Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
3069/20.8T8FAR.E1
Relator: RICARDO MIRANDA PEIXOTO
Descritores: INTERVENÇÃO ACESSÓRIA
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
INDEMNIZAÇÃO AO LESADO
OFENSAS CORPORAIS GRAVES
DANO BIOLÓGICO
RESPONSABILIDADE CIVIL DO COMITENTE
Data do Acordão: 02/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Tem legitimidade para recorrer da decisão condenatória do demandado principal, o interveniente acessório como titular de interesse na improcedência da pretensão, directamente afectado pela decisão do pedido efectuado pelo autor, na medida em que a sucumbência do demandado se repercute, através dos efeitos do caso julgado, nas questões de que dependa o ulterior exercício do direito de regresso.
II. Se assim não fosse, o interveniente acessório ficaria impedido de discutir em recurso os pressupostos do direito à indemnização do lesado e a fixação do respectivo montante, essenciais do direito de regresso que contra si viesse a ser exercido ulteriormente.
III. A responsabilidade do comitente subsiste, ainda que o comissário proceda intencionalmente ou contra as instruções do primeiro, quando a sua actuação se compreenda no quadro geral da competência ou dos poderes conferidos ao dito comissário.
IV. Inscreve-se quadro geral de competência conferida pela comitente para vigiar as instalações de um estabelecimento comercial onde decorria um evento e velar pela segurança dos respectivos participantes, a conduta do comissário que, não estando autorizado a fazer uso da força para o efeito, agrediu o demandante no seguimento de uma discussão pelo facto deste estar a obstruir a passagem de veículos no acesso ao estabelecimento.
V. O dano biológico derivado de incapacidade geral permanente, é susceptível de justificar a indemnização por danos patrimoniais futuros, independentemente de o mesmo se repercutir na vertente do respectivo rendimento salarial, já que constitui um dano de esforço, porquanto o sujeito para conseguir desempenhar as mesmas tarefas e obter o mesmo rendimento, necessitará de um maior empenho, de um estímulo acrescido.
VI. Constando da sentença os factos de que depende o arbitramento da indemnização do dano resultante da perda de capacidade de ganho futura, decorrente do défice funcional permanente, este deve ser o principal critério de cálculo da vertente patrimonial do “dano biológico”.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Apelação 3069/20.8T8FAR.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Central Cível de Faro - Juiz 2
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SUMÁRIO (artigo 663.º, n.º 7, do CPC): (…)

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, sendo
Relator: Ricardo Miranda Peixoto;
1º Adjunto: Manuel Bargado
2º Adjunto: Filipe Aveiro Marques
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I. RELATÓRIO
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A.
(…) propôs a presente acção declarativa de condenação com processo comum contra (…) e “(…) – Prevenção e Segurança, Lda.”, pedindo que os Réus sejam condenados, solidariamente, a pagar-lhe a quantia global de € 415.011,95, da qual € 28.100,00 a título de danos patrimoniais e € 386.911,95 a título de danos morais, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento.
Alega para o efeito que sofreu ferimentos na origem dos danos patrimoniais e morais cuja reparação peticiona, decorrentes de agressão física provocada pelo 1ª Réu, vigilante a exercer funções na 2ª Ré, a qual é solidariamente responsável pelos danos causados ao Autor no exercício da sua atividade profissional, nos termos do artigo 500.º do Código Civil.
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B.
Regulamente citado, o Réu (…) não deduziu contestação, mas constituiu mandatário nos autos.
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C.
A Ré “(…) – Prevenção e Segurança, Lda.” contestou, excepcionando a prescrição do direito invocado pelo Autor e impugnando a alegação de que o 1º Réu agiu no exercício das suas funções de vigilante, bem como os danos peticionados.
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D.
Admitida a intervenção acessória provocada da Generali Seguros, SA, seguradora com quem a Ré “(…) – Prevenção e Segurança, Lda.” celebrou um contrato de seguro de responsabilidade civil da sua atividade, aquela foi citada e deduziu contestação invocando a prescrição do direito do Autor e impugnando a existência de relação de comissão entre a 2ª e 1º Réus, bem como, por desconhecimento, a restante factualidade alegada pelo Autor.
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E.
O Instituto de Segurança Social, IP - Centro Distrital de Faro deduziu pedido de reembolso contra os Réus, no valor de € 324,04 correspondente dos subsídios de doença pagos ao Autor entre 26 de Junho de 2016 e 2 de Agosto de 2016, na sequência dos ferimentos provocados pelo 1º Réu, acrescido de juros de mora desde a notificação até integral pagamento.
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F.
A interveniente acessória Generali Seguros, SA apresentou contestação ao pedido de reembolso do Instituto de Segurança Social, IP – Centro Distrital de Faro, invocando a prescrição do pedido de reembolso, tendo esta pugnado pela improcedência de tal prescrição.
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G.
Foi proferido despacho-saneador que fixou o valor da acção, julgou improcedentes as excepções dilatórias da ineptidão da petição inicial e da ilegitimidade passiva da 2ª Ré, bem como indicou o objecto do litígio e os temas da prova.
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H.
O Autor reduziu o pedido em € 170.000,00 no que concerne aos danos morais, nos termos do artigo 265.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
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I.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que conheceu da matéria de facto e de direito, concluindo com o seguinte dispositivo:
“(…) julga-se parcialmente procedente a presente ação e, em consequência, decide-se:
a) Condenar os Réus (…) e (…) – Prevenção e Segurança, Lda. a pagarem solidariamente ao Autor (…) a quantia total de € 104.500,00, sendo € 4.500,00 a título de danos patrimoniais futuros e € 100.000,00 a título de danos morais, estando englobado neste valor o dano biológico na sua vertente não patrimonial, acrescida de juros de mora desde o dia seguinte à prolação da sentença até integral pagamento, às taxas sucessivamente em vigor para os juros civis, absolvendo-os do demais peticionado.
b) Condenar os Réus (…) e “(…) – Prevenção e Segurança, Lda.” a pagarem ao Instituto de Segurança Social, IP – Centro Distrital de Faro a quantia de € 324,04, acrescida de juros de mora desde a notificação do pedido de reembolso à Ré até integral pagamento, às taxas sucessivamente em vigor para os juros civis. (…)”
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J.
Inconformada com o decidido, a Ré “(…)” interpôs o presente recurso de apelação.
Concluiu as suas alegações nos seguintes termos (transcrição parcial sem itálico e negrito da origem, das conclusões aperfeiçoadas):
“(…)
NULIDADE POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
A. Na fixação do montante indemnizatório, o Tribunal a quo não procedeu a qualquer fundamentação justificativa, nem invocou jurisprudência relevante que tenha decidido situações semelhantes à dos autos, como é sua incumbência.
B. E a subsunção dos factos dados por provados pelo Tribunal a quo ao valor fixado de € 100.000,00 (cem mil euros) não é uma operação automática, por via da aplicação de uma disposição legal específica e, ainda que se fosse, o Tribunal a quo teria sempre a obrigação de incluir tal norma na Sentença Recorrida a fundamentar – violando assim o artigo 607.º, n.º 3, do CPC.
C. O Tribunal a quo não cumpriu o ónus de fundamentação a que estava adstrito, em clara violação dos deveres de fundamentação que sobre ele pendem, devendo a Sentença Recorrida ser declarada nula nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC, o que deve ser reconhecido pelo Tribunal ad quem.
IMPUGNAÇÃO DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO E DA REAPRECIAÇÃO DA PROVA GRAVADA
D. Caso não seja procedente a nulidade invocada, a Recorrente impugna os Factos Provados 1), 4), 8), 10), 11), 16), 18 e 26), da matéria dada por provada que deveriam ter sido dados por não provados, nos termos do artigo 640.º do CPC.
IMPUGNAÇÃO DO FACTO PROVADO N.º 1)
E. Da visualização das imagens de videovigilância (Doc. 2 – Ficheiro de Vídeo 02:30:00 a 02:45:00 junto a 17.07.2023 – ref. ª Citius 11509960) não é possível visualizar o Recorrido a carregar arranjos florais do estabelecimento comercial “O (…)” para a viatura, ou vice-versa, e muito menos o desferimento de quaisquer golpes ao Recorrido por parte do 1.º Réu com recurso a uma lanterna – a qual o 1.º Réu confessou ter perdido (depoimento do 1.º Réu em 06.07.2023, minutos 53:09 – 53:19); e o Recorrido refere não ter qualquer recordação de o 1.º Réu estar ou não dotado de lanterna (depoimento do Autor em 06.07.2023, minutos 27:55 – 28:11). Por isso, concluímos que foi incorretamente julgado o Facto Provado n.º 1, devendo passar a ter a seguinte redação:
“1) Em 26 de Junho de 2016, entre as 02.40 horas e as 02.44 horas, junto ao Restaurante “O (…)”, sito no empreendimento Quinta do (…) – Almancil, o Réu (…) participou num diálogo com o Autor (…), relativo ao facto deste estar a obstruir a passagem de veículos desferiu-lhe diversos golpes com incidência na zona da cabeça.”
IMPUGNAÇÃO DO FACTO PROVADO N.º 4)
F. Da visualização das imagens de videovigilância (Ficheiro de Vídeo 02:44:50 a 02:45:00 – Doc. 2 junto a 17.07.2023 – ref. ª Citius 11509960) não resulta que as alegadas agressões tenham durado 2 minutos – entre o momento em que visualiza alguém a abordar o Recorrido e o momento em que se observa o 1.º Réu a arrastar o corpo do Recorrido decorreu menos de 1 minuto. Por isso, concluímos que foi incorretamente julgado o Facto Provado n.º 4, devendo passar a ter a seguinte redação:
“4) Tais pancadas prolongaram-se por menos de 1 minuto e não deixaram ao Autor qualquer possibilidade de defesa.”
IMPUGNAÇÃO DO FACTO PROVADO N.º 8)
G. A prova documental junta aos autos comprova que o Recorrido foi internado no Centro Hospitalar Universitário do Algarve no dia 26.06.2016, tendo recebido alta médica em 03.07.2016, o que perfaz um total de 7 dias de internamento. Por isso, concluímos que foi incorretamente julgado o Facto Provado n.º 8), devendo passar a ter a seguinte redação:
“8) “O Autor esteve internado 7 dias nos cuidados intermédios do Hospital de Faro, tendo alta para residência (artigo 41.º da petição inicial).”
IMPUGNAÇÃO DO FACTO PROVADO N.º 10)
H. O período de défice funcional temporário deve ser fixado, no máximo, em 33 dias e o período de repercussão temporária na atividade profissional total ser reduzido para 33 dias – uma vez que o Recorrido esteve internado 7 dias (e não 11) e o seu repouso absoluto durou cerca de 30 dias (o Autor regressou ao trabalho após 1 mês e trabalhou desde o dia 3 de agosto) [Documento 6 junto com a PI, em 17.11.2020 (ref. Citius 8396807) e Documento n.º 2 anexo ao email da Segurança Social (ref. Citius 9570707) junto a 10.12.2021].
I. O Perito Dr. … (esclarecimentos prestados a 05.07.2023, minutos 06:51 – 07:48) confirmou (i) que a valoração das perturbações de paladar decorreu apenas de declarações do Recorrido, (ii) que não tinha elementos para analisar a perda de audição (esclarecimentos prestados a 05.07.2023, minutos 10:39 – 15:00) e admitiu a possibilidade de a data da consolidação médico-legal ser anterior a 19.01.2017, por naquela data o Recorrido já apresentar sequelas, que não constituem uma consequência direta o acontecimento (esclarecimentos prestados a 05.07.2023, minutos 15:10 – 19:41).
J. Pelo que, (i) o período de défice funcional parcial deve ser inferior a 149 dias; (ii) não pode o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica ser fixado em 20 pontos.
K. Atento o exposto, e pelo facto de não ter existido qualquer intervenção cirúrgica nem ter o Recorrido estado em coma, o quantum doloris deverá ser fixado, no limite, no grau 2.
L. O Recorrido deixou de ter acompanhamento médico / psicológico regular por vontade própria
- o que retarda e impede a sua recuperação total [Documento 6 junto com a Petição Inicial, em 17.11.2020 (ref. Citius 8396807) e depoimento da Dra. … (depoimento prestado em 05.07.2023, minutos 22:07 – 23:45)].
M. Quanto à repercussão permanente na atividade profissional, não existem exames médicos que comprovem a necessidade de esforços suplementares no desempenho da sua atividade profissional.
N. Não existe dano estético permanente – estamos perante uma cicatriz presente na calote craniana do Recorrido, que não apresenta mais do que 1 centímetro.
O. Não existe comprovação por exame médico de que exista repercussão nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 3 – pelo contrário, a testemunha … (depoimento prestado a 05.07.2023, minutos 09:21 – 09:51) comprovou que o Recorrido não tinha por hábito a prática de atividades desportivas.
P. Quanto à necessidade de apoio regular do foro neurológico / psiquiátrico, refira-se que esse acompanhamento foi negligenciado pelo Recorrido (confirmado pelo Documento 6 junto com a Petição Inicial, em 17.11.2020 (ref. Citius 8396807).
Q. Concluímos que foi incorretamente julgado o Facto Provado n.º 10, devendo passar a ter a seguinte redação:
“10) O Autor: I) Sofreu traumatismo craniano encefálico, com desorientação temporal e especial e discurso inadequado e apresenta sequelas no crânio – sem deformidade e/ou assimetria da calote craniana. II) Consolidação das lesões anterior a 19-01-2017; III) Défice Funcional Temporário Total de 33 dias; IV) Défice Funcional Temporário Parcial de 33 dias; V) Período de Repercussão Temporária na Atividade profissional Total – 33 dias; VI) um Quantum Doloris no grau 2/7;”
IMPUGNAÇÃO DO FACTO PROVADO N.º 11)
R. A testemunha (…) não fez menção específica ao período temporal, com exceção do regresso ao trabalho pelo Recorrido cerca de 1 mês após o evento [Documento 6 junto com a Petição Inicial, em 17.11.2020 (ref. Citius 8396807) e Documento n.º 2 anexo ao email da Segurança Social (ref. Citius 9570707) junto a 10.12.2021], nem foi produzida qualquer prova no sentido de “existir substancial limitação, por cansaço fácil e diminuição da rapidez de raciocínio”. Por isso, concluímos que foi incorretamente julgado o Facto Provado n.º 11), devendo passar a ter a seguinte redação:
“O Autor decorrido um mês começou a procurar retomar a sua atividade profissional por conta própria.”
IMPUGNAÇÃO DO FACTO PROVADO N.º 16)
S. Conforme esclarecimentos do Perito Dr. (…), (i) não existe comprovação médica de perda de olfato e de paladar (depoimento prestado em 05.07.2023, minutos 06:51 – 07:48 e 07:54 – 08:17) e, quanto à alegada perturbação da audição, o Perito Dr. (…) não detetou qualquer alteração / não a valorizou (não tinha elementos para o efeito e a perda de audição pode estar associada a outros fatores (depoimento prestado em 05.07.2023, minutos 10:39 – 15:00).
Também a testemunha (…) confirmou a inexistência de qualquer dificuldade a nível auditivo (depoimento de 05.07.2023, minutos 14:08 – 14:33).
T. Comprovou o Relatório de Neuropsicologia elaborado pelo Dra. (…) que o Recorrido apresenta um rendimento intelectual global dentro da média.
U. Não foi produzida prova que confirme que a alegada sintomatologia depressiva está relacionada exclusivamente com o evento ocorrido, nem que exista perda pelo “prazer na vida” – aliás, a testemunha … (depoimento prestado em 05.07.2023, minutos 15:16 – 16:05 e 12:50 – 13:17) e … (depoimento prestado em 05.07.2023, minutos 17:48 – 17:59) referem que tomam regularmente refeições com o Recorrido e este confirma que continua a realizar as suas atividades de lazer.
V. Não foi produzida prova que confirme lentificação na execução de tarefas, bem como quanto à instabilidade emocional e intolerância ao ruído.
W. Concluí a Recorrente que foi incorretamente julgado, por não se coadunar com a prova que foi produzida nos autos, o Facto Provado n.º 16 devendo o mesmo ser excluído da matéria dada por provada.
IMPUGNAÇÃO DO FACTO PROVADO N.º 18)
X. As testemunhas … (depoimento de 19.09.2023, minutos 10:41 – 13:05), … (depoimento de 19.09.2023, minutos 07:36 – 08:51) e … (depoimento de 19.09.2023, minutos 10:48 – 14:37) confirmaram que o 1.º Réu tinha funções de prevenção / de primeiros socorros em caso de necessidade – e não função de vigiar um casamento, nem organização de estacionamento.
Y. Concluímos que foi incorretamente julgado o Facto Provado n.º 18, devendo passar a ter a seguinte redação:
“18) O Réu (…) exercia a sua profissão como vigilante da Ré (…) – Prevenção e Segurança, Lda., com quem tinha em vigor um contrato de trabalho desde 1 de maio de 2011, integrando a equipa denominada “Team …”, a qual está preparada para responder a qualquer urgência ou emergência médica, sendo que à data e hora dos factos descritos de 1) a 6) se encontrava em prevenção, intervindo apenas em caso de necessidade de prestação de primeiros socorros a alguém convidado do casamento que decorria no estabelecimento comercial “O (…)”.
IMPUGNAÇAO DO FACTOS PROVADO N.º 26
Z. Atenta a prova indicada na Conclusão X, cujo teor se dá por reproduzido, concluímos que foi incorretamente julgado o Facto Provado n.º 26, devendo passar a ter a seguinte redação:
“26) As funções de que a Ré tinha sido investido o Réu naquele dia eram as de prevenção, intervindo apenas em caso de necessidade de prestação de primeiros socorros a alguém convidado do casamento que decorria no estabelecimento comercial ‘O (…)”.
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE DIREITO DA INAPLICABILIDADE DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA PREVISTA NO ARTIGO 500.º CC
AA. Atenta a prova indicada na Conclusão X, cujo teor se dá por reproduzido, o 1.º Réu não estava destacado para “controlar a entrada, a presença e a saída de pessoas e bens em locais de acesso vedado ou condicionado ao público”, nem se encontrava a controlar os acessos ao restaurante, nem a organizar o estacionamento, muito menos em via pública – nem poderia sob pena de usurpação das funções atribuídas aos vigilantes nos termos da Lei 34/2013, de 16.05, na sua atual redação – nem teve quaisquer instruções nesse sentido.
BB. Ainda que o Réu estivesse a auxiliar o estacionamento de viaturas, este ato nunca poderia ser subsumido ao pressuposto do “exercício da função”, mas antes uma atitude espontânea de civismo.
CC. Mais, e ainda que se considere ter existido uma agressão do 1.º Réu ao Autor, tal conduta consubstancia um ato criminoso e imprevisível no quadro das funções do 1.º Réu (sem qualquer conexão entre a atividade da Recorrente) e nada expetável pela Recorrente.
DD. O facto de a alegada agressão ter sido praticada num momento em que o 1.º Réu se encontrava perto do restaurante “(…)”, não implica que a sua atuação tenha qualquer relação com as funções que lhe estavam adjacentes.
EE. Não existe nexo de causalidade entre a atividade da Recorrente e as alegadas agressões perpetradas pelo 1.º Réu – existe uma mera conexão temporal pelo facto de a ter perpetrado tais agressões, fê-lo quando se encontrava ao serviço da Recorrente – e tal não é suficiente para imputar à Recorrente qualquer responsabilidade.
FF. Mais acresce que a alegada agressão ocorreu numa zona de via pública ou de enquadramento e não no estabelecimento “O (…)”.
GG. Quanto ao processo disciplinar com visto ao despedimento, a Recorrente proferiu decisão de despedimento com justa causa, pelo facto de o 1.º Réu ter revelado uma atitude que não se coaduna com os valores da Recorrente.
HH. É entendimento da doutrina e jurisprudência dominantes que os atos praticados pelo comissário que revelem uma mera conexão externa ou incidental – que em nada se relacionem que com o desempenho da função, não preenchem o requisito necessário para a imputação de responsabilidade ao comitente.
II. Com efeito, considera a Recorrente que o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 500.º do CC ao proferir a condenação contra a Recorrente, devendo o Tribunal ad quem revogar a Sentença Recorrida e substituí-la por outra que determine a inaplicabilidade daquela disposição e absolva a Recorrente do pedido formulado pelo Autor.
DOS DANOS ALEGADAMENTE SOFRIDOS PELO AUTOR E RESPETIVO QUANTUM INDEMNIZATÓRIO
JJ. Caso não seja aquele o entendimento do Tribunal ad quem, a Recorrente impugna os valores indemnizatórios atribuídos pelo Tribunal a quo, por estarem totalmente desfasados da prova produzida, da realidade atual e passada do Autor e do quantum indemnizatório atribuído pelos tribunais superiores em situações similares.
DANO FUTURO
KK. O Relatório Pericial refere a necessidade de acompanhamento neurológico/psiquiátrico, e não neurológico e psiquiátrico – nem faria sentido, já que existe a especialidade de neuropsiquiatria, pelo que apenas será necessária uma consulta anual.
LL. E ainda que assim não se entenda, o Centro Hospitalar Universitário do Algarve dispõe das referidas especialidades – não havendo necessidade de recorrer a instituições privadas.
MM. Sem prejuízo, o Tribunal a quo não poderia ter decidido nos termos em que o fez, por estar limitado pelo pedido formulado pelo Autor, violando assim o artigo 264.º do CPC.
NN. Ainda que não seja aquele o entendimento perfilhado pelo Tribunal ad quem, deveria ser atribuído o valor de € 3.200,00 (três mil e duzentos euros) – e não € 4.500,00 (quatro mil e quinhentos euros).
DANO NÃO PATRIMONIAL E DANO BIOLÓGICO
OO. O Tribunal a quo não subsumiu os factos (alguns deles erradamente) dados por provados à fundamentação de direito, nem apresentou cabal justificação para aquele quantum indemnizatório – devendo ser determinada a necessidade fundamentação da Sentença Recorrida, mediante a indicação dos valores que compõem a indemnização a título de danos não patrimoniais e a título de dano biológico, bem como as circunstâncias relevantes e a decisões de caso semelhantes a que se socorreu.
Subsidiariamente,
PP. Considerando os argumentos das Conclusões H a Q, o valor de indemnização atribuído ao Autor nunca poderia ser superior a € 30.000,00 (trinta mil euros).
QQ. Demonstra-se totalmente desajustado da realidade e desproporcional face a decisões de casos análogos ou mais gravosos (como por exemplo o dano morte – em que o Supremo Tribunal de Justiça atribui compensações entre € 50.000,00 (cinquenta mil euros) e os € 80.000,00 (oitenta mil euros).
