfregando o seu pénis no rabo da menor, simulando movimentos de cópula é patentemente um acto sexual de relevo. O mesmo se pode dizer da conduta respeitante à menor DD, enquadrada igualmente no âmbito do art. 172.º, n.º 1 do C. Penal: abuso sexual de criança. Está, nesse domínio provado que: 5 – A CC, a DD, a FF e a GG eram amigas e por esse motivo era frequente encontrarem-se todas em casa da primeira para aí brincarem, quer nos fins-de-semana, quer durante a semana, à tarde ou depois do jantar. 6 – Desde data indeterminada do ano de 2001 e até ao final de 2002, o arguido AA aproveitou a presença destas quatro menores em sua casa para nelas satisfazer os seus desejos sexuais, valendo-se da sua inocência de crianças. 7 – Nessas circunstâncias e nesse período temporal, num número indeterminado de vezes, o arguido AA ofereceu-se para brincar com as quatro menores, sugerindo-lhes que brincassem ao "quarto escuro". 8 – O "jogo do quarto escuro" tinha uma "variante" em que o arguido levava as quatro crianças para o seu quarto ou para o da CC, onde lhes vendava os olhos e atava as mãos com lenços, ou atrás das costas ou à frente, consoante escolha de cada uma: as que escolhiam ser atadas à frente eram sentadas com as mãos no colo; as que escolhiam ser atadas atrás das costas eram por ele deitadas sobre a cama de barriga para baixo. Às que estavam sentadas o arguido colocava o seu pénis erecto nas mãos atadas e aí o friccionava; às outras, o arguido deitava-se sobre elas e esfregava o seu pénis no rabo delas. Por vezes, o arguido ejaculava sobre as mãos ou a barriga de uma das menores. Pelo menos, por uma vez, cada uma das menores GG, FF e DD foi a "apanhada" pelo arguido e este sobre ela praticou os actos aqui descritos. (…) Dado o significado e conteúdo das actividades do arguido sobre as menores, conscientemente dirigidas à satisfação dos seus desejos sexuais, friccionando o pénis erecto, por vezes até à ejaculação nas mãos atadas ou no rabo das menores deitadas de barriga para baixo na cama, também é, para além de qualquer dúvida um acto sexual de relevo. Embora de menor relevo, deve-se considerar que a conduta do arguido quando a 17 Setembro de 2003, regressou à sua antiga casa de residência, em S. João da Talha, na companhia da mulher e das filhas com a intenção de daí retirar e levar alguns pertences e as quatro menores estavam a ver televisão se aproximou-se da DD, puxou na sua direcção o sofá onde ela estava sentada e beijou-a na boca (facto n.º 13), constitui um acto sexual de relevo, dado o seu forte conteúdo e significado, bem como o grau de violação que traduz da autodeterminação sexual da ofendida sua sobrinha. Já decidiu este Tribunal, designadamente no AcSTJ de 20.2.1997 (Proc. nº 693/96) que «os "beijinhos na boca" dados pelo arguido a menor, que para o efeito levou para um sótão de um edifício com o fim de aí satisfazer a sua lascividade sexual ou instinto libidinoso, atendendo às idades da ofendida e do arguido, respectivamente 8 e 46 anos, integram o conceito de atentado ao pudor do artº 205, do CP de 1982, tal como preenchem o conceito de "acto sexual de relevo" previsto no artº 172, nº 1, do CP de 1995.» No mesmo sentido se pode ver o AcSTJ de 12.7.2005 (Proc. nº 2242/05-5, com o mesmo Relator). A expressão "acto sexual de relevo" é usada no mesmo diploma, com o mesmo sentido, também nos art.ºs 163.º (coacção sexual), 166.º (abuso sexual de pessoa internada), 167.º (fraude sexual) E mostrou-se envolver um conceito de "geometria variável", pois que chegou na redacção originária do C. Penal a abranger o coito anal e oral, como teve então este Tribunal ocasião de afirmar variadas vezes, p. ex. no Ac. de 28.2.96 (proc. n.