Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5799/21.8T9PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO AFONSO LUCAS
Descritores: CRIME DE INJÚRIAS
DESPACHO DE PRONÚNCIA
FUNDAMENTAÇÃO
IRREGULARIDADE
PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE DA TUTELA PENAL
Nº do Documento: RP202401105799/21.8T9PRT.P1
Data do Acordão: 01/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O disposto no art. 379º do Cód. de Processo Penal – e, antes dele, no também art. 374º do Cód. de Processo Penal – apenas tem aplicação no que tange às sentenças e não aos meros despachos, mesmo tratando-se de despachos de pronúncia ou não pronúncia.
II - A lei não deixa de impor a obrigatoriedade de fundamentação, de facto e de direito, dos actos decisórios, entre os quais claramente se encontram os despachos de pronúncia ou de não pronúncia.
III - Constatando–se omitida, na decisão instrutória, uma ponderação (ainda que sucinta) sobre as provas produzidas no inquérito e na instrução, de tal forma que não se torne possível verificar e, consequentemente, sindicar o raciocínio feito pelo Juiz de Instrução na tomada da decisão de facto, constituirá uma irregularidade concludente, que influi na decisão da causa e que impede uma correcta apreciação do recurso, podendo assim ser conhecida oficiosamente nos termos previstos no art. 123º/2 do Cód. de Processo Penal.
IV - O tipo legal do crime de injúria é paradigmático no que se refere à necessidade de ponderação do carácter de subsidiariedade da tutela criminal e à natureza e função do direito penal como ultima ratio de protecção de bens jurídicos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 5799/21.8T9PRT.P1

Tribunal de origem: Juízo de Instrução Criminal do Porto, Juiz 1 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Acordam em conferência os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO

No âmbito do processo nº 5799/21.8T9PRT foi oportunamente deduzida, pelos assistentes AA e BB, acusação particular contra os arguidos CC e DD, imputando-lhe a prática, de um crime de ameaça previsto no art. 153º do Cód. Penal, e de um crime de injúria previsto no art. 181º/1 do Cód. Penal.
Entretanto, veio pelo Ministério Público a ser proferido despacho que, do mesmo passo, determinou o arquivamento dos autos no que toca ao crime de ameaça denunciado nos termos do art. 277º/1 do Cód. de Processo Penal, e declarou não acompanhar a acusação particular deduzida pelos assistentes contra os arguidos, por se afigurar não existirem indícios suficientes da prática de factos susceptíveis de configurarem o crime de injúria imputado naquela acusação particular.
Nessa sequência, e inconformados com aquela acusação deduzida, vieram os arguidos requerer a abertura de instrução, nos termos do artigo 287º/1/a) do Cód. de Processo Penal, propugnando, em síntese, que os assistentes não têm legitimidade para deduzir acusação particular pelo crime de ameaça e que inexistem suficientes indícios quanto aos factos susceptíveis de integrar o crime de injúria.

Remetidos os autos ao Juízo de Instrução Criminal do Porto - Juiz 1, e realizada a fase de instrução com debate instrutório, veio ali a ser, em 23/06/2023, proferida pelo Juiz de Instrução decisão instrutória através de despacho que, na sua parte decisória, é nos seguintes termos:
«Por todo o exposto, declaro nula a acusação particular, no que se refere à imputação aos arguidos da prática de um crime de ameaças, decidindo NÃO PRONUNCIAR os arguidos pelos crimes pelos quais vinham acusados em acusação particular.
Custas pelos assistentes.»

É inconformados com esta última decisão que dela ora recorrem, por requerimento apresentado em 12/09/2023, os assistentes AA e BB, extraindo da motivação as seguintes conclusões:
1ª) O presente recurso vem interposto da douta Decisão Instrutória impugnada, a qual não pronunciou os Arguidos, CC e DD pela prática em autoria material de:
– um Crime de Injúrias, previsto e punido pelo artigo 181º nº 1, do Código Penal;
– um Crime de Ameaça, previsto e punido pelo artigo 153º do Código Penal;
– e condenou, ainda, os Assistentes, nas custas do processo.
nos termos do preceituado nos artigos 406º nº 1; 407º nº 2 al) i); 408º, nº1 al. b) a contrario; 410º e 411º nº1 al. a) todos do CPP.
2ª) A Decisão Instrutória, ora em crise, não cumpre o estatuído nos artigos 374º nº 2 e 379º nº 1 alinea c), ambos do C.P.C., pois que é integralmente omissa na sua fundamentação, quanto à Não Pronúncia dos arguidos, relativamente aos crimes que lhes são imputados pelos Assistentes, limitando-se a remeter para um Despacho proferido em sede de Inquérito, que se fundamenta, apenas, na falta de indícios suficientes.
De facto, nos termos do preceituado no artigo 374º nº 2 do C.P.C. a Decisão Instrutória não alicerçou a sua convicção de modo completo, quanto aos motivos de facto e de direito, com indicação e exame crítico das provas que estribaram a convicção do tribunal, para não sujeitar os arguidos a julgamento.
Tal facto implica a Nulidade da Decisão Instrutória, nos termos e para os efeitos do artigo 379º nº 1 alínea c) do C.P.P.
3ª) O Ministério Público, apesar de conhecedor das evidentes incongruências nos depoimentos dos arguidos, do teor dos depoimentos dos Assistentes e, ainda da prova documental junta aos autos pela arguida – Email –, atribuiu maior credibilidade aos arguidos em detrimento dos aqui Assistentes, sem qualquer fundamento para tal efeito.
O Ministério Público, ao não pronunciar os arguidos pelos crimes objecto de queixa-crime e Acusação Particular, impede os aqui Assistentes de poderem provar em sede de Audiência de Julgamento, os crimes de que foram vítimas por parte dos arguidos.
4ª) Ora, a expressão escrita pelo arguido “Encontra-nos por aí”, provocou medo nos Assistentes, que a tomaram muito a sério e limitou a sua liberdade de movimentos; evitando qualquer contacto, sequer visual, com os arguidos.
5ª) Nestes autos foram recolhidos indícios suficientes, de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena, pela prática do Crime de Injúrias e ainda do Crime de Ameaça, na pessoa dos Assistentes, pelo que os mesmos deveriam ter sido pronunciados nos termos do estatuido no art. 308.º n.º 1, 1.ª parte do C.P.P.
6ª) Conclui-se, pois, que o despacho de Não Pronúncia recorrido, deverá ser revogado, com a consequente Pronúncia dos arguidos pela prática dos crimes de que vêm indiciados na Acusação Particular, com todas as devidas e legais consequências.