RR. Ainda que o Tribunal a quo não esteja obrigado a cumprir especificadamente os parâmetros e critérios orientadores que constam da Tabela constante do Anexo I da Portaria n.º 679/2009, de 25 de junho, a tabela atribui a um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica fixável em 20 pontos, uma indemnização no valor de € 15.390,00 (quinze mil e trezentos e noventa euros) – quase € 85.000,00 (oitenta e cinco mil euros) de diferença em face do que foi decidido pelo Tribunal a quo.
SS. Com base na jurisprudência invocada nas alegações 263 a 273, e não sendo procedentes os argumentos das Conclusões H a Q considera a Recorrente que ao Autor não poderá ser atribuída uma indemnização superior a € 50.000,00 (cinquenta mil euros), incluindo o dano biológico e os danos não patrimoniais sofridos em função do caso sub judice, requerendo-se por fim que o Tribunal ad quem determine a revogação da Sentença Recorrida e a substitua por Acórdão que fixe a indemnização global a ser atribuída ao Autor, em valor não superior a € 50.000,00 (cinquenta mil euros), sob pena de violação dos artigos 496.º e 566.º do Código Civil (…)”.
*
K.
Igualmente inconformada, também a Interveniente “Generali” recorreu da sentença. Concluiu as suas contra-alegações nos seguintes termos (transcrição parcial das conclusões aperfeiçoadas, sem as referências em itálico, negrito e sublinhado da origem):
“(…)
I- A Recorrente impugna, por considerar incorretamente julgados, a decisão proferida quanto aos factos dos pontos 4, 8, 18, e 33 da matéria de facto dada como provada e a decisão proferida quanto aos factos dos pontos 50, 51, 52, 53, 54, 56 e 57 da contestação apresentada pela ora recorrente em 22/06/2021, com a ref citius 9052150.
II- Ao apreciar e dar como provado o facto do pontos 33 da matéria de facto provada, relacionado com o conteúdo do contrato de seguro celebrado com a chamada, o julgador pronunciou-se sobre questão que não lhe era lícito conhecer, incorrendo em manifesto excesso de pronuncia, o que acarreta a nulidade da douta sentença, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, vício esse que, expressamente, se invoca e deve determinar, nessa parte, a anulação da douta sentença, ordenado o regresso dos autos o Tribunal de 1ª Instância, para que seja proferida decisão que supra essa nulidade ou, se assim não se entender, deve ser eliminado o facto do ponto 33 da matéria de facto dada como provada, o que se requer.
III- Se assim não se entender, a decisão de dar como provado o facto do ponto 33, com a expressa menção de que, por via do contrato de seguro titulado pela apólice (…), a “Ré (…) – Prevenção e Segurança, Lda. transferiu a responsabilidade civil da sua atividade para a interveniente Generali Seguros, SA”, constitui uma decisão-surpresa, com a qual nenhuma das partes poderia, legitimamente, contar.
IV- Assim, nessa parte, a douta decisão proferida nestes autos é nula, nos termos conjugados dos artigos 119.º, 138.º, n.º 2, do CPT, 193.º, 195.º, n.º 1 e 615.º, n.º 1, alínea d), do NCPC, devendo como tal ser declarada e ordenada a baixa dos autos à 1ª instância, de forma a que seja eliminado do elenco da factualidade provada o facto do ponto 33, ou, em alternativa, deve o Tribunal da Relação ordenar a eliminação desse facto da matéria assente, de forma a suprir essa mesma nulidade, o que se requer.
V- Se assim não se entender, em face Assim, do teor das condições particulares da apólice (…), que a Recorrente juntou como Doc. 1 com o seu articulado de defesa, apresentado em 22/06/2021, com a ref.ª citius 9052150, impunha-se que se tivesse dado como provado, quanto ao facto do ponto 33 (se se entender ser de manter), apenas, que - 33) por via da apólice (…), a Chamada Generali comprometeu-se a garantir, de acordo com o disposto nas Condições Gerais, Especiais da apólice e dentro dos limites fixados nas suas Condições Particulares, a “Responsabilidade Civil Extracontratual que, nos termos da lei e do clausulado deste seguro, seja imputável ao Segurado, resultante de danos patrimoniais e/ou não patrimoniais decorrentes de lesões corporais e/ou materiais causados a terceiros, incluindo clientes do Segurado, e derivados do exercício da actividade de Segurança Privada especificada nas Condições Particulares”.
VI- Incorreu-se na douta sentença em omissão de pronuncia quanto aos factos alegados nos artigos 50º a 54º, 56º e 57º do articulado de defesa que a recorrente apresentou em 22/06/2021, com a ref citius 9052150, o que acarreta a nulidade dessa douta decisão, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC, vício esse que, expressamente, se invoca e deve determinar a anulação da douta sentença, ordenando-se que o processo regresse ao tribunal de 1ª Instância, de forma a que seja suprida essa nulidade.
VII- Caso se venha a entender que, ao não dar como provados ou não provados os factos alegados pela Chamada nos pontos 50, 51, 52, 53, 54, 56 e 57 da contestação que apresentou em 22/06/2021, com a ref citius 9052150, o Tribunal não o fez por ter incorrido em omissão de pronúncia, mas antes por ter entendido que se tratam de factos não relevantes, trata-se, afinal, de uma decisão que viola a Lei, mais precisamente a norma do n.º 2 do artigo 608.º do CPC, por estarem em causa factos sobre os quais o julgador se deveria ter pronunciado.
VIII- E, nesse caso, deve a douta sentença ser, nessa parte, revogada, deve este Tribunal Superior ordenar que o processo regresse ao tribunal de 1ª Instância, de forma a que este se pronuncie sobre os factos alegados pela Chamada nos pontos 50, 51, 52, 53, 54, 56 e 57 da contestação que apresentou em 22/06/2021, com a ref citius 9052150, o que se requer.
IX- Caso se entenda que os factos dos artigos 50, 51, 52, 53, 54, 56 e 57 do articulado de defesa que apresentou foram dados como não provados, considera a chamada que, nesse caso, foram incorretamente julgados, pelo que impugna a decisão quanto aos mesmos proferida.
X- Tendo em conta o depoimento do Autor (…), gravado no sistema H@bilus no dia 06/07/2023, entre as 15h54m e as 16h48s (Diligencia_3069-20.8T8FAR_2023-07-06_14-13-49.mp3), nas passagens dos minutos 2m21s a 5m56s, 6m37s a 6m48s, 22m48s a 23m44s, 24m54s a 25m03s, 26m06s a 26m36s, 30m54s a 31m30s, 33m22s a 34m58s, acima transcritas, conjugado com os factos dados como provados na sentença penal, proferida no processo que, sob o n.º 290/16.7GFLLE, correu termos pelo Juízo Local Criminal de Loulé-Juiz 3, e da informação que se retira do ofício remetido a estes autos pelo Centro Hospitalar Universitário do Algarve (o qual deu entrada nos autos no dia 17/02/2022, com a ref.ª citius 9791591), mais precisamente do documento denominado “Relatório Institucional de Episódio de Urgência”, na sua pág. 2/3, impunha-se que tivessem sido dados como provados os seguintes factos, todos da contestação apresentada pela ora recorrente – em 22/06/2021, com a ref citius 9052150
Facto do ponto 50 da contestação, provado que: “A dado passo, o 1º Réu abeirou-se do Autor, tendo-lhe solicitado que removesse a respetiva viatura do local”.
Facto do ponto 51 da contestação, provado que: “O Autor explicou ao 1º Réu que a razão da sua permanência no local se prendia com o facto de estar à espera da sua esposa, que estava a prestar serviços conexos com o fornecimento e colocação de arranjos florais no casamento que decorria no interior do restaurante “O (…)”.
Facto do ponto 52 da contestação, provado que: “Mais lhe tendo dito que só aí permaneceria temporariamente”.
Facto do ponto 53 da contestação, provado que: “Para comprovar o motivo da sua permanência no local, o Autor fez questão de mostrar ao 1º Réu o interior da mala da sua carrinha, onde estavam colocados alguns desses arranjos.”
Facto do ponto 54 da contestação, provado que: “Para o efeito, o Autor saiu do interior da carrinha e deslocou-se em direção às traseiras desse veículo, já que, na respetiva caixa de carga, estavam colocados alguns dos arranjos florais.”
Facto do ponto 56 e 57 da contestação, provado que: “Quando o Autor estava de costas voltadas para o 1º Réu, este desferiu golpes no lado direito da cabeça do Autor”.
XI- Atendendo às imagens de videovigilância – concretamente o Doc. 2 – Ficheiro de Vídeo e o Doc. 3 – Ficheiro de Vídeo, junto aos autos em 17.07.2023 (ref. ª Citius 11509960), impunha-se que tivesse sido dado como provado, quanto ao facto do ponto 4 da matéria dada como provada, apenas que:
4) Tais pancadas prolongaram-se por, no máximo, 53 segundos e não deixaram ao Autor qualquer possibilidade de defesa (artigo 29º da petição inicial).
XII- Considerando as declarações da testemunha (…), gravado no sistema H@bilus no dia 19/09/2023 (ficheiro Diligencia _3069-20.8T8FAR_2023-09-19_13-50-45.mp3), nas passagens dos minutos 10m48s a 13m06s, 16m21s a 20m39s, acima transcritas, da testemunha (…), gravado no sistema H@bilus no dia 19/09/2023 (ficheiro Diligencia _3069-20.8T8FAR_2023-09-19_15-49-49.mp3) nas passagens dos minutos 7m30s a 8m57s, acima transcritas e da testemunha (…), gravado no sistema H@bilus no dia 19/09/2023 (ficheiro Diligencia_3069-20.8T8FAR_2023-09-19_15-10-34.mp3), nas passagens dos minutos 10m44s a 14m22s, acima transcritas, impunha-se que se tivesse dado como provado, quanto ao facto do ponto 18º da matéria considerada assente, apenas, que
18) “O Réu (…) exercia a sua profissão como vigilante da Ré (…) – Prevenção e Segurança, Lda., com quem tinha em vigor um contrato de trabalho desde 1 de maio de 2011, integrando a equipa denominada “Team (…)”, a qual está preparada para responder a qualquer urgência ou emergência médica, sendo que à data e hora dos factos descritos de 1) a 6) se encontrava em prevenção, intervindo apenas em caso de necessidade de prestação de primeiros socorros a alguém convidado do casamento que decorria no estabelecimento comercial “O (…)”.
XIII- Face aos documentos clínicos juntos como Doc. 13 com o requerimento apresentado pelo Recorrido (ref.ª Citius 8401705 ), junto aos autos em 18.11.2020, página 1; Ofício (ref. ª Citius 9791591), remetido pelo Centro Hospitalar Universitário do Algarve, junto aos autos em 17.02.2022, página 5; Relatório Pericial com conclusões preliminares (ref.ª Citius 9862987), remetido pelo Gabinete Médico-Legal e Forense do Sotavento Algarvio, juntos aos autos em 09.03.2022, página 3 e 4; Documento n.º 1 (Relatório Intercalar), junto com o e-mail (ref.ª Citius 10879633) remetido pelo Gabinete Médico-Legal e Forense do Sotavento Algarvio, junto aos autos em 18.01.2023, página 1 e 2 Documento n.º 1 (Relatório Pericial) junto com o e-mail (ref.ª Citius 11231037) remetido pelo Gabinete Médico-Legal e Forense do Sotavento Algarvio, junto aos autos em 26.04.2023, página 1 e 2, retira-se que o Autor, na sequência do evento em questão, esteve internado entre 26.06.2016 e 03.07.2016, ou seja, 7 dias e não 11 dias, tal como é referido na douta Sentença Recorrida.
XIV- Desta forma, e salvo melhor opinião, deve o facto enunciado sob o n.º 8 da matéria de facto dada como provada ser alterado em conformidade com o supra referido, passando a ter a seguinte formulação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 640.º do CPC:
8) “O Autor esteve internado 7 dias nos cuidados intermédios do Hospital de Faro, tendo alta para residência (artigo 41.º da petição inicial).”
XV- Na perspectiva da ora interveniente, a atuação do 1º Réu, nos termos dados como provados (e, mais ainda, caso seja alterada a decisão proferida quanto à matéria de facto – mas sem que seja necessária uma tal decisão para se concluir nesse sentido) não se pode considerar integrada no quadro geral das funções de que estava investido, não tendo com estas qualquer nexo de causalidade, ou previsibilidade, não senso suscetível de responsabilizar a 2ª Ré (…), nos termos do disposto no artigo 500.º do Código Civil.
XVI- Ademais, mesmo que se entendesse que o 1º Réu agiu dentro das suas funções, mas porventura já abusando delas, quando se abeirou do Autor – o que não se concede - a agressão que cometeu, “pelas costas”, sem que o Autor tenha apresentado qualquer resistência, ou tenha assumido um comportamento agressivo ou que justificasse uma reação física do 1º Réu, é um ato que se afigura totalmente anómalo e sem relação coerente com o desempenho das respetivas tarefas.
XVII- Salvo melhor opinião, em nada releva para a decisão da causa, salvo melhor opinião, o facto de ter sido exercido pela 2ª Ré o poder disciplinar quanto ao 1º Réu.
XVIII- A isto acresce que a conduta adotada pelo 1º Réu não era, sequer, previsível à 2ª Ré, por estar de tal forma afastada do quadro das funções de que tinha investido o primeiro
XIX- Por todas estas razões, só o 1º Réu pode ser responsabilizado pelo acontecimento em mérito, o que impõe a absolvição da 2ª Ré dos pedidos.
XX- Como tal, deve ser revogada a douta sentença e, em sua substituição, proferida decisão que absolva a 2ª Ré de todos os pedidos, que os formulados pelo Autor, quer pelo ISS, IP, o que se requer.
XXI- Não se provou que o Autor necessite de acompanhamento nas especialidades de neurologia e de psiquiatria, mas antes de acompanhamento neurológico/psiquiátrico, o que é o mesmo que dizer que necessita de uma consulta anual na especialidade de neuropsiquiatria, a qual existe (cfr, por exemplo, https://www.cuf.pt/centros/unidadede-neuropsiquiatria;https://www.fchampalimaud.org/pt-pt/clinical_areas/neuropsiquiatria;https://www.trofasaude.pt/bragacentro/consultas/consulta-neuropsiquiatria/)
XXII- Logo, procedendo ao cálculo de € 100,00 (cem euros) por cada consulta, ao longo de 16 anos, chegaríamos ao valor de € 3.200,00 (três mil e duzentos euros),
XXIII- Pelo que deve ser revogada a douta sentença na parte em que atribuiu ao Autor a quantia de € 4.500,00 a título de dano patrimonial futuro, reduzindo-se tal valor para € 3.200,00.
XXIV- Entende a recorrente que deve ser fixada no montante de € 25.000,00 a compensação devida ao Autor pelo seu dano biológico de 20 pontos e em € 15.000,00 a compensação pelos seus demais danos não patrimoniais, tudo no montante global de € 40.000,00.
XXV- Subsidiariamente, se se entender que os valores acima sugeridos pela recorrente para compensação dos danos não patrimoniais e dano biológico do Autor, ou algum deles, são insuficientes – o que apenas por dever de ofício se admite – deve seja revogada a douta sentença na parte em que condenou a Ré a pagar ao Autor o montante de € 100.000,00 a título de compensação pelos danos morais resultantes do acidente e que, em sua substituição, seja atribuídas as compensações que este Tribunal Superior venha a considerar mais adequadas para o dano biológico e demais danos morais do Autor, sempre em valor inferior ao de € 100.000,00.
XXVI- A douta sentença violou as normas dos artigos 608.º do CPC e 500.º, 496.º e 566.º do CC (…)”.
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L.
Respondeu o Recorrido, apresentando as suas contra-alegações, em que pugnou pelas:
- inadmissibilidade do recurso interposto pela Interveniente Generali; e
- manutenção da sentença recorrida.
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M.
Colheram-se os vistos dos Ex.mos Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
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N.
Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente, sem prejuízo da possibilidade da sua ampliação a requerimento dos Recorridos (artigos 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (artigo 608.º, n.º 2, parte final, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, parte final, ambos do CPC).
Também está vedado o conhecimento de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, anulação, alteração e/ou revogação.
No caso vertente, são as seguintes as questões suscitadas pelos recursos:
1. Se deve ser reconhecida à Interveniente acessória “Generali”, legitimidade para interpor recurso da decisão final condenatória das Rés.
2. Se a sentença recorrida padece de nulidade por falta de fundamentação, omissão ou excesso de pronúncia.
3. Se deve ser alterada a matéria de facto provada e não provada, da sentença recorrida;
4. Se estão reunidos os pressupostos da responsabilidade civil do comitente / 2ª Ré, pelos actos praticados pelo comissário / 1º Réu, perante o Autor;
5. Qual o montante indemnizatório adequado aos danos provados sofridos pelo Autor.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
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A. De facto
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Reprodução integral dos factos provados da decisão da matéria de facto como decidido na sentença sob recurso (negrito e itálico da origem):
“ (…)
a) Da discussão da causa resultaram provados (…) os seguintes factos:
1) Em 26 de Junho de 2016, entre as 02.40 horas e as 02.44 horas, junto ao Restaurante “O (…)”, sito no empreendimento Quinta do (…) – Almancil, o Réu (…), após uma discussão com o Autor (…) relativa ao facto deste estar a obstruir a passagem de veículos enquanto carregava arranjos florais do restaurante para a viatura, desferiu-lhe diversos golpes com incidência na zona da cabeça, munido de uma lanterna metálica (artigos 25º e 26º da petição inicial).
2) Na sequência dos golpes desferidos, o Autor desequilibrou-se e caiu por terra, com perda de conhecimento (artigo 27º da petição inicial).
3) Com o Autor prostrado no chão, o Réu (…) ainda lhe deu vários pontapés no corpo (artigo 28º da petição inicial).
4) Tais pancadas prolongaram-se por 2 minutos e não deixaram ao Autor qualquer possibilidade de defesa (artigo 29º da petição inicial).
5) O Réu (…) agiu com o propósito de ofender o corpo e a saúde do Autor, o que logrou (artigo 31º da petição inicial).
6) O Réu (…) representou como possível o resultado da afetação, de maneira grave, da capacidade de trabalho e das capacidades intelectuais do Autor e agiu conformando-se com a possibilidade da produção de tal resultado (artigo 32º da petição inicial).
7) A Autor foi assistido no local pelo INEM, tendo sido transportado para o Serviço de Urgência do Hospital de Faro, onde deu entrada consciente, mas desorientado no tempo e no espaço, com discurso inadequado (artigo 40º da petição inicial).
8) O Autor esteve internado 11 dias nos cuidados intermédios do Hospital de Faro, tendo alta para residência (artigo 41º da petição inicial).
9) O Autor, quando teve alta hospitalar, apresentava ainda hematomas (na cara e noutras regiões corporais) e ferida no crânio (artigo 45º da petição inicial).
10) Em consequência da conduta do Réu, o Autor:
I) Sofreu traumatismo craniano encefálico, com desorientação temporal e espacial e discurso inadequado e apresenta sequelas no crânio- sem deformidade e/ou assimetria da colote craniana com lentificação do discurso e perturbações sensoriais, agnosia e perturbações da audição do ouvido direito com sinais e sintomas sugestivos de síndrome pós comocional moderado com repercussão nas atividades diárias e profissionais.
II) Consolidação das lesões em 19-01-2017;
III) Défice Funcional Temporário Total de 58 dias;
IV) Défice Funcional Temporário Parcial de 149 dias;
V) Período de Repercussão Temporária na Atividade profissional Total – 207 dias;
VI) um Quantum Doloris no grau 4/7;
VII) um Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica de 20 pontos em 100;
VIII) Dano Estético Permanente no grau 1/7;
IX) Repercussão Permanente na Atividade Profissional- sequelas compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares;
X) Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer no grau 3/7;
XI) O Autor necessita de apoio regular do foro neurológico/psiquiátrico – consultas anuais (artigos 64º, 67º, 70º, 71º e 78º a 84º da petição inicial e relatório pericial).
11) O Autor, decorrido um mês começou a procurar retomar a sua atividade profissional por conta própria, embora numa fase inicial com substancial limitação, por cansaço fácil e diminuição da rapidez de raciocínio, só a tendo retomado de forma mais significativa dois a três meses após o evento (artigo 43º da petição inicial).
12) Cerca de 2 meses após a alta foi a consulta de neuropsicologia no Hospital de Faro e foi a nova consulta passado um ano (artigo 44º da petição inicial).
13) Até à data referida em 1), o Autor, almoçava e jantava regularmente em restaurantes, onde satisfazia o chamado prazer da “mesa” (artigo 87º da petição inicial).
14) Era contabilista, com uma carteira de clientes (artigo 88º da petição inicial).
15) A vida sorria ao Autor e este tinha o prazer que só uma boa vida confere, viajando frequentemente, passando fora de sua casa fins de semana e tomando as suas refeições em restaurantes (artigo 89º da petição inicial).
16) O Autor era um homem alegre, otimista, perfeitamente realizado com o que fazia e viu-se, em consequência do descrito de 1) a 6):
a) Com limitações no paladar e olfato;
b) Com perturbações da audição;
c) Lentificado na execução de tarefas;
d) Lentificado de raciocínio;
e) Com dificuldade de memorização;
f) Com instabilidade emocional;
g) Com intolerância ao ruído;
h) Com tendências depressivas;
i) E sem prazer na vida (artigo 91º da petição inicial).
17) O Autor nasceu em 4 de setembro de 1962.
18) À data e hora dos factos descritos de 1) a 6), o Réu (…) exercia a sua profissão como vigilante, prestando funções no empreendimento da Quinta do (…) para a Ré “(…) – Prevenção e Segurança, Lda.”, com quem tinha em vigor contrato de trabalho desde 1 de maio de 2011, integrando a equipa denominada “Team (…)”, a qual está preparada para responder a qualquer urgência ou emergência médica, estando a vigiar um casamento que estava a decorrer no estabelecimento comercial “O (…)” (artigo 33º da petição inicial aperfeiçoado e artigo 45º da contestação da 2ª Ré).
19) À data e hora dos factos descritos de 1) a 6), o Réu (…) encontrava-se uniformizado, utilizando crachá identificativo e camisa polo com os dizeres “(…)” (artigo 34º da petição inicial).