º 48589: "5 - A prática, nas mesmas circunstancias de coito oral com a mesma ofendida, integra, em concurso, o crime do art. 163° - acto sexual de relevo"); coitos que agora foram equiparados à cópula, como se vê dos art.ºs 164.º a 167.º, 172.º e 174.º, deixando de integrar aquele conceito. E recentemente teve este Supremo Tribunal de Justiça ocasião de explicitar que "preenche o conceito típico de "coito oral", da previsão do n.º 2 do art. 172.º do C. Penal, indo, assim, além do simples "acto sexual de relevo" tipificado no n.º 1 do mesmo dispositivo legal, a introdução, com fins libidinosos, do pénis do arguido na boca de uma criança de nove anos, sendo indiferente para o efeito que tenha ou não sido feito prova de erecção" (Ac. de 23/09/2004, Acs STJ XII, 3, 164, também subscrito pelo Relator dos presentes autos). Não nos dá o C. Penal uma densificação do conceito de acto sexual de relevo, nem nos fornece uma extensa casuística exemplificativa, mas o que vai dito já permite excluir dele, os coitos oral e anal, que anteriormente constituíam, aliás, o seu expoente máximo de "relevo". Acto sexual é, neste domínio, essencialmente aquele que assume uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e que contende com a liberdade de determinação sexual de quem o sofre ou o pratica. Mas a corporização deste tipo legal exige ainda que o acto seja de relevo. Referem Simas Santos e Leal-Henriques (Código Penal, II, pág. 368-9), a propósito: "Quer isto dizer que não é qualquer acto de natureza, conteúdo ou significado sexual que serve ao espírito do artigo, mas apenas aqueles actos que constituam uma ofensa séria e grave à intimidade e liberdade sexual do sujeito passivo e invadam, de uma maneira objectivamente significativa, aquilo que constitui a reserva pessoal, o património íntimo, que no domínio da sexualidade, é apanágio de todo o ser humano. Estão nesta situação, por exemplo, os actos de masturbação, os beijos procurados nas zonas erógenas do corpo, como os seios, a púbis, o sexo, etc., parecendo-nos que também se deve incluir no conceito de acto sexual de relevo a desnudação de uma mulher e o constrangimento a manter-se despida para satisfação dos apetites sexuais do agente. Fiqueiredo Dias acentua, assim, que é de excluir do acto sexual de relevo não apenas os actos "insignificantes ou bagatelares", mas também aqueles que não representem "entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima" (v.g. "actos que, embora "pesados" ou em si "significantes" por impróprios, desonestos, de mau gosto ou despudorados, todavia, pela sua pequena quantidade, ocasionalidade ou instantaneidade, não entravem de forma importante a livre determinação sexual da vítima") - Comentário, I, 449.
Pondera a propósito Sénio Alves (Crimes Sexuais, 8 e ss.): "Em bom rigor, a dificuldade começa logo na definição de acto sexual (para efeitos penais, entenda-se). Um beijo é um acto sexual? O acariciar dos seios é um acto sexual? E se sim, é de relevo? E ainda em caso afirmativo será razoável punir do mesmo modo quem por meio de violência constrange a vítima a praticar consigo coito... (inter femural ou inter-axilar, que me parecem poder integrar, sem grandes objecções, o conceito de acto sexual de relevo) e aquele que, também por meio de violência, consegue acariciar os seios da sua vítima? Numa noção pouco rigorosa (diria sociológica) de acto sexual têm cabimento actos como os supra referidas (o acariciar dos seios e de outras partes do corpo, que não só dos órgãos genitais). São aquilo que vulgarmente se designa como "preliminares da cópula" e, por isso, são actos de natureza sexual ou, se se preferir, actos com fim sexual".
