Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | PEDRO JOSÉ ESTEVES DE BRITO | ||
Descritores: | BURLA ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 11/05/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROVIDO | ||
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Sumário: | I. Estando em causa o crime de burla, o despacho de acusação será contraditório, a nível dos factos que descreve, quando, do ponto de vista objetivo, não permite concluir pela utilização, por parte do arguido, de um qualquer meio enganoso capaz de criar, assegurar ou aprofundar um erro na pessoa a que se dirigiu que, por seu turno, a tenha levado a efetuar o pagamento solicitado, mas do ponto de vista subjetivo, acaba por imputar ao arguido a criação de um meio enganoso que se afirma ter sido capaz de criar um erro na pessoa a que ele se dirigiu que, por seu turno, a levou a efetuar o pagamento solicitado, sobretudo quando tal seja realizado por referência a um substrato objetivo vincado pela utilização do adjetivo “concretizado”. II. Não sendo a factualidade referente aos elementos objetivos e subjetivos do crime, na parte em que coincidam, correspondentes ou congruentes entre si, a narração dos factos assim efetuada no despacho de acusação deduzida não é lógica nem coerente com o tipo legal de crime imputado, o que torna a acusação manifestamente imperfeita a nível da narração dos factos, devendo ser rejeitada ao abrigo do disposto no art.º 311.º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. b), do C.P.P. e não ao abrigo do disposto no art.º 311.º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. d), do C.P.P. III. A causa de rejeição da acusação, por manifestamente infundada, estabelecida na al. b), do n.º 3, do art.º 311.º, do C.P.P. abrange os casos de inviabilidade formal da acusação, em virtude de se verificar uma omissão ou imperfeição a nível dos factos nela narrados e conduz à devolução do processo ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes, nomeadamente para que este possa, querendo, reformular a acusação, com a dedução de uma nova onde seja suprida a deficiência detetada, sendo que, no caso de tal vir a acontecer, relativamente aos atos processuais posteriores à acusação rejeitada se deverão repetir unicamente aqueles que se consideram dependentes dessa acusação e afetados por esta rejeição. IV. A causa de rejeição da acusação, por manifestamente infundada, estabelecida na al. d), do n.º 3, do art.º 311.º, do C.P.P. abrange os casos de inviabilidade substantiva da acusação, em virtude de os factos nela narrados, relativamente aos quais não se verifica qualquer omissão ou imperfeição, não integrarem a prática do crime indicado na acusação ou qualquer outro e conduz ao arquivamento do processo. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | I. Relatório: I.1. Da decisão recorrida: No âmbito do processo comum singular n.º 29/22.8PVLSB, que corre termos no Juízo Local Criminal de Lisboa - Juiz 14, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, em 03-11-2023 foi proferido despacho pelo qual, ao abrigo do disposto no art.º 311.º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. d), do Código de Processo Penal (C.P.P.), foi rejeitada a acusação oportunamente deduzida pelo Ministério Público contra o arguido AA, que lhe havia imputado a prática, como autor material, na forma consumada e em concurso efetivo, de 4 crimes de burla, ps. e ps. pelo arts. 14.º, n.º 1, 26.º, 30.º, n.º 1 e 217.º, n.º 1, do Código Penal (C.P.), por a ter considerado manifestamente infundada, por os factos nela descritos não constituírem qualquer crime. I.2. Do recurso: Inconformada com a decisão, a Digna Magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido dela interpôs recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões: “1. O arguido foi, nestes autos, acusado como autor material, na forma consumada e em concurso efetivo da prática de quatro crimes de burla, previstos e punidos pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal. 2. Aquando da prolação do despacho de recebimento da acusação foi proferido despacho no qual “ao abrigo do artigo 311.º, n.ºs 2, alínea a) e 3, alínea d) do Cód Proc. Penal, rejeito, por manifestamente infundada, a acusação deduzida” por considerar que a factualidade da acusação não constitui a prática de qualquer crime.” 3. O presente recurso visa o despacho de rejeição da acusação com o qual não concordamos e bem ainda o destino dos autos. 4. Assim, entende o tribunal que não se encontra reunido um dos elementos do tipo, a saber, o erro ou engano da vítima por entender que não é “a simples mentira e promessa do pagamento ou o anúncio deste, suficientes para integrar tal elemento típico da burla” qualificando, assim, a situação como sendo do foro cível. 5. Para tal sustenta-se na concretização jurisprudencial do que seja a “astúcia” empregada pelo autor dos factos. 6. Ora não existindo uniformidade em torno daquela questão não é no momento da prolação do despacho de saneamento do processo que deve ser feita a opção por um dos entendimentos jurídicos em confronto. 7. Uma vez que não houve instrução cabe ao juiz do julgamento o saneamento do processo escrutinando os autos para os efeitos do previsto no art.º 331.º do Código de Processo Penal. 8. Todavia, não pode declara-se nula uma acusação rejeitando-a por a considerar manifestamente infundada mediante a tomada de posição sobre o entendimento jurídico quanto a um dos elementos do tipo. 9. Nos termos da acusação o arguido formulou um plano que passava por conseguir que terceiros, neste caso lojistas de lojas “Payshop”, efetuassem o pagamento de faturas do mesmo sem que, antes, este lhes entregasse qualquer quantia para fazer tal pagamento. De seguida, o mesmo urdia uma desculpa e punha-se em fuga sem entregar qualquer quantia como era, desde o início, o seu propósito. 10. Efetivamente, o engano e os meios utilizados para determinar terceiro a dispor do seu património (os quais constam, além do mais, dos pontos 34 a 36 da acusação) têm vindo a ser densificados pela jurisprudência, sobretudo quanto à mestria e intensidade do engano ou astúcia. 11. No entanto, a adequação do meio sempre dependerá do caso concreto tendo por isso de ser apreciado em audiência de julgamento e após a produção de prova. 