O recurso foi admitido.

A este recurso respondeu o arguido CC, defendendo a improcedência do mesmo, concluindo nos seguintes termos:
I– O recorrido dá aqui por integralmente reproduzido a decisão instrutória proferida nos presentes autos, a qual, não pronunciou os arguidos da prática, dos crimes de ameaça e do crime de injúrias.
II- Atendendo ao crime de ameaça, estamos perante um crime de natureza semipúblico, tendo sido proferido despacho de arquivamento quanto ao mesmo pelo M.P. não tinham os assistentes legitimidade para deduzir acusação particular, pelo que, não dependendo o prosseguimento dos autos de acusação particular, e o Ministério Público tiver deduzido despacho de acusação, (artigos 284º e 285º do CPP).
III- Pelo que tal acusação particular é nula, estando em causa uma nulidade insanável, nos termos do artigo 119º, n.º 1, b) do C.P.P.
IV– No que concerne ao crime de injurias, apenas os assistentes terão presenciado as situações pelos mesmos descritas na Acusação Particular.
V– Perante tal factualidade, não conseguimos vislumbrar uma ação típica, ilícita, culposa e punível.
VI– Dos depoimentos das testemunhas na fase de inquérito, estas nunca presenciaram nem ouviram o que quer que fosse.
VII– No caso aqui em crise, nem sequer poderemos falar em desentendimento entre vizinhos, pois tal nunca se verificou.
VIII– O único busílis no presente caso, terá a ver com os arguidos quererem saber a razão dos ruídos, emanados da casa dos assistentes.
IX– A falta de cordialidade que deveria existir sempre entre vizinhos será o único ponto controverso in casu.
X– Nestes termos, deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelos assistentes, confirmando-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.

A este recurso respondeu também o Ministério Público, igualmente defendendo a improcedência do mesmo, formulando as seguintes conclusões :
1°) Os assistentes recorreram do despacho do MMº Juiz que não pronunciou os arguidos CC e DD pela pratica dos crimes de ameaças e injurias que os referidos assistentes lhe imputaram na sua acusação particular, alegando essencialmente:
A) Que o referido despacho se encontra ferido de nulidade, pois não fundamentou tal decisão, limitando-se a remeter para o despacho do MºPº que ordenou o arquivamento dos autos quanto ao crime de ameaças e não acompanhou a acusação particular pelo crime de injurias;
B) E sendo certo que para os autos resultaram suficientes indícios da pratica dos factos suscetíveis de integrarem os referidos crimes, porquanto, as declarações os arguidos que os negam, não podem ter mais valor que as declarações dos assistentes, que os confirmam;
C) Violando assim o disposto nos artºs 374° nº2 e 379º nºl, al-c), ambos do CPP.
2°) O MºPº não concorda com os assistentes, por três ordens de razões:
- As normas citadas como violadas não são aplicáveis ao despacho de encerramento da instrução, aquelas dizem respeito à sentença e não ao despacho de Pronuncia/Não Pronuncia.
A este despacho aplica-se a norma do artº 309° que define os requisitos da decisão instrutória, no sentido de referir que a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do MºPº. O que não está aqui em causa, antes pelo contrario, tal decisão seria nula se o MMº Juiz pronunciasse os arguidos pela pratica do crime de ameaças, acusado pelos assistentes, mas arquivado pelo MºPº. Bem assim como a norma do artº 308° do CPP que refere que se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos suficientes indícios de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido, sendo correspondentemente aplicável ao despacho referido no numero anterior o disposto nos nº2, 3 e 4 do artº 283° do CPP, que considera suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança, devendo tal despacho (Pronuncia), conter, sob pena de nulidade, as indicações tendentes à identificação do arguido, narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua pratica, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, a indicação das disposições legais aplicáveis e prova a produzir.
- Ora, sendo certo que o MMº Juiz refere que quanto ao crime de ameaças os assistentes não têm legitimidade para deduzirem acusação particular desacompanhados do MºPº e quanto ao crime de injurias não foram recolhidos suficientes indícios da pratica do crime, porquanto, as declarações dos assistentes desacompanhadas de qualquer outro meio de prova são manifestamente insuficientes para criarem a convicção da culpabilidade dos arguidos, com vista à sua condenação, isto de acordo com a exigência do artº 308° do CPP, não vislumbramos a alegada nulidade da decisão instrutória sob censura.
- Por outro lado é entendimento do MºPº que, no que diz respeito ao crime de ameaças os assistentes não têm interesse em agir, porquanto não reagiram ao despacho de arquivamento do MºPº, e não tendo tal interesse deve, nesta parte o recurso ser liminarmente rejeitado, por violação do disposto no artº 401° n°l al-b) do CPP.
- E assim, deve o Despacho de Não Pronuncia ser mantido, por ter feito correta criteriosa e justa aplicação das normas que lhe são aplicáveis.

Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, no parecer que emitiu, propugna pela improcedência do recurso, referenciando o seguinte:
« Quanto ao mérito do recurso, atento o teor da decisão instrutória recorrida e os fundamentos nela expressos para a não pronúncia - que, no fundo, subscreve os fundamentos do despacho de arquivamento do MP no final do inquérito e declara a nulidade da acusação particular pelo crime de ameaça, por falta de legitimidade dos assistentes para deduzirem acusação, em virtude de ser um crime semipúblico e ter sido proferido despacho de arquivamento quanto ao mesmo -, bem ainda, tendo em conta as razões expendidas na resposta do Ministério Público na 1ª Instância, com as quais estou plenamente de acordo e aqui subscrevo, SOU DE PARECER QUE O RECURSO DOS ASSISTENTES DEVE SER JULGADO IMPROCEDENTE e que se deverá manter a decisão instrutória de não pronúncia dos arguidos.».

Foi cumprido o disposto no artigo 417º/2 do Cód. de Processo Penal, nada tendo nessa sequência sido aditado aos autos.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.

Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir.
*
II. APRECIAÇÃO DO RECURSO

O objecto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, devendo assim a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito.

À luz das considerações que acabam de se enunciar, a questão a conhecer e decidir no âmbito do presente acórdão são, pois, as de:
1. saber se a decisão instrutória é nula nos termos do disposto no art. 379º/1 do Cód. de Processo Penal;
2. saber se deveria ter sido proferida decisão de pronúncia dos arguidos pelos crimes imputados na acusação particular.

Comecemos, antes de mais, por fazer presente o teor integral da decisão instrutória de não pronúncia, da qual ora se recorre, e que é o seguinte:
«O Tribunal é competente.
O processo é o próprio.
O M.P. tem legitimidade para acusar.
Não existem questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar ao conhecimento do mérito da causa.
*
Inconformado com a acusação particular proferida nos autos, os arguidos CC e DD vieram requerer a abertura de instrução, pedindo que seja proferido DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA.
Para tal alegam, desde logo, a nulidade da acusação particular, quanto ao crime de ameaças, por se tratar de crime semipúblico, e, quanto ao crime de injúrias, o arguido CC que não existem indícios suficientes para a acusação particular deduzida.
O arguido foi interrogado, e realizou-se o debate instrutório com a observância do legal formalismo legal.
De acordo com o disposto no artº 308º do C.P.P. chegou o momento de analisar o processo e verificar se foram recolhidos indícios suficientes que apontem para uma possibilidade razoável da arguida, em sede de julgamento, ser condenada pelo crime que lhe em causa.
A lei processual considera “suficientes” os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança -.Cfr.artº 283º nº2 do C.P.P.
Assim, se até ao encerramento da instrução forem recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação, em julgamento, de uma pena ou uma medida de segurança, o juiz profere despacho de pronúncia, caso contrário, profere despacho de não pronúncia – cf. art. 308º, nº 1 do Código de Processo Penal.
Segundo dispõe o art. 283º, nº 2 do Código de Processo Penal “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
Embora existam divergências na doutrina e jurisprudência quanto a saber quando é que os indícios são suficientes diremos que, com a posição maioritária, ser necessário que dos indícios resulte uma forte ou séria possibilidade de condenação em julgamento. Nesta linha de orientação se posiciona o Professor Figueiredo Dias (“Direito Processual Penal”, I, 1984, pág. 133) onde escreve que “os indícios só serão suficientes e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando seja mais provável do que a absolvição”.
Também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.10.2005, publicado em www.dgsi.pt/jstj, decidiu que “aquela «possibilidade razoável» de condenação é uma possibilidade mais razoável, mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é (mais) provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.
No mesmo sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/9/11, publicado no mesmo local, decidiu que “a suficiência dos indícios (…) pressupõe a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade: Indícios suficientes são assim, «os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que (o arguido) virá a ser condenado. Eles constituem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado”.
Ora, no que se refere ao crime de ameaças, e conforme referem os arguidos, estando em causa crime semipúblico, tendo sido proferido despacho de arquivamento quanto ao mesmo, não têm os assistentes legitimidade para deduzir acusação particular, no caso em que, não dependendo o prosseguimento dos autos .de acusação particular, o Ministério Público tiver deduzido despacho de acusação – artigos 284º e 285º do CPP.
Assim, tal acusação particular é nula, estando em causa uma nulidade insanável, conforme o artigo 119º, n.,º 1, b) do C.P.P.
No que se refere ao crime de injúrias, cumpra aderir ao despacho do Ministério Público de 30/01/2023, uma vez que, para além dos próprios assistentes, nenhuma das testemunhas inquiridas em sede de inquérito afirmaram terem ouvido qualquer uma das expressões imputadas pelos assistentes aos arguidos, na sua acusação.
*
Por todo o exposto, declaro nula a acusação particular, no que se refere à imputação aos arguidos da prática de um crime de ameaças, decidindo NÃO PRONÚNCIAR os arguidos pelos crimes pelos quais vinham acusados em acusação particular.
Custas pelos assistentes.
Notifique e deposite e, oportunamente, arquivem-se os autos.».

Analisemos então as questões suscitadas em sede de recurso.

1. De saber se a decisão instrutória é nula nos termos do disposto no art. 379º/1 do Cód. de Processo Penal.

Principiam os assistentes/recorrentes por alegar que a decisão instrutória de não pronúncia, ora recorrida, é integralmente omissa na sua fundamentação, pois que se limita a remeter para um despacho do Ministério Público proferido em sede de Inquérito, o qual se fundamenta, apenas, na falta de indícios suficientes.
Ou seja, conclui, uma vez que a decisão instrutória não alicerçou a sua convicção de modo completo, quanto aos motivos de facto e de direito, com indicação e exame crítico das provas que estribaram a convicção do tribunal, para não sujeitar os arguidos a julgamento, tal falta de fundamentação configura a nulidade prevista no art. 379º/1/c) do Cód. de Processo Penal, conjugado com o disposto no art. 374º/2 do mesmo Código, nulidade que expressamente invoca.
Apreciando.