E conclui: "O acto sexual de relevo é, assim, todo o comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais (ainda que não comporte o envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes) que ofende, em grau elevado, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas", sendo certo, assim, que "a relevância ou irrelevância de um acto sexual só lhe pode ser atribuída pelo sentir geral da comunidade", a qual "considerará relevante ou irrelevante um determinado acto sexual consoante ofenda com gravidades ou não, o sentimento de vergonha e timidez (relacionado com o instinto sexual) da generalidade das pessoas". Este Supremo Tribunal de Justiça, como se viu, não se tem afastado muito deste entendimento, ponderando que o acto sexual de relevo é um conceito indeterminado, que confere alguma margem de apreciação aos julgadores, em função das realidades sociais, das concepções reinantes e da própria evolução dos costumes, mas não deixa de cobrir as hipóteses de actos graves, nomeadamente aqueles que atentam com os normais sentimentos de pudor dos ofendidos, intoleráveis numa sociedade civilizada. O que, no entanto, não exclui a relatividade da gravidade, o que explica a grande amplitude da moldura penal (prisão de 1 a 8 anos) ou mesmo a irrelevância de um beliscão passageiro. (cfr. neste sentido o Ac. de 31.10.1995, proc. n.º 48119) Considerou que acto sexual de relevo terá de ser entendido como o acto que tendo relação com o sexo (relação objectiva), se reveste de certa gravidade e em que, além disso, há da parte do seu autor a intenção de satisfazer apetites sexuais (cfr. Acs. de 24.10.96, proc. n.º 606/96 e de 12/03/1998, proc. n.º 1429/97) E tem acentuado que a relevância do acto sexual tem fundamentalmente a ver com a necessidade de proteger a liberdade sexual da vítima (cfr. neste sentido o Ac. de 31.10.1995, proc. n.º 48119), que o bem jurídico a proteger, quer no crime de coacção sexual (art.º 163.º, do CP), quer no de abuso sexual de crianças (art.º 172.º, do CP), é a liberdade: a liberdade de se relacionar sexualmente ou não e com quem, para os adultos; a liberdade de crescer na relativa inocência até se atingir a idade da razão para então e aí se poder exercer plenamente aquela liberdade (Ac. de 30.11.2000, proc. n.º 2761/00-5). Para justificar a expressão "de relevo" terá a conduta de assumir gravidade, intensidade objectiva e concretizar intuitos e desígnios sexuais visivelmente atentatórios da auto-determinação sexual; de todo o modo, será perante o caso concreto de que se trate que o "relevo" tem de recortar-se. Em sede de abuso sexual de crianças, o "relevo" como que está imanente a qualquer actuação libidinosa por mais simples que ela seja ou pareça ser; o tipo penal do art.º 172, do Código Penal nos vários cambiantes nele previstos (designadamente no do seu n.º 1) traduz isso mesmo, tanto mais que nele se visa a protecção de pessoas que presumível ou manifestamente não dispõem do discernimento necessário para, no que ao sexo respeita, se exprimirem ou se comportarem com liberdade, com presciência ou com autenticidade (Ac. de 15.6.00, Acs STJ VIII, 2, 226) "Relevante é a idoneidade dos actos praticados sobre a vítima para cercear a sua livre autodeterminação sexual, e decisivo é que o acto sexual de relevo, pelo seu modo de execução, denote ausência de consentimento da vítima, em nexo causal com a violência sobre o corpo ou psiquismo da vítima, uma e outra aferidas segundo as condições pessoais e particulares daquela" (Ac. de 17.3.04, proc. n.º 439/04-3). Verificação de crime continuado. No 3.º parágrafo da conclusão B, o recorrente transcreveu parcialmente as conclusões da motivação do recurso para a Relação em que se refere ao crime continuado, questão que, no entanto, não levou às conclusões propriamente ditas da motivação de recurso para este Supremo Tribunal de Justiça. Mas na conclusão Q) indica como violada a disposição do art. 30.º do C. Penal, exactamente a que trata dessa figura. Pode daí concluir-se que continua o recorrente a discordar, neste recurso, da solução dada pelas instâncias à questão do crime continuado. Mas fica-se sem saber, como o exige o n.º 1 do art. 412.º, qual a razão da discordância, quando é certo que a Relação se pronunciou sobre ela e o recorrente não a contradiz, agora na sede própria, que seria este recurso. Como não é o Tribunal Superior obrigado, nem deve sequer, envolver numa indagação alargada que se substitua ao recorrente da descoberta das razões de discordância, já por aqui a “impugnação”, se assim pode ser chamada, estaria condenada ao insucesso. De todo o modo, relembra-se que a decisão recorrida se pronunciou nos seguintes termos: «E o enquadramento jurídico-criminal dos factos por ele praticado – e evidenciado nos autos –, mostra-se correcto, preenchidos como se encontram os respectivos pressupostos objectivos e subjectivos. Como bem refere a magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo, para poder considerar verificado o crime continuado, necessária se tornava a referência, nos factos tidos como apurados no Acórdão recorrido, a que o arguido actuou, de todas as vezes que o fez, pressionado por circunstâncias exteriores que reduziram substancialmente a sua culpa; nenhuma referência neste sentido consta dos aludidos factos provados porquanto, tal situação não se verificou, bem pelo contrário, resulta de tais factos que, para além de se ter mantido a situação exterior que envolveu o arguido das 11 vezes que este actuou, era o próprio quem criava as condições que lhe possibilitavam concretizar os seus propósitos, nomeadamente criando jogos num quarto, normalmente o da CC, fechando a porta e os estores e apagando as luzes, deixando o local em total escuridão e levando-as para o seu quarto, também às escuras, onde praticava os factos relatados na matéria de facto dada como provada no Acórdão; de cada vez que agia, o arguido renovava os seus propósitos libidinosos. Por outro lado, não se extrai da matéria dada como provada que a reiteração criminosa tenha sido fruto de um facilitado circunstancialismo exterior (exógeno) do que de razões endógenas relacionadas com a personalidade do arguido. Assim, correcta se torna a conclusão do acórdão de que o arguido cometeu 11 crimes de abuso sexual de criança e não 2 crimes de abuso sexual de criança, sob a forma de crime continuado conforme alegado pelo recorrente.»
