Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
99/22.9T8GDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE MARTINS RIBEIRO
Descritores: FALSIDADE DE ESCRITURA PÚBLICA
SIMULAÇÃO
Nº do Documento: RP2024071099/22.9T8GDM.P1
Data do Acordão: 07/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A Aplicação da Justiça em Nome do Povo reporta-se não só ao julgamento de Direito, mas também ao da matéria de facto, na medida em que na decisão desta os critérios a ter em conta (entre outros, os juízos de experiência comum, lógica e verosimilhança) são os que comummente circulam na sociedade, na comunidade espácio-temporalmente delimitada em que a mesma tem lugar.
II – Como resulta inequivocamente do disposto no art.º 371.º do Código Civil, C.C., “[o]s documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade [documentadora]”, pelo que a falsidade ou veracidade do conteúdo do declarado numa escritura pública está sujeita aos princípios da apreciação da prova – em conformidade às regras substantivas e processuais que regem a mesma.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO N.º 99/22.9T8GDM.P1

SUMÁRIO (art.º 663.º, n.º 7, do C.P.C.):

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Acordam os Juízes na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, sendo

Relator: Jorge Martins Ribeiro;

1.ª Adjunta: Eugénia Cunha e

2.ª Adjunta: Fernanda Almeida.


ACÓRDÃO


I – RELATÓRIO

Nos presentes autos de ação declarativa com processo comum, de despejo, fundado em falta de pagamento de rendas, é autor (A.) AA, titular do N.I.F. ...50..., residente em R. ..., ... ..., e é ré (R.) BB, titular do N.I.F. ...94..., residente em R. ..., ..., ... ..., sendo intervenientes principais (no lado passivo) os pais desta, CC e DD, residentes na mesma rua que a filha mas no n.º ....


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Procedemos agora a uma síntese do processado relevante para o objeto do presente recurso; assim, e lançando mão da síntese efetuada na sentença recorrida([1]):

A)  O A. interpôs a presente ação pedindo:

A) Se digne decretar o termo do contrato de arrendamento mencionado no artigo 1º da petição inicial com fundamento no artigo 1097 nº 1 alínea b);

B) Se digne condenar a Ré a despejar, de imediato, o imóvel arrendado, entregando-o ao A. livre e devoluto de pessoas e bens;

C) Se digne condenar a Ré a pagar ao A. a quantia de 1.200,00€ (mil e duzentos euros) a título de renda correspondentes ao mês de dezembro de 2021 e correspondente indemnização pelo atraso na entrega do imóvel, bem como as rendas subsequentes até ao trânsito em julgado da sentença que decrete a resolução, a cujo valor deverão acrescer os juros moratórios, contados à taxa legal desde as datas em que as rendas deveriam ser pagas, e até ao integral e efectivo pagamento;

D) Se digne condenar a Ré a pagar ao A. indemnização correspondente ao dobro das rendas que seriam devidas, nos termos do n.º 2 do artigo 1045º do Código Civil, pelo período que decorra desde aquele trânsito em julgado da sentença que decrete a resolução até à entrega efetiva do arrendado.

Alega, em síntese:

Ter efectuado um contrato de arrendamento com a R. a qual deixou de pagar a renda devida.

Concluí, pois, pela procedência da acção”.


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B) A R. contestou a ação, defendendo a sua total improcedência, e deduziu reconvenção.

A título de reconvenção peticiona:

- a nulidade da escritura de compra e venda/contrato de arrendamento por simulação;

- a existência e validade de um negócio dissimulado de mútuo;

- da litigância de má-fé, em valor nunca inferior a €5.000,00”.


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C) Os intervenientes principais, no lado passivo, também contestaram, defendendo a improcedência total da ação, e reconvieram.

A título de reconvenção peticionam:

- a nulidade da escritura de compra e venda/contrato de arrendamento por simulação;

- a existência e validade de um negócio dissimulado de mútuo;

- da litigância de má-fé, em valor nunca inferior a €5.000,00”.


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D) Foi proferido o despacho saneador, foram enunciados os objetos do litígio bem como os temas da prova, e foi realizada a audiência de discussão e julgamento.

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E) No dia 19/10/2023 foi proferida a sentença objeto de recurso.

Do dispositivo da mesma consta([2]):

“a) Julga-se improcedente a presente acção intentada pelo A. AA e absolve-se BB e os Intervenientes Principais CC e DD da totalidade dos pedidos.

b) Julga-se parcialmente procedentes os pedidos reconvencionais e declara-se a anulabilidade do contrato de compra e venda referido em 10) dos factos provados e do contrato de arrendamento referido em 1) dos factos provados.

c) Julga-se improcedente o remanescente do pedido reconvencional.

Custas da acção e do pedido reconvencional pelo A.

Registe.

Notifique”.


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F) Aos 23/11/2023 o A. interpôs recurso de apelação, tendo formulado as seguintes conclusões([3]):

1. O Recorrente não pode conformar-se com a douta decisão proferida nos presentes autos que considerou a ação totalmente improcedente e absolveu a recorrida, tendo declarado a anulabilidade do contrato de compra e venda.

2. O Tribunal do qual se recorre, com o devido respeito, não valorizou convenientemente parte da prova trazida e produzida no âmbito da sessão de julgamento e desvalorizou outra.

3. O tribunal do qual se recorre desvalorizou a escritura de compra e venda da propriedade por parte do autor ora recorrente, assim como o contrato de arrendamento outorgado com a ré/recorrida ao ponto de dar como provado o item 10) da matéria de facto «A escritura de compra e venda outorgada no dia 23/10/2012, no Cartório Notarial sito na Avenida ..., sala ..., na freguesia ..., Concelho de Vila Nova de Gaia, não corresponde a uma compra e venda, mas sim a um empréstimo de igual valor ao ali designado como preço, no montante de 42.500,00€ (quarenta e dois mil e quinhentos euros), quando o prédio valia seguramente mais de €65.000,00».

4. Para tal desvalorizou ainda totalmente as declarações de parte do aqui autor, ora recorrente que explicou ao tribunal os factos, com credibilidade e coerência:

5. Desvalorizou ainda o Tribunal os depoimentos de todas as testemunhas no que a tal aspecto de se refere, designadamente as testemunhas EE e FF que foram bem claros que o negócio em causa nos presentes autos é uma normal escritura de compra e venda.

6. Desvalorizou ainda os demais testemunhas, da sra Notária e da Sra GG que nada souber explicar ou referir, tão somente que para elas era uma compra e venda;

7. Em sentido contrário o Tribunal atribuiu credibilidade absoluta às declarações de parte da ré BB, em grau superior a toda a demais prova, inclusive a prova testemunhal e documental.

8. Não existe qualquer prova nos autos no sentido de que a compra e venda é simulada, ou seja no sentido do dado como provado no item 10) da matéria de facto.

9. Existe uma interpretação e avaliação errada sobre a prova.

10. O tribunal deveria ter dado o fato 10) como não provado.

11. De acordo com o artigo 394º do Código Civil não deveria ter sido sequer admitida prova testemunhal sobre tais factos.

12. Torna-se por mais evidente que o autor recorrente é proprietário, porque comprou e senhorio legítimo porque arrendou, com direito ao despejo, como pedido da PI.

13. Como iria o recorrente pagar seguros, IMI, rendimentos provenientes das rendas em sede de IRS, se assim não fosse.

14. Como pretendem fazer crer os recorridos, que não tendo um alegado documento que referiria que se tratava de um mútuo, por tal documento não lhes ter sido entregue inicialmente como prometido e tendo eles sido alvo de uma acção de despejo em 2014, em sede de negociações, com uma jurista presente que os representava, fossem cair no mesmo erro de não colocar isso no papel, tal mostra-se inverossímil.

15. A convicção do Tribunal está viciada em argumentos falíveis, como o facto da exigência do arrendamento significar que é um mútuo e bem assim considerações sobre o valor do imovel das quais não se fez prova alguma.

16. Por todos os supra referidos factos o Tribunal deverá dar como não provados os itens 10), 11), 12) 13),14),19), 20),21), 25), 26), 27),28),29),30), 31), 32), 33), 35), 36),37) da matéria de facto e revogar a sentença no sentido ser determinado o despejo da recorrida BB, tudo como na PI.

Pelo que, decidindo conforme o alegado nas doutas conclusões, Vs. Exas. farão como sempre a habitual JUSTIÇA!”.


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G) As contra-alegações da R. foram juntas no dia 05/01/2024, defendendo que a decisão da matéria de facto não deve ser alterada, que os ónus de impugnação da mesma não foram observados, que a simulação do teor da escritura pública é passível de prova e que o recurso deve improceder([4]).

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H) Depois de, entretanto, a ilustre mandatária da R. ter falecido, no dia ../../2024, foi junta nova procuração.

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I) No dia 22/01/2024 foi proferido o despacho a admitir corretamente o requerimento de interposição de recurso, a subir nos autos e com efeito devolutivo.

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O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 e n.º 2, do C.P.C., não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (como expresso nos artigos 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art.º 663, n.º 2, in fine, do C.P.C.).

         Também está vedado a este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, revogação ou anulação.


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         As questões (e não razões ou argumentos) a decidir são:

1) Se os requisitos de impugnação da matéria de facto foram observados.

2) Se o juízo de valor sobre a questão n.º 1 for positivo, se a decisão da matéria de facto deve ser alterada, no sentido de serem agora considerados não provados os factos os factos provados n.º: 10, 11, 12, 13, 14, 19, 20, 21, 25 a 33 e 35 a 37.

3) Por decorrência lógica, e mediante a resposta à questão n.º 2, se há algo a alterar na decisão de Direito – a qual não é objeto de discordância recursiva.

II – FUNDAMENTAÇÃO

Os factos provados e não provados relevantes para a decisão tal como decidido na sentença sob recurso (cujo teor integral damos por reproduzido)([5]):

Matéria de facto provada

1) Por contrato escrito datado de 23 de outubro de 2012, com efeitos a partir dessa data, o Autor declarou dar de arrendamento à Ré, para habitação, o prédio urbano sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória de Registo Predial de Gondomar, sob o número ...89/..., inscrito na matriz sob o número ...95; - cfr. doc. n.º 1, 2 e 3.

2) O indicado «contrato de arrendamento» foi celebrado pelo prazo de um ano, renovável automaticamente por iguais e sucessivos períodos de tempo, mediante o pagamento pela Ré ao Autor, por transferência bancária, no primeiro dia útil do mês anterior a que dissesse respeito, da renda mensal, no valor de 400,00 € (quatrocentos euros). cfr doc. 3.

3) Por carta registada com aviso de recepção o Autor comunicou à Ré a sua oposição à renovação do contrato de arrendamento nos termos do artigo 1097 nº 1 do Código Civil, dizendo ainda que o contrato de arrendamento cessou em 23 de Outubro de 2021, tendo sido solicitado a entrega do locado livre de pessoas e bens e uma prévia vistoria ao mesmo a fim de verificar o estado em que o mesmo se encontrava.

4) Pese embora as várias interpelações por parte do Autor para entrega do imóvel certo é que o mesmo ainda não foi entregue, Crf. doc. 4 e 5.

5) De acordo com a cláusula décima primeira do contrato «se o local arrendado, e logo que finde o arrendamento, não for restituído por causa imputável à arrendatária, fica esta obrigada a pagar ao senhorio, a título de indemnização e até ao momento da restituição efectiva do imóvel, o dobro da renda mensal estipulada por cada mês em mora».

6) Não tendo liquidado a Ré a indemnização pelo atraso da entrega do imóvel referente ao mês de Novembro no valor de 400,00 € (quatrocentos euros).

7) Para além disso, não liquidou a renda nem a indemnização pela não entrega do locado referente ao mês de dezembro o que perfaz a quantia de 800,00€ (oitocentos euros).

8) Os Intervenientes principais permaneceram sempre na posse do imóvel, até à presente data.

9) O imóvel, objecto do presente litígio, foi adquirido pelos Intervenientes Principais, onde residem nos dois pisos superiores, sendo que o rés-do-chão é habitado pela R. BB.

10) A escritura de compra e venda outorgada no dia 23/10/2012, no Cartório Notarial sito na Avenida ..., sala ..., na freguesia ..., Concelho de Vila Nova de Gaia, não corresponde a uma compra e venda, mas sim a um empréstimo de igual valor ao ali designado como preço, no montante de 42.500,00€ (quarenta e dois mil e quinhentos euros), quando o prédio valia seguramente mais de €65.000,00.

11) O pagamento desse preço corresponde ao valor do empréstimo, cujo pagamento implicava a entrega de valores mensais pela, ora Interveniente DD, não a título de rendas, mas a título de amortização do mútuo.

12) Para criar um vínculo obrigacional para com a primeira e Intervenientes, o autor redigiu um contrato de arrendamento para a habitação, com a mesma data do contrato de compra e venda simulado (23/10/2012), nele constando como primeiro outorgante o próprio e como segundo outorgante a filha dos Intervenientes, aqui primeira ré.

13) Nessa medida, seria pago o valor mensal de 400,00€ (quatrocentos euros), não a título de renda, mas sim como um valor a amortizar ao valor mutuado.

14) Todos os intervenientes (autor, R. e Intervenientes principais) sabiam que a declaração emitida era diversa da sua vontade real.

15) Em 2012, a Interveniente Principal, DD, titulava uma empresa de mercadorias, a qual encontrava-se com dificuldades de tesouraria e não podia recorrer ao financiamento bancário, por forma a poder honrar as obrigações e os compromissos da sociedade.

16) Sucede que, nessa altura, e face ao desespero e aflição para arranjar uma solução rápida para o seu aprovisionamento não teve outra alternativa senão recorrer a empréstimos particulares.

17) Nesse sentido, visionou junto dos meios de comunicação social anúncios de financiamentos, tendo para tanto contactado várias pessoas.

18) E é através desses contactos que chega ao conhecimento de uma «empresa» que se intitulava financeira, propriedade da Sra. GG, com sede na Avenida ..., ..., em ....

19) A referida Sra. GG informa a R. e Intervenientes que a sua empresa disponibilizava diversos financiadores que emprestavam qualquer valor, desde que fosse apresentada uma garantia mobiliária ou imobiliária, conforme o montante mutuado.

20) A referida GG intervinha na qualidade de intermediária entre o mutuante e o mutuário.

21) Tendo ocorrido dois empréstimos, um em Agosto/Setembro de 2012 e outro em Outubro do mesmo ano, respetivamente:

- O primeiro de 5.000,00€ (cinco mil euros), tendo sido liquidado no mês seguinte, acrescido de 500,00€ (quinhentos euros) referentes a juros e comissão da Sra. Intermediária;

- O segundo de 4.000,00€ (quatro mil euros), garantido por uma letra e pago em 3 tranches, no entanto, o valor mutuado foi apenas de 2.000,00€ (dois mil euros), sendo que o restante valor de 2.000,00€ (dois mil euros) computava o valor da comissão e juros – cfr. doc. 1 junto à contestação da ré.

22) Posto que os empréstimos suprarreferidos haviam corrido sem quaisquer incidentes, a R. BB e a Interveniente DD, confiando na pessoa da GG, solicitam-lhe um novo empréstimo, desta feita num montante de 35.000,00€ (trinta e cinco mil euros).

23) Para o empréstimo de tal montante, a mencionada GG advertiu as rés ser necessário apresentar uma garantia para o cumprimento do mútuo, referindo que teria que ser um imóvel.

24) Para o efeito, a fracção dos Intervenientes, que se encontrava livre de encargos, foi sugerida pela GG no sentido de recair sobre ela uma garantia real para assegurar o cumprimento do mútuo que havia proposto.

25) Garantia que consistia em ser celebrada uma escritura de compra e venda em que o investidor, por si proposto, adquiria o imóvel e, em simultâneo, era outorgado um contrato de arrendamento, no qual a primeira ré figurava como arrendatária, com o prazo de 1 ano, com opção de compra, pagando uma prestação mensal a título de renda de 400,00€ (quatrocentos euros) ao senhorio/investidor.

26) Decorrido que fosse o período temporal necessário para o pagamento integral do mútuo, nele incluindo os juros e despesas, realizar-se-ia a escritura de compra e venda, regressando o imóvel à propriedade dos Intervenientes Principais.

27) A R. e os Intervenientes Principais, estranhando a complexidade do procedimento, interrogaram a GG no sentido da necessidade do imóvel ser transmitido, uma vez que uma hipoteca voluntária seria suficiente, tendo a Sra. D. GG referido que o investidor apenas aceitava conceder o empréstimo mediante a concessão da garantia de compra e venda do imóvel.

28) A GG, para garantir a «credibilidade e veracidade» dos seus propósitos, referiu que após a realização da escritura de compra e venda seriam assinados documentos, agora no seu escritório, onde as partes declarariam que a compra e venda era fictícia e que na verdade tratava-se de um mútuo, documentos que ficariam um na posse do investidor e outro na posse dos segundos réus, porém, tais documentos nunca chegaram à posse dos Intervenientes.

29) Após os esclarecimentos suprarreferidos, a GG apresentou o FF, o qual não veio a ser o comprador/investidor, mas antes o autor, informação que os réus só tiveram na véspera da realização da escritura de compra e venda.

30) Pese na escritura de compra e venda o preço declarado ter sido de 42.500,00€ (quarenta e dois mil e quinhentos euros), o autor apenas liquidou, aos Intervenientes o montante de 33.000,00€ (trinta e três mil euros), para tanto emitindo um cheque, de tal montante, do Banco 1... A diferença entre o valor declarado e o valor recebido ficou na posse da Sra. D. GG, supostamente para a liquidação da escritura, impostos e da sua comissão.

31) E em acto sucessivo, após a outorga da escritura, todos os intervenientes (Autor, Ré e Intervenientes Principais) deslocaram-se ao escritório da GG para assinarem o contrato de arrendamento e uma confissão de dívida, porquanto todos estavam conscientes que a venda era fictícia e que a mesma apenas visava assegurar e garantir o contrato de mútuo.

32) Unicamente foi entregue pela GG à Interveniente DD o duplicado do contrato de arrendamento, sendo que a confissão de dívida e acordo de pagamento seriam entregues em momento posterior, o que nunca ocorreu até à data.

33) Em cumprimento do negócio dissimulado (mútuo), a ré DD foi quem assumiu a responsabilidade do pagamento, tendo liquidado 11 prestações de 400,00€ (quatrocentos euros), entre Novembro de 2012 e Outubro de 2013, perfazendo o montante 4.400,00€ (quatro mil e quatrocentos euros).

34) Sucede que, em Novembro de 2014, a R. ré foi notificada de uma acção de despejo intentada pelo autor.

35) No decurso da qual as rés contactam a ilustre mandatária do autor, à data, a Sra. Dra. HH, sendo encetadas, nessa altura, negociações com vista à regularização dos valores prestacionais em falta e relativos ao período entre Outubro de 2013 e Novembro de 2014 ficando acordado que esse valor em atraso seria liquidado nos meses de Julho e Dezembro do ano seguinte, retomando os regulares pagamentos das prestações.

36) Ficou, ainda, clarificado que, após o pagamento integral do capital, far-se-iam contas dos juros e demais despesas e, consequentemente, proceder-se-ia à realização da escritura de regresso à propriedade dos segundos réus.

37) Sendo certo que, a Interveniente DD, desde essa data (2014) tem vindo a amortizar valores ao capital (valores esses no montante de 1.200,00€, 500,00€, 450,00€, sendo que no último ano, antes da presente acção ser proposta, liquidou valores de 300,00€), que neste momento se estima em valores correspondentes até Novembro de 2022, a pelo menos, os valores das rendas acordadas pelas partes – cfr. docs. 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 e 12 juntos à contestação pela Ré.


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Factos não provados:

Com relevância não se provou:

a) O imóvel objecto do presente litígio foi adquirido pelos Intervenientes Principais por empréstimo bancário.

b) Aquando do referido em a GG tenha referido 22) e ss tenha afirmado que o valor de juro cobrado pelo senhor investidor e, ora, autor, era um juro usurário, isto é, 50% sobre o capital mutuado, o qual era ilegal e, para além disso, se declarasse tal juro em documento oficial, sempre correria o risco de ser objecto de investigação pelo Estado, nomeadamente pelas Finanças”.


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Dando por reproduzida a motivação da decisão de facto constante da sentença recorrida, passemos então a apreciar as questões.

1) Se os requisitos de impugnação da matéria de facto foram observados.

Segundo o art.º 640.º do C.P.C, “1 – [q]uando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) – Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) – Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) – A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) – Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) – Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes”. 

Ainda que de forma pouco ortodoxa, ou menos rigorosa, por assim dizer([6]), consideramos que tais ónus foram cumpridos([7]).

Posto isto.

2) Se a decisão da matéria de facto deve ser alterada, no sentido de serem agora considerados não provados os factos os factos provados n.º: 10, 11, 12, 13, 14, 19, 20, 21, 25 a 33 e 35 a 37.

Segundo António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “[n]a enunciação da matéria de facto na sentença, sem embargo da atendibilidade da prova plena que resulte dos autos, o juiz deve verter o que emergir da apreciação crítica e livre dos demais elementos probatórios e usar, se for o caso, as presunções judiciais que as circunstâncias justificarem, designadamente a partir dos factos instrumentais (arts. 607.º, n.º 4, e 5.º, n.º 2, al.a)”([8]).

Nos termos do disposto no art.º 662.º, n.º 1, do C.P.C., cuja epígrafe é “[m]odificabilidade da decisão de facto”, “[a] Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

Importa manter presente que o disposto no art.º 607.º, n.º 4 (e o n.º 5), do C.P.C., aplica-se igualmente a esta instância, tanto mais que a anulação de uma sentença deve confinar-se aos casos em que, como previsto no art.º 662.º, n.º 2, al. c), do C.P.C., “não constando do processos todos os elementos, que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto”.  

O Tribunal da Relação para reapreciar a decisão de facto impugnada tem de, por um lado, analisar os fundamentos da motivação que conduziu a primeira instância a julgar um facto como provado ou como não provado e, por outro, averiguar, em função da sua própria e autónoma convicção, formada através da análise crítica dos meios de prova disponíveis e à luz das mesmas regras de direito probatório, se na elaboração dessa decisão e na sua motivação ocorre, por exemplo, alguma contradição, uma desconsideração de qualquer um dos meios de prova ou uma violação das regras da experiência comum, da lógica ou da ciência – elaboração, diga-se, que deve ser feita à luz de um cidadão de normal formação e capacidade intelectual, de um cidadão comum na sociedade em questão – sem prejuízo de, independentemente do antes dito, poder chegar a uma decisão de facto diferente em função da valoração concretamente efetuada em sede de recurso.

Posto isto, o agora relevante é, em síntese, saber se a decisão da matéria de facto pelo tribunal a quo se mostra correta em função de toda a prova produzida.

Tendo presente todos os meios de prova constantes dos autos, vejamos agora se o declarado em audiência em alguma coisa justifica, impõe, uma alteração da decisão de facto nesta Instância, sendo que, como já referido, a prova é analisada como um todo e à luz dos critérios enunciados.

Não obstante estar em causa a reapreciação da prova([9]), na medida do possível, não iremos reproduzir observações já constantes da motivação da decisão recorrida e cujo teor demos já por reproduzido.

Como resulta da sequência da matéria de facto impugnada pelo recorrente, esta está, de facto, intimamente relacionada([10]).

O cerne da reapreciação é saber se o que foi declarado na escritura pública de compra e venda do imóvel, datada de 23/10/2012, corresponde à vontade negocial das partes ou se, ao invés, a mesma não passou de uma simulação, tanto mais que no mesmo dia o comprador outorgou um contrato de arrendamento do imóvel em causa com a filha dos vendedores…

Vejamos então.

Comecemos pelo depoimento de parte do A., AA([11]).

Que a R. deixou de pagar a renda e que por isso interpôs a ação de despejo; no tocante à versão da R., e dos intervenientes, negou que fosse algum contrato de mútuo sob a forma de um de compra e venda, porque nem sequer tem dinheiro para emprestar, não sendo verdade. Disse ainda que registou o contrato de arrendamento, que passa recibos (no portal da autoridade tributária) e imposto sobre o imóvel.

Que não conhece a R., porque foi FF quem tratou do contrato… porque na altura não tinha disponibilidade. Apesar de ter dito ao início que “repara telemóveis” referiu-se a FF como “colega” (mais adiante disse que ele faz “negócios imobiliários”), que conhece de viver por cima da loja, dizendo que teve conhecimento do imóvel (do negócio) através de FF e que como ele não tinha disponibilidade financeira para ficar ele com o imóvel e então chamou-o para ficar o declarante com ele, tendo o declarante ido ver o imóvel (por fora) e achado “aceitável”, dizendo que o valor do negócio foram 42500 Euros, que foram pagos por cheque, já não se recordava, tal como já não se recordava quem pagou os impostos da transação. Quanto a eventualmente os intervenientes terem recebido menos que isso, já não sabe.

Referiu ainda que não houve contrato-promessa, foi “escritura direta”, e que nunca esteve na posse do imóvel, sendo que teria passado cerca de um mês entre consultar os dados do imóvel e a escritura pública. Quanto a ter celebrado o contrato de arrendamento com a R. no mesmo dia da escritura, sabe que foi assinado no mesmo dia, mas não estava lá porque o contrato estava na posse de FF… acrescentando posteriormente que assim foi porque depois da escritura regressou de imediato a ....

Adiantou que sabia que os vendedores eram os pais da inquilina, dizendo que assim foi porque sabia que os vendedores estavam a passar dificuldades e por isso fez o arrendamento com a filha, por 400 Euros, mas que em 2019 passou para 450 Euros.

Quanto à intervenção de GG: esteve presente na escritura, tal como FF, como testemunhas, apenas, porque o vendedor não tinha o documento de identificação em dia… Ficou a conhecê-la na escritura, por ser conhecida de FF.

A testemunha GG disse ser florista e continuar a ser promotora bancária, achando que o seu depoimento era por ter “feito uma assinatura numa escritura”, não se recordando de nada; na altura apresentava créditos ao banco e se não dava (não havia hipótese) na banca encaminhava para FF, admitindo que poderá ter sido a situação dos autos.

Nega que fizesse contratos de arrendamento, dizendo que depois de propor a FF o negócio não acompanhava mais (afirmando também que ele não fazia empréstimos, comprava imóveis; confrontada depois com uma confissão de dívida junta com a contestação disse que se ele fez é porque fez, que lhe perguntem…).

Por norma, também não ia às escrituras…, sendo que no caso terá sido testemunha por causa de um documento de identificação, acrescentando que afinal ia às escrituras que envolvessem bancos.

Confrontada com a afirmação de o depoimento “não bater a bota com a perdigota”, quedou-se pelo silêncio.

Quanto a ter ido reconhecer o vendedor sem o conhecer disse que já passou muito tempo, que não nega, apenas que não se recorda, que não se lembra…

II, notária na escritura pública em causa, de relevante apenas disse que conhecia a testemunha anterior do cartório, porque é promotora imobiliária e que fez várias escrituras com ela, em que intervinham bancos, e outras escrituras.

Também conhecia do cartório FF; umas vezes ia com GG, outras não. Se intervieram como testemunhas é porque alguém tinha o bilhete de identidade caducado.

Do ato em questão não se lembra de nada em particular.

A esposa do A., empresária de telecomunicações, EE, prestou (também) um depoimento vago, tendo referido que tinham comprado uma habitação, em ..., há cerca de 10 anos, que estava arrendada logo após a compra, sempre à mesma pessoa, estando ainda arrendada apesar de não estarem a pagar a renda devida, pagam 300 Euros e não 450 Euros (porque o marido subiu a renda, que era de 400 Euros).

Em 2014 interpuseram uma ação de despejo quanto a esta casa, mas depois chegaram a acordo. O I.M.I. e o seguro multirriscos são pagos pelo A. e pela declarante.

O marido soube do imóvel para venda pelo vizinho que vive por cima da loja da declarante (FF, que fez investimentos imobiliários), que alguém queria vender a casa mas na condição de ser feito um contrato de arrendamento; o marido foi ver o imóvel e disse à declarante que tinha visto o exterior e que tinha as plantas interiores e que ia avançar para o negócio. Não fez perguntas quanto à condição de os vendedores quererem um contrato de arrendamento – que nunca viu.

FF já referiu outros negócios ao marido – o qual compra alguns imóveis.

Tem ideia que o marido terá pagado cerca de 43000 Euros, valor justo porque na altura havia crise. Não sabe como foi feito o pagamento e a declarante só participa nas escrituras dos imóveis que ficam em nome dela e o marido nas dos que ficam em nome dele.

Não sabe qual a contrapartida de FF, não sabendo se lhe foi paga alguma contrapartida.

Tem outros inquilinos, mas esta (R.) não conhece; quanto à questão se não é normal ou conveniente conhecer os arrendatários disse que se as pessoas querem vender as coisas não tem nada com isso.

FF disse que o seu conhecimento deste negócio foi por intermédio de GG (com quem já tinha feito negócios antes, incluindo empréstimos a quem precisasse – ainda que posteriormente entrasse em contradição).

O negócio em causa consistia na compra de uma casa com um arrendamento em simultâneo; o valor da compra era cerca de 43.000 Euros e o da renda 400 Euros mensais. Tratava-se de uma senhora que queria vender a casa e queria continuar a morar lá. Não conhecia a vendedora. Ninguém lhe falou em empréstimo de dinheiro.

Não conhecia os vendedores, sabe que a filha era BB. A planta da casa foi obtida na câmara.

Neste caso não tinha dinheiro, pois por isso é que falou com o vizinho (o A.). Achava que era um bom negócio porque o preço era abaixo do preço do mercado (concretizando depois que o imóvel em questão valeria cerca de 60.000 ou 65.000 Euros, depende).

Esteve na escritura porque um senhor (o vendedor) tinha o cartão de cidadão fora do prazo, não explicando por que motivo o fez ou lá estava… Que foi à escritura para fazer companhia ao A., por serem ambos de .... Não tem ideia de ter tido intervenção no contrato de arrendamento ou onde ele foi assinado.

A R., BB, em declarações de parte referiu que em 2011/2012 estava a passar por dificuldades na empresa de transportes que tinha com a mãe e como tinha problemas com a banca andaram a procurar quem emprestasse dinheiro e chegaram ao conhecimento de GG – que referiu que fazia empréstimos e que, dependendo dos mesmos, poderia ser necessária uma garantia móvel ou imóvel.

O primeiro empréstimo que fizeram com ela foi de 5000 Euros e pagaram passado um mês 5500 Euros; no segundo empréstimo de 4000 Euros só receberam 2000 Euros porque o demais era para pagar juros e comissões. Como precisaram de mais fundo de maneio falaram com GG sobre um empréstimo de 35.000 Euros, ao que ela referiu que para esse valor precisaria da garantia de um imóvel, tendo sido proposto fazer a entrega da casa dos pais, sempre lhe tendo frisado que era por causa do empréstimo e não para venda, até por os pais não terem outro sítio para morar.

Nunca lhe foi proposta uma hipoteca; foi complicado convencer o pai porque era o único bem que tinham. Numa reunião GG foi com FF à casa dos pais da declarante, tirar fotografias e explicar que se faria uma venda da casa e ao mesmo tempo um arrendamento e uma confissão onde seria descrito que a venda era fictícia e que pagariam renda mensalmente, como justificação para o dinheiro que entraria mensalmente na conta do mesmo. O pai, relutante, acabou por ceder e “foi-se para a frente com a situação”.

Depois na véspera da escritura GG telefonou a dizer que FF não tinha o dinheiro suficiente (fundo de maneio para emprestar os 35.000 Euros) e que seria o A. a efetuar o empréstimo, que era uma pessoa de bem, que não se preocupasse, que não queria a casa para nada.

Na escritura apareceu como valor não os 35.000 que tinham pedido, mas 42500 Euros, ainda que só tenham recebido 33.000 Euros, porque a diferença foi para pagamento de juros, comissões e outras coisas (entre juros e comissões alguém recebeu, achando que tenha sido GG ou o A. – que só conheceram no dia da escritura).

O A. sabia que se tratava de um empréstimo e no fim da escritura disse ao pai da declarante que não se preocupasse que não queria a casa para nada.

Depois da escritura foi com a mãe ao escritório de GG assinar o contrato de arrendamento e a confissão de dívida onde se dizia que era um empréstimo e não uma compra (apesar de ter sido prometido, nunca chegou a receber este documento). Após a escritura o pai foi ao banco depositar o cheque de 33.000 Euros passado pelo A.

Justificou toda a leviandade do que descreveu com “desespero”.

Os pagamentos que fizeram, pelos quais era responsável a mãe, inicialmente eram de 500 Euros, depois de 450 Euros e nos últimos anos está a fazer de 300 Euros porque tem várias penhoras na reforma e não consegue pagar mais do que isso; sempre foram depósitos na conta da esposa do A. e nunca receberam nenhum recibo.

A mãe deixou de pagar (há anos) quando recebeu a carta da então advogada do A. a falar da ação de despejo e porque também não tinham o documento da confissão e depois houve uma reunião em ... (à qual a declarante não foi por estar doente) entre as advogadas (do A., à altura, e a da R.), o A. e a mãe da declarante, e falaram de acordo e de outras coisas como o I.M.I. recibos etc. e que o A. terá dito que os recibos não eram precisos porque os entregava pelas finanças; o A. disse ainda que depois no final do empréstimo se acertaria essa contas.

Na altura da escritura o valor da casa seria mais ou menos 100.000 Euros.

O A. teve várias atitudes desagradáveis, além de cartas ameaçadoras de despejo chegou a ir a casa dos pais dizer que precisava da casa para um sobrinho que ia para a universidade e “o final não foi muito agradável” porque a mãe no dia seguinte teve um A.V.C. e agora está muito debilitada.

Todos, incluindo o A., tinham consciência que não era uma venda mas um empréstimo. O arrendamento foi feito em nome da declarante porque o pai sempre quis passar a casa para ela, por ser a única herdeira. Os pais nunca chegaram a sair da casa, vivendo lá há 52 anos.

Desde a escritura até hoje o valor (total) já pago ao A. será à volta de 40000 Euros, o que poderia comprovar com todos os depósitos efetuados.

Recebeu o contrato de arrendamento e não a confissão de dívida porque segundo GG o A. ainda não a teria assinado mas que, uma vez assinada, a entregaria – o que nunca fez (incluindo pela advogada do A. há anos, na referida reunião, pois o documento tinha sido novamente solicitado).

Dissemos que não iríamos repetir o percurso analítico-dedutivo constante da motivação da decisão de facto proferida pelo tribunal a quo; não obstante, impõem-se-nos, no entanto, duas observações norteadoras da reapreciação da prova oral produzida em audiência.

Em primeiro, a de que a Aplicação da Justiça em Nome do Povo reporta-se não só ao julgamento de Direito, mas também ao da matéria de facto, na medida em que na decisão desta os critérios a ter em conta (entre outros, os juízos de experiência comum, lógica e verosimilhança) são os que comummente circulam na sociedade, na comunidade espácio-temporalmente delimitada em que a mesma tem lugar.

Em segundo lugar, a de que fazem parte desses juízos, e tendo em conta o objeto dos autos, os seguintes considerandos:

- Um comprador não se decidirá a comprar um imóvel, de um dia para o outro, porque um vizinho lhe diz que está um para venda, muito menos sem o ir sequer ver por dentro;

- Para um comprador investidor um imóvel ocupado com inquilinos tem menos interesse, por dificultar uma posterior transação do mesmo;

- Desafia a lógica comprar um imóvel e, no mesmo dia, dá-lo de arrendamento à filha dos vendedores;

- É contrário à experiência comum celebrar um contrato de arrendamento com uma pessoa que antes não se conhecia e não fazer constar do mesmo qualquer tipo de garantia, seja uma caução, seja a existência de um fiador (o que geralmente sucede mesmo quando as pessoas se conhecem);

- Os depoimentos, exceto as declarações da R., são vagos, evasivos, contrários à lógica e até contraditórios entre si, do que são exemplos, o facto de o A. dizer que não tem dinheiro para emprestar e do depoimento da esposa resultar que afinal têm dinheiro para fazerem compras de imóveis, tal como foram patentes as contradições entre GG e FF, entre o mais, quanto aos empréstimos que este fazia e arranjados por aquela.

- Também os depoimentos do A. e de FF acabam por serem contraditórios e contrários à lógica, pois que quer o último, quer GG acabam numa escritura de compra e venda, “como que por acaso” (quiseram fazer crer…) e para servirem de testemunhas do vendedor, que tinha o cartão de cidadão caducado… Acresce que FF veio de ..., disse, para fazer companhia ao comprador, sendo que este, por sua vez, referiu que a seguir à escritura foi logo embora porque tinha pressa…, isto a propósito de não ter estado na reunião havida após a escritura e que era FF quem tinha o contrato de arrendamento…

Quanto às contas dos valores constantes da sentença recorrida, importa ter em conta, também, o teor da própria petição inicial, em que se invoca apenas “uma renda” de 400 Euros como estando em dívida e dois meses de “indemnização” (400 X 2 = 800), sendo o pedido total o de 1200 Euros.

Para concluirmos esta parte, apenas uma nota mais, atinente ao valor probatório de um documento autêntico. Como resulta inequivocamente do disposto no art.º 371.º do Código Civil, C.C., “[o]s documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade [documentadora]”

Como sintetizado no acórdão desta Secção, proferido no processo n.º n.º 68/22.9T8LOU-A.P1([12]) neste artigo estão em causa três categorias de factos:

i) A primeira é a dos factos que o documento refere como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo. Estes factos não só se têm por verdadeiros, como se encontram cobertos pela força probatória plena do documento autêntico. A parte que pretender impugná-los terá de provar o contrário (não lhe aproveitando a simples contraprova – art. 347º do Cód. Civil), o que só lhe será permitido arguindo a falsidade do documento (art. 372º, nº 1 do Cód. Civil).

ii) A segunda é a dos factos atestados com base nas perceções da entidade documentadora. Embora cobertos pela força probatória plena, esta só vai até onde alcançam as perceções daquela entidade. Na parte em que gozam de tal força probatória, hão de ter-se por plenamente provados, até prova do contrário, feita mediante o incidente de falsidade.

Quanto a esta categoria de factos o documento faz prova plena em relação à materialidade das afirmações atestadas – ou seja, quanto ao facto de terem sido feitas determinadas declarações; mas não quanto à sinceridade, à veracidade ou à validade das declarações emitidas pelas partes. Estes factos – do foro interno dos outorgantes ou exteriores, por não ocorridos no ato da escritura, não sendo objeto de perceção por parte do funcionário documentador – podem ser impugnados por qualquer das partes, sem necessidade de arguir a falsidade do documento, por não estarem cobertos pela força probatória plena deste.   

iii) A terceira categoria de factos é a dos meros juízos pessoais (simples apreciações) do documentador, que não se encontram apoiadas pela força probatória plena do documento porque transcendem a área das perceções do documentador. Tais declarações encontram-se sujeitas à livre apreciação do julgador”.

A observação final atinente à mencionada segunda categoria de factos é a aplicável à situação em apreço, pois que a falsidade ou veracidade do conteúdo do declarado numa escritura pública está sujeita aos princípios da apreciação da prova – em conformidade às regras substantivas e processuais que regem a mesma.   

Posto isto, a prova, valorada como um todo, não deixa qualquer dúvida quanto à realidade dos factos, sendo que, de acordo com o disposto no art.º 662.º do C.P.C., a matéria de facto a considerar é a seguinte([13]).

Matéria de facto provada:

1) Por contrato escrito datado de 23 de outubro de 2012, com efeitos a partir dessa data, o Autor declarou dar de arrendamento à Ré, para habitação, o prédio urbano sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória de Registo Predial de Gondomar, sob o número ...89/..., inscrito na matriz sob o número ...95.

2) O indicado «contrato de arrendamento» foi celebrado pelo prazo de um ano, renovável automaticamente por iguais e sucessivos períodos de tempo, mediante o pagamento pela Ré ao Autor, por transferência bancária, no primeiro dia útil do mês anterior a que dissesse respeito, da renda mensal, no valor de 400,00 € (quatrocentos euros).

3) Por carta registada com aviso de receção o Autor comunicou à Ré a sua oposição à renovação do contrato de arrendamento nos termos do artigo 1097 nº 1 do Código Civil, dizendo ainda que o contrato de arrendamento cessou em 23 de outubro de 2021, tendo sido solicitado a entrega do locado livre de pessoas e bens e uma prévia vistoria ao mesmo a fim de verificar o estado em que o mesmo se encontrava.

4) Pese embora as várias interpelações por parte do Autor para entrega do imóvel certo é que o mesmo ainda não foi entregue.

5) De acordo com a cláusula décima primeira do contrato «se o local arrendado, e logo que finde o arrendamento, não for restituído por causa imputável à arrendatária, fica esta obrigada a pagar ao senhorio, a título de indemnização e até ao momento da restituição efetiva do imóvel, o dobro da renda mensal estipulada por cada mês em mora».

6) Não tendo liquidado a Ré a indemnização pelo atraso da entrega do imóvel referente ao mês de novembro no valor de 400,00 € (quatrocentos euros).

7) Para além disso, não liquidou a renda nem a indemnização pela não entrega do locado referente ao mês de dezembro o que perfaz a quantia de 800,00€ (oitocentos euros).

8) Os Intervenientes principais permaneceram sempre na posse do imóvel, até à presente data.

9) O imóvel, objeto do presente litígio, foi adquirido pelos Intervenientes Principais, onde residem nos dois pisos superiores, sendo que o rés-do-chão é habitado pela R. BB.

10) À escritura de compra e venda outorgada no dia 23/10/2012, no Cartório Notarial sito na Avenida ..., sala ..., na freguesia ..., Concelho de Vila Nova de Gaia, não corresponde([14]) uma compra e venda, mas sim([15]) um empréstimo de 35.000 Euros([16]) quando o prédio valia seguramente mais de €65.000,00.

11) O pagamento desse preço corresponde ao valor do empréstimo, cujo pagamento implicava a entrega de valores mensais pela, ora Interveniente DD, não a título de rendas, mas a título de amortização do mútuo.

12) Para criar um vínculo obrigacional para com a primeira e Intervenientes, o autor redigiu um contrato de arrendamento para a habitação, com a mesma data do contrato de compra e venda simulado (23/10/2012), nele constando como primeiro outorgante o próprio e como segundo outorgante a filha dos Intervenientes, aqui primeira ré.

13) Nessa medida, seria pago o valor mensal de 400,00€ (quatrocentos euros), não a título de renda, mas sim como um valor a amortizar ao valor mutuado.

14) Todos os intervenientes (autor, R. e Intervenientes principais) sabiam que a declaração emitida era diversa da sua vontade real.

15) Em 2012, a Interveniente Principal, DD, titulava uma empresa de mercadorias, a qual encontrava-se com dificuldades de tesouraria e não podia recorrer ao financiamento bancário, por forma a poder honrar as obrigações e os compromissos da sociedade.

16) Sucede que, nessa altura, e face ao desespero e aflição para arranjar uma solução rápida para o seu aprovisionamento não teve outra alternativa senão recorrer a empréstimos particulares.

17) Nesse sentido, visionou junto dos meios de comunicação social anúncios de financiamentos, tendo para tanto contactado várias pessoas.

18) E é através desses contactos que chega ao conhecimento de uma «empresa» que se intitulava financeira, propriedade de GG, com sede na Avenida ..., ..., em ....

19) A referida GG informa a R. e Intervenientes que a sua empresa disponibilizava diversos financiadores que emprestavam qualquer valor, desde que fosse apresentada uma garantia mobiliária ou imobiliária, conforme o montante mutuado.

20) A referida GG intervinha na qualidade de intermediária entre o mutuante e o mutuário.

21) Tendo ocorrido dois empréstimos, um em agosto/setembro de 2012 e outro em outubro do mesmo ano, respetivamente:

- O primeiro de 5.000,00€ (cinco mil euros), tendo sido liquidado no mês seguinte, acrescido de 500,00€ (quinhentos euros) referentes a juros e comissão da intermediária GG;

- O segundo de 4.000,00€ (quatro mil euros), em que foi mutuante JJ, garantido por uma letra e pago em 3 tranches, no entanto, o valor mutuado foi apenas de 2.000,00€ (dois mil euros), sendo que o restante valor de 2.000,00€ (dois mil euros) computava o valor da comissão e juros.

22) Posto que os empréstimos suprarreferidos haviam corrido sem quaisquer incidentes, a R. BB e a Interveniente DD, confiando na pessoa da GG, solicitam-lhe um novo empréstimo, desta feita num montante de 35.000,00€ (trinta e cinco mil euros).

23) Para o empréstimo de tal montante, a mencionada GG advertiu as rés ser necessário apresentar uma garantia para o cumprimento do mútuo, referindo que teria que ser um imóvel.

24) Para o efeito, a fracção dos Intervenientes, que se encontrava livre de encargos, foi sugerida pela GG no sentido de recair sobre ela uma garantia real para assegurar o cumprimento do mútuo que havia proposto.

25) Garantia que consistia em ser celebrada uma escritura de compra e venda em que o investidor, por si proposto, adquiria o imóvel e, em simultâneo, era outorgado um contrato de arrendamento, no qual a primeira ré figurava como arrendatária, com o prazo de 1 ano, com opção de compra, pagando uma prestação mensal a título de renda de 400,00€ (quatrocentos euros) ao senhorio/investidor.

26) Decorrido que fosse o período temporal necessário para o pagamento integral do mútuo, nele incluindo os juros e despesas, realizar-se-ia a escritura de compra e venda, regressando o imóvel à propriedade dos Intervenientes Principais.

27) A R. e os Intervenientes Principais, estranhando a complexidade do procedimento, interrogaram a GG no sentido da necessidade do imóvel ser transmitido([17]) tendo GG referido que o investidor apenas aceitava conceder o empréstimo mediante a concessão da garantia de compra e venda do imóvel.

28) A GG, para garantir a «credibilidade e veracidade» dos seus propósitos, referiu que após a realização da escritura de compra e venda seriam assinados documentos, agora no seu escritório, onde as partes declarariam que a compra e venda era fictícia e que na verdade tratava-se de um mútuo, documentos que ficariam um na posse do investidor e outro na posse dos segundos réus, porém, tais documentos nunca chegaram à posse dos Intervenientes.

29) Após os esclarecimentos suprarreferidos, a GG apresentou o FF, o qual não veio a ser o comprador/investidor, mas antes o autor, informação que os réus só tiveram na véspera da realização da escritura de compra e venda.

30) Pese na escritura de compra e venda o preço declarado ter sido de 42.500,00€ (quarenta e dois mil e quinhentos euros), o autor apenas liquidou, aos Intervenientes o montante de 33.000,00€ (trinta e três mil euros), para tanto emitindo um cheque, de tal montante, do Banco 1... A diferença entre o valor declarado e o valor recebido ficou na posse de GG, supostamente para a liquidação da escritura, impostos e da sua comissão.

31) E em acto sucessivo, após a outorga da escritura, todos os intervenientes (Autor, Ré e Interveniente Principal DD, pois o interveniente CC foi ao banco depositar o cheque) deslocaram-se ao escritório de GG para assinarem o contrato de arrendamento e uma confissão de dívida, porquanto todos estavam conscientes que a venda era fictícia e que a mesma apenas visava assegurar e garantir o contrato de mútuo.

32) Unicamente foi entregue pela GG à Interveniente DD o duplicado do contrato de arrendamento, sendo que a confissão de dívida e acordo de pagamento seriam entregues em momento posterior, o que nunca ocorreu até à data.

33) Em cumprimento do negócio dissimulado (mútuo), a([18]) interveniente DD foi quem assumiu a responsabilidade do pagamento, tendo liquidado 11 prestações de 400,00€ (quatrocentos euros), entre novembro de 2012 e outubro de 2013, perfazendo o montante 4.400,00€ (quatro mil e quatrocentos euros).

34) Sucede que, em novembro de 2014, a R. ré foi notificada de uma ação de despejo intentada pelo autor.

35) No decurso da qual as rés contactam a ilustre mandatária do autor, à data, a Sra. Dra. HH, sendo encetadas, nessa altura, negociações com vista à regularização dos valores prestacionais em falta e relativos ao período entre outubro de 2013 e novembro de 2014 ficando acordado que esse valor em atraso seria liquidado nos meses de julho e dezembro do ano seguinte, retomando os regulares pagamentos das prestações.

36) Ficou, ainda, clarificado que, após o pagamento integral do capital, far-se-iam contas dos juros e demais despesas (incluindo seguros, e pagamentos de I.M.I.) e, consequentemente, proceder-se-ia à realização da escritura de regresso à propriedade dos segundos réus.

37) Sendo certo que, a Interveniente DD, desde essa data (2014) tem vindo a amortizar valores ao capital (valores esses no montante de 1.200,00€, 500,00€, 450,00€, sendo que no último ano, antes da presente acção ser proposta, liquidou valores de 300,00€), que neste momento se estima em valores correspondentes até novembro de 2022, a pelo menos, os valores das rendas acordadas pelas partes.

38) À data da interposição da ação o A. considerava estar em dívida uma “renda” de 400 Euros e duas indemnizações de 400 Euros, num total de 1200 Euros.


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Relevante para a decisão da causa não há matéria de facto não provada.

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Por fim, a última questão, 3), se a decisão de Direito deve ser mantida.

 

O Direito aplicável aos factos:

Como resulta das alegações, eventual alteração (relevante) da decisão de Direito, dependeria de alteração (relevante) da matéria de facto.

Quanto à fundamentação de Direito, e tendo em conta o disposto nos artigos 5.º, n.º 3, e 607.º, n.º 3, do C.P.C., não acompanhamos na íntegra o raciocínio seguido pelo tribunal a quo, sem prejuízo de sermos tão sucintos quanto possível.

Assim, ressalvado o devido respeito por diferente entendimento, consideramos que efetivamente o intitulado contrato de compra e venda é nulo por simulação, nos termos do art.º 240.º do C.C.

Como explica Mota Pinto, “[o] conceito de negócio simulado está explicitamente formulado no n.º 1 do artigo 240.º. Em correspondência com a orientação da doutrina tradicional, os elementos integradores do conceito, referidos naquela disposição, são: a) Intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração; b) Acordo entre declarante e declaratário (acordo simulatório), o que, evidentemente, não exclui a possibilidade de simulação nos negócios unilaterais; c) Intuito de enganar terceiros”([19]).

Continuando com o mesmo autor, “[a] simulação é inocente se houve o mero intuito de enganar terceiros, sem os [prejudicar] e é fraudulenta, se houve o intuito de prejudicar terceiros ilicitamente ou de contornar qualquer norma da lei”([20]).

Como é patente a partir dos factos, designadamente dos números 27, 28, 30, 33, 36, 37 e 38, pretendeu-se com uma escritura pública enganar a fé pública dando a aparência de um negócio de compra e venda a um mútuo, de enganar a autoridade tributária (pois, no mínimo, o recebimento de um montante a título de juros está sujeito a pagamento de imposto, seja em sede de I.R.C., seja em sede de I.R.S.([21])) e de contornar a lei, designadamente por, por um lado, se pretender (na melhor das hipóteses ([22])) lançar mão de uma figura que não está expressamente prevista na lei mas que a jurisprudência (ainda que não sem limites…) vem admitindo, que é a venda fiduciária([23]) e, por outro, de contornar as normas que pretendem acautelar a ocorrência de negócios usurários, como sejam, por exemplo, as constantes dos artigos 282.º (negócios usurários), 559.º (taxa de juro), 559.º (juros usurários) e 1146.º (usura).

Assim, o negócio de compra e venda é nulo por simulação e, pelos mesmos motivos (pois que teve uma natureza meramente instrumental para o fim pretendido), o de arrendamento.

Existiu, de facto, um negócio efetuado entre as partes, dissimuladamente, que foi um mútuo([24]) que, dado o valor, como já referido em citação do art.º 1143.º do C.C., teria de ser celebrado por escritura pública (por superior a 25000 Euros).

Entramos assim no domínio da simulação relativa, prevista no art.º 241.º do mesmo Código, sendo que a nulidade do negócio simulado não necessariamente determina a nulidade do dissimulado([25]), desde que, tratando-se de um negócio formal, a forma legal tenha sido observada: art.º 241.º, “1. [q]uando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado. 2. Se, porém, o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei”.

Quanto ao contrato de mútuo o mesmo é anulável nos termos do disposto no art.º 282.º do C.C., respeitante aos negócios usurários.

Como disposto neste artigo, “1 – [é] anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados. 2 - Fica ressalvado o regime especial estabelecido nos artigos 559.º-A e 1146.º”.

Ora, como é patente nos factos, o procedimento, “o esquema”, posto em causa é determinado por uma ambição (desmedida, censurável) que explora a situação de necessidade de quem precisa de liquidez e que envereda por tal revelando total credulidade (e colocando-se à mercê…) na pessoa do mutuante, agindo assim o mutuário por inexperiência e com ligeira decorrente da necessidade do empréstimo… Aliás, não deixa de ser estranho, até, que pessoas (a R. e sua mãe, a interveniente) com experiência de negócios (a da empresa de transportes que estava em dificuldade) tenham chegado ao ponto de aceitarem a exigência de ser feita uma escritura pública de compra e venda do imóvel… – tal era o desespero ou a necessidade, observamos.

Não obstante a R. (ou os intervenientes) não ter interposto recurso, o acabado de dizer em nada contende com o decidido, porquanto nos termos do art.º 289.º, n.º 1, do C.C., “[t]anto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente”.

Pelo exposto, o recurso de apelação interposto pelo A. será julgado improcedente, sendo os RR. absolvidos dos pedidos por si formulados.

III – DECISÃO

Pelos motivos expostos, e nos termos das normas invocadas, acordam os juízes destes autos no Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo A.

Custas na primeira instância e da apelação pelo A., por ter decaído, nos termos do art.º 527.º, n.º 1, e n.º 2, do C.P.C.


Porto, 10/07/2024.

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Este acórdão é assinado eletronicamente pelos respetivos:

Relator – Jorge Martins Ribeiro;

1.ª Adjunta: Eugénia Cunha e

2.ª Adjunta: Fernanda Almeida.


______________________
[1] Sem prejuízo de introduzirmos pequenas alterações no texto.
[2] Maiúsculas e negrito no original.
[3] Aspas e negrito no original.
[4] Não foi interposto recurso da absolvição do A. como litigante de má-fé.
[5] Negrito e aspas no original.
[6] Não foi à toa que a questão foi colocada nas contra-alegações… Na verdade, destacamos o seguinte: a) o recorrente praticamente transcreveu integralmente a audiência de julgamento no corpo das alegações; b) depois concretiza os precisos momentos da transcrição (cotejados com os seus entendimentos quanto à valoração da prova documental, mormente quanto ao valor probatório da discutida escritura pública de compra e venda) quanto à impugnação do facto provado n.º 10, e, c), por fim, afirma que o mesmo fundamento se aplica aos demais factos que elenca…
[7] Conhecemos, contudo, entendimentos mais restritivos no tocante à observância, ou não, dos ónus previstos no art.º 640.º do C.P.C…
[8] Cf. António Santos Abrantes GERALDES, Paulo PIMENTA e Luís Filipe Pires de SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2023, p. 30.
[9] Ouvimos integralmente a prova produzida oralmente, pela sequência em que o foi.
[10] O que pode contribuir para justificar a forma algo peculiar, que antes referimos em nota, como a fundamentação da sua impugnação foi deduzida.
[11] Que apenas deveria ter sido inquirido sobre matéria suscetível de um depoimento de parte, a confessável, isto por referência ao disposto nos artigos 453.º, 454.º e 463.º do C.P.C. e do 352.º do C.C.
[12] Relatado por Miguel Baldaia de Morais, sendo primeiro adjunto o ora relator e segunda adjunta Fernanda Almeida, aqui também segunda adjunta.
[13] A matéria de facto eliminada será referida em nota e as alterações (relevantes) serão assinaladas a negrito; as referências aos documentos que constavam da decisão de facto da primeira instância serão eliminadas (por se tratar de motivação da mesma).
[14] Texto eliminado: “a”.
[15] Texto eliminado: “a”.
[16] Texto eliminado: “igual valor ao ali designado como preço, no montante de 42.500,00€ (quarenta e dois mil e quinhentos euros)”.
[17] Texto eliminado: “, uma vez que uma hipoteca voluntária seria suficiente,”.
[18] Texto eliminado: “ré”.
[19] Cf. Carlos Alberto da Mota PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição actualizada, Coimbra, Coimbra Editora, 1989, pp. 471-472.
[20] Cf. Carlos Alberto da Mota PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição actualizada, Coimbra, Coimbra Editora, 1989, p. 472 (interpolação nossa).
[21] Pois que a tributação do lucro de juros nada tem a ver com as despesas suportadas pelo A. mas inerentes à simulação, como, por exemplo, o pagamento de I.M.I. e de seguros – que, como provado, seriam depois objeto de acerto de contas a final…
[22] E já vimos que não foi o caso, como é prova a interposição desta ação de despejo…
[23] Cf., exemplificativamente, sobre esta figura, o teor do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo n.º 279/2002.E1.S1, aos 16/03/2011, relatado por Lopes do Rego. O acórdão está acessível em:
https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/279-2011-89731475 [02/07/2024].
[24] “Sem prejuízo do disposto em lei especial, o contrato de mútuo de valor superior a (euro) 25 000 só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado e o de valor superior a (euro) 2500 se o for por documento assinado pelo mutuário”.
[25] Sobre tais conceitos, cf., por todos, Carlos Alberto da Mota PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição actualizada, Coimbra, Coimbra Editora, 1989, pp. 473-477.