Desde logo cumpre referir que, como bem assinala o Ministério Público na sua resposta ao recurso, o disposto no art. 379º do Cód. de Processo Penal – e, antes dele, no também suscitado art. 374º do Cód. de Processo Penal – apenas tem aplicação no que tange às sentenças e não aos meros despachos, mesmo tratando-se de despachos de pronúncia ou não pronúncia.
Na verdade, aquilo que o art. 374º do Cód. de Processo Penal regula é desde logo dos requisitos a que deve obedecer o dever de fundamentação, de facto e de direito, especificamente da sentença penal, e é só nesse estrito (ainda que determinante) âmbito processual que comina a lei processual a omissão daquela completude de fundamentação com o vício da nulidade, nos termos previstos no art. 379º do Cód. de Processo Penal.
Pois bem, e como é consabido, a lei processual penal consagrou em matéria de invalidades o princípio da legalidade, segundo o qual a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei, sendo que nos casos em que a lei não cominar a nulidade o acto ilegal é irregular – cfr. nºs 1 e 2 do art. 118° do Cód. de Processo Penal.
Donde, não se mostrando a circunstância que vem invocada nesta parte do presente recurso, elencada enquanto nulidade (nem nos termos dos arts. 119º ou 120º do Cód. de Processo Penal), sempre estaríamos reconduzidos à ponderação sobre a verificação de uma irregularidade processual, nos termos do art. 118º/2 do Cód. de Processo Penal, e cujo regime vem regulado no art. 123º do mesmo código – neste sentido também Mouraz Lopes, em “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo IV, pág. 762.
Este circunstancialismo, por si só, afasta a viabilidade de procedência da pretensão dos recorrentes tale quale vem formulada – ou seja, não se mostra verificada no caso, e com os fundamentos alegados, qualquer nulidade processual.

Não obstante, cumpre deixar claro o seguinte.

A lei não deixa de impor a obrigatoriedade de fundamentação, de facto e de direito, dos actos decisórios, entre os quais claramente se encontram os despachos de pronúncia ou de não pronúncia.
O artigo 205º/1 da Constituição da República Portuguesa consagra que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. Sublinhe-se que a necessidade de fundamentar as decisões judiciais é uma das exigências do processo equitativo, traduzindo–se num elemento de transparência da justiça inerente a qualquer acto processual.
Aquele princípio constitucional encontra consagração desde logo no art. 97º/4 do Cód. de Processo Penal, onde se estipula que «Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão».
É na fundamentação da decisão judiciária que se poderá avaliar a consistência, objectividade, rigor e legitimidade do processo lógico e subjectivo da formação da convicção do julgador, do mesmo passo se viabilizando a possibilidade de controlo da decisão, de forma a impedir a avaliação probatória caprichosa ou arbitrária e deve ser conjugada com o sistema de livre apreciação da prova.
Assim, a fundamentação da decisão deve obedecer a uma lógica de convencimento que permita a sua compreensão pelos destinatários, mas também pelo tribunal de recurso.
Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 29/11/2016 (proc. 884/13.2 TAMTA.E1)[1], «A ausência de fundamentação ou uma fundamentação insuficiente ou gravosamente deficiente, facilitando decisões arbitrárias e desprovidas de suporte legal e/ou factual, não assegurará as garantias de defesa, já que não permitirá exercer conscientemente o direito ao recurso, pois, desconhecendo-se os fundamentos que suportam a decisão, não poderão os mesmos ser analisados, nem aceites ou rebatidos».
Pois bem, e como vem de se enunciar supra, tendo carácter manifestamente decisório, que contenderá com direitos e garantias individuais, não se suscitam dúvidas de que o despacho de pronúncia ou não pronúncia deverá ser fundamentado.
É certo que, no que tange à fundamentação da decisão instrutória, estabelece o art. 307º/1 do Cód. de Processo Penal que a mesma poderá ser feita «por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura da instrução».
Porém, como se assinala no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29/02/2012 (proc. 216/07.9TAMBR-C.P1)[2], tal possibilidade «refere-se somente à dispensa da narração/descrição dos factos e da respectiva qualificação jurídica, não desobrigando o juiz de instrução de explicitar os motivos pelos quais, nomeadamente, não viu nos factos e nos elementos probatórios indicados pelo arguido virtualidade suficiente para infirmar a tese da acusação.»

Tudo isto, consigna–se também, independentemente da natureza da cominação imposta na lei para a omissão de tal dever de fundamentação.
Sendo, porém, que, constatando–se omitida, na decisão instrutória, uma ponderação (ainda que sucinta) sobre as provas produzidas no inquérito e na instrução, de tal forma que não se torne possível verificar e, consequentemente, sindicar o raciocínio feito pelo Mmo. Juiz a quo na tomada da decisão de facto, em nosso entendimento tal constituirá uma irregularidade que influi na decisão da causa e que impede uma correcta apreciação do recurso, designadamente sobre a existência ou não de indícios quanto aos crimes imputados na acusação e no RAI apresentado pelo assistente – e, nesse conspecto, tal irregularidade poderá ser conhecida oficiosamente e sanada, nos termos previstos no art. 123º/2 do Cód. de Processo Penal, que exactamente determina que «pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado».