Salvo quanto ao número de crimes, pelas razões que se verão de seguida, não merece censura o afastamento da figura do crime continuado. E as considerações tecidas sobre ele pela Relação.
Na verdade, há crime continuado quando, através de várias acções criminosas, se repete o preenchimento do mesmo tipo legal ou de tipos que protegem o mesmo bem jurídico, usando-se de um procedimento que se reveste de uma certa uniformidade e aproveita um condicionalismo exterior que propicia a repetição, fazendo assim diminuir consideravelmente a culpa do agente.
É o que consta do n.º 2 do art. 30.º do Código Penal.
Com efeito, sucede, por vezes, que certas actividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime – ou mesmo diversos tipos legais, mas que fundamentalmente protegem o mesmo bem jurídico –, e às quais presidiu uma pluralidade de resoluções (que portanto atiraria a situação para o campo da pluralidade de infracções), devem ser aglutinadas numa só infracção, na medida em que revelam uma considerável diminuição da culpa do agente.
Ora o fundamento desta diminuição da culpa encontra-se na disposição exterior das coisas para o facto, isto é, no circunstancialismo exógeno que precipita e facilita as sucessivas condutas do agente.
O pressuposto da continuação criminosa será assim a existência de uma relação que, de fora, e de modo considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, «tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito» São, assim, estes, os pressupostos do crime continuado: — realização plúrima do mesmo tipo de crime (ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico); — homogeneidade da forma de execução (unidade do injusto objectivo da acção); — unidade de dolo (unidade do injusto pessoal da acção). As diversas resoluções devem conservar-se dentro de «uma linha psicológica continuada»; — lesão do mesmo bem jurídico (unidade do injusto de resultado) ; — persistência de uma «situação exterior» que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente.
A doutrina indica algumas das situações exteriores que, diminuindo consideravelmente a culpa do agente, poderão estar na base de uma continuação criminosa: — ter-se criado, através da primeira actividade criminosa, um certo acordo entre os sujeitos; — voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa; — perduração do meio apto para realizar o delito que se criou ou adquiriu para executar a primeira conduta criminosa; — a circunstância de o agente, depois de executar a resolução criminosa, verificar haver possibilidades de alargar o âmbito da sua actividade.
Nos termos do art. 79.º do Código, o crime continuado é punido com a pena correspondente à conduta mais grave que integra a continuação.
Impõe-se ainda atender a duas decorrências dos requisitos que se enunciaram. Tratando-se de bens jurídicos pessoais, não se pode falar, como o exige o n.º 2 do art. 30.º citado, no mesmo bem jurídico, o que afasta então a continuação criminosa, salvo se for o mesmo ofendido e para que se possa falar de diminuição de culpa na formação das decisões criminosas posteriores é necessário que as mesmas não tenham sido tomadas todas na mesma ocasião.