20) Em consequência do descrito de 1) a 6), a Ré “(…) – Prevenção e Segurança, Lda.” determinou a imediata suspensão do exercício de funções do Réu (…), tendo-lhe sido instaurado processo disciplinar com o propósito de proceder ao seu despedimento com justa causa na sequência da pratica de tais factos (artigo 7º da petição inicial-parte).
21) Em consequência do descrito de 1) a 6), o Réu (…) foi despedido, com justa causa, pela Ré “(…) – Prevenção e Segurança, Lda.”, tal como resulta de fls. 367 a 377, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 7º da petição inicial-parte).
22) O despedimento do Réu (…) da Ré “(…) – Prevenção e Segurança, Lda.”, os seguintes fundamentos: “No que diz respeito à agressão perpetrada pelo Arguido contra o Se. Rui Pires, (comportamento confessado por este, ainda que tivessem sido apontadas circunstâncias desculpabilizastes e/ou atenuantes que não procedem) e consequente omissão de auxílio nos termos razoavelmente expectáveis com as funções, preparação e formação do Arguido, tais comportamentos não se coadunam minimamente com os princípios pelos quais se rege a Arguente (…)”, tal como resulta de fls. 637 a 642, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
23) O Réu (…) impugnou a licitude do despedimento no âmbito do processo n.º 2968/16.6T8FAR do Juízo do Trabalho de Faro – Juiz 2 do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, tendo ação sido julgada totalmente improcedente, tal como resulta de fls. 637 a 665, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 8º da petição inicial).
24) O descrito de 1) a 6) ocorreu na via pública, junto à entrada do Restaurante “O (…)” (artigo 67º da contestação da Ré).
25) O acesso ao estabelecimento de restauração “O (…)” era realizado através de um arruamento, que constituía uma via pública (artigo 44º da contestação da interveniente acessória).
26) As funções de que a Ré tinha sido investido o Réu naquele dia eram as de vigiar as instalações do estabelecimento de restauração “O (…)” e velar pela segurança dos participantes nesse evento (artigo 43º da contestação da interveniente acessória).
27) O Réu não estava autorizado pela Ré a fazer uso da força para o desempenho das tarefas de que estava investido tarefas de que estava investido ((artigo 48º da contestação da interveniente artigo 48º da contestação da interveniente acessória).acessória).
28) O Autor apresentou queixa crime contra o Réu (…) em 7 de julho de 2016 e constitui-se assistente no processo crime (artigo 11º da petição inicial).
29) Realizado o inquérito, foi deduzida acusação pública pela Digna Agente do Ministério Público, contra o 1º Réu, em 28 de fevereiro de 2019 no processo n.º 290/16.7GFLLE, tal como resulta de fls. 51 a 53, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 12º da petição inicial).
30) O Réu (…) requereu a abertura de instrução no processo crime n.º 290/16.7GFLLE, tendo sido proferido despacho de pronúncia do mesmo em 24 de maio de 2019, tal como resulta de fls. 53-vº a 57, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigos 14º e 15º da petição inicial).
31) No âmbito do processo crime n.º 290/16.7GFLLE do Juízo Local Criminal de Loulé – Juiz 3 do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, o Réu (…) foi condenado, por sentença transitada em julgado em 07-10-2020. pela prática, de um crime de ofensa à integridade física grave, na pessoa do Autor (…), p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1 e 144.º, alínea b), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 7 (sete) meses de prisão, a qual foi suspensa por igual período, tendo sido dados como provados os seguintes factos:
«1) Em 26 de Junho de 2016, entre as 02h40m e as 02h44m, junto ao estabelecimento denominado “Restaurante O (…)”, sito na Quinta do (…) – Almancil, o arguido, após uma discussão com (…), desferiu-lhe diversos golpes com incidência na zona da cabeça, munido de uma lanterna metálica.
2) Na sequência dos golpes desferidos, (…) desequilibrou-se e caiu por terra, com perda de conhecimento.
3) Com o ofendido prostrado no chão, o arguido ainda lhe deu vários pontapés no corpo.
4) Tais ofensas prolongaram-se por 2 minutos e não deixaram ao (…) qualquer possibilidade de defesa.
5) Das agressões acima descritas resultaram:
a. “Crânio: cicatriz de ferida contusa fronto-parietal esquerda, com 2,5cms e equimoses de cor castanha-amarelada, retro-auricular direita com 4x1,2cms.”
b. “Membro inferioresquerdo: escoriação retro-maleolar esquerda, parcialmente coberta com crosta com 1,8cms”;
c. Traumatismo crânio-encefálico com “vários focos hemorrágicos intraparenquimatosos, com localização temporal direita, frontal, temporal, lenticular à esquerda, com maior edema perilesional, bem como pequeno hematoma para-falcino esquerdo e hematomas subdurais frontoparientotemporal direito e frontal esquerdo” e “edema cerebral difuso”.
d. Como consequência desse traumatismo craniano, o assistente apresenta “dificuldades instrumentais significativas ao nível da memória verbal associativa na evolução da aprendizagem” e “sintomatologia depressiva. Diminuição da atentividade e da velocidade de realização”, lesões essas que ainda não se encontram consolidadas, com afetação grave da capacidade de trabalho geral e profissional.
6) O arguido agiu com o propósito de ofender o corpo e a saúde do (…), o que logrou.
7) O arguido representou como possível o resultado da afetação, de maneira grave, da capacidade de trabalho e das capacidades intelectuais do ofendido e agiu conformando-se com a possibilidade da produção de tal resultado.
8) O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei penal.
Provou-se ainda que:
9) À data e hora dos factos supra descritos o arguido exercia a sua profissão, como vigilante, prestando funções para a sociedade “(…)”.
10) À data e hora dos factos supra descritos o arguido encontrava-se uniformizado, utilizando crachá identificativo e camisa pólo com os dizeres “(…)”.
11) Após a data dos factos supra descritos o arguido foi despedido, com justa causa, pela sociedade “(…)”.
12) O despedimento fundou-se, entre outras alegações, na produção de lesões físicas ao aqui ofendido (…) na data e hora dos factos supra descritos.
13) O arguido impugnou a licitude do despedimento em ação para o efeito e decaiu totalmente. (…)», tal como resulta de fls. 353 a 377, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigos 1º e 2º da petição inicial).
32) A Ré “(…) – Prevenção e Segurança, Lda.” tem por objeto social “a prestação de serviços de segurança privada. Os serviços de segurança privada compreendem a vigilância de bens imóveis e móveis e o controlo de entrada, presença e saída de pessoas, bem como a prevenção de entrada de armas, substâncias e artigos de uso e porte proibidos ou suscetíveis de provocar atos de violência no interior de edifícios ou outros locais, públicos ou privados, de acesso vedado ou condicionado ao público” e ainda atividade com exploração e gestão de centrais de alarme e videovigilância, tal como resulta de fls. 523 a 526, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
33) A Ré “(…) – Prevenção e Segurança, Lda.” transferiu a responsabilidade civil da sua atividade para a interveniente Generali Seguros, SA mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º (…).
34) O Instituto de Segurança Social, IP pagou ao Autor, a título de subsídio de doença, no período compreendido entre 26 de junho de 2016 e 2 de agosto de 2016, o montante global de € 324,04 (artigos 2º a 4º do pedido de reembolso).
35) A presente ação foi intentada em 17 de novembro de 2020.
36) O Réu (…) foi citado nos autos em 25 de novembro de 2020, tal como resulta de fls. 97, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
37) A Ré “(…) – Prevenção e Segurança, Lda.” foi citada nos autos em, pelo menos, 2 de dezembro de 2020, tal como resulta de fls. 98, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
38) O Instituto de Segurança Social, IP – Centro Distrital de Faro foi citado nos autos em 14 de setembro de 2021, tal como resulta de fls. 235, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.”
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Da (in)admissibilidade do recurso da Interveniente acessória “Generali”
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Veio o Recorrido invocar a inadmissibilidade do recurso interposto pela Interveniente acessória “Generali” da sentença proferida em 1ª instância. Alegou para o efeito que, tendo sido admitida nos autos como mera auxiliar da defesa da Ré “(…) – Prevenção, Lda.” com fundamento num eventual direito de regresso por parte desta, não tendo sido deduzido nenhum pedido contra si, nem sido condenada nos autos, carece a interveniente acessória de legitimidade para o recurso.
A questão suscitada prende-se com a interpretação do disposto no n.º 2 do artigo 631.º do CPC que prevê: “as pessoas direta e efetivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias.”
Tem havido, na doutrina e na jurisprudência, alguma divergência sobre a interpretação do preceito em apreço, no que respeita à admissão do recurso interposto pelo interveniente acessório no processo.
Uma das posições, acolhida no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.05.2019, relatado pelo Desembargador Manuel Domingos Fernandes no processo n.º 1152/15.0T8VFR.P1[1], é no sentido de que, sem prejuízo de outra solução imposta pelo artigo 329.º do CPC quando o assistido for revel, o interveniente acessório só tem legitimidade para interpor recurso quando demonstre que a decisão o prejudicou directa e efectivamente, situação que não se verifica quando pretenda apenas interpor da decisão final em que o chamante, como réu, é condenado no pedido indemnizatório formulado pelo autor. Na base desta decisão está a circunstância da intervenção acessória visar apenas impor ao chamado os efeitos do caso julgado da acção, de modo a que não seja possível (nem necessário), que na subsequente acção de regresso que vier a ser proposta pelo réu contra o chamado se voltem a discutir as questões já decididas no anterior processo concernentes à existência e ao conteúdo do direito à indemnização da titularidade do autor.
Este entendimento jurisprudencial mereceu, da parte de Miguel Teixeira de Sousa, comentário em que exprimiu a seguinte posição que também aqui se perfilha:
«O decidido no acórdão da RP é, salvo o devido respeito, dificilmente compatível com o que resulta, em termos práticos, do disposto no artigo 321.º CPC quanto ao valor de caso julgado da sentença quanto ao assistente.
Com efeito, esse preceito determina que, com as excepções previstas nas suas alíneas, "a sentença proferida na causa constitui caso julgado em relação ao assistente, que é obrigado a aceitar, em qualquer causa posterior, os factos e o direito que a decisão judicial tenha estabelecido".
Tendo isto presente, a pergunta que se impõe é a seguinte: perante a vinculação do assistente aos factos e ao direito estabelecidos na sentença proferida na acção de indemnização em que interveio o assistente, quais as hipóteses de esta parte acessória conseguir provar que a indemnização não pode ser aquela que consta da respectiva decisão ou que nem sequer existe esse direito à indemnização?
A experiência comum não pode deixar de conduzir a esta resposta: essas hipóteses são mínimas (para não dizer que são inexistentes). Se estão fixados os factos que conduziram a uma indemnização, é crível que se possa vir a entender que afinal a indemnização é algo de substancialmente menor ou que, afinal, nem sequer existe?
Acresce que coarctar a faculdade de o assistente interpor recurso da decisão condenatória proferida na acção de indemnização torna este assistente "refém" do comportamento do demandado condenado. Sabendo esta parte que, na posterior acção de regresso, o assistente dificilmente consegue opor-se ao montante da indemnização e ao próprio direito à indemnização, o demandado condenado pode não encontrar um incentivo suficiente para interpor recurso da decisão condenatória.
Os efeitos desta situação só podem ser afastados através da atribuição de legitimidade para recorrer à parte acessória. (…)
Em conclusão:
-- Na acção de regresso proposta pelo (anterior) demandado condenado contra o (anterior) assistente, pode, efectivamente, discutir-se o direito de regresso daquele contra este, mas dificilmente o montante da indemnização e, menos ainda, o próprio direito à indemnização;
-- Isto constitui um desincentivo para a interposição de recurso pelo próprio demandado condenado (parte assistida);
-- Sendo assim, deve reconhecer-se legitimidade ao assistente para interpor recurso da decisão condenatória do demandado» (sublinhados nossos).[2]
A posição vinda de apresentar, em convergência com Salvador da Costa que também reconhece ao interveniente acessório legitimidade para recorrer [3], tem acolhimento na jurisprudência dos recentes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de:
- 31.03.2022, relatado pelo Juiz Conselheiro Ferreira Lopes, no processo n.º 453/13.7T2AVR.P1.S1, de cuja fundamentação consta «…afigura-se-nos decisiva a consideração de que estendendo-se ao interveniente os efeitos do caso julgado, “relativamente às questões de que dependa o direito de regresso” (artigo 323.º/4), aquele tem todo o interesse na improcedência da pretensão do autor da acção, já que, a acontecer, fica livre da obrigação de indemnizar numa futura acção de regresso. É uma forte razão para lhe ser reconhecida legitimidade para interpor recurso da decisão condenatória da demandada.»; [4] e
- 14.03.2024, relatado pelo Juiz Conselheiro Fernando Baptista, no processo n.º 20769/18.5TBPRT.P1.S1, cujo sumário, entre outras coisas, inclui «[o] interveniente acessório tem legitimidade para recorrer da decisão condenatória do demandado por ter todo o interesse na improcedência da pretensão do autor da acção, na medida em que a sucumbência do demandado principal se repercute no direito de regresso (estende-se ao interveniente os efeitos do caso julgado, “relativamente às questões de que dependa o direito de regresso”), sendo desta forma directamente afectado pela decisão, ut artigo 323.º, n.º 4, do CPC.» [5]
Em face do exposto, com respaldo na doutrina e na jurisprudência mencionadas, em atenção ao argumento que se nos afigura decisivo de, se assim não for, o interveniente acessório ficar impedido de discutir em recurso pressupostos – o direito à indemnização do lesado e a fixação do respectivo montante – essenciais do direito de regresso que contra si venha a ser exercido ulteriormente, entende-se reconhecer à “Generali” legitimidade para interpor recurso da decisão final.
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Da nulidade por falta de fundamentação
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Veio a Ré / Recorrente “(…)” arguir a nulidade por falta de fundamentação da sentença de 1ª instância (cfr. alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC), alegando para o efeito que o tribunal a quo não procedeu a qualquer fundamentação justificativa, nem invocou jurisprudência relevante que tenha decidido situações semelhantes à dos autos, relativamente à fixação do montante indemnizatório de € 100.000,00 (cem mil euros) devido a título de danos morais, incluindo o dano biológico.
Prevê o n.º 1 do artigo 615.º do CPC que “é nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
As nulidades da sentença taxativamente previstas no artigo 615.º, n.º 1, alíneas a) a e), do CPC, são vícios formais e intrínsecos, designados como error in procedendo, respeitando apenas à estrutura ou aos limites da decisão.
Como refere José Lebre de Freitas, “os casos das alíneas b) a e) do n.º 1 constituem, rigorosamente, situações de anulabilidade da sentença, e não de verdadeira nulidade. Respeitam eles à estrutura ou aos limites da sentença. Respeitam à estrutura da sentença os fundamentos das alíneas b) (falta de fundamentação) e c) (oposição entre os fundamentos e a decisão). Respeitam aos seus limites os das alíneas d) (omissão ou excesso de pronúncia) e e) (pronúncia ultra petitum).” [6]
São vícios a apreciar em função do texto da sentença, do discurso lógico nele desenvolvido, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando – que são
erros quanto à decisão de mérito constante da sentença), decorrentes de errada consideração da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do Direito (error juris) à matéria de facto, levando a que o decidido não corresponda à realidade ôntica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos.
No que respeita à nulidade invocada pela “(…)”, como referem António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “…a jurisprudência tem vindo a interpretar de forma uniforme…” a norma da al.ª b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC onde se prevê o vício da falta de fundamentação, de facto ou de direito, “…de modo a incluir apenas a absoluta falta de fundamentação e não a fundamentação alegadamente insuficiente e ainda menos o putativo desacerto da decisão (STJ 10-05-21, 3701/18, STJ 9.9.20, 1533.17, STJ 2011.19, 62/07, STJ 2.6-16, 781/11).”[7]
Analisando a sentença recorrida, verifica-se que dedica várias passagens ao cômputo do montante indemnizatório.
Depois de longa exposição sobre a doutrina, a jurisprudência e as normas aplicáveis ao cálculo de cada um dos componentes do dano indemnizável, apresenta, apenas sobre o montante indemnizatório de € 100.000,00 arbitrado, de acordo com a equidade para o dano moral, incluindo o biológico, as seguintes considerações:
“(…)
Finalmente, o Autor peticiona a quantia de € 130.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescida da quantia de € 86.911,95 que o Autor alega que é a titulo de compensações devidas por danos morais complementares, sendo € 412,95 por 11 dias de internamento, € 1.500,00 por dano estético permanente, € 10.000,00 pelo quantum doloris, € 25.000,00 pela repercussão na vida laboral e € 50.000,00 pela repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer, não se vislumbrando com que base autonomiza estes alegados danos, as quais estão compreendidos nos danos morais e no dano biológico na sua vertente não patrimonial.
Para fixar uma indemnização, são de ponderar circunstâncias várias, como a natureza e o grau das lesões, as suas sequelas físicas e psíquicas, as intervenções cirúrgicas eventualmente sofridas e o grau de risco inerente, os internamentos e a sua duração, o quantum doloris, o dano estético, o período de doença, situação anterior e posterior da vítima em termos de afirmação social, apresentação e auto-estima, alegria de viver, a idade, a esperança de vida e perspetivas para o futuro, entre outras.
Nos autos apurou-se que o Autor à data dos factos tinha 53 anos de idade, que, em consequência do embate, foi transportado para o Hospital de Faro e submetida a diversos tratamentos médicos, medicamentosos e exames médico, tendo estado 11 dias internado nos cuidados intermédios.
Mais se apurou que sofreu traumatismo crânio-encefálico com desorientação temporal e espacial e discurso inadequado, um Défice Funcional Temporário Total de 58 dias, um Défice Funcional Temporário Parcial de 149 dias, um Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total de 207 dias, um Quantum Doloris no grau 4/7, um Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica de 20 pontos em 100, um dano estético de grau 1/7, uma Repercussão Permanente na Atividade Profissional não impeditiva da atividade profissional habitual, mas com esforços complementares, com Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas de grau 3/7, apresentando sequelas no crânio sem deformidade e/ou assimetria da colote craniana com lentificação do discurso e perturbações sensoriais, agnosia e perturbações da audição do ouvido direito com sinais e sintomas sugestivos de síndrome pós comocional moderado com repercussão nas atividades diárias e profissionais
Provou-se ainda que o Autor sofre angústia, frustração e ansiedade pela perda de memória e limitações quer na atividade habitual de contabilista implicando esforços suplementares, quer no seu dia-a-dia, tendo alterado as suas rotinas e deixado de praticar atividades que lhe davam prazer, para além de limitações no paladar e olfato, perturbações da audição, lenificado na execução de tarefas e de raciocínio, dificuldade de memorização, instabilidade emocional, intolerância ao ruído, tendências depressivas e sem prazer na vida.
No entanto, não se apurou que o Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica sofrido pelo Autor implique uma direta perda de ganho, pelo que as suas atuais limitações colocam-se ao nível do chamado dano biológico na vertente não patrimonial nos termos supra referidos.
Ora, o quadro fáctico do caso sub judice apresenta sofrimento físico e psíquico que irá durar toda a vida do Autor, tendo sofrido uma incapacidade permanente de 20 em 100 pontos, para além de angústia e sofrimento na sequência da agressão, o que justifica a atribuição de indemnização por dano moral.
Assim, ponderadas todas as circunstâncias do caso sub judice supra descritas, considerando a idade do Autor, natureza das lesões por si sofridas, o período de doença (mais de 6 meses), as dores de intensidade acima da média e as sequelas daí resultantes, as atividades que deixou de fazer, a natureza e a duração dos tratamentos que teve de efetuar, o dano estético de grau 1/7, a afetação das atividades de desporto de lazer de grau 3/7 e o abalo que sofreu, afigura-se que tais danos devem ser compensados, de forma condigna, com recurso à equidade (…).
O Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica do Autor é já relevante (20/100) e não se pode olvidar que está em causa uma pessoa que alterou o seu quotidiano em função das lesões que sofreu.
Nestes termos, entende-se adequado fixar a indemnização por danos morais, incluindo no mesmo o dano biológico em € 100.000,00.”
No que concerne aos danos não patrimoniais, estes correspondem à frustração de utilidades não suscetíveis de avaliação pecuniária, como o desgosto resultante da perda de um ente querido.
Por fim, o artigo 566.º do Código Civil estatui que “(…) 3- Se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”.
Ora, o artigo 4.º do Código Civil estatui que “Os tribunais só podem resolver segundo a equidade:
a) Quando haja disposição legal que o permita;
b) Quando haja acordo das partes e a relação jurídica não seja indisponível;
c) Quando as partes tenham previamente convencionado o recurso à equidade, nos termos aplicáveis à cláusula”.
A equidade confere, assim, um critério formal de resolução de casos singulares, atendendo às características particulares.
A equidade é um critério residual de justiça do caso concreto, apenas aplicável em situações excecionais tipificadas na lei quando se “encontre esgotada a possibilidade de recurso aos elementos com base nos quais se determinaria com precisão o montante dos danos (…)” e em que é necessário fazer a adequação das leis humanas e do direito às necessidades sociais e às circunstâncias das situações singulares.
Na verdade, a equidade deve ponderar “todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida” sem que, contudo, o juízo de equidade signifique arbitrariedade.
De facto, julgar equitativamente é procurar a mais justa das soluções, a justiça do caso concreto, mas sempre dentro dos limites dos factos que o Tribunal tiver considerado provados.
“O apelo a juízos equitativos para obter uma exata e precisa quantificação de danos patrimoniais resultantes da inutilização ou privação de um bem material – consentido pelo artigo 566.º, n.º 3, do CC – desempenha uma função meramente complementar e acessória, representando um instrumento para suprir possíveis insuficiências probatórias relativamente a um dano, inquestionavelmente sofrido pelo lesado, mas relativamente indeterminado quanto ao seu exato montante – pressupondo que o «núcleo essencial» do dano está suficientemente concretizado e processualmente demonstrado e quantificado, não devendo o juízo equitativo representar um verdadeiro e arbitrário «salto no desconhecido», dado perante matéria factual de contornos manifestamente insuficientes e indeterminados”.
Tendo em conta a fundamentação transcrita e o grau de omissão necessário para que se verifique a nulidade prevista pela alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC – como vimos, abrange apenas a absoluta falta e não a fundamentação alegadamente insuficiente e ainda menos o putativo desacerto da decisão –, resulta manifesta a irrazoabilidade da tese da nulidade aventada pela Recorrente.