Seja como for, sempre se aditará, muito sinteticamente, que a fundamentação das decisões varia em função do tipo concreto de cada acto e das circunstâncias em que ele é praticado, cabendo, na avaliação da suficiência da respectiva fundamentação, ponderar–se se os respectivos destinatários, perante o teor desse acto e das suas circunstâncias, estão em condições de perceber, com critérios de razoabilidade, o motivo pelo qual se decidiu num sentido e não noutro, de forma a conformar-se com o decidido ou a reagir-lhe pelos meios legais.
Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22/01/2019 (proc. 186/13.4PAPNI.C1)[3], «Se um destinatário normal, perante o teor do ato e das suas circunstâncias, está em condições de perceber o motivo pelo qual se decidiu num sentido e não noutro, então a decisão, independentemente de se concordar ou não com ela, está fundamentada».
O que significa que o dever de fundamentação deverá ter–se por satisfeito mediante uma exposição que, ainda que sintética, expresse suficientemente maxime o exercício de exame crítico sobre as fontes de prova, e permita percepcionar os motivos da opção do tribunal pelo resultado de tal exercício que vem a consagrar na decisão.

Ora, e revertendo ao caso dos autos, vendo a decisão instrutória proferida, verifica–se que, após várias considerações de índole processual, doutrinal e jurisprudencial relativas, sempre em termos genéricos, às finalidades da fase de instrução e ao objecto da decisão instrutória, o tribunal a quo vem a decidir pela declaração de nulidade da acusação particular dos assistentes no que tange ao ali imputado crime de ameaça, e, quanto ao também acusado crime de injúria, vem a consignar nos seguintes termos : « No que se refere ao crime de injúrias, cumpra aderir ao despacho do Ministério Público de 30/01/2023, uma vez que, para além dos próprios assistentes, nenhuma das testemunhas inquiridas em sede de inquérito afirmaram terem ouvido qualquer uma das expressões imputadas pelos assistentes aos arguidos, na sua acusação».
Para além de se realçar que a adesão processual aqui enunciada não encontra qualquer acolhimento na supra referida possibilidade de remissão concedida pelo art. 307º/1 do Cód. de Processo Penal – pois que «o despacho do Ministério Público de 30/01/2023» a que se declara aderir não é um despacho de acusação (e também não é, muito naturalmente, um requerimento de abertura de instrução) –, é sem dificuldade que se admite que estas menções poderiam ter sido objecto de maior densificação e especificação, tendo o tribunal a quo levado quase ao limite o exercício de sintetização que vimos ser aqui ainda aceitável no âmbito do cumprimento do seu dever de fundamentação de facto.
Porém, pese embora a sua acentuada singeleza e carácter quase telegráfico, a verdade é que o despacho recorrido não deixa de assinalar o fundamento pelo qual decide quanto ao requerimento oportunamente apresentado pelo arguido: considera que nenhum dos elementos de prova dos autos, nomeadamente de natureza testemunhal, corrobora quanto viria afirmado pelos assistentes na acusação.
E, mais importante, constata–se que os assistentes/recorrentes não revelam dificuldade na imediata apreensão e na plena compreensão do sentido daquela decisão e seu respectivo fundamento, ainda que desornado – pois que reage ao mesmo pela forma adequada.
Assim como apreensível é também tal sustento decisório para a presente instância de recurso.
É, assim, possível reconduzir racionalmente a razão que determinou que o tribunal a quo adoptasse aquela decisão ora recorrida.
Sempre inexistiria, portanto, a alegada falta de fundamentação, apesar de se conceder no seu carácter assaz prosaico in casu – o que não significa, convém que se tome nota, que noutro casu não se impusesse a declaração de irregularidade da decisão e se determinasse a respectiva regularização pela primeira instância.

Em suma, não se verifica a invocada nulidade no despacho recorrido.

2. De saber se deveria ter sido proferida decisão de pronúncia dos arguidos pelos crimes imputados na acusação particular.

Vejamos agora quanto respeita à questão relativa à sindicância da materialidade da decisão recorrida.

Propugnam os assistentes/recorrentes que nos autos terão sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena, «pela prática do crime de Injúrias e ainda do crime de Ameaça, na pessoa dos Assistentes», pelo que aqueles deveriam ter sido pronunciados nos termos do estatuído no art. 308º/1 do Cód. de Processo Penal.

Apreciando se dirá que não pode ter acolhimento a pretensão dos recorrentes.

Assim, cumpre desde logo clarificar que só em parte o recurso interposto pelos recorrentes pode consubstanciar uma verdadeira e própria impugnação da decisão de não verificação de indícios suficientes da prática pelos arguidos de crimes que lhe vinham imputados em sede de acusação particular.
E assim é pelo simples e liminar motivo de que também só em parte a decisão proferida pelo Tribunal a quo no final da fase de Instrução dos autos consubstancia uma decisão de não pronúncia.
Na verdade, e recapitulando em termos sintéticos, os assistentes deduziram nos autos acusação particular contra os arguidos imputando–lhes a prática de um crime de ameaça previsto no art. 153º do Cód. Penal, e de um crime de injúria previsto no art. 181º/1 do Cód. Penal ; ora, a decisão instrutória proferida desdobra–se em duas decisões :
– por um lado, declara nula a acusação particular no que se refere à imputação aos arguidos da prática de crime de ameaças,
– por outro, mais decide não pronunciar os mesmos arguidos pelos crimes pelos quais vinham acusados em acusação particular, reportando nesta parte, naturalmente, tão apenas aos crimes de injúrias.
Na verdade, como bem refere a decisão instrutória – e se encarregam de avisadamente assinalar quer o Ministério Público, quer o arguido CC nas respectivas respostas ao recurso –, o crime de ameaça é um crime de natureza semi–público, pelo que os assistentes não têm legitimidade para deduzir acusação quanto ao mesmo, apenas podendo acompanhar aquela que seja (e se o for) deduzida pelo Ministério Público (cfr. art. 284º do Cód. de Processo Penal). Ora, no presente caso, tendo o Ministério Público proferido despacho de arquivamento quanto aos crimes de ameaça denunciados, a acusação pelos assistentes mostra–se efectivamente afectada de nulidade insanável, conforme o disposto no artigo 119º/1/b) do Cód. de Processo Penal, pois que assim se mostra configurada a prática de um acto processual sem a intervenção do Ministério Público quando relativamente ao mesmo vemos «a lei exigir a respectiva comparência».
Como bem assinala o Ministério Público na sua resposta, a forma processualmente válida de os assistentes reagirem àquele despacho de arquivamento do Ministério Público, não é a dedução de acusação particular, mas antes, persistindo no intuito de ver os arguidos responsabilizados criminalmente pelos factos em questão, reagir ao despacho de arquivamento requerendo a abertura de instrução ou pela solução da intervenção hierárquica – nos termos permitidos, respectivamente, no art. 287º/1/b) e no art. 278º do Cód. de Processo Penal.
O que não fizeram, tendo antes optado por desconsiderar a eficácia processual daquele arquivamento, e incluir a factologia em causa na acusação particular.
Pelo que bem decidiu, entretanto, o tribunal a quo como o fez nesta parte.
Nesta medida, e no que para aqui verdadeiramente releva, não estando em causa na decisão recorrida a não pronúncia pela prática dos crimes de ameaça – mas antes a referenciada declaração de nulidade –, improcede liminarmente a pretensão dos recorrentes por falta sequer de objecto materialmente recorrível.