Face a estes elementos não se mostra adequada a integração das condutas do arguido num só crime continuado. Desde logo, porque se tratam de 4 menores diferentes, ou seja, em relação a cada uma delas, bens jurídicos pessoais. Depois, como se viu, só há crime continuado quando se verifica uma diminuição considerável da culpa do agente que deriva dum condicionalismo exterior que propicia a repetição das várias acções criminosas, mediante um procedimento que se reveste de uma certa uniformidade. O fundamento da diminuição da culpa encontra-se assim no circunstancialismo exógeno que precipita e facilita as sucessivas condutas do agente e o pressuposto da continuação criminosa deverá ser encontrado numa relação que, de modo considerável, e de fora, facilitou aquela repetição. Tudo conduzindo a que seja, a cada crime, menos exigível ao agente que se comporte de maneira diversa. Sem diminuição de culpa e sem o correspondente circunstancialismo externo ao agente não se verifica crime continuado.
Da matéria de facto que se transcreveu não só não está directamente provada como não resulta, por forma alguma, configurada uma situação exterior ao agente que o impeliria à repetição das condutas criminosas nem a mencionada diminuição de culpa. Antes resulta uma agravação dessa culpa, face à repetição das condutas pensadas e decididas ab initio. A circunstância de se verificar a repetição do modus operandi utilizado não permite configurar algum dos índices referidos pela Doutrina, v.g. «a perduração do meio apto para realizar o delito que se criou ou adquiriu para executar a primeira conduta criminosa». Na verdade, a matéria de facto apurada não permite afirmar que foi a perduração do meio apto que levou ao cometimento de novos crimes, assim diminuindo a culpa do agente, antes se pode afirmar que o esquema de realização do facto foi gizado exactamente pelas potencialidades que oferecia na maior eficácia em plúrimas ocasiões, o que agrava a responsabilidade criminal. Considerações que conduzem ao afastamento de um outro requisito da figura do crime continuado: protelamento no tempo das diversas decisões de cometimento de crimes. Como adiantamos, não se mostra que o recorrente tenha cometido 11 crimes de abuso sexual de criança, mas tão só 7. Senão vejamos.
Na matéria de facto provada são descritas 4 situações em que foram cometidos os referidos crimes. Em relação a cada uma delas é descrito o modus operandi do arguido e depois são individualizados os casos de concretização desse esquema, embora se aceite que tenham sido mais, em número não concretizado. Ora, nessa análise, impõe-se concluir que o arguido só pode ser responsabilizado pelos casos que foram concretizados, pois só em relação a esses o Tribunal obteve prova suficientemente explícita da sua prática efectiva. Eram as seguintes essas situações: — 1.ª Situação “quarto escuro” em que a conduta se verificou, pelo menos, uma vez em relação à GG e uma vez à FF, ou seja 2 crimes; — 2.ª Situação “variante ao quarto escuro” em que a conduta se verificou, pelo menos, uma vez em relação à GG, uma vez à FF e uma vez à DD, ou seja 3 crimes; — 3.ª Situação “jogo das cordas” em que a conduta se verificou, pelo menos, uma vez em relação à CC, ou seja 1 crime; — 4.ª Situação “beijo na boca” em que a conduta se verificou uma vez em relação à DD, ou seja 1 crime. O que perfaz 7 crimes e não 11.
2.4. Medida da pena. Lembra o recorrente que se encontra com obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica (conclusão G), nunca tendo sido exercida qualquer tipo de violência física nem psicológica sobre as menores (conclusão H), como ficou provado e consta de relatórios médicos junto aos autos, não tendo as menores ficado traumatizadas nem física nem psicologicamente (conclusão I) De 2001 (apresentação da queixa) a fins de Dezembro de 2005, viveu junta da mulher e das filhas, não tendo havido notícia de que o arguido tenha praticado qualquer crime (conclusão J), pelo a pena de 9 anos de prisão se mostra demasiado severa e desajustada (conclusão L), tendo-a a Relação confirmado apenas com base na necessidade de prevenção geral, não levando em linha de conta a prevenção especial (conclusão M), quando, quanto à prevenção geral, os factos são de 2000, as queixas de 2001 e nem antes nem depois houve notícia de que o arguido tivesse praticado qualquer tipo de crime, embora detido em 28.12.2005, não representando qualquer tipo de perigo na vida em sociedade (conclusão N) Já quanto à prevenção especial, o recorrente encontra-se bem inserido socialmente, encontrava-se a trabalhar quando foi detido, tinha um boa relação e vivência familiar, tal como foi confirmado pela sua ex-mulher, que só se divorciou por causa deste processo (conclusão O), pelo que não deveria ter sido confirmada a pena de 9 anos prisão aplicada ao recorrente, por efectivamente se mostrar demasiadamente gravosa e severa, face às circunstâncias acima alegada, violando os preceitos dos artigos 70° e 71° do Código Penal (conclusão P).
A decisão recorrida, depois de tecer considerações sobre a forma de determinar a medida concreta da pena, afirmou que o tribunal a quo respeitara as respectivas regras e prosseguiu: «Assim, ponderando: No direito romano, a união sexual violenta com qualquer pessoa foi castigada pela Lex julia de vi publica, in L.3 § 4.°.Digesto, com pena de morte, como atesta Marciano : “Preterea punitur huius legis poena, qui puerum, vel foeminam vel quemquam per vim stupraverit”. Profundamente censurável a sua conduta, a extrapolar de uma sexualidade normal (licita ou ilícita), é ela em si repugnante, ferindo por forma intensa os valores ético-sociais dominantes na sociedade em que nos inserimos, no tocante à problemática do sexo, da sexualidade e da liberdade sexual. Até onde foi ela traumatizante para os menores ofendidos? Que consequências funestas não terão ela causado nos menores, a projectarem-se no seu comportamento futuro? Evidentemente, que não podemos nem devemos entrar em especulações e muito menos fazer futurologia. Mas, infelizmente, o caso dos autos não é singular, no sentido de que é raro. Pelo contrário, estas condutas ou tais actuações vão surgindo com relativa frequência. Há que castigar e, ao mesmo tempo, sem postergar a função delimitadora da culpa do agente, fundamento e medida de pena, não podemos olvidar os fins de prevenção geral e especial. O Tribunal não pode olvidar o extremo impacto que a situação dos autos tem no tecido social, não pode olvidar as consequências extremas que actos de pedofilia têm e a forma negativa como os mesmo são vistos. A luta contra a violência sexual com crianças passa necessariamente, por dois aspectos: o lugar da criança na sociedade e a atitude dos adultos em relação às crianças, mas que convergem para o mesmo foco, qual seja, o direito da criança e sua violação – “A Pedofilia” – Gelson Francisco Alves da Costa, Cadernos jurídicos. De acordo com o entendimento uniforme dos nossos Jurisprudência, doutrina e população (com inclusão da prisional, que manifesta, como é sabido, uma especial aversão pelos condenados por crimes dessa natureza, de que são vitimas menores impúberes), e apenas sem a reprovação dos indivíduos que manifestam uma determinada deficiência de valoração e expressão dos seus impulsos sexuais, é objecto de elevada reprovação social todo o comportamento da prática de actividades sexuais, ou de preparação destas, dirigida contra menores, reprovação essa que é tanto maior quanto mais baixa for tal idade. Quanto ao grau de culpa, é inquestionável o dolo directo, particularmente intenso, decorrente da reiteração da sua actuação. Ora, sopesando todos os elementos objectivos e subjectivos considerados pelo acórdão recorrido, sem perder de vista o bem jurídico ofendido nos crimes da natureza dos autos, concluímos que o tribunal colectivo usou de grande cuidado e moderação pelo que a pena encontrada para punir a conduta do arguido se mostra equilibrada, justa, proporcional e razoável e não deixa ficar comprometida a crença da comunidade na validade da norma incriminadora violada. Em adjuvância terminal se dirá que o arguido, na audiência, remeteu-se ao silêncio e não teve qualquer atitude reveladora de que interiorizou a grande censurabilidade do seu comportamento. Na avaliação da personalidade não está em causa o direito ao silêncio ou mesmo à defesa contraditória, em ordem a extrair deste um juízo desfavorável relativamente àquela. Porém usando o Arguido daquele direito, fica impedido o tribunal de se socorrer de elementos que poderiam levá-lo a uma atitude de compreensão em termos de culpa, susceptível de se repercutir na medida da pena e no prognóstico do seu comportamento futuro, com interesse para as exigências de prevenção especial e da própria necessidade da pena. Assim, a postura do arguido, no caso vertente, revelando indiferença em relação ao crime cometido, não têm a virtualidade para justificar atenuação e suspensão da pena, contrariamente ao sufragado na motivação de recurso que formulou.»