O que das alegações deflui, é a sua discordância relativamente ao valor indemnizatório arbitrado pelo tribunal com recurso à equidade, a partir dos factos provados, o que, podendo ser objecto de reapreciação em sede recursiva, não constitui nulidade de falta de fundamentação prevista pela alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Termos em que se julga improcedente a alegada falta de fundamentação da sentença, nos termos e para os efeitos previstos pela alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
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Da nulidade por omissão de pronúncia
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No que concerne à alegada nulidade prevista pela supracitada alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, ocorre omissão de pronúncia perante a ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa.
A norma em apreço conjuga-se com o n.º 2 do artigo 608.º do CPC que impõe ao juiz o dever de “…resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; (…)”.
A omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que, por isso, tem de abordar e resolver, ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os dissídios ou problemas concretos a decidir e não as razões, no sentido de simples argumentos, opiniões, motivos, ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respectivas posições, na defesa das teses em presença.
O que se compreende porque, por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas.
Como ensina Alberto dos Reis, não enferma da nulidade em apreço, a decisão “…que não se ocupou de todas as considerações feitas pelas partes, por o tribunal as reputar desnecessárias para a decisão do pleito. (…) São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer do seu ponto de vista: o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.” [8]
A este propósito, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.10.2022, relatado pelo Conselheiro Isaías Pádua no processo n.º 602/15.0T8AGH.L1-A.S1 [9], dá conta de que “constitui communis opinio, o conceito de “questões”, a que ali se refere o legislador, deve somente ser aferido em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes ou da matéria de exceção capaz de conduzir à inconcludência/improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial, ou seja, abrange tão somente as pretensões deduzidas em termos do pedido ou da causa de pedir ou as exceções aduzidas capazes de levar à improcedência desse pedido, delas sendo excluídos, como já acima deixámos referido, os argumentos ou motivos de fundamentação jurídica esgrimidos/aduzidos pelas partes (…)”.
Sobre a questão também Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Filipe Pires de Sousa referem ser “…pacífica a jurisprudência que o dever de decidir tem por referência as questões suscitadas e bem assim as questões de conhecimento oficioso, mas que não obriga a que se incida sobre todos os argumentos, pois que estes não se confundem com questões (STJ 23-1-19, 4568/13)”. [10]
Defende a Recorrente “Generali” a nulidade da sentença de 1ª instância (cfr. alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC) por vício de omissão de pronúncia quanto aos factos alegados nos artigos 50º a 54º, 56º e 57º do articulado de defesa que apresentou em 22.06.2021 (ref.ª Citius 9052150).
É o seguinte, o teor dos artigos em apreço:
“50- A dado passo, o 1º Réu abeirou-se do Autor, em plena via pública, tendo-lhe solicitado que removesse a respetiva viatura do local.
51- O Autor explicou ao 1º Réu que a razão da sua permanência no local se prendia com o facto de estar à espera da sua esposa, que estava a prestar serviços conexos com o fornecimento e colocação de arranjos florais no casamento que decorria no interior do restaurante “O (…)”.
52- Mais lhe tendo dito que só aí permaneceria temporariamente.
53- Para comprovar o motivo da sua permanência no local, o Autor fez questão de mostrar ao 1º Réu o interior da mala da sua carrinha, onde estavam colocados alguns desses arranjos.
54- Para o efeito, o Autor saiu do interior da carrinha e deslocou-se em direção às traseiras desse veículo, já que, na respetiva caixa de carga, estavam colocados alguns dos arranjos florais. (…)
56- Quando o Autor estava a passar junto ao rodado traseiro do seu veículo, estando de costas voltadas para o 1º Réu, este, sem qualquer razão e injustificadamente, desferiu, voluntária e propositadamente, um golpe no lado direito da cabeça do Autor.
57- No momento em sofreu o golpe, o Autor estava de costas voltadas para o 1º Réu. (…)”.
Antes do mais, recorde-se que a “Generali” tem nos autos a posição de interveniente acessória, o que significa que lhe são aplicáveis os poderes e deveres gerais previstos para a assistência pelo artigo 328.º do CPC, entre os quais, como explicam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Filipe Pires de Sousa, “…a atuação do assistente está subordinada à da parte assistida, significando isso que, embora seja admitido a complementar a atividade do assistido, não pode assumir atitude contrária à daquele, nem sequer pode substituir-se-lhe, em termos de praticar atos que a parte tinha o ónus de praticar e, no entanto, omitiu. Por exemplo, o assistente não pode impugnar factos, deduzir exceções ou invocar causa de pedir que o assistido não haja impugnado, deduzido ou invocado, mas pode apresentar peça que complemente a alegação ou a impugnação de factos feita pelo assistido; (…)”.[11]
Os artigos 50 a 57 do articulado da Interveniente “Generali” dizem respeito a circunstancialismo da ocorrência das agressões de que o Autor foi vítima.
É sobre o Autor que impende o ónus de alegar e de provar a prática dos actos lesivos da sua integridade física, enquanto factos fundadores da ilicitude, da culpa, do dano e do nexo causal que são pressupostos do direito a que se arroga, fundado na responsabilidade civil dos Réus (cfr. artigo 342.º do Código Civil).
Tendo presente a posição assessória da “Generali” nos autos, relativamente à Ré “(…)”, está-lhe vedado trazer para decisão factos cujo ónus de alegação pertence ao Autor, agindo, na prática, como um auxiliar da parte que tem um interesse contrário ao da 2ª Ré.
Compulsado o teor dos factos em apreço, constata-se que a Ré impugnou a matéria de facto referente às agressões perpetradas pelo 1º Réu sobre o Autor.
É o que decorre dos seguintes artigos 39º e 46º a 50º da contestação da 2ª Ré:
“39.º
Os factos dados como provados pela sentença proferida no processo crime não fazem prova plena no processo sub judice, pelo que o Autor não poderá abster-se de alegar e fazer prova dos factos correspondentes ao preenchimento dos pressupostos legais da responsabilidade civil extracontratual previstos no artigo 483.º do Código Civil. (…)
46º
A 2ª Ré também não nega a possibilidade de responsabilização do 1º Réu, conforme alegado pelo Autor, pelos factos que em discussão nos presentes autos, sendo que, contudo, deverá sempre a mesma ser provada e alegada; (…)
48.º
Aliás, sempre se diga que não resultou provado do procedimento disciplinar com vista ao despedimento instaurado pela 2ª Ré contra o 1º Réu quais os concretos fatos praticados por este último à data desses fatos,
49.º
Nem resultou da prova produzida em sede da ação de impugnação da regularidade e licitude do despedimento instaurada pelo 1º Réu contra a 2ª Ré (que correu termos no Tribunal de Trabalho de Faro e que foi julgada improcedente, conforme sentença junta pelo Autor aos presentes autos).
50.º
Dessa ação resultou apenas provado que o 1º Réu afastou o Autor com um empurrão e que este último bateu com a cabeça e ficou inanimado (…)” (sublinhados nossos).
A transcrição é bem reveladora de que a linha da defesa esgrimida pela Ré “(…)” na sua contestação, não passou pela admissão da prática das agressões pelo 1º Réu ao Autor e, muito menos, pela imputação da sua prática em circunstancialismo que acentua a gravidade da conduta do primeiro, como intencionalmente faz a Interveniente nos artigos 50º a 57º do seu articulado.
Contrariamente ao que a 2ª Ré alegou na contestação, a Interveniente, nos números 50º a 57º do articulado em apreço, afirma, não apenas que o 1º Réu cometeu as agressões físicas sobre a pessoa do Autor nas indicadas condições de tempo e lugar, como ainda num momento em que este se encontrava de costas, desprotegido e de forma totalmente imprevista, em termos tais que acentuam a ilicitude e a culpa da conduta do 1º Réu.
Trata-se de uma posição da Interveniente relativamente aos factos que não constitui colaboração com a estratégia da parte principal assistida, a aqui 2ª Ré, já que ao admitir e ao imputar ao 1º Réu a prática de factos que a 2ª Ré impugna por desconhecimento, se não inscreve na mesma estratégia relativamente à factualidade alegada pelo Autor. Tenha-se presente que o assistente só pode complementar a alegação ou a impugnação de facto realizada pela 2ª Ré. Teria, por isso, de acompanhar ou ampliar a impugnação pela 2ª Ré da factualidade que constitui fundamento do pedido do Autor, não podendo alegar factos que se opõem a essa posição processual.
Por outro lado, o argumento de que os factos que a Interveniente veio alegar são favoráveis à tese da 2ª Ré também se não afigura isento de reparos.
Desde logo, porque se assim fosse teria sido a 2ª Ré a alegar tais factos e não a Interveniente que, em boa verdade, tampouco tem conhecimento pessoal dos mesmos.
Depois, porque a defesa da 2ª Ré, consistindo na negação da relação de comissão entre si e o 1º Réu, se não funda no agravamento do circunstancialismo da prática das agressões relativamente à factualidade alegada pelo Autor na p.i. (a quem compete a prova dos pressupostos do seu direito), mas antes e apesar do contrato de trabalho vigente entre ambos os Réus celebrado, na negação de que o 1º Réu estivesse a vigiar o local onde os factos terão ocorrido (cfr. artigos 67º e 69º da contestação da 2ª Ré) e de que tenham sido cometidos no exercício das funções que lhe foram confiadas, por estarem fora do quadro geral da competência do mesmo, enquanto vigilante ao serviço da 2ª Ré, o que era do conhecimento do 1º Réu (artigos 43º, 56º, 57º e 61º da contestação da 2ª Ré).
Em terceiro lugar, mostra-se discutível se os factos alegados pela Interveniente são, efectivamente, mais favoráveis à tese da 2º Ré do que à do Autor. A Interveniente diz considerar que sim, mas afigura-se duvidoso que deles advenha algum argumento decisivo para afastar a relação comitente / comissário que não pudesse encontrar-se já nos factos alegados pelo Autor e na aludida defesa apresentada pela 2ª Ré. Em contraponto, parece-nos evidente que os factos incrementam o grau de culpa e de ilicitude do 1º Réu, o que é claramente do interesse do Autor. Uma coisa é certa, a Ré optou por não os alegar quando podia tê-lo feito também.
Não tendo emanado do Autor, a quem poderiam aproveitar, mas da Interveniente acessória que o não poderia auxiliar, nem assumir posição incompatível com a da 2ª Ré, bem se compreende que a sentença não tenha considerado os factos em apreço no elenco dos provados e não provados.
Fazer o contrário seria violar as regras do ónus de alegação e prova que a cada um dos concretos sujeitos processuais em apreço se aplicam.
Termos em que se julga improcedente a alegada nulidade por omissão de pronúncia.
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Da nulidade por excesso de pronúncia / decisão surpresa
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A Interveniente “Generali” sustenta também que, ao incluir na sentença o facto provado 33, relacionado com o conteúdo do contrato de seguro celebrado com a chamada, o julgador pronunciou-se sobre questão que não lhe era lícito conhecer, incorrendo em manifesto excesso de pronúncia, o que acarreta a nulidade da douta sentença, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC.
Como vimos, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (cfr. artigo 5.º, n.º 3, do CPC) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC).
Mas a faculdade de o juiz não conhecer toda a argumentação jurídica apresentada pelas partes, assim como de se socorrer de outras normas, interpretações, doutrina e jurisprudência para além das que estas invocaram, não lhe consente o conhecimento de matéria de facto que se não mostre necessária à decisão dos pedidos formulados, em atenção à várias soluções jurídicas aplicáveis ao caso, nem de questões jurídicas irrelevantes à decisão do pedido.
Isto, porque está obrigado a conhecer as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, e não outras, alheias ou inúteis à decisão dos pedidos formulados na acção (cfr. n.º 2 do artigo 608.º do CPC).
Quando o tribunal conheça de matéria situada fora das questões temáticas centrais do thema decidendum, constituído pelos pedidos e pelas causas de pedir, e respectivas excepções, verifica-se uma nulidade da decisão por excesso de pronúncia.
Sobre a questão, entre outros, vejam-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15.09.2022 e de 06.03.2024, relatados pelos Juízes Conselheiros Nuno Ataíde das Neves e Mário Belo Morgado, respectivamente nos procs. 3395/16.0T8BRG.G1.S1 e 4553/21.1T8LSB.L1.S1. [12]
No caso vertente, em causa a matéria de facto provada na sentença sob o n.º 33 com o seguinte teor:
“33) A Ré (…) – Prevenção e Segurança, Lda. transferiu a responsabilidade civil da sua atividade para a interveniente Generali Seguros, SA mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º (…).”
Considera a Recorrente que se trata de matéria sobre a qual o tribunal não devia ter-se pronunciado.
A celebração do contrato de seguro entre a “(…)” e a “Generali”, constitui o fundamento da intervenção processual acessória desta companhia seguradora nos autos, tendo sido oportunamente alegada pela Ré “(…)” na sua contestação (cfr. artigos 146º a 176º) e parcialmente aceite pela “Generali” no seu articulado de defesa (cfr. artigos 24º e 27º a 38º) cujo artigo 28º reza:
“Entre a chamada e a Ré “(…) – Prevenção e Segurança, Lda.” foi celebrado um contrato de seguro, do ramo responsabilidade civil, titulado pela apólice (…) o qual se regia pelas suas condições gerais, especiais e particulares que se juntam como Docs. 1, 2 e 3 e cujo teor se dá aqui por reproduzido e integrado.”
Em conformidade com tal declaração, a Interveniente “Generali” juntou com o articulado de defesa documentos comprovativos da existência do contrato de seguro (documentos 1 a 3 do aludido articulado).
Deste modo, apesar de divergências quanto ao clausulado vigente, ambas as partes alegaram a celebração do contrato de seguro de responsabilidade civil em apreço, por referência ao mesmo número da apólice.
Trata-se, nesta parte, de um facto assente no processo que, embora não tenha relevância para a decisão da questão jurídica substantiva central da acção – referente à responsabilidade civil extracontratual dos Réus pelos danos alegadamente sofridos pelo Autor –, se mostra necessário porque suporta e justifica a posição processual assumida pela Interveniente assessória nos autos, sem o qual esta não teria sido admitida a intervir, não teria legitimidade para interpor recurso da decisão final, nem a presente decisão produziria quanto a si o efeito de caso julgado relativamente às questões substantivas a decidir na lide.
Não pode deixar de registar-se a contradição que resulta de a “Generali” interpor recurso da sentença de 1ª instância, como titular de um interesse que decorre da possibilidade de vir a ser demandada em ulterior acção de regresso a propor pela Ré / segurada e, simultaneamente, negar a possibilidade de inclusão na sentença do único facto do qual essa qualidade promana.
Por outro lado, versando sobre o conteúdo e a celebração de um contrato de seguro entre dois sujeitos processuais, documentalmente suportado nos autos, a prova do facto relevante em apreço não é o resultado de decisão do juiz, mas da mera aplicação das regras processuais vigentes, pelo que não existe, em rigor, qualquer pronúncia, no sentido da decisão jurisdicional de uma questão controvertida, de facto ou de direito.
Sem prejuízo da sua redacção dever sofrer ligeira alteração, de modo a acentuar a remissão para os termos da apólice outorgada, o que será objecto de tratamento mais adiante, o facto que consiste na celebração do contrato de seguro em apreço mostra-se, nos termos expostos, necessário à sentença / decisão final a proferir na presente acção, considerados os sujeitos que intervêm no processo, e não comporta uma tomada de posição jurisdicional sobre facto controvertido.
As mesmas considerações se aplicam à alegação de que a inclusão do facto constitui uma decisão-surpresa, com a qual nenhuma das partes poderia, legitimamente, contar, na medida em que ambas alegaram a celebração do contrato de seguro de responsabilidade civil em apreço, por referência ao mesmo número de apólice, sendo que cada uma delas se pronunciou livremente sobre o seu conteúdo nos articulados e, inclusivamente, juntou documentos como respectivos meios de prova.
Não há, por isso, no facto em apreço, conteúdo de que as partes não tivessem já conhecimento, passível de fundamentar a alegação de que se trate de uma decisão-surpresa. Percute-se que esta conclusão não invalida a eventual necessidade de alteração da redacção do facto, de modo a adequá-lo com as posições consensuais das partes, o que se não confunde com a nulidade prevista pela alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Tanto basta para, sem necessidade de outros considerandos, concluir que nenhum fundamento assiste à alegada nulidade da sentença de 1ª instância por excesso de pronúncia ou com fundamento em decisão-surpresa, no que à inclusão do facto provado número 33 respeita e, consequentemente, se julgue a mesma improcedente.
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***
Do recurso da decisão da matéria de facto
*
Vem o presente recurso interposto da matéria de facto provada e não provada da sentença de primeira instância.
Vejamos, por isso, em primeiro lugar, se foram observados os requisitos de impugnação da matéria de facto.
Prevê o artigo 640.º do C.P.C.:
“1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) – Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) – Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) – A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) – Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) – Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”
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As Recorrentes incidiram o seu recurso da matéria de facto sobre:
- os factos provados números 1), 4), 8), 10), 11), 16), 18) e 26) que a Ré “(…)” entende deverem ser alterados na sua redacção;
- os factos provados números 4), 8), 18) e 33) - cuja redacção, no entendimento da Interveniente “Generali” deverá ser alterada de modo a reflectir aquela que foi a prova do julgamento ou a matéria consensual entre as partes; bem como
- a omissão da matéria constante dos artigos 50º a 54º, 56º e 57º do articulado de defesa que apresentado pela Interveniente em 22.06.2021.
A 2ª Ré discriminou nas suas alegações o conteúdo da alteração da redacção de cada facto por si impugnado, o que a Interveniente também fez relativamente ao facto provado número 33 e aos factos a aditar à matéria provada, resultantes dos artigos 50º a 57º do seu articulado.
As partes também indicam os meios de prova que, relativamente a cada um dos factos impugnados, justificam, em sua opinião, a alteração da decisão de 1ª instância, fazendo-o, por transcrição e indicação dos momentos da gravação quanto aos meios de prova pessoal registados em audiência de julgamento.
Mostram-se, assim, cumpridos os requisitos previstos nas alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC.
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Nos termos do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do C.P.C., cuja epígrafe é “modificabilidade da decisão de facto”, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Neste particular, o tribunal de recurso, sem embargo da atendibilidade da prova plena que resulte dos autos, deve verter o que emergir da apreciação crítica e livre dos demais elementos probatórios e usar, se for o caso, as presunções judiciais que as circunstâncias justificarem, designadamente a partir dos factos instrumentais, como decorre do n.º 4 do artigo 607.º e da alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º, ambos do C.P.C. ([13]), tanto mais que a anulação de uma sentença deve confinar-se aos casos em que, como previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do C.P.C., não constem “…do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto”.
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.07.2024, relatado pelo Desembargador Jorge Martins Ribeiro no processo n.º 99/22.9T8GDM.P1 ([14]), para reapreciar a decisão de facto impugnada, o Tribunal da Relação “…tem de, por um lado, analisar os fundamentos da motivação que conduziu a primeira instância a julgar um facto como provado ou como não provado e, por outro, averiguar, em função da sua própria e autónoma convicção, formada através da análise crítica dos meios de prova disponíveis e à luz das mesmas regras de direito probatório, se na elaboração dessa decisão e na sua motivação ocorre, por exemplo, alguma contradição, uma desconsideração de qualquer um dos meios de prova ou uma violação das regras da experiência comum, da lógica ou da ciência – elaboração, diga-se, que deve ser feita à luz de um cidadão de normal formação e capacidade intelectual, de um cidadão comum na sociedade em questão – sem prejuízo de, independentemente do antes dito, poder chegar a uma decisão de facto diferente em função da valoração concretamente efetuada em sede de recurso.”
Ainda sobre a intervenção da Relação na decisão da matéria de facto decidida em 1ª instância, será pertinente invocar a fundamentação clara do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02.11.2017, relatado pela Desembargadora Maria João Matos no processo n.º 212/16.5T8MNC.G1, ([15])
“…quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto - que a ela conduza - constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do artigo 607.º, n.º 4, do C.P.C., aqui aplicável ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no C.C.), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspetos não respeita apenas às provas a produzir em juízo.
Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa. Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico – com força probatória plena – cuja falsidade não tenha sido suscitada (artigos 371.º, n.º 1 e 376.º, n.º 1, ambos do CPC), ou quando exista acordo das partes (artigo 574.º, n.º 2, do CPC), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (artigo 358.º do CC e artigos 484.º, n.º 1 e 463.º, ambos do CPC), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (v.g. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos artigos 351.º e 393.º, ambos do CPC).
Ao fazê-lo, tanto poderá afirmar novos factos, como desconsiderar outros (que antes tinham sido afirmados).”
*
Tendo presentes estes considerandos, vejamos quais os concretos pontos da matéria de facto que as Recorrentes pretendem ver alterados.
I.
Entende a Recorrente “(…)” que devia ser considerada não provada a matéria dos seguintes factos provados:
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Facto provado n.º 1)
“1) Em 26 de Junho de 2016, entre as 02.40 horas e as 02.44 horas, junto ao Restaurante “O (…)”, sito no empreendimento Quinta do (…) – Almancil, o Réu (…), após uma discussão com o Autor (…) relativa ao facto deste estar a obstruir a passagem de veículos enquanto carregava arranjos florais do restaurante para a viatura, desferiu-lhe diversos golpes com incidência na zona da cabeça, munido de uma lanterna metálica (artigos 25º e 26º da petição inicial).”
Considera a 2ª Ré que o facto se encontra incorrectamente julgado, devendo passar a ter a seguinte redação:
“1) Em 26 de Junho de 2016, entre as 02.40 horas e as 02.44 horas, junto ao Restaurante “O (…)”, sito no empreendimento Quinta do (…) – Almancil, o Réu (…) participou num diálogo com o Autor (…), relativo ao facto deste estar a obstruir a passagem de veículos desferiu-lhe diversos golpes com incidência na zona da cabeça.”
Sustenta para o efeito que da observação das imagens de videovigilância (Doc. 2 – Ficheiro de Vídeo 02:30:00 a 02:45:00 junto a 17.07.2023 – ref. ª Citius 11509960), não é possível visualizar o Recorrido a carregar arranjos florais do estabelecimento comercial “O (…)” para a viatura, ou vice-versa, e muito menos o desferimento de quaisquer golpes ao Recorrido por parte do 1.º Réu com recurso a uma lanterna – a qual o 1.º Réu confessou ter perdido (depoimento do 1.º Réu em 06.07.2023, minutos 53:09 – 53:19); e o Recorrido refere não ter qualquer recordação de o 1.º Réu estar ou não dotado de lanterna (depoimento do Autor em 06.07.2023, minutos 27:55 – 28:11).