Cumpre, pois, centrar a presente decisão no que se reporta à não pronúncia que – aqui sim – vem decidida no que tange aos crimes de injúrias imputados nos autos pelos assistentes aos arguidos em sede de acusação particular.

Em termos sucintos se recorda que, na ponderação daqueles que são os fins e os objectivos da fase de instrução em processo penal, temos que a mesma se orienta a partir dos termos consignados no art. 286º/1 do Cód. de Processo Penal, onde se dispõe que “A instrução visa a comprovação da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem em submeter ou não a causa a julgamento”.
Não se configurando como um complemento da investigação feita em inquérito, mas antes contemplando a prática dos actos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento, tal significa que em sede de fase instrutória caberá ao juiz investigar o caso submetido a instrução, de forma autónoma, e sempre “tendo em conta a indicação constante do requerimento da abertura de instrução” a que se refere o art. 287º/2 do Cód. de Processo Penal, conforme expressamente exigido no art. 288º/4 do Cód. de Processo Penal.
Os procedimentos da Instrução culminam com o proferimento de despacho de pronúncia ou de não pronúncia – consoante existam ou não indícios suficientes que justifiquem a submissão ou não do arguido a julgamento –, conforme estipulado no art. 308º/1 do Cód. de Processo Penal, onde se determina precisamente que, “se até ao encerramento de instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos ; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
Resulta, por sua vez, do artigo 308º/2 do Cód. de Processo Penal, por via imediata da remissão aí efectuada para o art. 283º/2 do mesmo diploma, que se consideram suficientes os indícios “sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento uma pena ou uma medida de segurança”.
Tem–se aqui em vista uma “probabilidade, fundada em elementos de prova que, conjugados, convençam da possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicável uma pena ou medida de segurança criminal”, cfr. Germano Marques da Silva (in ‘Curso de Processo Penal, II’, 2ª edição, págs. 99 e 100) ; ou, como ensina Figueiredo Dias (in ‘Direito Processual Penal’, 1.º volume, pág. 133) “os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”.
Constitui, em suma, indiciação suficiente a presença de um conjunto de elementos que, devidamente relacionados e conjugados entre si, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo vingar a convicção de que este virá a ser condenado pelo crime que lhe é imputado. Assim, o juiz que dirige a fase de Instrução deve, a final da mesma, proferir despacho de pronúncia do arguido quando os elementos de prova, relacionados e conjugados entre si, fizerem pressentir da culpabilidade do agente e produzirem a convicção pessoal de condenação posterior e seja de concluir, com uma probabilidade razoável, que tais elementos se manterão em julgamento, ou quando se pressinta que da ampla discussão em plena audiência de julgamento, para além dos elementos disponíveis, outros advirão no sentido da condenação.
A decisão instrutória assenta, pois, num juízo de prognose, devendo apenas ser remetidos para julgamento os casos em que seja manifesta uma acentuadamente maior probabilidade de uma futura decisão condenatória – por relação à (possibilidade sempre presente) de o desfecho vir a ser absolutório.

Começando a nortear a presente análise para o caso concreto dos autos, é objecto da presente decisão, portanto, descortinar se a matéria indiciária constante dos autos é de molde a fundar a prolação de despacho de pronúncia (assim revertendo a decisão recorrida) relativamente à prática pelos arguidos do crime de injúrias que, a cada um, vem imputado.
Pretendem os assistentes (ora recorrentes) que se verifica a existência de suficientes indícios do cometimento pelos arguidos de tal crime, donde que a decisão instrutória deveria ser no sentido da pronúncia daqueles, e consequentemente revogado neste sentido.
Ora, tendo presentes as supra efectuadas considerações, e analisados os presentes autos, afigura-se-nos que a decisão recorrida não merece censura.