Vejamos a impugnação da recorrente quanto à medida concreta da pena, comecemos por analisar os poderes de cognição deste Tribunal nessa matéria.
Hoje já não se sustenta a visão da determinação da pena concreta, como um sistema de penas variadas e variáveis, com um acto de individualização judicial da sanção em que à lei cabia, no máximo, o papel de definir a espécie ou espécies de sanções aplicáveis ao facto e os limites dentro dos quais deveria actuar a plena discricionariedade judicial, em cujo processo de individualização interviriam, de resto coeficientes de difícil ou impossível racionalização, tudo relevando da chamada «arte de julgar».
Na verdade, segundo o disposto nos art.ºs 70.º a 82.º do Código Penal a determinação das consequências do facto punível, ou seja, a escolha e a medida da pena, é realizada pelo juiz conforme a sua natureza, gravidade e forma de execução daquele, escolhendo uma das várias possibilidades legalmente previstas, num processo que se traduz numa autêntica aplicação do direito. Tal procedimento foi regulado pelo Código de Processo Penal, de algum modo autonomizando-o da determinação da culpabilidade (cfr. art.ºs 369.º a 371.º), e também o n.º 3 do art. 71.º do C. Penal dispõe que «na sentença devem ser expressamente referidos os fundamentos da medida da pena», alargando a sindicabilidade, tornando possível o controlo dos tribunais superiores sobre a decisão de determinação da medida da pena.
Mas a controlabilidade da determinação da pena não sofrerá limites no recurso de revista, como é o caso?
Não se têm levantado dúvidas sobre a revista da correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação.
E, deve também entender-se que a valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade cabem dentro dos poderes de cognição do tribunal de revista (Cfr. Jescheck, Tratado de Derecho Penal, § 82 II 3), bem como a questão do limite ou da moldura da culpa, que estaria plenamente sujeita a revista, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção. Mas o mesmo já não acontece com a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada (Neste sentido, Maurach e Zipp, Derecho Penal, § 63n.º m. 200, Figueiredo Dias, Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 197 e Simas Santos, Medida Concreta da Pena, Disparidades, pág. 39).
Determinada a moldura penal abstracta correspondente ao crime em causa, numa segunda operação, é dentro dessa moldura penal, que funcionam todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o agente, designadamente: – O grau de ilicitude do facto, ou seja, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente (os esquemas arquitectados para a prática dos crimes, a manipulação das menores, uma sua filha, outra sobrinha e as restantes ambas de ambas, as consequências para as menores, mormente para a filha); – A intensidade do dolo ou negligência (o dolo foi sempre directo e intenso); – Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram (a referida manipulação das menores, a renovação dos esquemas para essa manipulação); – As condições pessoais do agente e a sua situação económica (acima descritas); – A conduta anterior ao facto e posterior a este; – A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena (como o conjunto da actividade demonstra).
Não se afasta, pois este Supremo Tribunal de Justiça das penas parcelares fixadas pelas instâncias. Porém, como se viu, deve considerar-se que o recorrente só cometeu 7 crimes de abuso sexual de menores (um deles agravado) e não 11 crimes de abuso sexual, o que faz toda a diferença em relação à pena única conjunta. Com efeito, usando o mesmo critério das instâncias para a pena única, que se aceita, a pena única conjunta deve situar-se em 7 anos de prisão, o que se decide. Procede, assim mas com diversa fundamentação, parcialmente esta questão.
3. Pelo exposto, acordam os Juízes da (5.ª) Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcial provimento ao recurso do arguido, absolvendo-o de 4 dos crimes de abuso sexual de crianças do art. 172.°, n.º 1, do C. Penal, mas, mantendo as condenações pelos demais crimes referidos na decisão recorrida e respectivas penas parcelares, condenando-o na pena única conjunta de 7 anos de prisão, em tudo o mais se confirmando a decisão recorrida." Custas, no decaímento, pelo recorrente com 5 Ucs de taxa de Justiça.
Lisboa, 5 de Julho de 2007 Simas Santos (Relator) Santos Carvalho Costa Mortágua Rodrigues da Costa |