12. Apenas após realização do julgamento, produzida e apreciada que seja a prova existente e percebida a concreta situação em causa, incluindo as características particulares do burlado e a sua concreta relação/interação com o arguido, se poderá concluir pela idoneidade ou não da atuação do arguido e se o engano neste caso permite o preenchimento ou não dos elementos do tipo. 13. Aliás, tal entendimento é reforçado pelo facto do arguido já ter sido condenado por sentença transitada em julgado pela prática do mesmo tipo de ilícito atuando do mesmo modo. 14. Não se pode fundar o entendimento que a acusação é manifestamente infundada por esta poder vir a ser julgada improcedente de facto. 15. Não pode o tribunal antecipar a decisão “I. No caso de se apresentar controversa a atipicidade dos factos narrados na acusação, esta não pode ser taxada de manifestamente infundada e fulminada com a rejeição liminar, nos termos do art.º 311º, nº2, al. a) e nº 3, al. d) , do CPP, devendo os autos prosseguir para julgamento, onde a questão, segundo as várias perpectivas que se perfilem e sob a égide do contraditório, será discutida e debatida.” – vd. Ac. do TRE datado de 03-12-2013, proferido nos autos 289/11.0 EAEVR.E1, in dgsi.pt. 16. O juízo sobre se uma acusação é manifestamente infundada tem de assentar numa constatação objetiva, clara e incontestável da inexistência de factos que sustentem uma imputação. De facto, “só após o julgamento o tribunal pode tomar posição sobre a qualificação dos factos como integrando ou não o crime imputado” (vd. Ac. do TRP datado de 21-10-2015, proferido nos autos 658/14.3GAVFR.P1, in dgsi.pt). 17. Em conformidade, não deveria a acusação ter sido considerada infundada e rejeitada, mas recebida sendo determinado o prosseguimento dos autos. 18. Todavia, mesmo que assim não fosse e a acusação devesse ser efetivamente declarada nula e rejeitada, sempre deveria ter sido determinada a devolução da mesma ao Ministério Público. 19. De facto, estaríamos, neste caso, quanto muito, perante uma incompletude da acusação prevista no art.º 311º, n.º 3, alínea b) do Código de Processo Penal sendo possível ser suprida a mesma com a renovação do despacho de acusação nos termos do previsto no art.º 122.º, n.º 2 do Código de Processo Penal. 20. Integram ainda o âmbito da alínea b) do n.º 3 do referido art.º 311, os casos em que a atipicidade da factualidade descrita resulte da insuficiente articulação de factos a qual se retira do cotejo com o tipo de lícito em causa. Já para integrar a alínea d) os factos não poderão integrar os elementos típicos de qualquer ilícito penal. 21. Nada dispõe o art.º 311.º do Código de Processo Penal, sobre o destino dos autos em caso de rejeição da acusação, começando a jurisprudência a entender deverem os mesmos ser remetidos ao Ministério Público. 22. No Ac. do TC, n.º 246/2017 de 17-05-2017, in tribunalconstitucional.pt foi decidido: “3. Em face do exposto, na improcedência do recurso, decide-se não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea d), e 283.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes.” 23. Assim, caso se entenda que o modo de narração dos factos não esteja completo e a acusação seja rejeitada por infundada (art.º 311.º, n.º 3 alínea b) do Código de Processo Penal), deve o despacho determinar a devolução dos autos ao Ministério Público, o que não ocorreu. 24. Todavia, apesar do agora referido entendemos que, nos autos, deverá a acusação ser recebida pois, no presente caso, o juízo sobre o preenchimento dos elementos do tipo de ilícito apenas poderá ser realizado em audiência de julgamento e após a produção e apreciação da prova. 25. Em conformidade, requer-se que seja o despacho de rejeição da acusação revogado e substituído por outro que aceite a mesma determinando o prosseguimento dos presentes autos e a notificação do arguido para contestar nos termos do previsto no art.º 311.º-A do Código de Processo Penal”. Terminou requerendo dever ser julgado procedente o recurso, e assim revogado o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que determine o recebimento da acusação. O referido recurso foi admitido por despacho de 18-03-2024. Notificado o arguido, o mesmo não apresentou resposta. Foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação. I.3. Do parecer: Nesta instância, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer através do qual propugnou pela procedência do recurso, aderindo à posição assumida pelo Ministério Público em 1.ª instância. I.4. Da tramitação subsequente: Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do C.P.P., nada foi acrescentado. Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência. Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir. II. Fundamentação: II.1. Dos poderes de cognição do tribunal de recurso: Está pacificamente aceite na doutrina (cfr., por exemplo, MESQUITA, Paulo Dá, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo V, 2024, Livraria Almedina, pág. 217; POÇAS, Sérgio Gonçalves, in “Processo Penal – Quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto, Julgar, n.º 10, 2010, pág. 241; SILVA, Germano Marques da, in Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª edição, 2000, pág. 335) e jurisprudência (cfr., por exemplo, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-02-2024, processo n.º 105/18.1PAACB.S12) que, sem prejuízo do conhecimento oficioso de determinadas questões que obstem ao conhecimento do mérito do recurso (cfr., por exemplo, art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P.), são as conclusões que delimitam o seu objeto e âmbito, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19-10-2995, para fixação de jurisprudência, in Diário da República n.º 298, I Série A, págs. 8211 e segs.3). Na verdade, se o objeto do recurso constitui o assunto colocado à apreciação do tribunal de recurso e se das conclusões obrigatoriamente devem constar, se bem que resumidos, as razões do pedido (cfr. art.º 412.º, n.º 1, do C.P.P.) e, assim, os fundamentos de facto e de direito do recurso, necessariamente terão de ser as conclusões que identificam as questões que a motivação tenha antes dado corpo, de forma a agilizar o exercício do contraditório e a permitir que o tribunal de recurso identifique, com nitidez, as matérias a tratar. II.2. Da questão a decidir: A esta luz, a única questão a conhecer e decidir no âmbito do presente acórdão é a de saber se se mostra correta a decisão de rejeição da acusação deduzida nos autos por manifestamente infundada e, na afirmativa, qual o concreto fundamento, isto é, se é por a acusação não conter a narração dos factos (cfr. art.º 311.º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. b), do C.P.P.) ou se é por os factos não constituírem crime (cfr. art.º 311.º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. d), do C.P.P.) (cfr. II.4.). II.3. Ocorrências processuais com relevo para apreciar as questões objeto de recurso: Ora, com relevo para o definido objeto do recurso (cfr. II.2.), e resultante dos atos processuais a seguir assinalados, importa atentar no seguinte: II.3.A. Da acusação deduzida: No dia 19-06-2023, o Ministério Público, para julgamento em processo comum, perante tribunal singular, nos termos do artigo 16.º, n.º 3, do C.P.P., deduziu acusação contra: “AA, filho de BB e de CC, nascido a .../.../1981, solteiro, … e residente na ..., conforme TIR de fls. 114 (doravante AA), Porquanto resultam suficientemente indiciados os seguintes factos: 1. AA realiza apostas na página de internet …, tendo, para o efeito, de proceder ao pagamento dos respetivos valores através de entidades e referências de multibanco. 2. A Payshop é um serviço que permite o carregamento de telemóveis, títulos de transporte e de várias contas, como as relativas ao uso de telefone, consumo de eletricidade, de gás, de televisão, impostos, portagens e apostas, entre outros. 3. A rede Payshop compromete-se em oferecer um serviço simples, rápido e sem necessidade de o cliente utilizar cartões bancários, registos e digitar dados ou códigos. 4. Pretendendo continuar a efetuar apostas, sem efetuar o pagamento das mesmas, em data não concretamente apurada, mas certamente anterior a 10/01/2022, AA formulou um plano que lhe permitiria atingir tal objetivo, através da utilização da rede Payshop. 5. Assim, o plano, formulado por AA, passava por, na posse daquelas entidades e referências emitidas na página de internet ..., deslocar-se às lojas Payshop, solicitar o pagamento dos respetivos valores, apresentando, para o efeito, as referidas entidades e referências e encetar fuga depois de o pagamento ter sido efetuado, sem proceder à devolução, ao lojista, do respetivo valor. NUIPC 40/22.9SELSB (incorporado nos presentes autos) 6. Na concretização do referido plano, AA obteve a entidade ... e a referência ..., para pagamento de aposta realizada na página de internet .... 7. Em seguida, no dia 10/01/2022, pelas 17h40, AA deslocou-se ao estabelecimento comercial ..., sito na .... 8. Nesse momento, AA solicitou a DD, proprietária do referido estabelecimento, que efetuasse um pagamento de um seguro, no valor de 171,96€ (cento e setenta e um euros e noventa e seis cêntimos) e, em seguida, forneceu a este último a entidade ... e a referência .... 9. Em seguida, DD, com o cartão de multibanco do estabelecimento comercial, efetuou o pagamento da referida quantia, através da plataforma “MB Spot”, utilizando, para o efeito, a entidade e a referência indicadas por AA. 10. Ato contínuo, AA informou DD que se iria deslocar à sua viatura, pois o seu filho encontrava-se a chorar. 11. AA abandonou o estabelecimento comercial e encetou fuga do local, não tendo regressado nem tendo efetuado o paramento devido, no valor de 171,96€ (cento e setenta e um euros e noventa e seis cêntimos). 12. Como consequência da sua conduta, o valor, associado à entidade ... e à referência ..., foi liquidado por DD, sem que AA tivesse pago o respetivo valor. NUIPC 29/22.8PVLSB (autos principais) 13. No dia 12/01/2022, pelas 16h09, AA deslocou-se ao estabelecimento comercial ..., sito na .... 14. Nesse momento, AA solicitou a EE, funcionária do referido estabelecimento, que efetuasse três pagamentos, dois deles no valor de 31,96€ (trinta e um euros e noventa e seis cêntimos) e um deles no valor de 31,99€ (trinta e um euros e noventa e nove cêntimos), perfazendo o total de 95,91€ (noventa e cinco euros e noventa e um cêntimos). 15. Para o efeito, AA forneceu a EE: a. A entidade ... e a referência ... para pagamento do valor de 31,96€ (trinta e um euros e noventa e seis cêntimos); b. A entidade ...e a referência ... para pagamento do valor de 31,96€ (trinta e um euros e noventa e seis cêntimos); c. A entidade ... e a referência ... para pagamento do valor de 31,99€ (trinta e um euros e noventa e nove cêntimos). 16. Em seguida, EE efetuou o pagamento das quantias referidas, utilizando, para o efeito, as entidades e referências indicadas por AA. 17. Ato contínuo, AA informou EE que iria ao exterior do estabelecimento ver a sua viatura, pois tinha-a deixado mal estacionada. 18. AA abandonou o estabelecimento comercial e encetou fuga do local, não tendo regressado nem tendo efetuado o paramento devido, no valor de 95,91€ (noventa e cinco euros e noventa e um cêntimos). 19. Como consequência da sua conduta, os valores, associados às entidades … e … e às referências ..., ... e ..., foram liquidados por EE, sem que AA tivesse pago o respetivo valor. NUIPC 385/22.8PULSB (incorporado nos presentes autos) 20. No dia 10/03/2022, pelas 16h19, AA deslocou-se ao estabelecimento comercial ..., sito na .... 21. Nesse momento, AA solicitou a FF, proprietária do referido estabelecimento, que efetuasse dois pagamentos, um deles no valor de 181,57€ (cento e oitenta e um euros e cinquenta e sete cêntimos) e outro no valor de 51,72€ (cinquenta e um euros e setenta e dois cêntimos), perfazendo o total de 233,29€ (duzentos e trinta e três euros e vinte e nove cêntimos). 22. Para o efeito, AA forneceu a FF: a. A entidade ... e a referência ... para pagamento do valor de 181,57€ (cento e oitenta e um euros e cinquenta e sete cêntimos); b. A entidade ... e a referência ... para pagamento do valor de 51,72€ (cinquenta e um euros e setenta e dois cêntimos). 23. Em seguida, FF efetuou o pagamento das quantias referidas, utilizando, para o efeito, as entidades e referências indicadas por AA. 24. Ato contínuo, AA, após ter perguntado a FF qual era o valor total em dívida, informou-a de que iria à sua viatura buscar dinheiro, pois o que tinha consigo naquele momento não era suficiente. 25. AA abandonou o estabelecimento comercial e encetou fuga do local, não tendo regressado nem tendo efetuado o paramento devido, no valor de 233,29€ (duzentos e trinta e três euros e vinte e nove cêntimos). 26. Como consequência da sua conduta, os valores, associados às entidades ... e … e às referências ... e ..., foram liquidados por FF, sem que AA tivesse pago o respetivo valor. NUIPC 481/22.1PULSB (incorporado nos presentes autos) 27. No dia 26/03/2022, pelas 17h00, 10/01/2022, AA deslocou-se ao estabelecimento comercial ..., sito no .... 28. Nesse momento, AA solicitou a GG, proprietário do referido estabelecimento, que efetuasse um pagamento no valor de 211,93€ (duzentos e onze euros e noventa e três cêntimos) e, em seguida, forneceu a este último a entidade ... e a referência …. 29. Em seguida, GG efetuou o pagamento da referida quantia, utilizando, para o efeito, a entidade e a referência indicas por AA. 30. Ato contínuo, AA informou GG que se iria deslocar à sua viatura, para ver o seu filho e que já regressava. 31. No entanto AA abandonou o estabelecimento comercial e encetou fuga do local, não tendo regressado nem tendo efetuado o paramento devido, no valor de 211,93€ (duzentos e onze euros e noventa e três cêntimos). 32. Como consequência da sua conduta, o valor, associado à entidade ... e à referência ..., foi liquidado por GG, sem que AA tivesse pago o respetivo valor. 33. AA, ao atuar como descrito, fez suas todas as quantias resultantes dos pagamentos efetuados nos estabelecimentos comerciais ..., ..., ... e ..., no total de 713,09€ (setecentos e treze euros e nove cêntimos), que utilizou para realizar apostas no site .... 34. Ao atuar como descrito, AA agiu com o propósito concretizado de criar a ilusão, junto de cada um dos ofendidos ou dos funcionários dos respetivos estabelecimentos comerciais, de que pretendia proceder ao pagamento das quantias devidas, quando, na realidade, planeara encetar fuga dos ditos estabelecimentos sem liquidar as referidas quantias. 35. De forma a alcançar o seu objetivo, o que quis e conseguiu, AA simulou deslocações ao exterior de cada um dos estabelecimentos comerciais, referindo que ia buscar as quantias em numerário, com o intuito concretizado de criar confiança nos ofendidos e nos funcionários das respetivas lojas, de que iria regressar, apesar de tal não corresponder à realidade. 36. Ao agir de tal modo, AA levou os ofendidos ou os funcionários dos estabelecimentos comerciais a efetuarem os pagamentos solicitados pelo mesmo e que o beneficiavam, tendo atuado com o propósito concretizado de, em cada uma dessas situações, obter enriquecimento patrimonial ilegítimo e causar aos ofendidos os respetivos prejuízos, bem sabendo que atuava contra a vontade de todos eles. 37. AA agiu como descrito de forma livre, voluntária e consciente. 38. AA atuou, sabendo que as suas condutas eram proibidas e criminalmente punidas. Pelo exposto, com as condutas descritas, AA cometeu dolosamente (artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal), como autor material (artigo 26.º do Código Penal), na forma consumada e em concurso efetivo (artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal) quatro (4) crimes de burla, previstos e punidos pelo artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal. iii – Da prova: a. Testemunhal: (NUIPC 40/22.9SELSB – incorporado nos presentes autos) a. HH, melhor identificada a fls. 12 e 13; b. DD, melhor identificada a fls. 14 e 15; (NUIPC 29/22.8PVLSB – autos principais) c. EE, melhor identificado a fls. 18 e 19; d. II, melhor identificado a fls. 20 e 21; (NUIPC 385/22.8PULSB – incorporado nos presentes autos) e. JJ, melhor identificada a fls. 22; (NUIPC 481/22.1PULSB – incorporado nos presentes autos) f. GG, melhor identificado a fls. 18 e 19; b. Documental: (NUIPC 40/22.9SELSB – incorporado nos presentes autos) a. Talão de pagamento – fls. 7; b. Aditamento – fls. 9 a 11; c. Auto – fls. 39 e 40; (NUIPC 29/22.8PVLSB – autos principais) d. ... – fls. 8; e. Aditamento – fls. 17; f. Auto de visionamento – fls. 40 a 44; g. Informações prestadas pela ... – fls. 79 a 85; (NUIPC 385/22.8PULSB - incorporado nos presentes autos) h. Folhas de suporte – fls. 4 e 5; i. Aditamento – fls. 24; j. Auto – fls. 27 e 28; (NUIPC 481/22.1PULSB – incorporado nos presentes autos) k. Cópia de talão de pagamento e papel manuscrito – fls. 8; l. Aditamento – fls. 10; m. Auto de reconhecimento pessoal – fls. 24 e 25.” II.3.B. Da decisão recorrida: Não tendo sido requerida a abertura de instrução, foram os autos remetidos e distribuídos para a fase de julgamento, tendo sido por proferido o despacho recorrido, que é do seguinte teor: “Registe e autue como processo comum, com intervenção do Tribunal singular. * O Tribunal é competente e o Ministério Público tem legitimidade para deduzir acusação. Ressalvado o quadro de apreciação que segue, o processo mostra-se isento de nulidades que o invalidem totalmente, inexistindo outras excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer. A acusação imputa a prática ao arguido de quatro crimes de burla do artigo 217º do CP. Para tanto descreve em suma que o arguido recorria a lojas PayShop onde solicitava o pagamento de apostas online que efectuara indicando para o efeito a respectiva entidade e referência para pagamento. Tais pagamentos eram efectuados pelo funcionário da loja que o atendia ao que se seguia a fuga do local por parte do arguido, sem pagar qualquer valor, como era sua intenção inicial. O arguido ausentava-se do local com a desculpa de ter de ir ao carro buscar dinheiro, de ter de ir ver o filho ao carro, de ter de ir ver o carro que estava mal-estacionado, nunca retornando ao local. No entanto, tais desculpas ocorriam sempre após o logista ter concretizado os pagamentos pretendidos pelo arguido. Daí que no caso dos autos se considere que não se verificam os elementos típicos de crime de burla, não estando o serviço em apreço abrangido pela burla prevista no artigo 220º do CP e não se podendo enquadrar a conduta do arguido como típica do furto do artigo 203º do CP. Trata-se na verdade de prestações de serviços efectuadas cujo preço não foi pago por o devedor se ter colocado em fuga. São elementos constitutivos (objetivos e subjetivos) do crime de burla: a) - o emprego de astúcia pelo agente; b) - o erro ou engano da vítima devido ao emprego da astúcia; c) - a prática de actos pela vítima em consequência do erro ou engano em que foi induzida; d) - o prejuízo patrimonial da vítima ou de terceiro resultante da prática dos referidos atos; e) - a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo. Um dos elementos do crime de burla é, pois, que o erro ou engano da vítima sejam provocados pelo agente (com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo) mediante o emprego de astúcia. Este ilícito integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem que ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento e que se traduza na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva, após indução em erro, a praticar actos concretos de que resultem prejuízos patrimoniais próprios ou alheios. O erro do sujeito passivo tem que ser provocado astuciosamente ou mediante um artifício fraudulento; o que o que se deve ter por “astúcia” não tem sido unânime, todavia, “quer se entenda que a mentira da astúcia tem de ser acompanhada da realização de actos exteriores destinados a dar-lhe maior credibilidade, quer se aceite que, consoante o caso concreto, é bastante uma mentira qualificada, que dê ao agente um genuíno domínio do erro, este não pode resumir-se ao convencimento de que a outra parte vai cumprir a sua prestação no contrato” (acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10/3/2008, relatado por Fernando Monterroso, proc. número 2367/07-1, in www.dgsi.pt.). Nas situações da acusação não estamos perante qualquer disposição patrimonial efectuada em razão de uma fraude astuciosamente causada, não sendo a simples mentira e promessa do pagamento ou o anúncio deste, suficientes para integrar tal elemento típico da burla, mas antes de um oportunista que perante o serviço prestado abandona o local, sem o pagar, dizendo volto já. Daí que os ilícitos descritos na acusação sejam ilícitos do foro civilístico, mas não do foro penal. Assim, temos que concluir que a factualidade da acusação não constitui a prática de qualquer crime. Neste contexto, temos que na fase do julgamento, ao nível do saneamento do processo e em caso de não ter havido instrução, avulta a regra contida no artigo 311.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal, nos termos da qual «se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada (…)», sendo que nos termos do n.º 3 do mesmo preceito, a acusação se considera manifestamente infundada, para além do mais, se os factos não constituírem crime [cfr. alínea d)]. Pelo exposto, ao abrigo do artigo 311.º, n.ºs 2, alínea a) e 3, alínea d) do Cód Proc. Penal, rejeito, por manifestamente infundada, a acusação deduzida. Notifique. Sem custas.” II.4. Da apreciação da questão objeto do recurso: Cumpre agora analisar a questão suscitada que reside em saber se se mostra correta a decisão de rejeição da acusação deduzida nos autos por manifestamente infundada e, na afirmativa, qual o concreto fundamento, isto é, se é por a acusação não conter a narração dos factos (cfr. art.º 311.º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. b), do C.P.P.) ou se é por os factos não constituírem crime (cfr. art.º 311.º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. d), do C.P.P.). Como é sabido, face à estrutura acusatória do processo penal português (cfr. art.º 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa – C.R.P.), o objeto deste é o objeto da acusação, no sentido de que é esta que fixa os limites da atividade cognitiva e decisória do tribunal, estando, pois, como ponto de partida, vinculado ao alegado na acusação e à pretensão nela também formulada (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13-10-2011, processo n.º 141/06.0JALRA.C1.S14). Ora, se é a acusação que, à partida, delimita o objeto do processo penal, são os factos dela constantes, e imputados a um concreto arguido, que fixam o campo delimitador dentro do qual se tem de mover a investigação e prova por parte do tribunal (cfr. art.º 339.º, n.º 4, do C.P.P.). Por outro lado, factos serão todas ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior (cfr. REIS, Alberto dos, in Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 4.ª edição-reimpressão, Coimbra Editora, 1985, págs. 206 e 207), pois só estes são apreensíveis de modo suficiente para serem sujeitos a prova idónea e, assim, poderem ser contraditados e deles se poder defender o arguido. Por isso mesmo a acusação deve conter, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada (cfr. art.º 283.º, n.º 3, al. b), do C.P.P.). Recebidos os autos no tribunal, deve o juiz presidente do tribunal de julgamento proceder ao saneamento dos autos, visando-se, desde logo, impedir o seu prosseguimento para a audiência de julgamento por se verificar causa que possa obstar ao conhecimento de mérito e de que possa conhecer-se no estado em que se encontra o processo, evitando-se, assim, a prática de atos inúteis, proibidos por lei (cfr. art.º 130.º do Código de Processo Civil – C.P.C. – ex vi art.º 4.º do C.P.P.). Quando não tenha sido requerida a fase facultativa de instrução, o juiz deve rejeitar a acusação manifestamente infundada (cfr. art.º 311.º, n.º 2, al. a), do C.P.P.), o que se verificará quando a acusação deduzida: a) Não contenha a identificação do arguido; b) Não contenha a narração dos factos; c) Não indique as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d) Os factos não constituírem crime (cfr. art.º 311.º do C.P.P.). Assim, a partir da enumeração taxativa da lei processual penal, constata-se que a rejeição da acusação, por manifestamente infundada, pode ter lugar por vícios formais (cfr. art.º 311.º, n.º 3, als. a) a c), do C.P.P.) ou substanciais (cfr. art.º 311.º, n.º 3, al. d), do C.P.P.). No presente caso, contendo a acusação deduzida a identificação do arguido, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis e as provas que a fundamentam (cfr. II.3.A.), de entre os motivos que permitem ao juiz que recebe a acusação caracterizar tal peça processual como manifestamente infundada, apenas poderão estar em causa os estabelecidos nas als. b) e d), do n.º 3, do art.º 311.º do C.P.P., ou seja, por não conter a narração dos factos ou por os factos narrados não constituírem crime. A causa de rejeição estabelecida na al. b), do n.º 3, do art.º 311.º, do C.P.P. tem que ser interpretada em conjugação com al. b), do n.º 3, do art.º 283.º, do C.P.P. Ora, a narração dos factos na acusação tem que ser lógica e coerente com o tipo legal de crime imputado, contendo os elementos objetivos e subjetivos do mesmo que, na parte em que coincidam, devem ser correspondentes ou congruentes entre si. Assim, o que está em causa no apontado motivo é a mera incompletude ou imperfeição da acusação por não conter, de forma mais ou menos extensa, os factos de ordem objetiva e subjetiva, que integram os elementos do tipo legal imputado ao arguido, com o detalhe possível em cada caso concreto, ou outros factos essenciais para a aplicação ao arguido de uma dada pena ou medida de segurança, como sejam os relativos ao preenchimento de causas de punibilidade ou procedibilidade, circunstância agravante comum (reincidência) ou outros de que dependa a responsabilidade penal do arguido e a consequente aplicação da reação criminal cabida no caso concreto (cfr. LATAS, António João, in Comentário Judiciário do Processo Penal, Tomo IV, Almedina, 2022, pág. 57). Por seu turno, na causa de rejeição estabelecida na al. d), do n.º 3, do art.º 311.º, do C.P.P. preveem-se os casos de inviabilidade substantiva da acusação, em virtude de os factos nela narrados, relativamente aos quais não se verifica qualquer omissão ou imperfeição, não integrarem a prática do crime indicado na acusação ou qualquer outro (cfr. LATAS, António João, in Comentário Judiciário do Processo Penal, Tomo IV, Almedina, 2022, pág. 57). No presente caso, pelo tribunal recorrido foi formulado um juízo que concluiu pela própria atipicidade das condutas imputadas ao arguido e, assim, rejeitou a acusação, por manifestamente infundada, por considerar que os factos nela narrados não constituíam crime (cfr. art.º 311.º, n.º 3, al. d), do C.P.P.) (cfr. II.3.B.). Por seu turno, o Ministério Público entende que não existe fundamento para a rejeição da acusação ou, caso assim não se entenda, que o fundamento deve ser o da acusação não conter a narração dos factos (cfr. art.º 311.º, n.º 3, al. b), do C.P.P.) (cfr. I.2.). De facto, os dois motivos de rejeição da acusação referidos têm consequências processuais distintas. No caso de a acusação não conter a narração dos factos (cfr. art.º 311.º, n.º 3, al. b), do C.P.P.), estando apenas em causa um vício formal, a rejeição da acusação com tal fundamento impõe a consequente remessa do processo ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes, nomeadamente para que este possa, querendo, reformular a acusação, com a dedução de uma nova onde seja suprida a deficiência detetada, sendo que, no caso de tal vir a acontecer, se deverão repetir unicamente os atos processuais posteriores à acusação que se considerem afetados por aquela rejeição, aproveitando-se todos os demais que possam ser salvos do efeito do vício detetado (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 10-04-2018, processo n.º 1559/16.6GBABF.E15; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 06-03-2012, processo n.º 790/10.2TAABF.E16). De facto, não se tendo iniciado a fase de julgamento, tal solução é a mais adequada ao princípio do aproveitamento dos atos meramente imperfeitos (cfr. art.º 122.º ex vi art.º 4.º do C.P.P.) e ao interesse público na perseguição e sujeição a julgamento dos ilícitos penais indiciados (cfr. CORREIA, João Conde, in Comentário Judiciário do Processo Penal, Tomo III, Almedina, 2021, págs. 1163 a 1164; LATAS, António João, in Comentário Judiciário do Processo Penal, Tomo IV, Almedina, 2022, págs. 53 a 58). Nenhum cidadão compreenderia que o poder punitivo do Estado e a realização da justiça material pudessem ficar por realizar em virtude de erros, lapsos e omissões suscetíveis de serem reparáveis, desde que, claro está, seja assegurado ao arguido um julgamento justo e com todas as garantias de defesa (cfr. acórdão do tribunal da Relação de Guimarães, de 12-10-2020, processo n.º 2065/19.2T9VCT.G17). Obviamente que a devolução dos autos ao Ministério Público, como não poderia deixar de ser, não vincula este a qualquer atitude processual futura por força do despacho judicial de rejeição, pelo que apenas procederá à correção do vício se o quiser e, no seu entender, o puder fazer. Acresce que, embora referindo-se ao art.º 311.º, n.º 3, al. d), do C.P.P., o Tribunal Constitucional já teve oportunidade de não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação de tal preceito legal com os arts. 283.º e 311.º, n.º 2, al. a), do C.P.P., em confronto com o disposto no art.º 29.º, n.º 5, da C.R.P., na interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 246/2017, de 17-05-20178). Por seu turno, já no caso de os factos narrados na acusação não constituírem crime (cfr. art.º 311.º, n.º 3, al. d), do C.P.P.), estando em causa um vício substancial, sendo os factos indiciados irrelevantes do ponto de vista jurídico-penal, a rejeição da acusação com tal fundamento impõe o arquivamento definitivo do processo (cfr. CORREIA, João Conde, in Comentário Judiciário do Processo Penal, Tomo III, Almedina, 2021, págs. 1163 a 1164; LATAS, António João, in Comentário Judiciário do Processo Penal, Tomo IV, Almedina, 2022, págs. 53 a 58). Ora, para se concluir pela verificação de fundamento para a rejeição da acusação, importa analisar o tipo legal do crime em causa. Comete o crime de burla quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial (cfr. art.º 217.º, n.º 1, do C.P.). O bem jurídico que se visa tutelar reside no património globalmente considerado e não a lealdade, transparência, boa-fé, verdade das transações ou a confiança da comunidade nessa mesma lealdade, transparência, boa-fé ou verdade das transações, isoladamente ou em conjunto com o património (cfr. COSTA, António Manuel de Almeida, in A Burla no Código Penal Português, Livraria Almedina, 2020, pág. 16). O crime de burla constitui um crime de dano uma vez que só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efetivo no património do sujeito passivo da infração ou de terceiro, mesmo que não ocorra efetivo enriquecimento ilegítimo do agente ou de terceiro (cfr. COSTA, António Manuel de Almeida, in A Burla no Código Penal Português, Livraria Almedina, 2020, pág. 17). Em sentido jurídico-penal, deve entender-se por património o conjunto das situações ou posições com valor ou utilidade económica, detida por uma pessoa e cuja disponibilidade e fruição por banda do sujeito passivo o ordenamento jurídico proteja e tutele ou, pelo menos, não desaprove (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo, in “Crime de emissão de cheque sem provisão”, Coletânea de Jurisprudência, 1992, Tomo III, pág. 66). A burla integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma particular forma de comportamento. Traduz-se ela na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar atos de que resultam prejuízos próprios ou alheios (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15-05-2002, processo n.º 1318/029). Porém, não basta o simples emprego de um meio enganoso, tornando-se necessário que ele consubstancie a causa efetiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo. Por seu turno, também não basta a simples verificação do estado de erro sendo necessário que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, dos atos de que decorre o prejuízo patrimonial (cfr. COSTA, António Manuel de Almeida, in A Burla no Código Penal Português, Livraria Almedina, 2020, pág. 39). Assim, deverá, pois, existir um duplo nexo de imputação objetiva entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de atos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio) e, depois, entre os últimos e a efetiva verificação do prejuízo patrimonial. A qualquer dos momentos em que se desdobra o duplo nexo de imputação objetiva subjazem os pressupostos da chamada teoria da adequação (cfr. art.º 10.º, n.º 2, do C.P.) pelo que a sua verificação depende das circunstâncias do caso, aí se incluindo as características do burlado (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20-12-2006, processo n.º 06P338310). Exige a lei que o erro do sujeito passivo tem que ser provocado astuciosamente. Assim, a conduta do agente tem de comportar a manipulação de outra pessoa, caracterizando-se por uma sagacidade ou penetração psicológica que combina a antecipação das reações do sujeito passivo com a escolha dos meios idóneos para conseguir o objetivo em vista. Longe de envolver, de forma inevitável, a adoção de processos rebuscados ou engenhosos, aquela sagacidade comporta uma regra de economia de esforço, limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima, pelo que a adequação dos meios empregues, atentas as particularidades do caso, pode encontrar o ponto ótimo no menos sofisticado dos procedimentos. Ora, é numa tal adequação de meios que radica a inteligência ou astúcia que preside ao crime da burla, sendo que só tal perspetiva se harmoniza com o entendimento de que a idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente se afere tomando em consideração as características do concreto burlado (cfr. COSTA, António Manuel de Almeida, in A Burla no Código Penal Português, Livraria Almedina, 2020, págs. 41 e segs.). Tendo presente que a burla é um crime com participação da vítima uma vez que é o próprio sujeito passivo que pratica os atos de diminuição patrimonial, a burla integra, em último termo, uma hipótese de autolesão estruturalmente análoga às situações de autoria mediata em que o domínio do facto do homem de trás deriva precisamente do estado de erro do executor. Ora, também no caso da burla se exige um domínio do erro como pressuposto da responsabilização do agente pelo crime consumado, sendo em tal domínio, na medida em que exprime a adequação do comportamento do agente às características do caso concreto, que terá de ancorar o fundamento da imputação do resultado à conduta, esgotando, pois, o conteúdo útil a dar ao advérbio “astuciosamente”. Contudo, apesar da acentuação da vertente solidarista do Estado de direito social, persiste a convicção de que, em primeira linha, compete a cada pessoa cuidar dos seus interesses, assumindo a obrigação de salvaguardar bens jurídicos alheios um carácter subsidiário e residual. Ora, nas relações patrimoniais, em particular no mundo dos negócios, no contexto de uma economia de mercado, assente nos mecanismos da livre concorrência, o sucesso liga-se, muitas vezes, ao superior conhecimento do sujeito acerca das características do concreto sector e, assim, em termos comparativos, ao erro ou ignorância dos seus competidores. Dentro de certos limites, o domínio do erro consubstancia, por isso, um elemento constitutivo ou intrínseco do regular funcionamento de uma economia de mercado, pelo que o correspondente exercício se apresenta conforme à ordem jurídica, nunca podendo integrar um ilícito criminal. Assim sendo, nem todo e qualquer efetivo domínio do erro implica a punição do agente a título de burla, mas tão só o domínio do erro jurídico-penalmente relevante. O limite da relevância do domínio do erro no quadro do crime de burla deve ser traçado pelo princípio da boa-fé, isto é, pelo critério da lealdade em face dos interesses legítimos da outra parte que deve acompanhar as relações das pessoas no comércio jurídico e, assim, pelo que se apresenta como permitido ou proibido à luz do princípio da boa-fé. Deste modo, só um domínio do erro que viole os ditames da boa-fé e que, assim, reflita uma deslealdade inadmissível no comércio jurídico poderá consubstanciar, desde que preenchidos os demais pressupostos, o desvalor característico do crime de burla. É comum distinguirem-se três modalidades do crime de burla. A primeira ocorre quando o agente provoca o erro de outrem descrevendo-lhe, por palavras ou declarações expressas, precisas e inequívocas (sob a forma oral, escrita ou gestual), uma falsa representação da realidade. A segunda verifica-se quando o erro é ocasionado por atos concludentes, isto é, condutas que não consubstanciam, em si mesmas, qualquer declaração, mas que se mostram adequadas, de acordo com as regras da experiência e dos parâmetros ético-sociais vigentes no sector da atividade, a criar uma falsa convicção sobre certo facto, seja ele passado, presente ou futuro. Em terceiro lugar, refere-se a burla por omissão na qual o agente não provoca o engano do sujeito passivo, limitando-se a aproveitar-se do estado de erro em que ele já se encontra (cfr. COSTA, António Manuel de Almeida, in A Burla no Código Penal Português, Livraria Almedina, 2020, pág. 49). Dado que, na burla por atos concludentes, a produção do engano do sujeito passivo resulta de uma deficiência de esclarecimento acerca do significado ou alcance da conduta do agente, torna-se muitas vezes difícil distingui-la da burla por omissão. O critério de distinção passa por integrar a burla por atos concludentes apenas os casos em que a conduta do sujeito ativo cria, assegura ou aprofunda o engano da vítima, restringindo-se a burla por omissão às hipóteses onde, na formação do erro, não intervém qualquer contributo positivo do agente, sendo que só se poderá falar desta quando ocorra a violação de um dever de garante pela não verificação do resultado (cfr. COSTA, António Manuel de Almeida, in A Burla no Código Penal Português, Livraria Almedina, 2020, págs. 50 e 51). Contudo, como o crime de burla constitui um crime material ou de resultado, a sua consumação depende da verificação de um evento que se traduz na saída dos bens ou valores da esfera de “disponibilidade fáctica” do legítimo detentor dos mesmos ao tempo da infração, independentemente de se verificar ou não um enriquecimento do agente ou de terceiro (cfr. COSTA, António Manuel de Almeida, in A Burla no Código Penal Português, Livraria Almedina, 2020, pág. 18). Como elementos subjetivos, o crime de burla exige o dolo, em qualquer uma das suas modalidades de dolo direto, necessário ou eventual (cfr. art.º 14.º do C.P.). Assim, é necessário que se demonstre o conhecimento (elemento intelectual) e vontade (elemento volitivo) por parte do agente de, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem ou causem a outra pessoa prejuízo patrimonial, demonstrando, com a sua execução, uma atitude pessoal contrária ou indiferente ao dever-ser jurídico-penal (elemento emocional) (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa, in Direito Penal, Lições da cadeira de Direito Penal (3.º ano), 1996, pág. 268/9). Tratando-se a burla de um delito de intenção, no seu recorte subjetivo, este tipo legal de crime revela ainda uma intencionalidade específica que deve presidir à atuação do agente, isto é, a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, que mais não é do que um plus que acresce ao dolo genérico referido (cfr. COSTA, António Manuel de Almeida, in A Burla no Código Penal Português, Livraria Almedina, 2020, pág. 58). Ora, lendo o despacho de acusação, não sendo descrito existir qualquer dever de garante pela não verificação dos resultados que indiciariamente ocorreram, constata-se que, a nível do comportamento imputado ao arguido, os factos objetivos constantes daquele despacho não permitem concluir pela utilização, por parte deste, de um qualquer meio enganoso capaz de criar, assegurar ou aprofundar um erro em cada uma das quatro pessoas a que se dirigiu que, por seu turno, tenha levado cada uma delas a efetuar o pagamento solicitado e, assim, a uma diminuição do património (alheio), idóneo a causar a efetiva verificação do prejuízo patrimonial ocorrido em cada uma das quatro ocasiões descritas. Na verdade, da factualidade imputada do ponto de vista objetivo, parece até resultar que, em cada uma das quatro situações, tal engano apenas ocorreu após o pagamento solicitado ter já ocorrido (cfr. II.3.A.). No entanto, apesar da necessária congruência entre os elementos objetivos e os elementos subjetivos do crime, na parte em que coincidam, o certo é que no despacho de acusação, na imputação subjetiva, que não deixa de ter um substrato objetivo vincado pela utilização do adjetivo “concretizado”, acaba por se imputar ao arguido, em cada uma das quatro situações, a criação de um meio enganoso que se afirma ter sido capaz de criar um erro em cada uma das quatro pessoas a que ele se dirigiu que, por seu turno, levou cada uma delas a efetuar o pagamento solicitado e, assim, a uma diminuição do património (alheio), idóneo a causar a efetiva verificação do prejuízo patrimonial (cfr. II.3.A.). Deste modo, é evidente que a narração dos factos efetuada na acusação deduzida não é lógica nem coerente, sendo, pois, contraditória a nível dos factos que descreve, o que a torna manifestamente imperfeita a nível da narração dos factos. Deste modo, existe fundamento para a rejeição da causação, embora distinto do apontado pelo tribunal recorrido (cfr. art.º 311.º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. b), do C.P.P.). Impõe-se, pois, o provimento parcial ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando o despacho recorrido na parte em que rejeitou a acusação deduzida nos autos contra o arguido, ainda que com fundamento na al. b), do n.º 3, do art.º 311.º, do C.P.P. e não na al. d), do mesmo preceito legal, como decidido em 1ª instância, ordenando-se que, em consequência da rejeição da acusação, os autos sejam devolvidos ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes, nomeadamente para que este possa, querendo, reformular a acusação, com a dedução de uma nova onde seja suprida a deficiência detetada. No caso de tal vir a acontecer, relativamente aos atos processuais posteriores à acusação de 19-06-2023, deverão repetir-se unicamente aqueles que se consideram dependentes dessa acusação rejeitada e afetados por esta rejeição, ou seja, a notificação do arguido e da sua defensora, bem como a notificação aos denunciantes com faculdade de se constituírem assistentes e a quem tenha manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização civil nos termos do artigo 75.º do C.P.P., aproveitando-se os demais, nomeadamente a distribuição, caso se mantenha a mesma forma de processo. II.5 Das custas: Não há lugar a custas, uma vez que o recorrente é o Ministério Público que delas está isento (cfr. art.º 522.º, n.º 1, do C.P.P.). III. Decisão: Julga-se parcialmente procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência: - mantém-se o despacho recorrido na parte em que rejeitou a acusação por a considerar manifestamente infundada, nos termos do art.º 311.º, n.º 2, al. a), do C.P.P.; - revoga-se o despacho recorrido quanto ao concreto fundamento para a rejeição da acusação e, em substituição, declara-se que o mesmo reside na circunstância de a acusação não conter a narração de factos prevista no art.º 311.º, n.º 3, al. b), do C.P.P.; e - ordena-se a devolução do processo ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes, nomeadamente que este possa, querendo, reformular a acusação, com a dedução de uma nova onde seja suprida a deficiência detetada, sendo que, no caso de tal vir a acontecer, relativamente aos atos processuais posteriores à acusação de 19-06-2023 se deverão repetir unicamente aqueles que se consideram dependentes dessa acusação rejeitada e afetados por esta rejeição, ou seja, a notificação do arguido e da sua defensora, bem como a notificação aos denunciantes com faculdade de se constituírem assistentes e a quem tenha manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização civil nos termos do artigo 75.º do C.P.P., aproveitando-se os demais, nomeadamente a distribuição, caso se mantenha a mesma forma de processo. Sem custas. Lisboa, 05-11-2024 Pedro José Esteves de Brito João Grilo Amaral João António Filipe Ferreira ______________________________________________________ 1. https://julgar.pt/wp-content/uploads/2015/10/021-037-Recurso-mat%C3%A9ria-de-facto.pdf 2. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/458ff4110b557ba080258ac5002d2825?OpenDocument 3. https://files.dre.pt/1s/1995/12/298a00/82118213.pdf 4. http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/4c71e1e1b5e0fb9e80257937002c92c1?OpenDocument 5. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/-/B1405B9AE6808E188025827B002D2A3C 6. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/72d033c599fcdbf480257de10056f934?OpenDocument 7. https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/3a1cb347cbfdcf6b80258607004a7949?OpenDocument&Highlight=0,outubro,2020 8. https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20170246.html 9. https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/0fdd0aa4bad15aff80256bcd00475da3?OpenDocument 10. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a9ef63c0027e4e6e802572a7003b3acd?OpenDocument |