O percurso da presente apreciação deve iniciar–se não perdendo de vista os pressupostos típicos do crime de injúrias.
Assim, tal tipo criminal mostra-se previsto no art. 181º do Código Penal, preceito legal que prevê, no seu nº1, a conduta de «Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração», sendo punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.
Por seu turno, decorre do nº2 da mesma disposição penal, e por via da remissão aí operada para quanto estatuem os nºs 2, 3 e 4 do art. 180º do Cód. Penal, que :
– o agente não será punido quando se verifiquem, cumulativamente, duas situações : A imputação ser feita para realizar um interesse público legítimo ou qualquer outra justa causa, e o agente prove a verdade da mesma imputação, ou tenha fundamento sério para, em boa-fé, a reputar como verdadeira – sendo, contudo, excluída tal boa–fé quando o agente não tiver cumprido o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação (cfr. nºs 2 e 4 do art. 180º),
– sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do nº 2 do artigo 31º, tal exclusão de punibilidade não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar (cfr. nº3 do art. 180º).
Essencial é, sempre, que estejamos perante uma actuação que consubstancie ofensa à honra e consideração alheias, sendo o crime de injúria um crime de dano, que se consuma com a verificação objectiva do resultado, ou seja, quando o agente efectivamente atinge a honra e/ou reputação do visado.
Por honra deve entender-se «A essência da personalidade humana, referindo-se, propriamente, à probidade, à retidão, à lealdade, ao carácter... honra é a dignidade subjetiva, ou seja, o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui. Por isso afirmava Schopenhauer que a honra objetivamente, é a opinião dos outros sobre o nosso mérito; subjetivamente (...), o nosso receio diante dessa opinião» ; já consideração reporta ao «património de bom-nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspeto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros. Será o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objetiva, que é o mesmo que dizer a forma como a sociedade vê cada cidadão - a opinião pública.” – cfr. Leal Henriques e Simas Santos, “Código Penal Anotado – Parte Especial”, 5ª ed., pág. 634/635.
No que tange à verificação do elemento subjectivo do tipo criminal em apreço, basta–se aqui a previsão com o dolo genérico, isto é, sob qualquer das suas formas como prevenidas no art. 14º do Cód. Penal (directo, necessário ou eventual). O tipo legal fica, pois, preenchido com a vontade do agente imediatamente dirigida à ofensa à honra ou consideração alheias, ou apenas com a previsão dessa ofensa, de modo a que a mesma lhe possa ser imputada.
Sendo o tipo legal aqui em causa de carácter doloso, terá que resultar inequivocamente dos autos que as expressões alvo de denúncia e acusação foram proferidas com intenção de ofender. Há que analisar, ainda que as expressões pareçam objectivamente injuriosas, se foram empregues no seu significado ofensivo e com intenção efectiva de ferir, vexar, humilhar, desonrar os destinatários. Há, pois, que apurar, para além de se saber se aos olhos do homem médio a expressão é objectivamente injuriosa, se o é, também, em termos subjectivos, sendo certo que a mesma imputação pode ser ofensiva em determinadas circunstâncias e inofensiva noutro cenário, com outros intervenientes.
Assim, para se aferir do carácter injurioso, ou não, de determinadas expressões, é indispensável analisar todo o contexto em que as mesmas foram proferidas – analisando-se, nomeadamente, a personalidade das pessoas envolvidas, o seu grau de instrução e de educação, o meio onde vivem, os hábitos de linguagem, etc.
Esta incriminação é, pode dizer–se, paradigmática no que se refere à necessidade de ponderação do carácter de subsidiariedade da tutela criminal e à natureza e função do direito penal como ultima ratio de protecção de bens jurídicos.

Revertendo ao caso concreto dos autos, a decisão recorrida assenta a não pronúncia na circunstância de considerar não existirem indícios suficientes da prática de factos susceptíveis de configurarem o crime de injúria imputado, uma vez que, para além dos próprios assistentes, nenhuma das testemunhas inquiridas em sede de inquérito afirmou ter ouvido qualquer uma das expressões imputadas pelos assistentes aos arguidos, na sua acusação.
Entendem por sua vez os assistentes, em sustento da solicitada sindicância recursória, que apesar «das evidentes incongruências nos depoimentos dos arguidos, do teor dos depoimentos dos Assistentes e, ainda da prova documental junta aos autos pela arguida – Email» foi atribuída «maior credibilidade aos arguidos em detrimento dos aqui Assistentes, sem qualquer fundamento para tal efeito».

A primeira nota que cumpre desde logo deixar clara é a de que a aludida «prova documental – email» a que os recorrentes/assistentes ali se referem, se consubstancia, conforme aliás resulta expresso do também alegado em sede de recurso, numa mensagem de correio electrónico enviada pela arguida (no dia 25/03/2022) para os serviços do DIAP do Porto, no âmbito dos presentes autos, e, portanto, já na pendência e decurso dos mesmos – cfr. fl. 93 dos autos.
Ora, tal mensagem, maxime respectivo teor, não encontram sequer qualquer menção em sede da acusação oportunamente deduzida nos autos pelos assistentes – nem sequer como meio de prova de qualquer facto ali imputado.
Pelo que liminarmente se dirá ser a mesma prova documental absolutamente irrelevante para o exercício de ponderação indiciária que aqui cumpre sindicar.

Conforme se pode constatar percorrendo o teor da acusação proferida pelos assistentes, e relativamente à qual foi requerida a abertura de instrução, a mesma reporta no essencial à alegação, por um lado de que os arguidos teriam dirigido aos assistentes determinadas mensagens escritas das quais decorreria, no seu entender, ou um intuito de constranger os assistentes na sua liberdade, ou que ademais reputam de ofensivas da sua honra e consideração.
Por outro lado, ali se adita ainda que «Têm sido recorrentes as injúrias com que os Arguidos "mimoseiam" os Ofendidos, como sejam os seguintes, nomeadamente, à BB: "Filha da Puta", "És uma analfabeta", "Não tens curso nenhum", "Nunca trabalhaste", "Não sabes viver em sociedade", "Tem cuidado que a minha mulher foi da Judiciária"».

Pois bem, desde logo cumpre voltar a deixar claro que, em tudo quanto se refere à imputação de expressões, verbais ou escritas, que os assistentes ali reputam de ameaçadoras para si – e que é, diga–se, a maior parte do acervo fáctico daquela acusação –, a apreciação sobre as mesmas não consubstancia o objecto da presente decisão, pois que nessa parte valem os motivos pelos quais foi oportunamente declarada a nulidade da acusação, nos termos já acima consignados e para os quais se remete.