Analisada a gravação de imagem da câmara n.º 5, esta não permite captar o local onde ocorre a agressão pelo 1º Réu ao Autor. Vê-se, no entanto, às 2:44:02, o 1º Réu a dirigir-se a passo ao lado da carrinha onde Autor estava a conduzi-la, às 22:44:47 o 1º Réu a vir sozinho da lateral rapidamente à traseira com uma lanterna acesa, regressando à lateral de onde volta a surgir logo a seguir, pelas 22:44:57, arrastando o corpo inerte do Autor pelo chão, desde a lateral traseira do veículo deste até à lateral da estrada, e abandonando o local em passo apressado pelas 22:45:06 horas.
Foi no sítio onde o 1º Réu deixou o Autor, junto a umas pedras na lateral da estrada, que a companheira do Autor, segundo disse em julgamento, o encontrou a sangrar da cabeça. Deste modo, a agressão não ocorreu na parte traseira da carrinha, mas na lateral do lado do condutor.
No mesmo registo de imagem vê-se também, em vários momentos anteriores das duas gravações, o 1º Réu usar a referida lanterna e, imediatamente após a agressão, o 1ª Réu passar junto à traseira da mesma viatura munido da mesma acesa.
Deste modo, a gravação desmente a invocada “confissão” (regista-se a escolha da palavra relativamente a uma declaração que não constitui confissão alguma) do 1º Réu no sentido de que perdeu a lanterna. Quanto ao Autor, é compreensível que não se tivesse apercebido da lanterna porque era noite, a lanterna podia estar desligada no momento da agressão e, como disse em tribunal, terá sido agredido por trás, sem que se tivesse visto.
Relativamente ao carregamento de arranjos florais, é certo que nem a gravação de imagem, nem as próprias declarações do Autor, permitem concluir que estivesse, naquele momento, a carregar arranjos florais, mas antes que, tal como também disse o 1º Réu, que estava à espera para carregar os arranjos florais que a companheira do Autor se encontrava a recolher no interior do restaurante.
Deste modo, deverá ser acolhida parcialmente a impugnação do facto em apreço, apenas no que respeita aos arranjos florais, de modo a reflectir a prova descrita.
Passará, por isso a ter a seguinte redacção:
“1) Em 26 de Junho de 2016, entre as 02.40 horas e as 02.44 horas, junto ao Restaurante “O (…)”, sito no empreendimento Quinta do (…) – Almancil, o Réu (…), após uma discussão com o Autor (…) relativa ao facto deste estar a obstruir a passagem de veículos enquanto esperava pelo carregamento de arranjos florais do restaurante para a viatura, desferiu-lhe diversos golpes com incidência na zona da cabeça, munido de uma lanterna metálica (artigos 25º e 26º da petição inicial).”
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Facto provado n.º 4)
“4) Tais pancadas prolongaram-se por 2 minutos e não deixaram ao Autor qualquer possibilidade de defesa (artigo 29º da petição inicial).”
Pretende a Ré “(…)” a alteração do facto em apreço no seguinte sentido:
“4) Tais pancadas prolongaram-se por menos de 1 minuto e não deixaram ao Autor qualquer possibilidade de defesa.”
Baseia o seu pedido na visualização das imagens de videovigilância (Ficheiro de Vídeo 02:44:50 a 02:45:00 – Doc. 2 junto a 17.07.2023 – ref. ª Citius 11509960) do qual não resulta que as alegadas agressões tenham durado 2 minutos, pois entre o momento em que se visualiza alguém a abordar o Recorrido e o momento em que se observa o 1.º Réu a arrastar o corpo do Recorrido, decorreu menos de 1 minuto, mais precisamente cerca de 55 segundos. Por isso, conclui, foi incorretamente julgado o Facto Provado n.º 4.
Da descrição sobre o registo de imagem feita a propósito do facto provado número 1 resulta que, efectivamente, não passou mais de um minuto, entre o momento em que o 1º Réu se acercou da lateral da viatura onde se encontrava o Autor e o momento em que surge da mesma arrastando o seu corpo.
Assiste, por isso, fundamento probatório para a alteração proposta do facto proposta pela 2ª Ré que, assim, deverá assumir a redacção:
“4) Tais pancadas prolongaram-se por menos de 55 segundos e não deixaram ao Autor qualquer possibilidade de defesa.”
*
Facto provado n.º 8)
“8) O Autor esteve internado 11 dias nos cuidados intermédios do Hospital de Faro, tendo alta para residência (artigo 41º da petição inicial).”
Considera a Recorrente que o facto em questão deve assumir a seguinte redacção:
“8) O Autor esteve internado 7 dias nos cuidados intermédios do Hospital de Faro, tendo alta para residência (artigo 41.º da petição inicial).”
Sustenta-se na prova documental junta aos autos que, segundo alega, comprova que o Recorrido foi internado no Centro Hospitalar Universitário do Algarve no dia 26.06.2016, tendo recebido alta médica em 03.07.2016, o que perfaz um total de 7 dias de internamento.
Compulsada a documentação existente nos autos constata-se que tem razão a Recorrente, porquanto o Autor deu entrada e foi internado no Centro Hospitalar Universitário do Algarve na madrugada do dia 26.06.2016, permanecendo internado no serviço de especialidade de neurocirurgia entre 27.06.2016 até 03.07.2016, data em que recebeu alta médica para o domicílio daquele serviço e saiu pelas 13 horas, acompanhado da sua esposa, como se comprova pelos seguintes documentos:
i. Documento n.º 13, junto com o requerimento apresentado pelo Autor a 18.01.2020 (ref.ª Citius 8401705 ), página 1, do qual consta que teve alta para o domicílio no dia 03.07.2016, após o internamento no serviço de neurocirurgia;
ii. Ofício junto pelo Centro Hospitalar Universitário do Algarve a 17.02.2022 (ref.ª Citius 9791591), página 5, que contém a mesma referência do documento aludido em i. supra; e
iii. Relatórios Periciais com conclusões preliminares juntos pelo Gabinete Médico-Legal e Forense do Sotavento Algarvio a 09.03.2022 (ref.ª Citius 9862987), 18.01.2023 (ref.ª Citius 10879633) e 26.04.2023 (ref.ª Citius 11231037), páginas 3 e 4, 18.01.2023, páginas 1 e 2, e 26.04.2023, páginas 1 e 2.
Deve, por isso, ser acolhida a alteração da redacção do facto provado número 8, proposta pela Recorrente “(…)” nos seguintes termos:
“8) O Autor esteve internado 7 dias nos cuidados intermédios do Hospital de Faro, tendo alta para residência (artigo 41.º da petição inicial).”
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Facto provado n.º 10)
10) Em consequência da conduta do Réu, o Autor:
I) Sofreu traumatismo craniano encefálico, com desorientação temporal e espacial e discurso inadequado e apresenta sequelas no crânio – sem deformidade e/ou assimetria da colote craniana com lentificação do discurso e perturbações sensoriais, agnosia e perturbações da audição do ouvido direito com sinais e sintomas sugestivos de síndrome pós comocional moderado com repercussão nas atividades diárias e profissionais. II) Consolidação das lesões em 19-01-2017; III) Défice Funcional Temporário Total de 58 dias; IV) Défice Funcional Temporário Parcial de 149 dias; V) Período de Repercussão Temporária na Atividade profissional Total- 207 dias; VI) um Quantum Doloris no grau 4/7; VII) um Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica de 20 pontos em 100; VIII) Dano Estético Permanente no grau 1/7; IX) Repercussão Permanente na Atividade Profissional- sequelas compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares; X) Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer no grau 3/7; XI) O Autor necessita de apoio regular do foro neurológico / psiquiátrico – consultas anuais (artigos 64º, 67º, 70º, 71º e 78º a 84º da petição inicial e relatório pericial).”
No que respeita ao facto provado em apreço, a sentença encontra-se estribada nas conclusões do relatório de avaliação do dano físico-psíquico junto pelo Gabinete Médico-Legal e Forense do Sotavento Algarvio a 26.04.2023, resultante do exame pericial determinado nos presentes autos à pessoa do Autor, constituindo reprodução do respectivo teor.
A Recorrente “(…)”, todavia, entende que o juízo clínico do Sr. Perito do Gabinete do IML, Dr. (…), se encontra errado e que o facto em apreço deverá passar a ser:
“10) O Autor: I) Sofreu traumatismo craniano encefálico, com desorientação temporal e especial e discurso inadequado e apresenta sequelas no crânio – sem deformidade e/ou assimetria da calote craniana. II) Consolidação das lesões anterior a 19-01-2017; III) Défice Funcional Temporário Total de 33 dias; IV) Défice Funcional Temporário Parcial de 33 dias; V) Período de Repercussão Temporária na Atividade profissional Total – 33 dias; VI) um Quantum Doloris no grau 2/7;”.
Alegou para o efeito que:
a. Quanto à redução para 33 dias dos períodos de défice funcional temporário e de repercussão temporária na atividade profissional total reduzido para 33 dias, se deve ao facto de o Recorrido ter estado internado 7 dias (e não 11) e o seu repouso absoluto durado cerca de 30 dias (o Autor regressou ao trabalho após 1 mês e trabalhou desde o dia 3 de agosto – cfr. documento 6 junto com a PI, em 17.11.2020 - ref.ª Citius 8396807 - e Documento n.º 2 anexo ao email da Segurança Social junto a 10.12.2021 - ref.ª Citius 9570707);
b. Quanto ao período de défice funcional parcial não dever ser de 149 dias e ao défice funcional permanente da integridade físico-psíquica não poder ser fixado em 20 pontos, na circunstância do perito Dr. … (em esclarecimentos prestados na sessão de julgamento de 05.07.2023, minutos 06:51 – 07:48) ter confirmado (i) que a valoração das perturbações de paladar decorreu apenas de declarações do Recorrido, (ii) que não tinha elementos para analisar a perda de audição (esclarecimentos prestados a 05.07.2023, minutos 10:39 – 15:00), admitindo a possibilidade de à data da consolidação médico-legal ser anterior a 19.01.2017 por naquela data o Recorrido já apresentar sequelas que não constituem uma consequência directa o acontecimento (esclarecimentos prestados a 05.07.2023, minutos 15:10 – 19:41);
c. O quantum doloris deverá ser fixado, no limite, no grau 2, atendo o referido nos precedentes parágrafos e ao facto de não ter existido qualquer intervenção cirúrgica nem o Autor ter estado em coma;
d. Não há exames médicos que comprovem: a necessidade de esforços suplementares no desempenho da sua atividade profissional; a repercussão nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 3 – pelo contrário, a testemunha Luís Piçarra (depoimento prestado a 05.07.2023, minutos 09:21 – 09:51) comprovou que o Recorrido não tinha por hábito a prática de atividades desportivas;
e. Não existe dano estético permanente – estamos perante uma cicatriz presente na calote craniana do Recorrido, que não apresenta mais do que 1 centímetro;
f. O acompanhamento regular do foro neurológico / psiquiátrico foi negligenciado pelo Recorrido, pelo que não existe tal necessidade (confirmado pelo Documento 6 junto com a p.i., em 17.11.2020 (ref. Citius 8396807).
Analisemos, então, cada um dos argumentos invocados:
a. No que respeita à redução para 33 dias dos períodos de défice e repercussão na actividade profissional total, a Recorrente suporta a sua divergência quanto ao Sr. Perito na circunstância de o Autor ter estado internado apenas 7 dias e não 11. Parece-nos que mal, pois confunde período de internamento hospitalar com a incapacidade de alguém para realizar normais funções do dia a dia, entre as quais trabalhar. A tendência recente é de diminuir os períodos de internamento ao estritamente necessário, de modo a poupar recursos humanos e materiais ao SNS, fazendo-se a restante recuperação em casa, em repouso e situação de total incapacidade. Quanto ao argumento de que Autor regressou ao trabalho após 1 mês e trabalhou desde o dia 3 de Agosto, o que consta do parecer médico junto pelo Autor como documento 6 da p.i. em 17.11.2020 - ref.ª Citius 8396807 – é que, decorrido um mês, o Autor: “…começou a procurar retomar a sua atividade profissional por conta própria, embora numa fase inicial com substancial limitação, por cansaço fácil e diminuição da rapidez de raciocínio, só a tendo retomado de forma mais significativa dois a três meses após o evento.” (sublinhados nossos). Isto significa que, malgrado a tentativa de retomar o seu trabalho, o Autor esteve ainda muito tempo sem o conseguir executar de forma tangível. Acresce que, nem este documento, nem o anexo declarativo das remunerações do Autor junto da Segurança Social (junto a 10.12.2021 – ref.ª Citius 9570707), apresentam qualquer critério clínico que possa pôr em crise o juízo técnico do Sr. Perito médico do GML relativamente àquele que, segundo disse, em face das lesões evidenciadas pelo examinando, constitui o tempo clinicamente indicado para que alguém possa retomar a sua actividade.
b. Quanto ao período do défice funcional parcial e ao grau de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica, ouvidos os esclarecimentos que o Sr. Perito do GML, Dr. (…), prestou na sessão de julgamento de 05.07.2023, constatou-se que:
- (i) relativamente às perturbações de paladar e de audição, disse muito claramente que não foram valorizadas para efeito de determinação da incapacidade (cfr. minutos 12:30 a 12:42) e que se limitou a descrevê-las por terem sido apresentadas tais queixas pelo Autor, razão pela qual, ao contrário do sustenta a alegação da 2ª Ré, não foram valoradas;
- (ii) não é rigoroso afirmar que:
. haja dito não dispor de elementos para analisar a perda de audição. O que o Sr. Perito afirmou foi que a localização das lesões neurológicas apuradas nos exames de especialidade realizados a seu pedido e a ocorrência de “otorragia” (entenda-se, hemorragia do ouvido) que o Autor ostentava quando foi assistido de urgência na noite dos factos, permitem estabelecer como consequência possível a perda de audição daquele ouvido (cfr. minutos 13:30 a 13:50 e 14:30 a 15:05);
. tenha admitido que a data da consolidação médico-legal fosse anterior a 19.01.2017 por, naquela data, o Recorrido já apresentar sequelas que não constituem uma consequência direta o acontecimento. O Sr. Perito, pelo contrário, secundou a data que consta do relatório pericial, explicando que se baseia em documentos existentes no processo clínico, nomeadamente no relato da consulta de neuropsicologia realizada ao Autor nesse mesmo dia, do qual consegue concluir que as lesões se encontravam estabilizadas, mais dizendo que só assumiria data distinta se dispusesse no processo clínico de outros elementos que lhe permitissem tal conclusão, o que não sucedeu (minutos 17:05 a 18:48). Disse ainda que não havia outra data alternativa mais próxima da data da ocorrência das lesões, documentada nos autos (19:22 a 21:45).
Assim, a única alteração justificável à alínea I) do facto provado número 10 encontra-se na parte referente à perda de audição, porquanto o Sr. Perito explicou que admitiu como possível (não como certa) a ocorrência dessa sequela em resultado das lesões sofridas na agressão em apreço.
Termos em que deve a alínea I) do facto provado número 10, assumir a seguinte redacção:
“I) Sofreu traumatismo craniano encefálico, com desorientação temporal e espacial e discurso inadequado e apresenta sequelas no crânio - sem deformidade e/ou assimetria da calote craniana – com lentificação do discurso e perturbações sensoriais, agnosia, possíveis perturbações da audição do ouvido direito, e com sinais e sintomas sugestivos de síndrome pós comocional moderado com repercussão nas atividades diárias e profissionais.”
c. e e. A divergência da Recorrente “(…)” quanto ao grau do quantum doloris fixado no relatório pericial, funda-se numa análise meramente opinativa, sem suporte técnico, feita a partir de duas circunstâncias – a ausência de sujeição do Autor a intervenção cirúrgica e a de não ter entrado em estado de coma – que nenhuma valia tem no confronto com a posição expressa pelo Sr. Perito que se fundou nas evidências que apurou no decurso da diligência e, como é bom de ver, não inclui ocorrências que se não verificaram (como a intervenção cirúrgica ou o estado de coma). As mesmas considerações se aplicam à opinião expressa pela Recorrente no sentido de que não há dano estético permanente porque estamos perante uma cicatriz presente na calote craniana do Recorrido, que não apresenta mais do que 1 centímetro.
d. Quanto à alegação de que não há exames médicos comprovativos da necessidade de esforços suplementares no desempenho da sua atividade profissional, ou da repercussão nas atividades desportivas e de lazer fixável no grau 3, a Recorrente parece esquecer que a perícia é, em si mesma, um exame clínico destinando a obter tais conclusões, fundadas no conhecimento técnico do Sr. Perito médico e na análise do examinando, bem como de todos os elementos clínicos disponíveis. A leitura do relatório pericial permite compreender que foi isso que o Sr. Perito médico fez, no exercício das funções para as quais foi nomeado. Quanto à Repercussão nas Actividades Desportivas e de Lazer, avalia a mera possibilidade de serem realizadas depois de estabilizadas as sequelas das lesões, não se o examinando praticava, ou não, desporto à data dos factos.
f. Não se compreende que relação encontra a Recorrente entre a conclusão do Sr. Perito no sentido de que o Autor necessita de cuidados de acompanhamento regular do foro neurológico / psiquiátrico, e a circunstância de este poder ter negligenciado tal necessidade.
Assim, com a ressalva feita quanto ao ponto I), nenhum dos argumentos expendidos pela 2ª Ré contra as conclusões do relatório pericial merece acolhimento, devendo a redacção do facto provado número 10) manter-se, quanto aos pontos II) a XI), como da sentença de 1ª instância consta.
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Facto provado n.º 11)
“11) O Autor, decorrido um mês começou a procurar retomar a sua atividade profissional por conta própria, embora numa fase inicial com substancial limitação, por cansaço fácil e diminuição da rapidez de raciocínio, só a tendo retomado de forma mais significativa dois a três meses após o evento (artigo 43º da petição inicial).”
Considera a 2º Ré que o facto foi incorretamente julgado, devendo passar a ter a seguinte redação:
“O Autor decorrido um mês começou a procurar retomar a sua atividade profissional por conta própria.”
Mantém para o efeito que a testemunha (…) não fez menção específica ao período temporal, com exceção do regresso ao trabalho pelo Recorrido cerca de 1 mês após o evento, nem foi produzida qualquer prova no sentido de “existir substancial limitação, por cansaço fácil e diminuição da rapidez de raciocínio”.
Apreciando, dir-se-á que:
- em primeiro lugar, é aqui aplicável a exposição feita supra, sob o ponto a. da análise da impugnação ao facto provado número 10 da sentença, também demonstrativa de que o teor do facto provado número 11 se mostra sustentado pelo documento 6 da p.i., junto em 17.11.2020 (ref.ª Citius 8396807); e
- em segundo lugar, não é verdade que não exista outra prova de que o Autor evidenciasse, cerca de um mês volvido da data da ocorrência das lesões, limitações de desempenho. Desde logo, o Sr. Perito do GML, Dr. (…), acompanha esse entendimento, não apenas no relatório pericial onde fixou em 58 dias de repercussão temporária na actividade profissional total, como no decurso dos esclarecimentos prestados em julgamento, onde defendeu que no seu critério de avaliação das lesões em apreço, o período ajustado de recuperação até retomar o trabalho deve ser maior, em linha com o número de dias fixado no relatório (cfr. minutos 23:38 a 28:46).
Assim, não colhem as objecções colocadas pela Recorrente, devendo manter-se a redacção do facto provado número 11 como da sentença de 1ª instância consta.
*
Facto provado n.º 16)
“16) O Autor era um homem alegre, otimista, perfeitamente realizado com o que fazia e viu-se, em consequência do descrito de 1) a 6): a) Com limitações no paladar e olfacto; b) Com perturbações da audição; c) Lentificado na execução de tarefas; d) Lentificado de raciocínio; e) Com dificuldade de memorização; f) Com instabilidade emocional; g) Com intolerância ao ruído; h) Com tendências depressivas; i) E sem prazer na vida (artigo 91º da petição inicial).”
Considera a Recorrente que o facto provado deverá ser considerado não provado.
Para tanto invoca que o tribunal de 1ª instância fundamentou a prova do facto 16) no relatório pericial, nos esclarecimentos dos Peritos, nomeadamente do Dr. … (que admitiu como possível a perda de audição de que o Autor se queixa como sequela do evento) e nas declarações das testemunhas …, …, …, … (“que, por conhecerem o Autor muito antes dos factos aqui em causa, descreveram de foram credível as mudanças que o mesmo apresenta no seu quotidiano, não fazendo o mesmo tipo de vida que fazia anteriormente, estando mais deprimido, lentificado e não sendo a mesma pessoa. É certo que os depoimentos não são totalmente coincidentes nalguns pormenores, mas o Tribunal não ficou com dúvidas que a vida do Autor não voltou à rotina normal, até pelas sequelas que constam do relatório pericial, tendo os Srs. Peritos Médicos admitido que o mesmo poderá ter perda de paladar e olfato, estando a perda de audição referida no relatório pericial.”
Porém, ainda segundo a “(…)”:
a. A perda de olfacto e a falta de paladar, são apenas condições alegadas pelo Recorrido, queixas sem evidência ou comprovação em sede de relatório ou exame médico, como decorre dos esclarecimentos prestados pelo Sr. Perito em julgamento.
b. A perda de audição também não está confirmada no relatório pericial, nem pelo Perito Dr. (…) que não a valorizou para efeitos de perícia médico-legal, sendo que a perda de audição pode estar associada à idade do Autor, atualmente com 61 anos, e a zumbidos já sentidos em 2024.
c. d. e e. A lentificação na execução de tarefas e no raciocínio, não é confirmada pelo Relatório de Neuropsicologia elaborado pela Dra. … (ref. Citius 10645967), junto aos autos em 09.11.2022, do qual resulta que o Autor apresenta um rendimento intelectual global dentro da média, estando preservadas as competências de linguagem, velocidade de processamento, organização percetiva e atenção sustentada, sendo considerada a sua memória de trabalho como estando dentro da média, sendo que o próprio Autor referiu, no seu depoimento, ter auxiliado um amigo na montagem de um sistema de rega e ter também instalado motores numa piscina, o que revela raciocínio e capacidade de execução de tarefas. Mantém ainda que a Dra. (…), entendeu que sintomatologia depressiva pode contribuir para agravar alterações cognitivas de forma reversível e que não é possível detectar se a alegada sintomatologia depressiva está relacionada exclusivamente com o evento ocorrido em 26.06.2016. Por último, socorre-se uma vez mais do depoimento do Autor no sentido de que vem frequentando o escritório diariamente, no horário de trabalho das 10:00 às 16:30, sem necessidade de trabalhar durante o período da noite, como outrora, daí concluindo a Recorrente que o Autor consegue agora executar todas as tarefas atinentes à sua atividade profissional durante o referido horário de trabalho.
f. e g. Quanto à instabilidade emocional e intolerância ao ruído, tal condição não resulta objetivamente de qualquer relatório ou exame médico realizado, derivando, mais uma vez, de meras declarações do Recorrido, sendo certo que este confirma que continua a ir uma vez por ano à concentração motard, o que é contraditório com tal estado de intolerância.
i. No que respeita à perda de prazer na vida, a prova testemunhal e o depoimento do Recorrido demonstram que o Autor continua a realizar as suas atividades de lazer e, a existir alguma atividade que seja preterida por ocorrência do evento em discussão nos autos, assim o é por mera vontade e arbítrio do próprio, já que inexiste qualquer indicação médica nesse sentido.
Vejamos se, e em que medida, serão de atender os argumentos da 2ª Ré.
a. e b.
Como resulta do que já ficou expresso na presente fundamentação, é certo que relativamente às perturbações do paladar, do olfacto e da audição, o Sr. Perito (…) esclareceu em julgamento que não foram valorizadas para efeito de determinação da incapacidade (cfr. minutos 12:30 a 12:42) e que se limitou a descrevê-las por terem sido queixas do Autor.
Sobre estas sequelas, o Sr. Perito também disse que a perda de paladar e de olfacto não é determinável apenas a partir de um meio de diagnóstico, dependendo sempre, em certa medida, dos sintomas que o examinado descreve ao médico (cfr. minutos 7:14 e ss).
Quanto à perda de audição, existe um meio de diagnóstico, expressamente mencionado pelo Sr. Perito, destinado a avaliar o grau de perda da acuidade auditiva de uma pessoa: o audiograma. Porém, não há nos autos comprovativo de que tenha sido realizado.
Deste modo, a questão que se coloca é se deve considerar-se como certa a ocorrência desses resultados.
A resposta parece-nos dever ser negativa, na medida em que o Sr. Perito médico não os teve em conta no arbitramento do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica do Autor. Se os considerasse danos certos e não apenas possíveis como sustentou em tribunal, o Sr. Perito estaria obrigado a ponderá-los no arbitramento do D.F.P. do Autor.
Assim, merece acolhimento esta parte da impugnação do facto provado.
c., d. e e.
As partes do relatório neuropsicológico elaborado pela Dr.ª (…), de que a Recorrente se socorre em abono da sua tese, resultam de uma leitura parcial e incompleta da “Síntese e conclusões finais” do mesmo, da qual resulta que:
- se verificou no Autor “…a presença de alterações mnésicas e de eventual disfunção frontal…” que “…foi corroborada pelos resultados do TMT B, da Fluência Verbal Fonémica e da FAB…”, admitindo a sua possível “…relação com a localização cerebral do TCE (i.e. frontal) e/ou com o presença significativa de sintomatologia depressiva.”;
- o Autor apresenta “…um resultado inconsistente, ao nível da Memória de Trabalho obtido através do instrumento WAIS III que, embora se encontre dentro da média, é o resultado dos índices mais baixo obtido neste instrumento…” e que a “…presença de sintomatologia depressiva pode surgir interligada à presença de sintomatologia indicativa de stress pós traumático, bem com à percepção da perda de qualidade de vida após o TCE e/ou também às sequelas do TCE de predomínio frontal (apatia, perda de iniciativa, lentificação, desmotivação).”
A Dr.ª (…) identificou, por isso, de forma incontornável, “alterações mnésicas” e “disfunção frontal” com possível relação com o TCE frontal, bem como “resultado inconsistente ao nível da Memória de Trabalho”.
Note-se ainda que este exame é complementar do exame neurológico realizado no dia 29.11.2022, cujo relatório, subscrito pelo Dr. (…) com data de 24.12.2022, foi junto aos autos no dia 23.02.2023 (ref.ª Citius 11010225) e também apresenta conclusões muito claras quanto às seguintes sequelas padecidas pelo Autor:
“Na avaliação realizada a 29/11/2022, o doente apresentava sintomas de alteração cognitiva com impacto significativo nas atividades da vida diária de etiologia pós-traumática. Na avaliação cognitiva utilizando a ferramenta (…) (MoCA) o doente pontuou 15/30 com alterações nas provas de função executiva, atenção, cálculo, linguagem, abstração e evocação diferida. (…)
De acordo com o anexo II da Tabela Nacional de Incapacidades o doente enquadra-se no código Na0405, apresentando perturbações cognitivas associando lentificação ideativa evidente, défice evidente de memória e dificuldade de elaboração de estratégias complexas com défices sensitivo motores menores, com valorização em pontos entre 10 a 40.”
Estas conclusões foram ainda aceites pelo perito médico subscritor do relatório final, Dr. (…), conforme resulta do relatório e foi por este narrado em julgamento.
Deste modo, a lentificação na execução e tarefas e no raciocínio, assim como o défice de memória do Autor, encontram-se inegavelmente evidenciadas nos relatórios periciais em apreço, apesar dos esforços da Recorrente para colher do relatório neuropsicológico partes soltas que não são reveladoras do quadro geral que este e o relatório do exame neurológico, manifestam.
No que respeita às declarações prestadas pelo Réu no sentido de ter auxiliado um amigo na montagem de um sistema de rega e instalado motores numa piscina, não vemos que possam ser relevantes para afastar as conclusões dos Srs. Peritos médicos, dado que nestas não se afirma que o Autor ficou totalmente incapacitado de executar tais tarefas, mas antes lentificado, o que significa que demora mais tempo a fazê-lo do que demoraria se não tivesse sofrido as lesões cerebrais.
No que concerne ao argumento de que a Dra. (…) terá concluído que “não é possível detectar se a alegada sintomatologia depressiva está relacionada exclusivamente com o evento ocorrido em 26.06.2016”, estamos perante mais uma leitura enviesada das suas conclusões, supra transcritas, das quais o que resulta é, pelo contrário, a afirmação de que a presença de sintomatologia depressiva “… pode surgir interligada à presença de sintomatologia indicativa de stress pós traumático, bem com à percepção da perda de qualidade de vida após o TCE e/ou também às sequelas do TCE de predomínio frontal (apatia, perda de iniciativa, lentificação, desmotivação)”, numa clara admissão da possibilidade de relação com o evento traumático em discussão nos autos. Estas considerações relevam também para a manutenção a alínea h do facto provado em apreço.
Aqui, como na tese negatória da lentificação, a Recorrente também procura no depoimento do Autor suporte que, em boa verdade, não teve. Isto porque a circunstância de o Autor dizer que frequenta o escritório diariamente, no horário de trabalho das 10:00 às 16:30 e que não trabalha à noite, quando antigamente trabalhava “…até às duas, três da manhã…”, longe de constituir a admissão de que não “necessita” de trabalhar tantas horas como antes (leitura da Recorrente que sugere o entendimento de que o Autor até ficou, depois do traumatismo craniano, mais expedito na execução do seu trabalho), constitui, na verdade, uma manifestação da diminuição das suas capacidades, afirmada pelos peritos médicos nos seus relatórios.
Não assiste, assim, qualquer fundamento para alterar o facto provado 16, relativamente às suas alíneas c., d., e. e também h..
f. e g.
No que respeita à instabilidade emocional, sendo certo que não resulta objectivamente de qualquer relatório ou exame médico realizado, não é verdade que a prova tenha dependido apenas das declarações do Autor, na medida em que, tal como consta da fundamentação da sentença recorrida, várias testemunhas depuseram sobre o assunto, confirmando-o, sem serem contrariadas por outros elementos de prova.
Foi o caso de: (…) que disse que o Autor agora se irrita facilmente, o que não acontecia antes; (…), irmã do Autor, que disse que o irmão ficou pouco paciente e pouco tolerante; (…), colega de trabalho do Autor, que disse que o Autor ficou mais lento no raciocínio, quando antes era rápido, o que lhe causa frustração por querer fazer com a mesma facilidade e não conseguir; e da companheira do Autor, (…), que disse que o Autor está sempre com medo de não conseguir fazer o trabalho, está sempre stressado, o que antes não acontecia, ficando facilmente irritado e querendo ir para casa.
Assim, o teor da alínea f. deverá manter-se.
Quanto à intolerância ao ruído, também não resulta objectivamente dos relatórios / exames médicos. Sendo a necessidade de repouso absoluto e silêncio um dado adquirido para quem convalesce de um episódio de TCE com hemorragia subdural, não resulta dos testemunhos prestados em julgamento que o Autor tenha passado, de forma permanente e irreversível, a não tolerar o ruído. É também certo que estas deram conta de que, pese embora tenha deixado de andar de mota diariamente, como antes fazia, o Autor voltou a ir a uma concentração motard, evento conhecido por ser ruidoso (quer devido à circulação das motos, quer aos eventos de música que normalmente lhe estão associados).
Parece-nos, por isso, insuficiente a prova de que padeça desta sequela em termos definitivos, razão pela qual deverá a alínea g. ser considerada não provada.
i.
No que respeita à perda de prazer na vida, as declarações do Autor e das testemunhas supra identificadas (análise da impugnação da alínea f.), revelam que continua a manter actividades lúdicas e de lazer, mais centradas no convívio com amigos às refeições ou no café, embora significativamente mais moderadas do que antes do acidente, sobretudo no que aos passeios e concentrações de mota respeita, tendo praticamente deixado de andar de mota por, segundo disse, não se sentir à vontade e não ter prazer nessa actividade. A perda de prazer na vida não é um conceito objectivo, nem uma conclusão dos médicos, sendo antes um estado subjectivo, relacionado com o gosto e motivação para fruir das coisas que a vida proporciona. Não se nos afigurando que o Autor tenha deixado de sentir gosto por todos os prazeres da vida, vê-se agora menos capacitado para a satisfação de alguns, que requerem mais agilidade das suas reacções psico-motoras o que, associado aos sentimentos de diminuição e frustração por tais limitações, bem como ao medo e aos sintomas depressivos decorrentes do evento traumático sofrido, influência negativamente, estamos em crer, o seu gosto pela vida, razão pela qual deverá considerar-se provado: “i) E com diminuição do prazer na vida.”
*
Assim, deverá o facto provado número 16 em apreço, assumir a seguinte redacção:
“16) O Autor era um homem alegre, otimista, perfeitamente realizado com o que fazia e viu-se, em consequência do descrito de 1) a 6): c) Lentificado na execução de tarefas; d) Lentificado de raciocínio; e) Com dificuldade de memorização; f) Com instabilidade emocional; h) Com tendências depressivas; i) E com diminuição do prazer na vida (artigo 91º da petição inicial).”
Resultando não provadas as alíneas a), b), g) e parte da i).
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Factos provados números 18) e 26)
“18) À data e hora dos factos descritos de 1) a 6), o Réu (…) exercia a sua profissão como vigilante, prestando funções no empreendimento da Quinta do (…) para a Ré (…) – Prevenção e Segurança, Lda., com quem tinha em vigor contrato de trabalho desde 1 de maio de 2011, integrando a equipa denominada “Team (…)”, a qual está preparada para responder a qualquer urgência ou emergência médica, estando a vigiar um casamento que estava a decorrer no estabelecimento comercial “O (…)” (artigo 33º da petição inicial aperfeiçoado e artigo 45º da contestação da 2ª Ré).”
“26) As funções de que a Ré tinha sido investido o Réu naquele dia eram as de vigiar as instalações do estabelecimento de restauração “O (…)” e velar pela segurança dos participantes nesse evento (artigo 43º da contestação da interveniente acessória).”
Sobre a matéria dos factos provados em apreço, a sentença de 1ª instância justifica a decisão nos seguintes termos:
Em relação ao facto provado 18, entre outros, “…com base no acordo das partes, no contrato de trabalho celebrado com o Réu de fls. 120, bem como nas declarações do Réu e das testemunhas (…), (…), (…) e (…) que presenciaram o mesmo no local enquanto vigilante e membro da equipa Team (…), sendo essas declarações corroboradas pelas cópias e sentença do processos de impugnação de despedimento 2968/16.6T8FAR de fls. 39- vº a 49 367 a 377 e 637 a 665, sendo inequívoco que o Réus e encontrava no seu horário de trabalho a realizar um turno de vigilância na estância turística Quinta do Lago, tendo sido despedido na sequência da agressão que o Autor sofreu e a Ré imputou ao Réu a autoria das agressões sofridas pelo Autor, tendo usado esse facto, bem como a circunstância de não ter prestado auxílio ao ferido para fundamentar a decisão de despedimento de fls. 637 a 642. (…).”
Quanto ao facto provado número 26, entre outros, “…com base nas declarações do Réu e das testemunhas (…), (…) e (…) em relação às funções que o primeiro tinha que desempenhar e ainda da visualização das imagens das câmaras de videovigilância no que concerne ao local onde os factos ocorreram (…).”
Entende a Recorrente que os factos em apreço foram incorrectamente julgados, devendo passar a ter a seguinte redação:
“18) O Réu (…) exercia a sua profissão como vigilante da Ré “(…) – Prevenção e Segurança, Lda.”, com quem tinha em vigor um contrato de trabalho desde 1 de maio de 2011, integrando a equipa denominada “Team (…)”, a qual está preparada para responder a qualquer urgência ou emergência médica, sendo que à data e hora dos factos descritos de 1) a 6) se encontrava em prevenção, intervindo apenas em caso de necessidade de prestação de primeiros socorros a alguém convidado do casamento que decorria no estabelecimento comercial “O (…)”.”
“26) As funções de que a Ré tinha sido investido o Réu naquele dia eram as de prevenção, intervindo apenas em caso de necessidade de prestação de primeiros socorros a alguém convidado do casamento que decorria no estabelecimento comercial ‘O (…).”
Sustentou para o efeito que as testemunhas … (depoimento de 19.09.2023, minutos 10:41 – 13:05), … (depoimento de 19.09.2023, minutos 07:36 – 08:51) e … (depoimento de 19.09.2023, minutos 10:48 – 14:37) confirmaram que o 1.º Réu tinha funções de prevenção / de primeiros socorros em caso de necessidade – e não função de vigiar um casamento, nem organização de estacionamento.
Sendo certo que o 1º Réu tinha formação em primeiros socorros, o que lhe teria permitido auxiliar terceiros em caso de necessidade, e que as testemunhas (…), (…) e (…) disseram em julgamento que as funções que lhes tinham sido atribuídas nessa noite eram somente de primeiros socorros, omitindo qualquer alusão à actividade de vigilância, a verdade é que esta omissão não é merecedora de qualquer crédito, pois foram contrariadas por prova objectiva no sentido de que o 1º Réu estava, na ocasião, a desenvolver actividade que excedia, em muito, a prevenção para primeiros socorros.
Desde logo, as gravações das câmaras 4 e 5 (Ficheiros de Vídeo – Docs. 1 e 2 juntos a 17.07.2023 – ref. ª Citius 11509960) mostram um 1ª Réu em farda de trabalho, actuante durante mais de uma hora anterior aos acontecimentos em apreciação, postado à porta de entrada do edifício durante a entrada e saída de turistas, regulando e orientando a entrada e a permanência de várias viaturas no local, dando apoio aos condutores das viaturas que faziam a recolha de pessoas, deslocando-se por várias vezes ao arruamento munido da lanterna para dar instruções verbais e por gestos, numa postura típica de um vigilante. Em momento algum dessa sua actuação sobressaíram os seus conhecimentos de primeiros socorros, nem mesmo quando, depois de agredir o Autor, optou por abandonar rapidamente o local onde este se encontrava, sem lhe prestar assistência.
Depois, nas gravações dos telefonemas feitos para o INEM após o sucedido (Ficheiros de Vídeo – Docs. 3 e 4 juntos a 17.07.2023 – ref.ª Citius 11509960), foi dito pelas pessoas do empreendimento que ligaram para a emergência médica que os seguranças da empresa de segurança privada da quinta que encontraram o Autor e ajudaram a estancar o sangue, sendo certo que da prova produzida em julgamento resultou que uma dessas pessoas foi o (…), colega da equipa Team …, à qual pertencia o 1º Réu.
(…) continua a ser empregado da 2ª Ré, onde trabalha há muitos anos, o que condiciona a espontaneidade do seu testemunho quando a matéria é passível de determinar a responsabilização da sua entidade patronal.
Razões pelas quais não se afiguram determinantes as partes dos testemunhos invocadas pela Recorrente em socorro da impugnação dos factos em apreço que, assim, deverão manter a redacção consagrada na sentença proferida pelo tribunal a quo.
*
II.
Analisemos agora os fundamentos da impugnação da matéria de facto da Interveniente “Generali”.
a)
Em primeiro lugar, a Interveniente considera que os factos provados números 4), 8) e 18) devem assumir as seguintes redacções:
“4) Tais pancadas prolongaram-se por, no máximo, 53 segundos e não deixaram ao Autor qualquer possibilidade de defesa (artigo 29º da petição inicial).
“8) O Autor esteve internado 7 dias nos cuidados intermédios do Hospital de Faro, tendo alta para residência (artigo 41.º da petição inicial).”
“18) O Réu (…) exercia a sua profissão como vigilante da Ré “(…) – Prevenção e Segurança, Lda.”, com quem tinha em vigor um contrato de trabalho desde 1 de maio de 2011, integrando a equipa denominada “Team …”, a qual está preparada para responder a qualquer urgência ou emergência médica, sendo que à data e hora dos factos descritos de 1) a 6) se encontrava em prevenção, intervindo apenas em caso de necessidade de prestação de primeiros socorros a alguém convidado do casamento que decorria no estabelecimento comercial “O (…)”.
Relativamente aos factos provados números 4), 8) e 18), dão-se aqui por reproduzidas as considerações vertidas em sede da impugnação da 2ª Ré, uma vez que são sobreponíveis os fundamentos esgrimidos pelas Recorrentes na impugnação destas matérias.
b)
Facto provado 33)
“33) A Ré (…) – Prevenção e Segurança, Lda. transferiu a responsabilidade civil da sua atividade para a interveniente Generali Seguros, SA mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º (…).”
Debruçando-nos agora sobre o ponto 33 da matéria de facto provada, considera a interveniente que deveria ser alterado para a seguinte redacção:
“Por via da apólice (…), a Chamada Generali se comprometeu a garantir, de acordo com o disposto nas Condições Gerais, Especiais da apólice e dentro dos limites fixados nas suas Condições Particulares, a “Responsabilidade Civil Extracontratual que, nos termos da lei e do clausulado deste seguro, seja imputável ao Segurado, resultante de danos patrimoniais e/ou não patrimoniais decorrentes de lesões corporais e/ou materiais causados a terceiros, incluindo clientes do Segurado, e derivados do exercício da actividade de Segurança Privada especificada nas Condições Particulares” (cfr. cláusula 2ª das Condições Particulares – Doc. 1).”
Como se deixou já escrito na apreciação da nulidade por excesso de pronúncia, invocada pela Interveniente, a celebração do contrato de seguro entre a “(…)” e a “Generali”, constitui o fundamento da intervenção processual acessória desta companhia seguradora nos autos, tendo sido oportunamente alegada pela Ré “(…)” na sua contestação (cfr. arts. 146º a 176º) e parcialmente aceite pela “Generali” no seu articulado de defesa (cfr. artigos 24º e 27º a 38º) cujo artigo 28º reza:
“Entre a chamada e a Ré “(…) – Prevenção e Segurança, Lda.” foi celebrado um contrato de seguro, do ramo responsabilidade civil, titulado pela apólice (…) o qual se regia pelas suas condições gerais, especiais e particulares que se juntam como Docs. 1, 2 e 3 e cujo teor se dá aqui por reproduzido e integrado.”
Apesar de divergências quanto ao clausulado vigente, ambas as partes alegaram a celebração do contrato de seguro de responsabilidade civil em apreço, por referência ao mesmo número da apólice.
Trata-se, nesta parte, de um facto assente no processo que, embora não tenha relevância para a decisão da questão jurídica substantiva central da acção – referente à responsabilidade civil extracontratual dos Réus pelos danos alegadamente sofridos pelo Autor –, se mostra necessário porque suporta e justifica a posição processual assumida pela Interveniente assessória nos autos, sem o qual esta não teria sido admitida a intervir, não teria legitimidade para interpor recurso da decisão final, nem a presente decisão produziria quanto a si o efeito de caso julgado, relativamente às questões substantivas decididas na lide.
Assim, o facto provado deve cingir-se à matéria com interesse para admitir a intervenção da “Generali” na presente acção, aceite por ambas as partes, sem outros considerandos quanto ao clausulado do contrato entre ambas vigente que há-de ser clarificado em sede própria que é a eventual acção de regresso futura.
Termos em que se altera a redacção do facto provado número 33) para:
“Entre a Interveniente e a Ré (…) – Prevenção e Segurança, Lda. foi celebrado um contrato de seguro, do ramo responsabilidade civil, titulado pela apólice (…).”
c)
Por último, no que respeita à alegada inclusão da matéria constante dos artigos 50º a 54º, 56º e 57º do articulado de defesa apresentado pela Interveniente em 22.06.2021, remete-se para as considerações vertidas em sede da apreciação da nulidade da sentença por omissão de pronúncia (referente aos mesmos factos), na qual se sustenta que a decisão a proferir na presente acção não pode considerar aquela matéria alegada pela Interveniente acessória por contrariar a posição expressa pela 2ª Ré relativamente aos factos que o Autor alegou e deve provar em ordem à procedência do pedido.
*
Em consequência da apreciação vinda de expor, a matéria de facto provada a considerar é a seguinte. ([16])
*
Matéria de facto provada:
*
1) Em 26 de Junho de 2016, entre as 02.40 horas e as 02.44 horas, junto ao Restaurante “O (…)”, sito no empreendimento Quinta do (…) – Almancil, o Réu (…), após uma discussão com o Autor (…) relativa ao facto deste estar a obstruir a passagem de veículos enquanto esperava pelo carregamento de arranjos florais do restaurante para a viatura, desferiu-lhe diversos golpes com incidência na zona da cabeça, munido de uma lanterna metálica (artigos 25º e 26º da petição inicial). [17]
2) Na sequência dos golpes desferidos, o Autor desequilibrou-se e caiu por terra, com perda de conhecimento (artigo 27º da petição inicial).
3) Com o Autor prostrado no chão, o Réu (…) ainda lhe deu vários pontapés no corpo (artigo 28º da petição inicial).
4) Tais pancadas prolongaram-se por menos de 55 segundos e não deixaram ao Autor qualquer possibilidade de defesa (artigo 29º da petição inicial).[18]
5) O Réu (…) agiu com o propósito de ofender o corpo e a saúde do Autor, o que logrou (artigo 31º da petição inicial).
6) O Réu (…) representou como possível o resultado da afetação, de maneira grave, da capacidade de trabalho e das capacidades intelectuais do Autor e agiu conformando-se com a possibilidade da produção de tal resultado (artigo 32º da petição inicial).
7) A Autor foi assistido no local pelo INEM, tendo sido transportado para o Serviço de Urgência do Hospital de Faro, onde deu entrada consciente, mas desorientado no tempo e no espaço, com discurso inadequado (artigo 40º da petição inicial).
8) O Autor esteve internado 7 dias nos cuidados intermédios do Hospital de Faro, tendo alta para residência (artigo 41º da petição inicial).[19]
9) O Autor, quando teve alta hospitalar, apresentava ainda hematomas (na cara e noutras regiões corporais) e ferida no crânio (artigo 45º da petição inicial).
10) Em consequência da conduta do Réu, o Autor:
I) Sofreu traumatismo craniano encefálico, com desorientação temporal e espacial e discurso inadequado e apresenta sequelas no crânio – sem deformidade e/ou assimetria da calote craniana – com lentificação do discurso e perturbações sensoriais, agnosia e possíveis perturbações da audição do ouvido direito, e com sinais e sintomas sugestivos de síndrome pós comocional moderado com repercussão nas atividades diárias e profissionais. [20]
II) Consolidação das lesões em 19-01-2017;
III) Défice Funcional Temporário Total de 58 dias;
IV) Défice Funcional Temporário Parcial de 149 dias;
V) Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total de 207 dias;
VI) um Quantum Doloris no grau 4/7;
VII) um Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica de 20 pontos em 100;
VIII) Dano Estético Permanente no grau 1/7;
IX) Repercussão Permanente na Atividade Profissional – sequelas compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares;
X) Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer no grau 3/7;
XI) O Autor necessita de apoio regular do foro neurológico/psiquiátrico – consultas anuais (artigos 64º, 67º, 70º, 71º e 78º a 84º da petição inicial e relatório pericial).
11) O Autor, decorrido um mês começou a procurar retomar a sua atividade profissional por conta própria, embora numa fase inicial com substancial limitação, por cansaço fácil e diminuição da rapidez de raciocínio, só a tendo retomado de forma mais significativa dois a três meses após o evento (artigo 43º da petição inicial).
12) Cerca de 2 meses após a alta foi a consulta de neuropsicologia no Hospital de Faro e foi a nova consulta passado um ano (artigo 44º da petição inicial).
13) Até à data referida em 1), o Autor, almoçava e jantava regularmente em restaurantes, onde satisfazia o chamado prazer da “mesa” (artigo 87º da petição inicial).
14) Era contabilista, com uma carteira de clientes (artigo 88º da petição inicial).
15) A vida sorria ao Autor e este tinha o prazer que só uma boa vida confere, viajando frequentemente, passando fora de sua casa fins de semana e tomando as suas refeições em restaurantes (artigo 89º da petição inicial).
16) O Autor era um homem alegre, otimista, perfeitamente realizado com o que fazia e viu-se, em consequência do descrito de 1) a 6):
c) Lentificado na execução de tarefas;
d) Lentificado de raciocínio;
e) Com dificuldade de memorização;
f) Com instabilidade emocional;
h) Com tendências depressivas;
i) E com diminuição do prazer na vida (artigo 91º da petição inicial).[21]
17) O Autor nasceu em 4 de setembro de 1962.
18) À data e hora dos factos descritos de 1) a 6), o Réu (…) exercia a sua profissão como vigilante, prestando funções no empreendimento da Quinta do (…) para a Ré “(…) – Prevenção e Segurança, Lda.”, com quem tinha em vigor contrato de trabalho desde 1 de maio de 2011, integrando a equipa denominada “Team (…)”, a qual está preparada para responder a qualquer urgência ou emergência médica, estando a vigiar um casamento que estava a decorrer no estabelecimento comercial “O (…)” (artigo 33º da petição inicial aperfeiçoado e artigo 45º da contestação da 2ª Ré).
19) À data e hora dos factos descritos de 1) a 6), o Réu (…) encontrava-se uniformizado, utilizando crachá identificativo e camisa polo com os dizeres “(…)” (artigo 34º da petição inicial).
20) Em consequência do descrito de 1) a 6), a Ré “(…) – Prevenção e Segurança, Lda.” determinou a imediata suspensão do exercício de funções do Réu (…), tendo-lhe sido instaurado processo disciplinar com o propósito de proceder ao seu despedimento com justa causa na sequência da pratica de tais factos (artigo 7º da petição inicial-parte).
21) Em consequência do descrito de 1) a 6), o Réu (…) foi despedido, com justa causa, pela Ré “(…) – Prevenção e Segurança, Lda.”, tal como resulta de fls. 367 a 377, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 7º da petição inicial-parte).
22) O despedimento do Réu (…) da Ré “(…) – Prevenção e Segurança, Lda.”, os seguintes fundamentos: “No que diz respeito à agressão perpetrada pelo Arguido contra o Sr. … (comportamento confessado por este, ainda que tivessem sido apontadas circunstâncias desculpabilizastes e/ou atenuantes que não procedem) e consequente omissão de auxílio nos termos razoavelmente expectáveis com as funções, preparação e formação do Arguido, tais comportamentos não se coadunam minimamente com os princípios pelos quais se rege a Arguente (…)”, tal como resulta de fls. 637 a 642, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
23) O Réu (…) impugnou a licitude do despedimento no âmbito do processo n.º 2968/16.6T8FAR do Juízo do Trabalho de Faro – Juiz 2 do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, tendo ação sido julgada totalmente improcedente, tal como resulta de fls. 637 a 665, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 8º da petição inicial).
24) O descrito de 1) a 6) ocorreu na via pública, junto à entrada do Restaurante “O (…)” (artigo 67º da contestação da Ré).
25) O acesso ao estabelecimento de restauração “O (…)” era realizado através de um arruamento, que constituía uma via pública (artigo 44º da contestação da interveniente acessória).
26) As funções de que a Ré tinha sido investido o Réu naquele dia eram as de vigiar as instalações do estabelecimento de restauração “O (…)” e velar pela segurança dos participantes nesse evento (artigo 43º da contestação da interveniente acessória).
27) O Réu não estava autorizado pela Ré a fazer uso da força para o desempenho das tarefas de que estava investido tarefas de que estava investido (artigo 48º da contestação da interveniente acessória).
28) O Autor apresentou queixa crime contra o Réu (…) em 7 de julho de 2016 e constitui-se assistente no processo crime (artigo 11º da petição inicial).
29) Realizado o inquérito, foi deduzida acusação pública pela Digna Agente do Ministério Público, contra o 1º Réu, em 28 de fevereiro de 2019 no processo n.º 290/16.7GFLLE, tal como resulta de fls. 51 a 53, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigo 12º da petição inicial).
30) O Réu (…) requereu a abertura de instrução no processo crime n.º 290/16.7GFLLE, tendo sido proferido despacho de pronúncia do mesmo em 24 de maio de 2019, tal como resulta de fls. 53-vº a 57, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigos 14º e 15º da petição inicial).
31) No âmbito do processo crime n.º 290/16.7GFLLE do Juízo Local Criminal de Loulé – Juiz 3 do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, o Réu (…) foi condenado, por sentença transitada em julgado em 07-10-2020. pela prática, de um crime de ofensa à integridade física grave, na pessoa do Autor (…), p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1 e 144.º, alínea b), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 7 (sete) meses de prisão, a qual foi suspensa por igual período, tendo sido dados como provados os seguintes factos:
«1) Em 26 de Junho de 2016, entre as 02h40m e as 02h44m, junto ao estabelecimento denominado “Restaurante O (…)”, sito na Quinta do (…) – Almancil, o arguido, após uma discussão com (…), desferiu-lhe diversos golpes com incidência na zona da cabeça, munido de uma lanterna metálica.
2) Na sequência dos golpes desferidos, (…) desequilibrou-se e caiu por terra, com perda de conhecimento.
3) Com o ofendido prostrado no chão, o arguido ainda lhe deu vários pontapés no corpo.
4) Tais ofensas prolongaram-se por 2 minutos e não deixaram ao (…) qualquer possibilidade de defesa.
5) Das agressões acima descritas resultaram:
a. “Crânio: cicatriz de ferida contusa fronto-parietal esquerda, com 2,5cms e equimoses de cor castanha-amarelada, retro-auricular direita com 4x1,2cms.”
b. “Membro inferior esquerdo: escoriação retro-maleolar esquerda, parcialmente coberta com crosta com 1,8cms”;
c. Traumatismo crânio-encefálico com “vários focos hemorrágicos intraparenquimatosos, com localização temporal direita, frontal, temporal, lenticular à esquerda, com maior edema perilesional, bem como pequeno hematoma para-falcino esquerdo e hematomas subdurais frontoparientotemporal direito e frontal esquerdo” e “edema cerebral difuso”.
d. Como consequência desse traumatismo craniano, o assistente apresenta “dificuldades instrumentais significativas ao nível da memória verbal associativa na evolução da aprendizagem” e “sintomatologia depressiva. Diminuição da atentividade e da velocidade de realização”, lesões essas que ainda não se encontram consolidadas, com afetação grave da capacidade de trabalho geral e profissional.
6) O arguido agiu com o propósito de ofender o corpo e a saúde do (…), o que logrou.
7) O arguido representou como possível o resultado da afetação, de maneira grave, da capacidade de trabalho e das capacidades intelectuais do ofendido e agiu conformando-se com a possibilidade da produção de tal resultado.
8) O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei penal.
Provou-se ainda que:
9) À data e hora dos factos supra descritos o arguido exercia a sua profissão, como vigilante, prestando funções para a sociedade “(…)”.
10) À data e hora dos factos supra descritos o arguido encontrava-se uniformizado, utilizando crachá identificativo e camisa pólo com os dizeres “(…)”.
11) Após a data dos factos supra descritos o arguido foi despedido, com justa causa, pela sociedade “(…)”.
12) O despedimento fundou-se, entre outras alegações, na produção de lesões físicas ao aqui ofendido (…) na data e hora dos factos supra descritos.
13) O arguido impugnou a licitude do despedimento em ação para o efeito e decaiu totalmente. (…)», tal como resulta de fls. 353 a 377, cujo teor se dá por integralmente reproduzido (artigos 1º e 2º da petição inicial).
32) A Ré “(…) – Prevenção e Segurança, Lda.” tem por objeto social “a prestação de serviços de segurança privada. Os serviços de segurança privada compreendem a vigilância de bens imóveis e móveis e o controlo de entrada, presença e saída de pessoas, bem como a prevenção de entrada de armas, substâncias e artigos de uso e porte proibidos ou suscetíveis de provocar atos de violência no interior de edifícios ou outros locais, públicos ou privados, de acesso vedado ou condicionado ao público” e ainda atividade com exploração e gestão de centrais de alarme e videovigilância, tal como resulta de fls. 523 a 526, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
33) Entre a Interveniente e a Ré “(…) – Prevenção e Segurança, Lda.” foi celebrado um contrato de seguro, do ramo responsabilidade civil, titulado pela apólice (…).[22]
34) O Instituto de Segurança Social, IP pagou ao Autor, a título de subsídio de doença, no período compreendido entre 26 de junho de 2016 e 2 de agosto de 2016, o montante global de € 324,04 (artigos 2º a 4º do pedido de reembolso).
35) A presente ação foi intentada em 17 de novembro de 2020.
36) O Réu (…) foi citado nos autos em 25 de novembro de 2020, tal como resulta de fls. 97, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
37) A Ré “(…) – Prevenção e Segurança, Lda.” foi citada nos autos em pelo menos 02 de dezembro de 2020, tal como resulta de fls. 98, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
38) O Instituto de Segurança Social, IP – Centro Distrital de Faro foi citado nos autos em 14 de setembro de 2021, tal como resulta de fls. 235, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
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B. De direito
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Ambas as Recorrentes discordam da decisão de direito da sentença proferida em 1ª instância, nas partes relativas:
- à imputação de responsabilidade à Ré “(…)” pela actuação do 1º Réu com base no que dispõe o artigo 500.º do CC, conjugado com o disposto no artigo 18.º, n.º 2, alínea b), da Lei n.º 34/2013, de 16 de Maio, alterada pela Lei n.º 46/2019, de 8 de Julho e nos artigos 497.º e 507.º do Código Civil); e
- ao quantum indemnizatório arbitrado, pugnando: a Ré “(…)” pela fixação de indemnização por danos patrimoniais futuros no valor de € 3.200,00 (três mil e duzentos euros) e indemnização global, incluindo indemnização pelo dano biológico e pelos danos não patrimoniais, em valor não superior a € 50.000,00 (cinquenta mil euros); e a Interveniente “Generali” pelos montantes de € 25.000,00 a título do dano biológico de 20 pontos e por € 15.000,00 de compensação pelos demais danos não patrimoniais, tudo no montante global de € 40.000,00.
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Da responsabilidade civil do comitente
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Na decisão do tribunal a quo, foi a 2ª Ré responsabilizada com base na sua posição de comissária, pelo pagamento solidário da indemnização arbitrada a favor do Autor.
De acordo com a previsão legal do artigo 500.º do Código Civil, “aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar” (cfr. n.º 1). Todavia, tal “…responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada” (cfr. n.º 2). Assiste ao comitente que satisfizer a indemnização, “…o direito de exigir do comissário o reembolso de tudo quanto haja pago, excepto se houver também culpa da sua parte; neste caso será aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 497.º” (cfr. n.º 3).
Estamos perante uma responsabilidade pelo risco ou objetiva do comitente que responde mesmo sem culpa própria, mas só é responsável se o comissário for, por sua vez, culpado. Fora deste pressuposto da culpa do comissário estão as situações de responsabilidade subjectiva ou culposa do próprio comitente, por culpa in eligendo, in instruendo, in vigilando, entre outras, caso em que responderá independentemente de culpa do comissário.
Segundo Menezes Leitão, “…a responsabilidade do comitente é uma responsabilidade objectiva pelo que não depende de culpa sua na escolha do comissário, na sua vigilância ou nas instruções que lhe deu. No entanto, essa responsabilidade objectiva apenas funciona na relação com o lesado (relação externa), já que posteriormente o comitente terá na relação com o comissário (relação interna) o direito a exigir a restituição de tudo quanto pagou ao lesado, salvo se ele próprio tiver culpa, caso em que se aplicará o regime da pluralidade de responsáveis pelo dano (artigo 500.º, n.º 3).” [23]
Constituem pressupostos da responsabilidade objectiva do comitente pelos factos danosos praticados pelo seu comissário, a:
a) Existência de uma relação de comissão;
b) Prática de factos danosos pelo comissário no exercício da função; e
c) Responsabilidade do comissário.
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No caso vertente, não vem questionado o pressuposto da alínea c), afirmado na sentença recorrida.
A nossa atenção deverá incidir, por isso, sobre os dois primeiros pressupostos que consistem na existência de uma relação de comissão (alínea a)) e na prática do facto danoso no exercício da função que foi confiada ao comissário (alínea b)).
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Sobre o que deve entender-se por “comissão”, Antunes Varela explica que “…tem aqui o sentido amplo de serviço ou actividade realizada por conta e sob a direcção de outrem, podendo essa actividade traduzir-se num acto isolado ou numa função duradoura, ter carácter gratuito ou oneroso, manual ou intelectual, etc.. A comissão pressupõe uma relação de dependência (droit de direction, de surveillance et de contrôle, na expressão da jurisprudência francesa) entre o comitente e o comissário, que autorize aquele a dar ordens ou instruções a este, pois só essa possibilidade de direcção é capaz de justificar a responsabilidade do primeiro pelos actos do segundo. É o caso do criado em face do patrão, do operário ou empregado em relação à entidade patronal, do procurador quanto ao mandante ou do motorista perante o dono do veículo. (…)
A relação de subordinação pode ter carácter permanente ou duradouro, como quando provém de um, contrato de prestação continuada ou periódica, ou ser puramente transitória, ocasional, limitada a actos materiais ou jurídicos de curta duração (…).” [24]
Sobre a mesma temática, recordando que “…é importante distanciar a noção de comissão para este efeito daquela que nos é dada pelo legislador comercial, no artigo 266.º do Código Comercial…”, Nuno Morais defende que, “…essenciais à verificação de uma relação de comissão, são dois aspectos. Por um lado, o poder de dar instruções, consubstanciador de uma relação de subordinação lato sensu, mas que não coincide necessariamente com qualquer tipo de subordinação jurídica. Ponto é que implique uma dependência funcional que pode resultar de uma qualquer relação jurídica, mas também de uma mera relação económica, de índole pessoal ou social. Por outro lado, é igualmente essencial que o preposto aja, ao momento da prática do facto danoso, no interesse do preponente. (…) a existência de uma relação laboral pode ser, por si, indicador da existência de uma relação de comissão, mas não esgota em si a possibilidade de criação de relações de comissão por via contratual (…).” [25]
No caso vertente, o 1º Réu encontrava-se, por ocasião dos factos, a exercer profissão de vigilante por conta da 2ª Ré, no âmbito do contrato de trabalho celebrado entre ambos, em vigor desde 1 de Maio de 2011, no empreendimento da Quinta do (…).
É, por isso, inquestionável que o 1º Réu estava sob a subordinação funcional e jurídica da 2º Ré, no âmbito da sua prestação laboral, agindo no interesse desta em prestar um serviço contratado pela Quinta do (…).
Está, assim, demonstrada a existência de uma relação de comissão entre o 1º e a 2ª Réus.
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No que concerne ao pressuposto da alínea b), Antunes Varela informa-nos que a fórmula restritiva adoptada pelo legislador, ao impor que o acto danoso do comissário se inscreva no exercício da função que lhe foi confiada, “…quis afastar da responsabilidade do comitente os actos que apenas têm um nexo temporal ou local com a comissão. Mas, acentuando ao mesmo tempo que a responsabilidade do comitente subsiste, ainda que o comissário proceda intencionalmente ou contra as instruções dele, mostra-se que houve a intenção de abranger todos os actos compreendidos no quadro geral da competência ou dos poderes conferidos ao dito comissário. (…) cabem na fórmula da lei os actos ligados à função por um nexo instrumental, desde que compreendidos nos poderes que o comissário desfruta, no exercício da comissão (…). Serão, assim, da responsabilidade do comitente os actos praticados pelo comissário com abuso de funções, ou sejam, os actos formalmente compreendidos no âmbito da comissão, mas praticados com um fim estranho a ela.” [26] (sublinhados nossos).
Perfilhando o mesmo entendimento, Nuno Morais considera não poder operar em sede do preenchimento deste requisito, o critério do interesse do comitente “…porque não se compreenderia a extensão do quadro de funções a factos praticados contra ordens do comitente. Pelo contrário, parece-nos que aqui o critério a seguir deverá ser a tutela da normalidade das funções do comissário, e nessa estrita medida a tutela das aparências perante o terceiro, eventualmente lesado. E nesse sentido parece-nos claro que o apontado critério da adequação causal entre o facto danoso e as funções exercidas pelo comissário será o que melhor garante aquela tutela do terceiro.” [27]
No caso vertente, o 1º Réu estava a exercer vigilância ao evento que decorria no estabelecimento comercial “O (…)”, junto à entrada do qual agrediu o Autor, no seguimento de uma discussão pelo facto deste estar a obstruir a passagem de veículos, enquanto aguardava pelo carregamento de arranjos florais do restaurante para a viatura.
Tinha sido a Ré “(…)” quem investira o Réu na missão de, naquele dia, vigiar as instalações do estabelecimento de restauração “O (…)” e velar pela segurança dos participantes nesse evento.
A conduta do 1º Réu inscreve-se nas funções de controlo da entrada e saída de pessoas e de viaturas que acedem e permanecem no recinto do restaurante e área envolvente, em conformidade com a previsão legal da alínea b) do n.º 2 do artigo 18.º da Lei n.º 34/2013, de 16 de Maio, alterada pela Lei n.º 46/2019, de 8 de Julho – Lei da Segurança Privada –, tendo sido justamente porque a viatura do Autor estava a impedir a passagem de veículos que se desencadeou a discussão que deu origem à conduta violenta do Réu (…). Para além de incluídos no exercício das funções que lhe haviam sido atribuídas, os actos foram também praticados com recurso a meios fornecidos pela 2ª Ré, nomeadamente a lanterna que lhe havia sido atribuída.
Deste modo, afigura-se incontroverso que a conduta do 1º Réu se inscrevia no quadro geral da competência e dos poderes que lhe tinham sido conferidos pela comitente 2ª Ré, sua entidade patronal, de vigilância do evento que inclui o zelo e o controlo dos respectivos acessos, sem prejuízo de (…) se ter desviado intencionalmente das instruções que lhe haviam sido transmitidas, de não usar a força física para o desempenho de tais tarefas.
Estamos, por isso, perante um típico caso de actos praticados pelo comissário com abuso de funções, formalmente compreendidos no âmbito da comissão mas praticados com um fim estranho a ela, que responsabilizam também a comitente “(…)”.
Razão pela qual se conclui que, tal como resulta da sentença recorrida, os actos ilícitos causadores de dano à pessoa do Autor foram praticados pelo 1º Réu no exercício da função de vigilante que lhe havia sido confiada pela 2ª Ré.
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Assim, mostram-se preenchidos todos os pressupostos de que depende a responsabilidade civil objectiva da 2ª Ré, como comitente, pelos actos praticados pelo comissário, aqui 1º Réu.
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Da indemnização a que os Réus estão obrigados
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A sentença de 1ª instância condenou solidariamente os Réus a pagar ao Autor a quantia total de € 104.500,00, correspondendo € 4.500,00 a dano futuro e € 100.000,00 a danos morais, aí se incluindo o dano biológico, na sua vertente não patrimonial.
A Recorrente “(…)” considera excessivo o montante indemnizatório arbitrado pelo tribunal propondo, em alternativa, o arbitramento dos seguintes montantes:
- € 3.200,00 (três mil e duzentos euros), correspondente a € 100,00 por consulta ao longo de 16 anos, a título de dano patrimonial futuro;
- € 50.000,00 (cinquenta mil euros), a título de dano moral, neste incluindo já o dano biológico.
Também a Recorrente “Generali” considerou excessivo o montante arbitrado, pugnando pela fixação nos valores de:
- € 3.200,00 (três mil e duzentos euros), a título de dano patrimonial futuro;
- € 25.000,00 de compensação devida ao Autor pelo seu dano biológico de 20 pontos; e
- € 15.000,00 de compensação pelos seus demais danos não patrimoniais, tudo no montante.
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Verificados os requisitos da obrigação de indemnizar o obrigado deve, de acordo com o artigo 562.º do Código Civil "reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação". A medida da indemnização será dada, não só pelo prejuízo causado (danos emergentes), mas também pelos benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (lucros cessantes) – cfr. artigo 564.º, n.º 1, do Código Civil.
A indemnização arbitrada será fixada em dinheiro sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos, ou seja excessivamente onerosa para o devedor e terá como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos – cfr. artigo 566.º do Código Civil.
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Da necessidade de apoio futuro
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Resultou também provado o que o Autor necessita de apoio regular do foro neurológico/psiquiátrico (consultas anuais).
A sentença recorrida arbitrou o montante de € 4.500,00, a título de indemnização pelo dano futuro relativo aos valores que o Autor terá de despender com consultas médicas, considerando que cada consulta da área da psiquiatria e da neurologia não terá um custo inferior a € 100,00, necessitando o Autor de uma consulta por ano em cada especialidade, sendo a esperança média de vida dos homens em Portugal de 78 anos.
Corrigiu o resultado aritmético de € 3.200,00 para € 4.500,00 com o argumento de que é expectável o aumento do custo das consultas ao longo dos próximos 16 anos, pelo menos ao ritmo da inflação.
Crê-se, no entanto, que o fundamento da correcção aplicada por força de inflação não é justificado. Isto porque, estando em causa o recebimento imediato de um montante indemnizatório global, por conta do dano futuro, é também certo que o capital agora recebido é susceptível de gerar frutos civis nos anos vindouros, a título de juros remuneratórios, compensadores do efeito depreciativo da inflação.
Deste modo, deverá o montante indemnizatório quedar-se pelos € 3.200,00.
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Do “dano biológico”
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Resultou provado que, em consequência directa das agressões praticadas pelo 1º Réu, o Autor:
- sofreu traumatismo craniano encefálico, com desorientação temporal e espacial e discurso inadequado;
- esteve internado 7 dias nos cuidados intermédios do Hospital de Faro, tendo alta para residência;
- as lesões sofridas consolidaram-se em 19.01.2017, tendo sofrido Défice Funcional Temporário Total de 58 dias, Défice Funcional Temporário Parcial de 149 dias, Período de Repercussão Temporária na Atividade profissional Total de 207 dias e ficado com Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica de 20 pontos em 100, compatível com exercício da actividade habitual mas implicando esforços suplementares;
- necessita de apoio regular do foro neurológico/psiquiátrico, em consultas anuais.
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Apesar dos tratamentos a que se submeteu, o Autor ficou com sequelas resultantes do acidente que implicam um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 20 pontos, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades, e o obrigam a desenvolver esforços acrescidos para o exercício da sua actividade habitual.
O Autor não padecia dessas limitações funcionais, antes do acidente.
A corrente da jurisprudência firmada pelos nossos tribunais superiores que entendemos mais adequada às situações em que está provada a necessidade da vítima desenvolver esforços acrescidos para lograr realizar a mesma actividade que antes das lesões desempenhava sem esforços complementares, resultante de um défice permanente apurado e quantificado, considera-o ressarcível mesmo nos casos em que tal diminuição de remuneração não tenha ocorrido, relevando agora o chamado dano biológico na vertente patrimonial, ou seja, o decorrente “…da implicação para o lesado de um esforço acrescido para manter os mesmos níveis de ganho ou exercer as várias tarefas e actividades gerais quotidianas.” Passou a valorizar-se também o “…dano futuro previsível em razão do maior esforço no desenvolvimento da actividade geral, incluindo a vertente profissional” (sublinhados nossos).
Neste sentido, leia-se o lúcido enfoque dado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.11.2005, relatado pelo Conselheiro Salvador da Costa no processo 5B3436, no qual se considerou que “a limitação da condição física, que a deficiência, dificuldade ou prejuízo de certas funções ou actividades do corpo, ou seja, o handicap, que a IPP sempre envolve ou acarreta, determina necessariamente, até pelas suas consequências psicológicas, diminuição da capacidade laboral genérica e dos níveis de desempenho exigíveis. Mesmo quando não tanto assim na actividade profissional até então exercida, de considerar também outra qualquer, isso coloca o lesado em posição de inferioridade no confronto com as demais pessoas no mercado de trabalho. Ferida a integridade psicossomática plena, as sequelas permanentes que integram o dano corporal importam, pois, normalmente diminuição, pelo menos, da capacidade geral de ganho do lesado. Como assim, mesmo se não perspectivada de imediato diminuição dos seus conjecturais proventos futuros, o dano corporal ou biológico importa, de per si, prejuízo indemnizável, consoante artigos 564.º, n.º 2 e 566.º, n.º 2, do Código Civil, a título de dano patrimonial futuro, independentemente da perda efectiva, actual, de rendimento” (sublinhados nossos) [28]
Numa extensa, mas não exaustiva enumeração, o mesmo entendimento mantêm os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12.01.2006, 04.10.2007, 23.10.2008, 21.03.2013, 02.12.2013, 25.05.2017, 05.12.2017 e 23.10.2018, relatados, respectivamente pelos Juízes Conselheiros Oliveira Barros, Salvador da Costa, Serra Baptista, Salazar Casanova, Garcia Calejo, Maria da Graça Trigo, Ana Paula Boularot e Henrique Araújo nos processos n.º 05B3548, n.º 07B2957, n.º 08B2318, n.º 565/10.9TBPVL.S1, n.º 1110/07.9TVLSB.L1.S1, n.º 2028/12.9TBVCT.G1.S1, n.º 505/15.9T8AVR.P1.S1 e n.º 902/14.7TBVCT.G1.S1. [29]
Como sintetiza, por todos, o sumário do mencionado acórdão do STJ de 05.12.2017, relatado pela Juíza Conselheira Ana Paula Boularot, “o dano biológico derivado de incapacidade geral permanente, de cariz patrimonial, é susceptível de justificar a indemnização por danos patrimoniais futuros, independentemente de o mesmo se repercutir na vertente do respectivo rendimento salarial, já que constitui um dano de esforço, porquanto o sujeito para conseguir desempenhar as mesmas tarefas e obter o mesmo rendimento, necessitará de um maior empenho, de um estímulo acrescido. (sublinhados nossos).
No caso vertente, está provado que as sequelas padecidas pelo Autor em resultado do acidente o obrigam a esforços suplementares para o exercício da actividade habitual à data do sinistro.
Deste modo, de acordo com o suprarreferido critério, assiste-lhe direito a ser ressarcido pelo esforço acrescido que despende para realizar a mesma actividade, sem o qual, seguramente, não poderia manter o nível de rendimento anterior ao acidente.
Não se acompanha, portanto, a fundamentação da sentença recorrida, na parte em que, pese embora reconhecendo a existência do Défice Funcional Permanente do Autor e os esforços acrescidos que se encontra agora obrigado a desenvolver para as mesmas actividades, entendeu não utilizar, no cálculo do montante indemnizatório, o critério previsto pela aludida jurisprudência, fundado no rendimento auferido pelo sinistrado à data do acidente durante o período de vida útil subsequente, com o argumento de que não está provada qualquer perda de ganho, já que o Autor não logrou demonstrar a diminuição de rendimentos, ficando apenas em causa uma afectação ao nível da atividade geral do Autor que lhe diminui a capacidade de resistência, o que se traduz num dano biológico relevante como dano moral para efeitos indemnizatórios.
Com o devido respeito, nada impede o tribunal de arbitrar o montante indemnizatório patrimonial adequado aos esforços acrescidos que o défice funcional permanente resultante das sequelas do acidente obriga o Autor a desenvolver para, enquanto fisicamente o lograr, garantir a mesma capacidade de ganho futura, independentemente de conseguir manter, ou não, o mesmo trabalho ou mesmo nível de rendimentos nos tempos vindouros. Recorde-se: a medida do prejuízo é dada pela diferença entre a situação que o sinistrado poderia ter se mantivesse a aptidão física anterior ao acidente e a que, em virtude das lesões sofridas, se vê obrigado a ter.
Sendo o Autor pessoa em idade activa e desenvolvendo trabalho por conta própria, sem que tenha resultado apurado o montante dos seus rendimentos à data do sinistro, deverá, de acordo com a jurisprudência consolidada do nosso Supremo Tribunal de Justiça, fixar-se tal montante com base na equidade presumindo-se que granjeia um rendimento não inferior ao salário mínimo nacional, adequando-o às especificidades da sua profissão habitual e habilitações.
No sentido que vimos seguindo, de que não podendo ser quantificado, em termos de exactidão, o prejuízo decorrente da perda de capacidade aquisitiva futura, se impõe ao tribunal que o julgue equitativamente, veja-se, entre muitos outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.11.2019, relatado pelo Conselheiro Oliveira Abreu no proc. n.º 1585/12.4TBGDM.P1.S1, no qual, para além de ter considerado na fixação de indemnização ao reclamante que se encontrava desempregado, ter-se-á em conta como rendimento mensal a considerar, o salário mínimo nacional, se advoga que “…a atribuição de indemnização por perda de capacidade geral de ganho futuro, segundo um juízo equitativo, tem variado, essencialmente, em função dos seguintes factores: a idade do lesado; o seu grau de incapacidade geral permanente; as suas potencialidades de aumento de ganho, antes da lesão, tanto na profissão habitual, ou previsível profissão habitual, como em profissão ou actividade económica alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações, a par de um outro factor que contende com a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da actividade profissional habitual do lesado, ou da previsível actividade profissional habitual do lesado, assim como de actividades profissionais ou económicas alternativas, tendo em consideração as competências do lesado, encontrando, assim, uma orientação para o cálculo do montante indemnizatório pela reparação da perda da capacidade aquisitiva futura, a aferir segundo um juízo de equidade, tomando em consideração critérios objectivadores, aferidores e orientadores seguidos pela jurisprudência, enunciados na precedente alínea.” (nossos sublinhados) [30]
No mesmo sentido, ainda, numa enunciação exemplificativa, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14.12.2016, de 11.04.2019 e de 23.05.2019, relatados, respectivamente, pelos Juízes Conselheiros Maria da Graça Trigo no processo n.º 37/13.0TBMTR.G1.S1 e Oliveira Abreu nos processos n.ºs 465/11.5TBAMR.G1.S1 e 1046/15.0T8PNF.P1.S1. [31]
Assim, considera-se adequada a fixação equitativa de um rendimento mensal líquido do Autor em € 900,00, para efeito do cálculo indemnizatório em curso.
Uma vez que a factualidade provada em primeira instância contém todos os elementos, necessários e suficientes, para estimar a perda de rendimento futuro decorrente do défice funcional permanente padecido pelo Autor, em conformidade com aquela que deve ser a jurisprudência aplicável ao caso, proceder-se-á, de seguida, ao cálculo do valor indemnizatório resultante do Défice-Funcional Permanente a pagar ao lesado, tendo presente que, no que concerne aos danos futuros, deve "representar um capital que se extinga no fim da sua vida activa e seja susceptível de garantir, durante esta, as prestações periódicas correspondentes à sua perda de ganho", capital esse a que se aplicará uma taxa de juro anual aproximada ao valor da desvalorização monetária (assim, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.01.1979, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 283, pág. 260, citado pelo Desembargador Sousa Dinis, in "Dano corporal em acidentes de viação, cálculo da indemnização, situações de agravamento", CJSTJ, ano V, tomo II, 1997, pág. 11, e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.06.1989, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 388, pág. 372).
Reforçando esta ideia defende-se que na atribuição de uma indemnização que vise ressarcir os danos futuros, todos os critérios procuram atribuir ao lesado uma quantia em dinheiro que produza o rendimento mensal fixo perdido, mas que, ao mesmo tempo, não propicie um enriquecimento injustificado à custa do lesante, ou seja, é necessário que, na data final do período considerado, se ache esgotada a quantia atribuída (Desembargador Sousa Dinis, in op. cit.).
Acrescente-se que, no que ao dano futuro diz respeito, a indemnização deve ser calculada em atenção à idade limite da vida activa em Portugal – que no mínimo poderá considerar-se nos 65 anos (neste sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.03.1993, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 425, pág. 544 e ss.) – e que aqui se entende, por força do aumento da esperança média de vida e da tendência para o aumento das idades de reforma, estabelecer actualmente em 75 anos.
No caso vertente, assumindo o montante de rendimento mensal de € 900,00, ponderando que tinha 53 anos de idade à data dos factos (nasceu a 04.09.1962), tinha uma esperança de vida útil de mais 22 anos e padece de um Défice Funcional Permanente de 20 pontos, o valor indemnizatório que resulta da aplicação do critério supra enunciado é de € 35.000,00 (segue-se a jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04.04.1995, in C.J. Ano XX, tomo II pág. 23 e ss. que desenvolveu e ajustou o critério que vinha sendo utilizado pelo S.T.J. em alguns arestos anteriores – acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 04.02.1993, in C.J.S.T.J., Ano I, Tomo I, pag. 128 e seguintes e de 05.05.1994, in C.J.S.T.J., Ano II, Tomo II, pag. 86 e seguintes). Utilizando as fórmulas que neste acórdão se recomendam, resultará o seguinte cálculo para determinação do capital necessário para propiciar aquele rendimento anual que o Autora perdeu: C = (1+ i) n - 1 x P sendo: P = prestação anual; C = capital a depositar no primeiro ano; N = anos de expectativa de vida activa; i = taxa de juro nominal (2%).
Deste modo, fixa-se a indemnização da vertente patrimonial do dano decorrente do défice funcional permanente da actividade físico-psíquica do Autor – “dano biológico” na nomenclatura utilizada pela sentença recorrida –, em € 37.500,00.
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- Dos juros que incidem sobre o montante do prejuízo patrimonial
Quanto aos juros peticionados sobre os danos patrimoniais, tem o Autor direito a recebê-los, calculados à taxa legal, desde a citação dos Réus até efectivo e integral pagamento (cfr. artigo 805.º, n.º 3, do Código Civil) e não desde a data da prática das agressões por não se encontrarem ainda liquidados como impõe a referida norma do C.C..
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Dano não patrimonial
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Estipulam os n.os 1 e 3 do artigo 496.º do CC que:
“1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. (…)
3. O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º.”
Por sua vez o artigo 494.º prescreve que:
“...poderá a indemnização ser fixada, equitativamente (...) desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem.”
Visando dar aos lesados uma compensação ou satisfação por danos de ordem moral cuja gravidade, aferida por um critério objectivo, o justifique, tendo presente que a sua natureza não permite a reposição da situação anterior ao evento danoso, os referidos preceitos determinam o recurso ao critério da equidade na determinação do montante atribuído.
Provou-se que o Autor, em consequência das agressões do 1º Réu:
- foi assistido no local pelo INEM, tendo sido transportado para o Serviço de Urgência do Hospital de Faro, onde deu entrada consciente, mas desorientado no tempo e no espaço, com discurso inadequado;
- sofreu traumatismo craniano encefálico que determinou o seu internamento por 7 dias nos cuidados intermédios do Hospital de Faro, tendo alta para residência;
- quando teve alta hospitalar, apresentava ainda hematomas (na cara e noutras regiões corporais) e ferida no crânio:
- apresenta sequelas no crânio – sem deformidade e/ou assimetria da calote craniana – com lentificação do discurso e perturbações sensoriais, agnosia e possíveis perturbações de audição do ouvido direito, com sinais e sintomas sugestivos de síndrome pós comocional moderado com repercussão nas atividades diárias e profissionais;
- sofreu Quantum Doloris no grau 4/7;
- padece de: Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica de 20 pontos em 100, compatível com o exercício da atividade habitual, mas implicando esforços suplementares; Dano Estético Permanente no grau 1/7; e Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer no grau 3/7;
- necessita de apoio regular do foro neurológico/psiquiátrico, em consultas anuais;
- viu-se definitivamente: lentificado na execução de tarefas; lentificado de raciocínio; com dificuldade de memorização; com tendências depressivas; e com diminuição do prazer na vida;
- anteriormente às lesões, o Autor era um homem alegre, otimista, perfeitamente realizado com o que fazia.
Assim, considera-se justo e equilibrado o montante de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) para indemnizar o Autor da totalidade dos danos não patrimoniais sofridos com o acidente a que se reportam os autos.
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- Dos juros vencidos sobre os montantes dos danos não patrimoniais apurados
Tem o Autor direito a receber juros, calculados à taxa legal, desde a notificação da presente decisão aos Réus, até integral pagamento das quantias arbitradas. Apesar da disposição constante do n.º 3 do artigo 805.º do C.C., determinar para a responsabilidade por facto ilícito a constituição em mora desde a citação, procurando obviar aos prejuízos resultantes da desvalorização monetária na pendência dos processos, deve considerar-se que a determinação do montante indemnizatório dos danos não patrimoniais, ao utilizar o critério de equidade constante do artigo 494.º do C.C. engloba já o fenómeno da desvalorização monetária, actualizando automaticamente o ressarcimento do dano à data em que a decisão de 1ª instância é proferida. Retroagir o funcionamento dos juros moratórios à data da citação será, deste modo, atribuir uma dupla desvalorização monetária, contrária aos preceitos dos artigos 473.º e 566.º, n.º 2, do C.C. ([32])
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Custas
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Não havendo norma que preveja isenção (artigo 4.º, n.º 2, do RCP), o presente recurso está sujeito a custas (artigo 607.º, n.º 6, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC).
No critério definido pelos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2 e 607.º, n.º 6, ambos do CPC, a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no critério do vencimento ou decaimento na causa, ou, não havendo vencimento, no critério do proveito.
No caso, as Recorrentes obtiveram vencimento parcial do recurso, pelo que devem as custas ser suportadas por Autor e Recorrentes na proporção do decaimento.
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III. DECISÃO
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Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em:
1. Julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência:
1. a) Revogar a sentença recorrida, na parte referente ao montante indemnizatório arbitrado a favor do Autor, a cargo dos Réus.
1. b) Condenar os Réus, solidariamente, a pagar ao Autor, a quantia de € 90.700,00 (noventa mil e setecentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados sobre a quantia de € 40.700,00 (quarenta mil e setecentos euros) desde a citação e contados sobre a quantia de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) desde a presente data, em qualquer dos casos até efectivo e integral pagamento.
2. Condenar em custas as Recorrentes e o Recorrido, na proporção do respectivo decaimento.
Notifique.
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Évora, 13 de Fevereiro de 2025
Relator: Ricardo Miranda Peixoto
1º Adjunto: Manuel Bargado
2º Adjunto: Filipe Aveiro Marques
__________________________________________________
[1] Disponível na ligação:
https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/9c458ebfde73cb7b802584250054af0e?OpenDocument
[2] In “Blog do IPPC”, Jurisprudência de 2019 (135), consultado em 30.01.2025, disponível “online” na ligação: https://blogippc.blogspot.com/2019/12/jurisprudencia-2019-135.html
[3] In “Os incidentes da instância”, Almedina, 11ª edição, pág. 114.
[4] Disponível na ligação:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f2ee57be1cae6b4f80258816005a6c61?OpenDocument
[5] Disponível na ligação:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/677c3351c81066b480258ae1005eb17a?OpenDocument
[6] In “Código de Processo Civil Anotado”, volume 2º, Coimbra Editora, 2001, anotação 3 ao então artigo 668.º, pág. 669.
[7] “Código de Processo Civil”, volume I, Almedina, 3ª edição, anotação 10 ao artigo 615.º, pág. 793.
[8] In “Código de Processo Civil Anotado”, volume V, reimpressão, Coimbra Editora, 1984, anotação 5 ao artigo 668.º, pág. 143.
[9] Disponível na ligação:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/952807c78e863705802588d9004df1b1?OpenDocument
No mesmo sentido, entre outros, v. os acórdãos do STJ de 15.12.2011, relatado pelo Juiz Conselheiro Raúl Borges no processo n.º 17/09.0TELSB.L1.S1, e do TRE de 11.02.2021, relatado pela Desembargadora Emília Ramos Costa no processo n.º 487/20.5T8TMR.E1. Disponíveis, respectivamente, nas ligações:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/716b1b216836db4c802579980057452c?OpenDocument
https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/749cacb56fc5b1868025868800764267?OpenDocument
[10] In “Código de Processo Civil”, volume I, Almedina, 3ª edição, anotação 13 ao artigo 615.º, pág. 794.
[11] In Op. Cit., volume I, pág. 421, anotação 3 ao artigo 328.º.
[12] Disponíveis nas ligações: https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c6aeec6e660d904980258ad9003e5976?OpenDocument
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ab7ea227ed095e67802588bf0049973c?OpenDocument
[13] Neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2023, pág. 30.
[14] Disponível na ligação:
https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/5c62d7680bfd396180258b8500342396?OpenDocument
[15] Disponível na ligação:
https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/60b3c297e4f932ed8025820f0051557d?OpenDocument
[16] Incorpora as seguintes modificações resultantes da precedente exposição: a alteração da redacção dos factos provados números 1, 4, 8, 16 e 33.
[17] Redacção resultante do presente acórdão.
[18] Redacção resultante do presente acórdão.
[19] Redacção resultante do presente acórdão.
[20] Redacção resultante do presente acórdão.
[21] Redacção resultante do presente acórdão.
[22] Redacção resultante do presente acórdão.
[23] In “Direito das Obrigações”, volume I, pág. 322.
[24] In “Das Obrigações em Geral”, volume I, 7ª edição, págs. 637 e 638.
[25] In “A responsabilidade objectiva do comitente por facto do comissário”, Revista Julgar, n.º 6, págs. 52 e 53.
[26] In Op. Cit., volume I, 7ª edição, págs. 637 e 638.
[27] In Op. Cit., págs. 57 e 58.
[28] Disponível na ligação:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/913d767c0148ad22802570e7004e0251?OpenDocument
[29] Disponíveis, respectivamente, nas ligações:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/977af0ef684bb3f18025710f0064bfad?OpenDocument
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[30] Disponível na ligação:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/01b5875e351b1dca802584b800602522?OpenDocument
[31] Disponíveis, respectivamente, nas ligações:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/86fa14193690fab28025808900617b86?OpenDocument
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/38f33c44b0c8358280256879006bc013?CreateDocument
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/38b0257154cc89d18025840300607cdb?OpenDocument
[32] Neste sentido, v. o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26.02.1992, in Colectânea de Jurisprudência, Tomo I, pág. 119.