No que tange às expressões injuriosas imputadas aos arguidos, nomeadamente aquelas que acima se reproduzem, como bem assinala o tribunal recorrido na forma telegráfica acima assinalada, percorrida a prova produzida nos autos, temos que apenas os assistentes aludem a tais factos.
No mais, nem uma única das testemunhas ouvidas nos autos declarou alguma vez ter presenciado qualquer actuação dos arguidos em que dirigissem à pessoa de qualquer dos assistentes, qualquer das expressões imputadas na acusação, nem jamais ouviram tal suceder.
Assim, e como adequadamente resume o Ministério Público no seu despacho de parcelar arquivamento dos autos (quanto ao crime de ameaças) e de concomitante não acompanhamento da acusação particular deduzida quanto ao crime de injúrias:
– a testemunha EE (cfr. fls. 47 e 48), referiu que nunca escutou qualquer episódio de injúria, confirmando sim que a arguida DD já o interpelou para lhe pedir para ele interceder, junto dos vizinhos (assistentes) para que eles atendessem as chamadas telefónicas dela,
– a testemunha FF (cfr. fls. 49 e 50), sabe dos factos denunciados pela própria queixosa, jamais tendo presenciado quaisquer injúrias,
– a testemunha GG (cfr. fls. 149 e 150) não presenciou qualquer dos factos denunciados, tendo–lhe tão só o assistente, seu pai, mostrado mensagens recebidas.
No mais, os arguidos DD (ouvida cfr. fls. 54 e 55) e CC, (cf. fls. 63 e 64), referiram que nunca injuriaram ou ameaçaram os queixosos, nomeadamente com aquelas expressões imputadas em sede de acusação, esclarecendo apenas que mandam mensagens para os vizinhos (assistentes) por pretenderem falar com eles nomeadamente sobre barulhos incomodativos que dizem causados pelos mesmos, mas que os ignoram as suas tentativas de contacto.
Ou seja, com relação àquelas supra transcritas expressões que, imputadas, se revelariam mais ostensivamente ofensivas da honra e consideração dos assistentes, assim se revela a absoluta ausência de qualquer meio de corroboração probatória indiciariamente ponderável da actuação dos arguidos.
Ora. atentas as circunstâncias em que a acusação alega haverem sido as mesmas produzidas – isto é, e com sublinhado agora aposto, «Estas injúrias e ameaças, são proferidas, quando os Arguidos se apercebem que a Ofendida, BB se encontra em casa ; batem nas paredes contiguas às dos Ofendidos e proferem estes impropérios ofensivos da honra e bom nome dos Ofendidos.» –, é pouco compreensível, e desde logo mesmo em termos meramente indiciários, que nenhuma das testemunhas ouvidas (entre as quais a filha dos assistentes) algo jamais hajam ouvido ou presenciado.
Quanto a todo o restante teor da acusação deduzida, sempre cumpre aditar que, percorrido capilarmente o elenco de factos ali vertido, não se descortina qualquer outra actuação ou expressão imputadamente dirigida pelos arguidos aos assistentes – ou a terceiros, mas reportada àqueles (o que permitiria eventualmente enquadrar tal factualidade, se relevante, enquanto crime de difamação previsto no art. 180º do Cód. Penal, pois que o tribunal, no caso o de instrução, não fica refém do enquadramento jurídico efectuado pelos sujeitos processuais, desde que respeitados se mostrem os requisitos processuais previstos no art. 303º/1/5 do Cód. de Processo Penal) – que revele a aptidão, que aqui seria imprescindível, de consubstanciar uma ofensa à honra ou consideração que são património pessoal de qualquer dos assistentes.
Retomando o apelo às considerações acima efectuadas, não se vislumbra que qualquer das demais ali descritas expressões verbalizadas ou escritas pelos arguidos assuma um carácter objectivamente injurioso, e muito menos que hajam sido empregues com intenção efectiva de ferir, vexar, humilhar, desonrar os destinatários.
Ademais, e como, aliás, logo dá nota a própria acusação – e nesse conspecto realçam os requerimentos de abertura de instrução–, o contexto da actuação dos arguidos, de que na acusação formulada se dá nota, sempre se mostra ser o de procurarem contactar os assistentes, sem sucesso (por estes a isso obviarem), por forma a confrontá–los com questões de vizinhança entre ambas as partes – nomeadamente aquelas que decorrem entretanto da prova (testemunhal e por declarações) produzida nos autos.

Em suma, quer do próprio teor da factualidade imputada na acusação, quer da ponderação conjugada dos elementos probatórios recolhidos nos autos, absolutamente nada decorre, em termos indiciários, que permita infirmar as correspondentes conclusões a que chega a decisão recorrida.
Num juízo de prognose quanto ao desfecho do julgamento a que os arguidos seriam submetidos por via da acusação que contra os mesmos vem deduzida, se recorta como (muito) mais distante a sua condenação do que a sua absolvição pelos imputados crimes de injúrias.
Donde, ser de confirmar a correspondente decisão de não pronúncia, improcedendo assim o recurso interposto.
*
III. DECISÃO

Nestes termos, e em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelos assistentes AA e BB e, consequentemente, confirmar integralmente a decisão recorrida.

Custas do presente recurso pelos recorrentes/assistentes, fixando–se a taxa de justiça em 4 (quatro) U.C.s (cfr. art. 515º/1/b) do Cód. de Processo Penal, 8º/9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa)
*
Porto, 10 de Janeiro de 2024
Pedro Afonso Lucas
Luís Coimbra
José Quaresma

(Texto elaborado pelo primeiro signatário como relator, e revisto integralmente – sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo da primeira página)
_________________
[1] Relatado por Leonor Botelho, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf
[2] Relatado por Ernesto Nascimento, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[3] Relatado por Orlando Gonçalves, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf