Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7.ª SECÇÃO | ||
Relator: | FERREIRA LOPES | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE MÉDICA RESPONSABILIDADE CONTRATUAL RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS ATO MÉDICO OBRIGAÇÃO DE MEIOS E DE RESULTADO CULPA ÓNUS DA PROVA INCUMPRIMENTO CUMPRIMENTO DEFEITUOSO ERRO ILICITUDE DEVER DE DILIGÊNCIA MÉDICO LEGES ARTIS | ||
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Data do Acordão: | 03/31/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEEDIDA PARCIALMENTE | ||
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Sumário : | I - Na responsabilidade civil por acto médico, podem conviver a responsabilidade do Hospital privado com quem a doente celebrou um contrato para operação cirúrgica de colecistectomia por laparoscopia, que é de natureza contratual, com a responsabilidade extracontratual do médico quando no decurso da intervenção cirúrgica provoca uma lesão na saúde da doente, não exigida pelo cumprimento do contrato, o que é suficiente para revelar a prática de um acto ilícito, e se provam os demais pressupostos da responsabilidade civil; II - Para se ter como culposa a conduta do médico não é necessário que o acto lesivo da saúde da doente – a laceração da veia porta, causadora de hemorragia intensa que esteve na origem de falência hepática e necessidade de um transplante de fígado – tenha sido intencional; III - A culpa na responsabilidade médica traduz-se na omissão de diligência e competências exigíveis, que fica demonstrada quando se prova que o laceração da veia porta teve como causa provável tração excessiva ou intempestiva, mas acidental, sobre o infundíbulo vesicular, o que só pode explicar-se por falta do cuidado exigível ou imperícia na execução do acto médico. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça AA, intentou ação declarativa, com processo ordinário, contra BB, médico, e C ... Hospital..., pedindo a condenação destes a pagarem-lhe, solidariamente, a quantia de € 537.775,00, acrescida de juros de mora desde a citação e até integral pagamento, a título de indemnização. Como fundamento alegou ser a única herdeira de CC, sua filha, falecida a …/07/2009. Em 2007, aquela foi submetida a uma intervenção cirúrgica designada por “colecistectomia”, pelo 1º Réu nas instalações da 2ª, durante a qual ocorreu uma hemorragia intraoperatória súbita que resultou de uma secção completa da via biliar principal ao nível do colédoco, de uma extensa laceração da veia porta 1 centímetro acima da bifurcação e de uma laceração hepática profunda do leito vesicular, que foram causadas por erro no procedimento cirúrgico ou do material usado, que a equipa médica não conseguiu controla. Foi decidido transferir a doente para o Hospital ... (H...), no ..., onde a CC foi operada no dia 11.07.207 e novamente nos dias 13 e 16 daquele mês e a 12.06.2006, vindo a falecer no Serviço de Cuidados Intensivos do H... no dia … .07.2009, num contexto de choque séptico, que evoluiu para falência multiorgânica. A indemnização peticionada corresponde a salários perdidos pela filha, retribuições que aquela deixou de auferir durante a sua presumível existência, despesas que aquela teve com medicamentos, deslocações e honorários ao médico que a assistiu, pelos danos não patrimoniais por aquela sofridos e ainda, no que aos danos próprios por si sofridos, no ressarcimento pelo sofrimento que teve com a morte da sua filha e nos danos de natureza não patrimonial que também sofreu. Os Réus BB e C ... Hospital..., contestaram em articulados próprios, excecionando a prescrição do direito e por impugnação. O 1ª Réu deduziu a intervenção principal provocada de Axa Portugal – Companhia de Seguros, S.A., e a 2ª a intervenção acessória provocada da Companhia de Seguros Seguros Tranquilidade, S.A., por terem transferidos para estas, por contrato de seguro, a sua responsabilidade civil emergente das respectivas actividades profissionais. As intervenções foram admitidas, tendo as intervenientes contestado, invocando também a prescrição e por impugnação. Foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente, com a consequente absolvição dos RR do pedido. A Autora apelou, vindo a Relação ... a proferir a seguinte decisão: “dá-se, em parte, provimento ao recurso e, em consequência, altera-se a matéria de facto pela supra referida forma, declara-se a prescrição dos direitos acima identificados (os subsumíveis à responsabilidade extracontratual) e condena-se a ré C ... Hospital..., a pagar à autora AA a quantia de € 100.000,00 (cem mil euros) a título dos sobreditos danos não patrimoniais e absolve-se a mesma quanto ao mais pedido. Do acórdão, interpuseram recurso de revista a Ré C ... Hospital..., a Generali Seguros SA, denominação actual da interveniente Seguradoras Unidas SA, e a Autora, esta subordinadamente. A Recorrente C ... Hospital... conclui como segue as suas alegações: 1. Salvo o devido e excelso respeito, o douto Acórdão do Tribunal da Relação ... em revista não fez boa aplicação da Justiça. 2. Porque, a par de erros notórios de julgamento que conduziram a uma errada aplicação do Direito à matéria de facto assente, enferma do vício de nulidade, quer por não especificar os fundamentos de facto em que se baseia (por referência aos concretos pontos da matéria assente), quer por contradição entre a decisão da matéria de facto e a aplicação do Direito. 3. O que confluiu numa decisão nula, injusta e inaceitável. 4. Contudo, não pode a Recorrente aceitar ser responsabilizada por algo que não lhe é imputável nem a si diretamente, nem ao Réu médico ao seu serviço, mais concretamente o acidente iatrogénico ocorrido durante a cirurgia de colecistectomia realizada, em 11/07/2007, à filha da Autora. 5. E muito menos pela morte de CC, dois anos depois desse acidente, na sequência de uma cirurgia de anastomose bilio-digestiva realizada por complicações decorrentes do transplante hepático, na qual não teve qualquer intervenção. 6. Apesar da matéria de facto ser a mesma que levou o Tribunal de primeira instância a julgar pela improcedência da ação e absolvição dos Réus do pedido (acrescida apenas dos dois factos supracitados) e da qualificação jurídica dos factos ser também a mesma, o Tribunal da Relação ... decidiu num sentido totalmente diferente, com uma fundamentação tão surpreendente quanto lacónica (ou lacunar melhor dizendo). 7. A responsabilidade da Ré C ... Hospital... é configurada como contratual e a responsabilidade do Réu Médico como extracontratual (cujo direito indemnizatório fundado na mesma já se encontra prescrito), o que não merece reparo, sendo enquadrada atuação daquela no âmbito do artigo 800º do CCiv; 8. É incontroversa a existência de um dano (laceração tangencial do ramo direito da veia porta - cfr. ponto 46. dos Factos Provados), mas é muito questionável a verificação dos demais pressupostos da responsabilidade, não só no confronto com a factualidade alegada pela Autora (ou não alegada como era seu ónus), mas também perante a matéria assente (que foi até amplamente escrutinada do Tribunal da Relação no recurso de apelação interposto pela Autora). 9. O exame da parca fundamentação de facto e de direito do acórdão sobrevista permite constatar que o Tribunal da Relação ... não tomou em devida consideração os princípios estruturantes do direito processual civil: princípio da legalidade, princípio do dispositivo e princípio da auto-responsabilização das partes. 10. Desde logo desconsiderou liminarmente os factos essenciais que sustentam a pretensão a Autora, o que contrasta com a decisão do Tribunal de primeira instância que os identificou e analisou criteriosamente e com assinalável cuidado. 11. E, por outro lado, não teve em conta a matéria de facto provada no seu conjunto, selecionando pontualmente factos truncados para basear as suas considerações que assentam em meras presunções legais e judiciais. 12. ressalta desde logo a dificuldade de perceber a destrinça que o Tribunal a quo faz (se é que quis fazer) entre ilicitude e culpa. 13. O Tribunal a quo considera que a culpa da Ré C ... Hospital... se presume (cfr. art. 799º do CCiv), mas esquece-se, no entanto, que para esta ser responsável pelos atos do seu auxiliar (Réu Médico) tem de estar demonstrada a responsabilidade deste que, sendo de natureza extracontratual, a culpa não se presume. 14. Mas, além da culpa, o Tribunal a quo parece ter presumido também a ilicitude. 15. Sucede que a demonstração da “falta de cumprimento do dever objectivo de diligência ou de cuidado que emana da leges artis” não resulta da matéria de facto assente, nem sequer são identificados os concretos pontos dos Factos Provados dos quais possa decorrer tal ilação, além de ser contrariada pela apreciação técnica do Conselho Diretivo do Colégio da Especialidade de Cirurgia Geral no Complemento ao Parecer, emitido em 07/05/2018 (fls. 1148/1150) que concluiu de forma expressa e insofismável: «A hemorragia, em nossa opinião, não se deveu a negligência ou imperícia do cirurgião ou da sua equipa.» 16. Esta errada perceção do Tribunal a quo redunda em falta de fundamentação que, nos termos do disposto no artigo 615º, n.º 1 alínea b) do CPC, fere de NULIDADE a decisão neste segmento. 17. Também não encontra respaldo na matéria de facto assente a conclusão de que: “Por outro lado, não se demonstra, como o atesta a laceração da veia porta, que o 1º réu tenha providenciado, na circunstância, todos os cuidados que a colecistectomia impunha designadamente avaliando todas as condições locais da paciente e promovendo uma cuidadosa intervenção no manuseamento dos instrumentos laparoscópicos pelo que não se mostra ilidida a supra referida presunção de culpa.” 18. Essa ilação materializa-se num facto essencial à procedência da pretensão da Autora que, além de não constar da matéria assente (e ter sido rejeitada a sua inclusão nessa sede pelo Tribunal a quo), não foi sequer alegado pela Autora oportunamente e em sede própria. 19. Esta ambiguidade de posições do Tribunal a quo que ora desconsidera um facto, ora tira ilações decorrentes desse mesmo facto, evidencia uma flagrante contradição entre os fundamentos e a decisão, geradora de NULIDADE, por força do disposto no artigo 615º, n.º 1 alínea c) do CPC. 20. A decisão incorre em vários erros de interpretação da matéria de facto assente que contrariam a de facto do próprio Tribunal a quo: o gesto meramente provável de ter provocado a lesão na veia porta passou a ser tomado como certo; desconsidera que a tração excessiva ou intempestiva foi acidental (facto relevante que impõe que se considere a atuação do Réu Médico como involuntária); E desvaloriza o facto assente da existência de aderências peri-vesiculares (que expressa erroneamente como “porventura com aderências”) poderem eventualmente ter contribuído para a produção da lesão acidental; 21. Por último, o facto de ser rara a lesão da veia porta em cirurgias deste tipo, não permite que a sua ocorrência possa evidenciar culpa do Réu Médico por não a ter prevenido. 22. Não é sério, nem razoável, exigir que um cirurgião tenha a capacidade (ou o dom, melhor dizendo) de antever a ocorrência de um evento raro e, menos ainda, o dever de prevenir ou evitar a ocorrência de fenómenos inesperados ou acidentais – cfr. ponto 45 dos Factos Provados. 23. Além de ser facto assente que se tratou de um acidente ocorrido surgido de forma inesperada, ficou também demonstrado que o mesmo ocorreu durante a simples (e habitual) manipulação necessária das estruturas para alcançar, tracionar e dissecar a vesícula (gestos técnicos próprios da cirurgia de colecistectomia em curso), - Complemento ao Parecer do Conselho Diretivo do Colégio da Especialidade de Cirurgia Geral, de 19/04/2016 (fls. 786/791): 24. O Tribunal a quo limita-se, assim, a extrair da ocorrência do dano (laceração extensa tangencial da veia porta direita) a presunção de que a atuação que o causou constitui, por si só, um ato ilícito, sem fundamento legal ou factual para o fazer. E a considerar não ilidida a presunção de culpa por o Réu Médico ter executado um movimento que afetou a veia porta que “deveria ter sido prevenido” (com base em quê?). Desconsidera, assim, de forma ostensiva o facto assente que se tratar de um ato acidental que pode eventualmente ter sido condicionado por características biológicas intrínsecas da doente (existência de aderências). 25. Por conseguinte, a decisão está inquinada de erro de julgamento. 26. O Tribunal de primeira instância foi bem mais criterioso na aplicação do direito à matéria de facto provada, sem se desviar dos factos essenciais alegados pela Autora, evidenciando que a Autora não logrou demonstrar a verificação do pressuposto da ilicitude (ou incumprimento contratual) da atuação dos Réus, em face dos factos essenciais em que baseou a causa de pedir. 27. Ao invés do que parece resultar da fundamentação de Direito da decisão sob revista, a presunção de culpa não é extensível à ilicitude. Já que a prova da atuação ilícita do Réu Médico ou do incumprimento (ou cumprimento defeituoso) do contrato por parte da Ré C ... Hospital... sempre competiria à Autora como é seu ónus, de harmonia com o citado princípio do dispositivo. 28. Assim, não é admissível que se considere verificado o pressuposto da ilicitude com base em meras ilações ou suposições extraídas de outros factos, que não com base na factualidade assente, como fez o douto Tribunal da Relação .... Isso redunda numa verdadeira presunção de ilicitude que, além de não ter enquadramento legal que o sustente, representa um dano considerável na confiança e na certeza do Direito e uma ofensa aos princípios da igualdade de armas, da legalidade, do dispositivo e da sua dimensão de auto-responsabilização das partes. 29. Em suma, a doutrina e jurisprudência maioritárias sustentam a tese de que compete ao credor/lesado (neste caso à Autora) o ónus de prova da ilicitude, para fazer operar posteriormente a presunção de culpa. Ou, melhor dizendo, a prova do erro médico que segundo o Professor Germano de Sousa é definido como “a conduta profissional inadequada resultante de utilização de uma técnica médica ou terapêutica incorretas que se revelam lesivas para a saúde ou a vida do doente”. 30. Resulta evidente que não ficou provado qualquer facto suscetível de conformar, em concreto, atuação ilícita por parte do Réu Médico ou incumprimento contratual por parte da Ré C ... Hospital.... 31. Em suma, o Tribunal a quo não demonstrou a ilicitude da conduta do Réu Médico pelo facto em si mesmo e por referência às regras de conduta (suportando-se meramente na constatação da ocorrência de um dano). 32. Nem sequer discorreu sobre o cumprimento do onus probandi por parte da Autora (como fez o Tribunal de primeira instância) ou sobre as normas de conduta exigíveis. Limitando-se a presumir a ocorrência de uma atuação ilícita, sem qualquer suporte legal atendível. 33. Impõe-se assim concluir que a apontada omissão de fundamento de facto da verificação do pressuposto da ilicitude reconduz-se a falta de fundamentação que, nos termos do disposto no artigo 615º, n.º 1 alínea b) do CPC, fere de NULIDADE a decisão. 34. A matéria assente também não permite concluir pela verificação do pressuposto da culpa do Réu Médico que competia também à Autora alegar e provar, uma vez que a sua responsabilidade é de natureza extracontratual (conforme considerou o Tribunal a quo, por não ter ficado demonstrada a celebração de qualquer contrato com a filha da Autora). 35. A constatação do acórdão recorrido de que resultaram demonstrados os pressupostos da ilicitude e da culpa, não só não encontram correspondência nos citados (segmentos) da matéria de facto provada que o mesmo entendeu levar em conta para fundamentar a sua decisão, como inclusive resulta infirmada da restante factualidade assente que o Tribunal da Relação entendeu não considerar, mas que é sobejamente demonstrativa do contrário. 36. Quanto à Ré C ... Hospital..., a factualidade assente evidencia o cumprimento das suas concretas obrigações contratuais, pese embora a Autora não tenha sequer alegado nenhum facto suscetível de configurar cumprimento defeituoso ou incumprimento das suas obrigações – cfr. pontos 27, 28, 31, 8 e 61 dos Factos Provados. 37. Quanto ao Réu Médico resulta da matéria de facto provada, ainda mais extensa e expressiva, que a sua autuação foi conforme às boas práticas, quer antes na proposta e preparação da cirurgia de colecistectomia por via laparoscópica, quer durante a meticulosa execução do procedimento cirúrgico, quer ainda na atuação hábil e eficientede damage control subsequente ao acidente iatrogénico – cfr. pontos 17, 21, 22, 23, 26, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 47, 48, 49, 50, 51, 7, 53, 54, 55, 56, 106, 107, 11, 58, 59, 115 dos Factos Provados. 38. Resulta assim demonstrada desta extensa factualidade assente o cumprimento dos deveres objetivos de cuidado e diligência que emanam das boas práticas aqui evidenciadas. 39. Considera-se, pois, ressalvado o respeito que é devido, que não podia ter o Tribunal a quo ter concluído, em desprezo pela apreciação da matéria de facto provada no seu conjunto, pela verificação do pressuposto da culpa, nem tão-pouco o da ilicitude, que não resultam demonstrados nestes autos, tal como o Tribunal de primeira instância concluiu. 40. Impõe-se assim concluir que está ferida de erro de julgamento a douta decisão do Tribunal da Relação ..., na aceção de error facti 41. Mais: a conclusão que parece resultar do douto Acórdão de que não foram avaliadas pelo Réu Médico todas as condições locais da paciente, nem promovida uma cuidadosa intervenção no manuseamento dos instrumentos laparoscópicos, além de não resultar da matéria assente (e ter sido rejeitada expressamente em sede de apelação), redunda em manifesta contradição entre os fundamentos e a decisão, ferindo de NULIDADE este segmento da decisão (cfr. artigo 615º, n.º 1 c) do CPC). 42. A desconsideração de toda aquela matéria de facto assente é tanto mais flagrante, quanto a sua adequada ponderação seria incompatível com a verificação de uma errada atuação do Réu Médico que permitiu sustentar a responsabilidade contratual, e consequente condenação da Ré C ... Hospital.... 43. A situação de imprevisibilidade – que decorre de um acidente (como foi o caso aqui em discussão) – afasta-se claramente que qualquer destas dimensões que configura o erro médico e, como tal, não pode traduzir uma atuação ilícita. 44. Por outras palavras, o erro médico ilícito comporta uma desconformidade de atuação perante circunstâncias que são concretamente conhecidas, em face de riscos que sejam razoavelmente previsíveis e, nessa medida, é censurável. Mas já não o será (nem pode ser) perante cenários ou fenómenos que se inserem no domínio da anormalidade, perante um risco raro ou imprevisível. 45. Vale, pois, dizer que, perante a demonstração factual de terem sido cumpridas as boas práticas e a evidência de que súbita hemorragia – provocada pela extensa laceração tangencial da veia porta distal que sobreveio de um gesto perfeitamente normal durante o ato cirúrgico, que é um evento raro – foi totalmente imprevisível e, como tal, não era suscetível de ser prevenida. 46. a mera ocorrência de uma extensa laceração tangencial da veia porta distal não é um facto idóneo a configurar, em si mesmo e em simultâneo, a prática de um ato ilícito e culposo, como parece ser a assunção do douto Tribunal a quo. 47. Diga-se por fim, em face de todo o exposto, que a condenação da Ré C ... Hospital... fundada afinal na mera verificação de um dano, estando indemonstrado quer o facto ilícito adequado à sua produção, quer a culpa do Réu Médico, configura em bom rigor, responsabilidade objetiva ou por factos lícitos danosos. Que é afinal, e salvo melhor entendimento, o que parece resultar da solução imposta neste caso pelo Tribunal da Relação. 48. Face à indemonstrada evidência, quer do cumprimento pela Autora do respetivo ónus probatório da ilicitude, quer da conduta voluntária, ilícita e culposa do Réu Médico com base na matéria de facto assente, o Tribunal da Relação ... nunca poderia ter decidido responsabilizar a Ré C ... Hospital... pelos danos de natureza não patrimonial sofridos pela filha da Autora. 49. Tal decisão configura um manifesto erro de Direito (error in judicando) que, a par da NULIDADE da mesma nos vários segmentos acima apontados, justifica a revista deste Acórdão, nos termos do disposto no artigo 674º, nº 1 alínea a) do CPC. 50. Quer por ausência de ilicitude, quer por ausência de culpa imputável aos Réus, não se verifica viável a atribuição de qualquer responsabilidade – sem necessidade de se discutir qualquer outro pressuposto constitutivo da responsabilidade (cfr. art. 798º do CCiv). 51. É manifesta a inexistência de nexo de causalidade entre o facto praticado pelos Réus e a morte da doente CC. 52. Desde logo, não sendo possível estabelecer o nexo de causalidade entre o ato praticado pelos Réus e os danos ocorridos posteriormente à data da consulta pós-transplante e retoma da atividade pela doente CC (em 17/05/2008) – mormente a sua morte ocorrida dois anos após o acidente iatrogénico – nunca poderia o Tribunal a quo valorar danos não patrimoniais considerados “desde a primeira cirurgia ao seu decesso, ocorrido cerca de dois anos após”, ao arrepio de um facto que o próprio Tribunal indeferiu, por não provado (Morte da filha da autora, em suma, como consequência da lesão da veia porta). 53. Devem, por conseguinte, ser subtraídos à ponderação dos danos não patrimoniais sofridos pela doente CC aqueles que se mostrem provados terem ocorrido após o dia .../.../2008 até à sua morte em 10/07/2009 – cfr. pontos 80, 84 e 92 dos Factos Provados. 54. é indiscutível que a presente decisão viola grosseiramente a disposição do artigo 496º do CCiv. no qual o Tribunal a quo fundamentou a atribuição à Autora de indemnização por danos não patrimoniais sofridos pela sua filha, já que a Autora não tem direito a qualquer indemnização nesses termos. 55. Com efeito, decorre da matéria de facto provada que, à data da morte, a doente CC vivia em união de facto há 14 anos com DD (identificado como testemunha nos presentes autos) e, como tal, também à data do acidente iatrogénico que aqui se discute – cfr. ponto 60 da matéria de Facto Assente 56. Logo, nos termos do citado preceito, a indemnização por danos não patrimoniais da filha da Autora caberia, não à Autora, mas sim à pessoa com quem resultou provado que a doente CC mantinha uma união de facto à data da morte. 57. Incorre o douto acórdão neste segmento em manifesto erro de julgamento, por violação de lei substantiva, nos termos do disposto no artigo 674º, n.º 1 alínea a), que impõe a sua revisão. A Generali Seguros SA apresentou a seguintes conclusões: 1. O Tribunal a quo condenou a ré C ... Hospital... a pagar à autora a quantia de 100.000,00€, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela sua filha CC, na sequência da colecistectomia a que mesma se submeteu, nas instalações da ré e que foi levada a cabo pelo 1º réu, o Dr. BB. 2. Entende a ora recorrente, ressalvando sempre o devido respeito por opinião diversa, que o montante indemnizatório fixado a esse título peca por excessivo, distanciando-se não apenas da factualidade que vem dada como demonstrada, mas também do sentido das decisões que vêm sendo proferidas pela nossa Jurisprudência em casos análogos. 3. Não pretendendo, minimamente, desvalorizar os sofrimentos da mencionada CC e os prejuízos que estes lhe causaram – que a aqui recorrente, sinceramente, muito respeita – certo é que os danos por aquela sofridas em consequência do presente acidente iatrogénico e o período limitado no tempo em que estes se manifestaram não justificam, nem se adequam ao valor indemnizatório fixado no Acórdão ora posto em crise. 4. Tal constatação conduz-nos necessariamente à conclusão de que o Tribunal a quo não andou bem, ao fixar a indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela mencionada CC na quantia de 100.000,00€. 5. É certo que em consequência do acidente iatrogénico ocorrido durante a cirurgia de colecistectomia, levada a cabo pelo 1º réu, a filha da autora esteve internada 44 dias, no Hospital ... – os primeiros 13 dias em coma induzido – e que, durante esse período foi operada cirurgicamente 4 vezes, numa das quais houve a necessidade de se proceder ao transplante do fígado. 6. Sabemos também que, após a alta hospitalar, a CC passou a ser seguida mensalmente em consulta de pós-transplante, no Hospital ..., nos cerca de 2 anos subsequentes ao sobredito acidente iatrogénico, sendo certo, porém, que 17.05.2008, voltou ao trabalho, passando a exercer a sua actividade profissional consecutivamente até ao dia 06.01.2009. 7. Mais se demonstrou que em Janeiro de 2009 lhe sobreveio uma colangite, que obrigou a um novo internamento e à necessidade de realização de uma CPRE, que logrou resolver a colangite, acabando a mesma por ter alta em 11.02.2009 e regressado ao trabalho a partir de 01.03.2009 até 08.06.2009. 8. Finalmente, provou-se ainda que, em 08.06.2009, a CC deu entrada no Hospital ..., com um novo quadro de colangite, tendo sido submetida a uma nova intervenção cirúrgica, tendo posteriormente sofrido uma insuficiência hepática aguda, num contexto de choque séptico, que evoluiu para falência multiorgânica, que veio a determinar a sua morte a 10.07.2009. 9. Apesar da gravidade dos problemas que lhe sobrevieram na sequência do acidente iatrogénico ocorrido durante a colecistectomia, o certo é que a filha da autora acabou por conseguir retomar alguma normalidade na sua vida, tendo inclusivamente regressado ao trabalho e exercido a sua profissional, durante cerca de 13 meses, sem haja notícia de especiais dificuldades que a mesma possa ter sentido durante esse período. 10. É sabido que o cálculo da indemnização por danos não patrimoniais é sempre feito com base em critérios de equidade e atendendo a uma série de factores tais como o grau de culpabilidade do responsável, a sua situação económica e a do lesado, devendo ser proporcionado à gravidade do dano. 11. As indemnizações fixadas a este título devem aproximar-se em casos semelhantes, sob pena de não serem justas, por tratarem de maneira diferente situações idênticas. 12. A indemnização arbitrada pelo Tribunal a quo ultrapassa em muito aquelas que vêm sendo fixadas pela nossa Jurisprudência para ressarcimento de danos morais em diversas situações, algumas delas mais gravosas do que aquela de que nos ocupamos, como são disso exemplo os vários Acórdãos citados no corpo das presentes alegações de recurso, de entre as quais destacamos os Acórdãos do S.T.J. de 19-09-2019, P. 2706/17, e de 07.09.2020, P. 5466/15. 13. Estes recentes Acórdãos – de entre muitos outros – acabados de citar revelam bem que na fixação do montante indemnizatório aqui em causa o Tribunal a quo se afastou dos parâmetros que vêm sendo estabelecidos pela Jurisprudência dos Tribunais superiores na atribuição de indemnizações a título de danos não patrimoniais. 14. Com efeito, comparando o caso dos autos com aqueles que se mostram retratados nas decisões acima enunciadas, verificamos que a indemnização arbitrada à recorrida a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela sua filha CC é, proporcionalmente, muito superior àqueles que foram fixadas aos lesados em causa nos sobreditos arestos. 15. Note-se que nos Acórdãos acima citados um dos lesados sofreu a amputação dos membros inferiores e o outro ficou totalmente incapacitado para o exercício da sua actividade profissional, bem como de outras dentro da sua área de formação profissional, sendo que as indemnizações ali arbitradas a título de danos não patrimoniais se cifram, num caso, em 50.000,00€ e no outro em 60.000,00€. 16. Parece, pois, poder concluir-se que a nossa Jurisprudência vem reservando a atribuição de indemnizações da ordem dos 100.000,00€, a casos que, pela sua gravidade e consequências, suplantam claramente a gravidade das lesões que a filha da recorrida sofreu por força do acidente iatrogénico de que foi vítima. 17. Há ainda que fazer notar que a verba arbitrada pelo Tribunal a quo é francamente superior àquelas que vêm sendo fixadas pela nossa mais recente Jurisprudência para compensar a perda do bem supremo, que é a vida 18. Acresce que no caso aqui em apreço sabemos que a compensação que venha a ser atribuída por danos morais sofridos pela indicada CC jamais cumprirá, por força das circunstâncias conhecidas, a sua função reparadora, uma vez que será atribuída à autora, sua herdeira e não à própria CC. 19. Por outro lado, na fixação desta indemnização importa, bem assim, considerar que, apesar das complicações que lhe sobrevieram, após a colecistectomia, a CC logrou retomar a sua actividade profissional, durante quase um ano, sem que se mostrem reveladas nos autos dificuldades ou limitações no exercício dessa sua actividade. 20. Cumpre ainda fazer notar que a indemnização a arbitrar a título de danos não patrimoniais sofridos pela CC se reporta a um período limitado no tempo – de dois anos – o que igualmente deverá relevar na fixação desta indemnização. 21. Com efeito, não é irrelevante a circunstância de os citados danos se terem manifestado apenas durante cerca de dois anos e, dentro deste período, essencialmente nos primeiros meses subsequentes à cirurgia de colecistectomia. 22. Por conseguinte, considerando os factos provados nestes autos, com relevância para a fixação de uma indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela filha da autora e o sentido da Jurisprudência supra citada, entende a ora recorrente que a decisão aqui posta em crise ofende a equidade, devendo ser substituída por outra, que melhor se coadune com os danos não patrimoniais sofridos pela recorrida. 23. Tal montante, de acordo com o conjunto da nossa Jurisprudência (a título de exemplo, vide Acórdãos supra citados) deve fixar-se sempre em valor próximo dos 60.000,00€, quantia que já traduz de forma muito expressiva a gravidade das lesões da filha recorrida e que não ofende os valores usualmente arbitrados em situações de gravidade substancialmente superior. 24. O Acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 496.º, 562.º e 566.º do Código Civil. /// Conclusões do recurso subordinado da Autora: 1ª. Entende a Recorrente que o Tribunal a quo errou na interpretação e aplicação que fez do Direito ao caso sub judice, desde logo na avaliação da natureza das relações estabelecidas entreafilhadaRecorrente, o 1.ªe2.ªR.,oraRecorridos, e consequentemente no regime de prescrição aplicável, porquanto, seja pela mobilização dos dois regimes de responsabilidade, isto é, considerando-se haver um concurso de fundamentos de uma mesma pretensão indemnizatória, que permite à Recorrente convergir os fundamentos das responsabilidades contratual e extracontratual, seja pela aplicação do regime da responsabilidade exclusivamente extracontratual, os direitos indemnizatórios da Recorrente não estão prescritos em virtude do alargamento do prazo prescricional previsto no artigo 498.º, n.º 3 do CC, ex vi dos artigos 150.º, n.º 2, ou 137.º n.º 1, e 118.º, n.º 1, al. c) do CP. 2. Dos artigos 14.º a 22.º da matéria de facto provada, não restam dúvidas de que foi celebrado um contrato total com escolha de médico, e, portanto, tem plena aplicação no caso vertente a mobilização do regime do disposto no artigo 800.º do CC. 3. Não merece qualquer reparo a conclusão a que chegou o Tribunal a quo, sobre a relação estabelecida entre a filha da A., ora Recorrente, e a 2.ª R., ora, Recorrida, ser uma relação contratual, porquanto, entre ambas foi celebrado um contrato de prestação de serviços médicos globais (cfr. art.º 1154.º, do CC). Razão pela qual, “há que convocar o preceituado no art. 800º nº 1 do CC sendo, como se refere na decisão recorrida, a referida ré responsável pelos actos do 1º réu como se tais fossem praticados por ela própria”. 4. Contudo, tal não impede que em simultâneo se tenha estabelecido entre a filha da A., ora Recorrente, e o 1.º R., ora Recorrido, outra relação igualmente de natureza contratual. 5. Ambas as relações são, por isso, de natureza contratual. 6. E já concretamente quanto à aplicação do art.º 800.º, n.º 1 do CC, refere-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça [MARIA GRAÇA TRIGO], de 28/01/2016: “Deve salientar-se que, diversamente do que se passa no regime do art. 500º, do CC, que se aplica à responsabilidade extracontratual, no art.º 800º do CC se abrange tanto a conduta de auxiliares dependentes como a conduta de auxiliares independentes (como desenvolvido pela relatora deste acórdão em Responsabilidade civil delitual por facto de terceiro, 2009, págs. 242 e segs.). Quer isto dizer que, no caso concreto, é indiferente determinar qual o vínculo existente entre o R. BB Hospital e cada um dos médicos envolvidos na operação – cirurgião e anestesista – porque, quer se trate de contratos de trabalho quer se trate de contratos de outra natureza, o regime de responsabilidade do R. BB Hospital é o mesmo. 7. Ora, o desiderato da remoção da vesícula foi alcançado. Contudo, as lesões na veia porta, via biliar principal e leito hepático, causadas no decurso da intervenção cirúrgica, determinaram que a paciente fosse submetida a um transplante hepático e viesse a falecer dois anos mais tarde em virtude de uma complicação (comum em doentes transplantados) decorrente desse transplante. 8. Ou seja, a filha da A., ora Recorrente, que ia apenas retirar a vesícula, ficou em muito pior estado de saúde do que anteriormente, passando os dias desde a cirurgia de 11/07/2007 até 23/07/2007 (12 dias!) sob o efeito de anestesia geral ou sob coma induzido e a ser submetida a 5 intervenções cirúrgicas para tentar reverter as lesões causadas pelo 1.º Réu, só tendo alta mais de um mês depois do ocorrido e, mesmo assim, a ter que viver num estado de dependência e o resto da sua vida na condição de transplantada, com as complicações que essa condição acarreta. 9. Inexistem dúvidas que estamos perante uma situação típica de cumprimento defeituoso dos contratos de prestação de serviços médico-cirúrgicos de que são devedores ambos os RR., ora Recorridos, o que também não impede que possa convocar o regime da responsabilidade extracontratual, fundada na violação dos direitos subjetivos da paciente à integridade física e moral, ao livre desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação (arts. 25.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1 da CRP e 70.º, n.º 1 do CC), direitos absolutos tutelados pelo princípio geral de responsabilidade civil delitual do art.º 483.º, n.º 1, do CC. 10. Perante uma situação que preencha simultaneamente a hipótese de responsabilidade delitual e contratual, a doutrina difere nas soluções encontradas. Sendo a perspetiva que tem maior expressão, relativa a um concurso de normas dos dois regimes de responsabilidade, isto é, considera-se haver um concurso de fundamentos de uma mesma pretensão indemnizatória, que permite ao lesado mobilizar, numa mesma ação, fundamentos das responsabilidades contratual e extracontratual. Esta já defendida por VAZ SERRA e prevista no art.º 767.º, n.º 1, do Anteprojeto de sua autoria. Na Jurisprudência, veja-se os Acórdãos do STJ [PINTO MONTEIRO] de 19/06/2001; Acórdão do TRL [RUI VOUGA], de 24/04/2007, Acórdão do STJ [RUI MAURÍCIO], de 27/11/2007; Acórdão do STJ [FERREIRA DE ALMEIDA] 07/10/2010. 11. Ao errar na interpretação que fez dos artigos 800.º, 483.º e 487.º e art.º 1154.º do CC -, considerando que a responsabilidade do 1.º R., ora Recorrido, era exclusivamente de natureza delitual ou extracontratual, devendo antes ter identificado o concurso de responsabilidades, o que, aliado aos factos de o 1.º R. e a 2.ª R., ora Recorridos, não terem logrado ilidir a presunção do artigo 799.º, n.º 1, do CC e de se ter provado o nexo causal entre a atuação do 1. º R., ora Recorrido, e os danos causados à filha da Recorrente, significa estarem preenchidos todos os requisitos da responsabilidade civil contratual, pelo que a 2.ª R. e o 1.º R., ora Recorridos, são solidariamente responsáveis pelos danos causados à filha da Recorrente, nos termos do disposto no artigo 800.º do CC -, o Tribunal a quo também errou no enquadramento da aplicação do regime da prescrição quanto aos direitos indemnizatórios decorrentes da responsabilidade civil do 1º Réu e da 2ª Ré. 12. O prazo de prescrição do direito de indemnização decorrente da responsabilidade civil contratual são 20 anos (artigo 309.º do CC) e o prazo de prescrição do direito de indemnização decorrente da responsabilidade civil extracontratual são 3 anos (artigo 498.º, n.º 1 do CC), salvo a exceção prevista no n.º 3 do mesmo artigo. 13ª. Resulta que ambas as relações estabelecidas respetivamente entre a Recorrente e a Recorrida, e entre 1.º R., ora Recorrido, e a Recorrente, confluem num concurso de normas de dois regimes de responsabilidade, isto é, considera-se haver um concurso de fundamentos de uma mesma pretensão indemnizatória, que permite à Recorrente mobilizar fundamentos das responsabilidades contratual e extracontratual, pelo que, tem aplicação o prazo ordinário dos 20 anos, nos termos do artigo 309.º do CC e, em consequência, não se encontram prescritos os direitos indemnizatórios da Recorrente. 14ª. Contudo, ainda que se entenda que a responsabilidade do 1.º R., ora Recorrido, se move no exclusivamente no âmbito do regime da responsabilidade civil extracontratual (e, por isso, aplicando-se o prazo prescricional de 3 anos), os direitos indemnizatórios da Recorrente também não estão prescritos por força da aplicação do disposto no artigo 498.º, n.º 3 do CC. 15ª. O alargamento do prazo prescricional, previsto no n.º 3 do artigo 498.º do CC, “radica na especial qualidade do ilícito e não na circunstância de se demonstrar, em sede penal, o respectivo crime”, pelo que, não está dependente da ocorrência prévia de processo-crime, nem da existência de uma condenação penal, bastando, para tanto, a verificação de factos geradores de responsabilidade civil e da respetiva obrigação de indemnização. 16ª. Aliás, é este o entendimento da jurisprudência maioritária, veja-se, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães [JOSÉ ALBERTO MOREIRA], de 28/06/2018: (…); 18ª . Por outro lado, dispõe a primeira parte do n.º 1, do artigo 306.º do CC o seguinte: “O prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido;” o que, salvo devido respeito, é consentâneo com a data do falecimento da filha da Recorrente, em 10/07/2009, data em que é indiscutível a Recorrente ter conhecido da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual que conformam o seu direito indemnizatório, designadamente: o facto (a realização da colecistectomia), a ilicitude, a culpa, os danos e a verificação do nexo causal entre aquele facto e os danos. Sendo este também o entendimento de MENEZES CORDEIRO. 19ª. Conclui-se que o Tribunal a quo errou ao decidir que a responsabilidade do 1.º R., ora Recorrido, era de natureza exclusivamente delitual ou extracontratual, devendo antes ter entendido pela mobilização do concurso dos dois regimes de responsabilidade, contratual e delitual, sendo que, independentemente do regime de responsabilidade mobilizado, os direitos indemnizatórios da Recorrente não estão prescritos em virtude do alargamento do prazo prescricional previsto no artigo 498.º, n.º 3 do CC, ex vi dos artigos 150.º, n.º 2 ou 137.º n.º 1, e 118.º, n.º 1, al. c) do CP, pelo que, devem ser todos estes incluídos no cômputo da condenação pelos danos não patrimoniais da Recorrente, no montante de € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros), pelo dano morte da filha da Recorrente, no montante de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros), e bem assim sejam os RR., ora Recorridos, solidariamente condenados a pagar à Recorrente estes mesmos montante indemnizatórios. 20ª. Da matéria de facto provada está assente que: “CC trabalhava na sociedade J..., L.da, e auferiu, em Agosto de 2008, o vencimento líquido de € 990,00 – fls. 123 (K).” (artigo 10.º da matéria de facto provada). 21ª. Mas, entendeu o Tribunal a quo que: “Consequentemente, os pedidos de indemnização não prescritos são aos atinentes aos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela filha da autora no confronto com a ré C ... Hospital.... Destes danos, não se mostram provados os de natureza patrimonial (salários e demais despesas) e subsistem apenas os de natureza não patrimonial abundantemente descritos na factualidade dada como provada (desde a primeira cirurgia ao seu decesso, ocorrido cerca de dois anos após, a filha da autora foi várias vezes intervencionada, foi submetida a um transplante de fígado e padeceu com todo esse conjunto de actos médicos como está acima descrito).”. 22ª. Assim que, não se compreende a fundamentação apresentada pelo Tribunal a quo, porquanto, não considerando como prescrita a pretensão indemnizatória da Recorrente quanto aos danos patrimoniais sofridos pela filha da Recorrente (designadamente os salários e demais despesas) entende que tais danos não se mostram provados, contradizendo, desta feita, pelo menos, o facto provado n.º 10. 23ª. A decisão proferida pelo Tribunal a quo padece de uma contradição entre os fundamentos (a matéria dada como provada – artigo 10.º) e a errada aplicação do Direito à decisão, que se opõem, e pela ocorrência de ambiguidades no seu teor, que a tornam ininteligível, pelo que, não pode deixar de se concluir que o Acórdão a quo padece de nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. c), ex vi do artigo 674.º, n.º 1, al. c) do CPC, devendo tal nulidade ser reconhecida e declarada, para todos os devidos e legais efeitos, e bem assim sejam os RR. condenados a pagar à Recorrente indemnização pelos danos patrimoniais referentes aos salários (por estarem provados no artigo 10.º dos factos provados) que a sua filha deixou de auferir no montante total de € 15.840,00 (quinze mil oitocentos e quarenta euros), acrescidos dos salários que a filha da Recorrente auferiria mensalmente, pelo menos, até à idade da reforma (à data 65 anos), no montante de € 374.220,00 (trezentos e setenta e quatro mil duzentos e vinte euros), valor reduzido a ¼, perfazendo o quantum indemnizatório no total de € 93.555,00 (noventa e três mil, quinhentos e cinquenta e cinco euros), nos termos do artigo 495.º do CC. 24ª. Acresce que, atendendo ao exposto quanto a outros danos patrimoniais da filha da Recorrente, designadamente despesas relativas a deslocações, medicação e honorários das consultas de psiquiatria, entende a Recorrente que deverá ser fixada uma quantia a este título pelo recurso aos valores da equidade, quantia essa que não se poderá ser fixada em montante inferior a € 3.000,00 (três mil euros). 25ª. Quanto aos danos patrimoniais decorrentes do artigo 495.º do CC, entendeu o Tribunal a quo o seguinte: “Pelo mesmo motivo (a ré C ... Hospital... também foi citada em 5/3/2013) ocorre a prescrição dos pedidos formulados pela autora conexionados com o ressarcimento do dano morte e dos danos não patrimoniais por si sofridos porquanto têm por fundamento a responsabilidade extracontratual.” 26ª. Mais entendeu o Tribunal a quo: “que a autora poderia ter direito a indemnização pelo dano da perda de alimentos (art. 495.º, n.º 3 do CC) mas não tem direito, por via sucessória, aos peticionados rendimentos futuros que a sua filha presumivelmente auferiria e que, por causa da sua morte, deixou de auferir porquanto esse evento extinguiu a personalidade jurídica desta impedindo que se radicasse na sua esfera um direito a indemnização desse tipo (a este propósito, Comentário ao CC, UC, Dtº. Das Obrigações, pág.347).” 27ª. Salvo devido respeito, entende a Recorrente que errou o Tribunal a quo na interpretação e aplicação que fez do Direito ao caso sub judice, designadamente considerando que a Recorrente não teria o direito, por via sucessória, a exigir a indemnização pelos danos patrimoniais que a filha da Recorrente auferiria, em virtude da extinção da personalidade jurídica da filha da Recorrente, contudo, conforme se demonstrará, a Recorrente era a única que em razão do artigo 495.º, n.º 3 poderia vir a exigir alimentos à falecida e, portanto, a única com legitimidade para exigir a indemnização por danos patrimoniais. 28ª. O art.º 495.º, n.º 3 remete para o art.º 496.º, n.º 3 do CC definindo serem as pessoas referidas neste último inciso legal que podem reclamar os danos patrimoniais (próprios). 29ª. Os danos indemnizáveis ora em questão são, desde logo, constituídos por tudo quanto, independentemente do montante de alimentos eventualmente exigível, - e sem com tal, enfim, qualquer correlação, o lesado direto efetivamente prestava, e com toda a probabilidade continuaria a prestar, à família, incluindo o cônjuge de facto, se fosse vivo. 30ª. O n.º 3 do art.º 496.º do CC foi alvo da alteração, através da Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, sendo que na anterior redação do artigo, apenas se previa como titulares da indemnização os sujeitos elencados no n.º 2 – que corresponde ipsis verbis ao atual n.º 2 referindo que “Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.” 31ª. Esta alteração tem efeito ex nunc como aliás quedou decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça [RAUL BORGES], de 08/03/2012. 32ª. À data da morte da filha da Recorrente, a Recorrente era a sua única herdeira (cfr. artigo 2.º da matéria de facto provada) e era a única que em razão do artigo 495.º, n.º 3 poderia vir a exigir alimentos à falecida e, portanto, a única com legitimidade para exigir a indemnização por danos patrimoniais. 33ª. Quanto à indemnização por danos patrimoniais, refere ANTUNES VARELA, mas também os Acórdãos Supremo Tribunal de Justiça de 16/04/1974 [ABEL DE CAMPOS], de 18/02/2003 [PONCE DE LEÃO], de 02/03/2004 [SILVA SALAZAR] e de 05/05/2005[ARAÚJO BARROS] que têm excecionalmente, direito a indemnização por danos patrimoniais, nos casos de morte ou lesão corporal, os terceiros que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural, desde que, quanto àqueles, tenham a qualidade de que depende a possibilidade legal do exercício do direito aos alimentos, mesmo que não estivessem a receber da vítima qualquer prestação alimentar por carência efetiva deles. 34ª. Face o exposto, conclui-se que o Tribunal a quo errou ao decidir que apenas a própria lesada teria o direito a exigir a indemnização por dano patrimonial, entendendo a Recorrente que tal direito lhe foi transmitido pela falecida filha, pela via sucessória – cfr. arts. 2133, n.º 1, al. b) e 2024 do CC. Nestes termos (…) deve o presente recurso subordinado ser recebido e julgado procedente, e, em consequência seja revisto e revogado o Acórdão do Tribunal da Relação ..., substituindo-se por outro, na parte em que é desfavorável à Recorrente, e bem assim: - Seja alterada a decisão de Direito quanto à questão do concurso da mobilização dos dois regimes da responsabilidade, contratual e extracontratual e à prescrição dos direitos indemnizatórios subsumíveis à responsabilidade extracontratual ou delitual e, consequentemente, fazendo uma correta aplicação do Direito, condene solidariamente os Recorridos ao pagamento no quantum dos danos indemnizatórios, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos quer pela filha da Recorrente, quer pela própria Recorrente nas quantias supra alegadas, com todas as consequências e efeitos legais; - Seja reconhecida e declarada a nulidade do Acórdão recorrido, por oposição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. c), ex vi do artigo 674.º, n.º 1, al. c) do CPC, para todos os devidos e legais efeitos; - Seja alterada a decisão de Direito no sentido de que, à data da morte da filha da Recorrente, a Recorrente era a sua única herdeira e era a única que em razão do artigo 495.º, n.º 3 do CPC poderia vir a exigir alimentos à falecida, por via sucessória, sendo a única com legitimidade para exigir a indemnização por danos patrimoniais. /// A interveniente Ageas Seguros, respondeu ao recurso da Autora, tendo apresentado as seguintes conclusões: a) Para que fosse possível concluir-se existir responsabilidade contratual do réu médico impunha-se que a recorrente provasse que havia celebrado um “contrato total com escolha de médico (contrato médico adicional) que corresponde a “um contrato total mas com a especificidade de haver um contrato médico adicional (relativo a determinadas prestações) ou em alternativa um contrato dividido, que é aquele em que “a clínica apenas assume as obrigações decorrentes do internamento (hospedagem, cuidados paramédicos, etc.), enquanto o serviço médico é direta e autonomamente celebrado por um médico (atos médicos)” b) No caso dos autos a filha da recorrente contratou apenas com o HOSPITAL a prestação dos cuidados de saúde, que foram prestados pelo réu médico, por este exercer a sua atividade nas instalações da C ... Hospital.... c) A filha da recorrente não escolheu o médico que realizou a intervenção. d) No que respeita à responsabilidade civil do réu médico inexiste o concurso da responsabilidade contratual e extracontratual, não se impondo optar por um dos dois sistemas: o do cúmulo e o do não cúmulo. e) O artigo 498.º, n.º 1, do Código Civil estabelece o prazo de prescrição – 3 anos –, assim como o dies a quo relevante que marca o início da contagem do prazo, regulando, por isso, quer o prazo, quer o termo inicial da contagem do prazo de prescrição. f) Se o prazo de prescrição do direito à indemnização, fundado no instituto da responsabilidade civil extracontratual, inicia a sua contagem sob a regra especial prevista no artigo 498.º, n.º 1, do Código Civil, não se pode afastar essa regra e aplicar a regra de contagem de prazo prevista em geral no artigo 306.º, n.º 1, do Código Civil. g) O direito de indemnização, segundo o disposto no artigo 498º do Código Civil, prescreve a contar da data em que o lesado teve conhecimento da verificação dos pressupostos que condicionam a responsabilidade do lesante, ou seja, o prazo prescricional conta-se a partir da data em que o lesado, conhecendo a verificação dos pressupostos que condicionam a responsabilidade (o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade), soube ter direito à indemnização. h) Na situação dos autos, a recorrente teve conhecimento do facto danoso no próprio dia da intervenção cirúrgica, pelo que viu o prazo prescricional iniciar-se nesse mesmo dia, ainda que, àquela data, não tivesse conhecimento da extensão integral dos danos. i) Conclui-se assim que a situação fáctica dos autos, no que ao réu médico concerne, se subsume apenas ao regime da responsabilidade extracontratual, o que impõe que se conclua pela prescrição do direito à indemnização da recorrente, confirmando-se a decisão proferida pelo Tribunal da Relação ..., que fez a mais correta interpretação e aplicação do direito aplicável, concretamente, do disposto nos artigos 483.º, 498.º e 306.º, n.º 1, do Código Civil. A interveniente Generali também respondeu à revista da Autora, pugnando pela sua inadmissibilidade, por uma ocorrer uma situação de dupla conforme; assim não se entendendo, deve ser julgado improcedente. /// Contra alegou a Autora, tendo formulado as seguintes conclusões: 1. Os danos não patrimoniais devem ser objeto de compensação a fixar com recurso à equidade, tendo em conta o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso(artigos 496º, nº 3, e 494.º do CC) sempre com o objetivo, não de se reconstituir a situação que existiria caso não tivesse ocorrido a lesão – como se impõe fazer ao nível dos danos patrimoniais –, mas antes de se proporcionar uma satisfação adequada ao lesado. 2. Acontece, porém, que, comparando a situação dos presentes com todos os arrestos citados pelo Recorrente, em nenhum decorre a perda do bem jurídico supremo: a vida; pelo que, salvo devido respeito, não pode querer o Recorrente comparar o que não é comparável! 3. Acresce que, contrariamente ao exposto pelo Recorrente, a nossa jurisprudência mais recente tem vindo a fixar para o dano morte montantes consideravelmente superiores a € 60.000,00 (sessenta mil euros) – valor peticionado pelo Recorrente -, e mais próximos dos valores fixados nos presentes autos, pelo que, inexistindo qualquer violação do disposto nos artigos496.º, 562.º e 566.º do CC, deve manter-se a decisão recorrida, condenando a R., Recorrente a pagar à A., ora Recorrida, a quantia de € 100.000,00 (cem mil euros) a título de danos não patrimoniais. 4. A decisão da matéria de facto só pode ser excecionalmente alterada pelo Supremo Tribunal de Justiça havendo ofensa de disposição expressa de Lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto, ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova (artigos674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2 do CPC), o que não sucedeu no caso em apreço. 5. Salvo devido respeito, e contrariamente ao que a 2.ª R., Recorrente, parece pretender almejar com as alegações de recurso por si apresentadas -, uma verdadeira reapreciação da matéria de facto -, não compete ao Supremo Tribunal de Justiça, enquanto Tribunal de Revista fazer uma nova interpretação da matéria de facto provada e assente, nem tecer quaisquer juízos de valor acerca da ponderação da prova e da competência das instâncias. 6. Por seu turno, os poderes de cognição do Supremo Tribunal sindicados à reapreciação da matéria de direito ocorrem em situações muito específicas, de violação da lei substantiva ou de violação ou errada aplicação da lei do processo (artigo674.º, n.º 1, al. a) e al. b) e n.º 2 do CPC) que não se compaginam com o alegado nas alegações apresentadas pela 2.ª R., Recorrente, aliás, o enquadramento da matéria de direito e a solução jurídica a que chegou o Tribunal a quo, ancorando-se em toda a prova produzida – declarações de parte, documentos, depoimentos das testemunhas – é perfeitamente possível, não violando a aplicação de quaisquer normas jurídicas que não permitam a solução de direito a que chegou o Tribunal a quo. 7. Entende a Recorrida que não assiste razão à 2.ª R., Recorrente, pelo que, salvo o devido respeito por opinião diversa, não merece o douto Acórdão a quo censura ou reparo de qualquer natureza -, sendo, a contrario do que a 2.ª R., Recorrente alega, (in)“suscetível de pôr em causa a confiança e a credibilidade da Justiça” -, quer quanto à matéria de facto, quer quanto ao enquadramento da solução de Direito julgada, pelo menos, quanto à parte em que a A., ora Recorrida, teve provimento, devendo improceder o expendido pela 2.º R., Recorrente. 8. Dos artigos 14.º a 22.º da matéria de facto provada, não restam dúvidas de que foi celebrado um contrato total com escolha de médico, e, portanto, tem plena aplicaçãono caso vertente a mobilização do regime do disposto no artigo800.º do CC. 9. Assim sendo, não merece qualquer reparo a conclusão a que chegou o Tribunal a quo, sobre a relação estabelecida entre a filha da A., ora Recorrida, e a 2.ª R., Recorrente, ser uma relação contratual, porquanto, entre ambas foi celebrado um contrato de prestação de serviços médicos globais (cfr. art.º 1154.º, do CC). Razão pela qual, “há que convocar o preceituado no art. 800º nº 1 do CC sendo, como se refere na decisão recorrida, a referida ré responsável pelos actos do 1º réu como se tais fossem praticados por ela própria”. 10. Contudo, tal não impede que em simultâneo se tenha estabelecido entre a filha da A., ora Recorrida, e o1.º R., outra relação igualmente de natureza contratual. 11. Este foi, aliás, o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça [MARIA GRAÇA TRIGO], no Acórdão datado de 28/01/2016: “Os factos provados permitem afirmar que estamos perante um caso de “contrato total com escolha de médico (com contrato de médico adicional)”. Com efeito, a A. escolheu pessoalmente o R. CC como seu médico, foi por ele acompanhada por período de tempo indeterminado, e, seguindo a sua orientação, decidiu submeter-se a uma cirurgia no BB Hospital. Deste modo, a relação entre o R. BB Hospital e a A. tem a natureza de contrato de prestação de serviços médicos globais (enquadrando-se na noção do art. 1154º, do Código Civil), sem prejuízo de a relação entre o R. CC e a A. corresponder também a um contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos (segundo o previsto no art. 1154º, do CC). Ambas as relações(hospital/paciente) e médico-cirurgião/paciente) configuram relações de natureza contratual, tendo como objecto uma cirurgia ortopédica ao pé direito da A. de forma a corrigir “uma fracturamal consolidada” e a evitar as dores e desconforto daí resultantes. 12. Ambas as relações são, por isso, de natureza contratual. 13. E já concretamente quanto à aplicação do art.º 800.º, n.º 1 do CC, refere-se no douto aresto: “Deve salientar-se que, diversamente do que se passa no regime do art. 500º, do CC, que se aplica à responsabilidade extracontratual, no art.º 800º do CC se abrange tanto a conduta de auxiliares dependentes como a conduta de auxiliares independentes (como desenvolvido pela relatora deste acórdão em Responsabilidade civil delitual por facto de terceiro, 2009, págs. 242 e segs.). Quer isto dizer que, no caso concreto, é indiferente determinar qual o vínculo existente entre o R. BB Hospital e cada um dos médicos envolvidos na operação – cirurgião e anestesista – porque, quer se trate de contratos de trabalho quer se trate de contratos de outra natureza, o regime de responsabilidade do R. BB Hospital é o mesmo. Nas palavras de André Dias Pereira, “no contrato de internamento com escolha de médico (contrato médico adicional), a clínica também assume a responsabilidade por todos os danos ocorridos, incluindo a assistência médicae os danos causados pelo médico escolhido” (cit., pág. 688). A responsabilização do R. BB Hospital funda-se na razão de ser do regime do art.º 800º, nº 1,do CC, a qual, segundo Vaz Serra (“Responsabilidade do devedor pelos factos dos auxiliares, dos responsáveis legais ou dos substitutos”, in Boletim do Ministério da Justiça, nº 72, pág. 270) é a seguinte: “O devedor que se aproveite de auxiliares no cumprimento, fá-lo a seu risco e deve, portanto, responder pelos factos dos auxiliares, que são apenas um instrumento seu para o cumprimento. Com tais auxiliares alargaram-se as possibilidades do devedor, o qual, assim como tira daí benefícios, deve suportar os prejuízos inerentesà utilização deles” 14. O desiderato da remoção da vesícula foi alcançado. Contudo, as lesões na veia porta, via biliar principal e leito hepático, causadas no decurso da intervenção cirúrgica, determinaram que a paciente fosse submetida a um transplante hepático e viesse a falecer dois anos mais tarde em virtude de uma complicação (comum em doentes transplantados) decorrente desse transplante. 15. Inexistem dúvidas que estamos perante uma situação típica de cumprimento defeituoso dos contratos de prestação de serviços médico-cirúrgicos de que são devedores ambos os RR., oque também não impede que possa convocar o regime da responsabilidade extracontratual, fundada na violação dos direitos subjetivos da paciente à integridade física e moral, ao livre desenvolvimento da personalidade e à autodeterminação (arts. 25.º, n.º 1 e 26.º, n.º 1 da CRPe 70.º, n.º 1 do CC), direitos absolutos tutelados pelo princípio geral de responsabilidade civil delitual do art.º 483.º, n.º 1, do CC. 16. Ao contrário do sustentado pela2.ª R., Recorrente, em responsabilidade médica, não há definições apriorísticas ou determinísticas dos regimes de responsabilidade contratual ou extracontratual a convocar, pelo que, entende a A., ora Recorrida, salvo devido respeito, que não assiste razão à 2.ª R., Recorrente, quando alega que sendo a responsabilidade do 1.º R. de natureza extracontratual, a culpa não se presume. 17. Perante uma situação que preencha simultaneamente a hipótese de responsabilidade delitual e contratual, a doutrina difere nas soluções encontradas. Por um lado, parte da doutrina adere a uma posição de não cúmulo, evocando, para o efeito, o princípio da consunção (ou da absorção). Alguns autores falam de uma relação de especialidade, considerando que a responsabilidade contratual é um regime específico e, portanto, “consome” o da responsabilidade extracontratual - cfr. FIKENTSCHER/HEINEMANN e Ghestin apud COSTA, MÁRIO J. DE ALMEIDA in Direito das Obrigações, Coimbra, Almedina, 2011, pág. 551. Por outro lado, ALMEIDA COSTA não se refere propriamente a uma relação de especialidade, porque adere a uma posição dualista entre modalidades de responsabilidade civil, mas entende que mesmo não havendo uma relação de especialidade, deve considerar-se que, se as partes entenderam disciplinar a responsabilidade por negócio jurídico, em plena concordância com o princípio da autonomia privada, então, essa responsabilidade será contratual – cfr. COSTA, MÁRIO J. DE ALMEIDA, op. cit., 2011, pp. 546-553. 18. Por outro lado, e em sentido contrário, há o chamado sistema do cúmulo, que tem merecido a aceitação da maior parte da doutrina e da jurisprudência portuguesas, que se subdivide em três orientações: uma primeira vai no sentido de conceder ao lesado a opção por um dos regimes; outra parte da doutrina defende que se deve permitir ações autónomas dos dois tipos de responsabilidade; por último, a perspetiva que tem maior expressão, relativa a um concurso de normas dos dois regimes de responsabilidade, isto é, considera-se haver um concurso de fundamentos de uma mesma pretensão indemnizatória, que permite ao lesado mobilizar, numa mesma ação, fundamentos das responsabilidades contratual e extracontratual. Esta já defendida por VAZ SERRA e prevista no art.º 767.º, n.º 1, do Anteprojeto de sua autoria. 19. Face ao exposto, entende a A., ora Recorrida, salvo devido respeito, que a 2.ª R., Recorrente, errou na interpretação que fez dos artigos800.º, 483.º e 487.º e art.º 1154.º do CC -, considerando que a responsabilidade do 1.º R., era exclusivamente de natureza delitual ou extracontratual, devendo antes ter identificado o concurso de responsabilidades, oque, aliado aos factos de o 1.º R. e a 2.ª R., Recorrente, não terem logrado ilidir a presunção do artigo799.º, n.º 1, do CC e de se ter provado o nexo causal entre a atuação do 1.º R., e os danos causados à filha da ora Recorrida, significa estarem preenchidos todos os requisitos da responsabilidade civil contratual, pelo que a 2.ª R., Recorrente e o 1.º R., são solidariamente responsáveis pelos danos causados à filha da Recorrida, nos termos do disposto no artigo800.º do CC. 20. Acresce que, entende a A., ora Recorrida, que a2.ª R., Recorrente, também errou no enquadramento que fez da aplicação do regime da prescrição quanto aos direitos indemnizatórios decorrentes da responsabilidade civil dos RR. Senão vejamos 21. A 2.ª R., Recorrente, alegar o seguinte: “Embora não se questione esta decisão [referindo-se ao Acórdão do Tribunal a quo], merece apenas dois reparos com relevância no caso: O facto danoso (e o contrato) em discussão data de 11/07/2007, quando ocorreu a cirurgia (colecistectomia) realizada pelo Réu Médico nas instalações da C ... Hospital..., e não da morte da filha da Autora ocorrida dois anos depois em …/07/2009. Em bom rigor, a citação dos réus (em 05/03/2013) ocorreu mais de 5 anos após aquela cirurgia. O prazo prescricional de 3 anos é referente ao direito de indemnização decorrente de responsabilidade extracontratual e não à responsabilidade em si. De outra forma, não faria sentido discutir a responsabilidade da Ré C ... Hospital... alicerçada na atuação do seu auxiliar (Réu Médico), caso se considerasse que a responsabilidade deste estava já prescrita.” 22. Entende a A., ora Recorrida, que não se encontram prescritos os seus direitos indemnizatórios, pela aplicação do regime dos artigos 309.º e 498.º, n.º 3 do CC da prescrição quanto aos direitos indemnizatórios decorrentes da responsabilidade civil do 1.º R. e da 2.ª R., Recorrente. 23. Resulta que ambas as relações estabelecidas respetivamente entre a A., ora Recorrida, e a 2.º R., Recorrente, e entre 1.º R., e a A., ora Recorrida, confluem num concurso de normas dos dois regimes de responsabilidade (conforme supra alegado), isto é, considera-se haver um concurso de fundamentos de uma mesma pretensão indemnizatória, que permite à Recorrida mobilizar fundamentos das responsabilidades contratual e extracontratual, pelo que, tem aplicação o prazo ordinário dos 20 anos, nos termos do artigo309.º do CC e, em consequência, não se encontram prescritos os direitos indemnizatórios da A., ora Recorrida. 24. Contudo, ainda que se entenda que a responsabilidade do 1.º R., se move no exclusivamente no âmbito do regime da responsabilidade civil extracontratual (e, por isso, aplicando-se o prazo prescricional de 3 anos), os direitos indemnizatórios da Recorrida também não estão prescritos por força da aplicação do disposto no artigo498.º, n.º 3 do CC. 25. O alargamento do prazo prescricional, previsto no n.º 3 do artigo 498.º do CC, “radica na especial qualidade do ilícito e não na circunstância de se demonstrar, em sede penal, o respectivo crime”, pelo que, não está dependente da ocorrência prévia de processo-crime, nem da existência de uma condenação penal, bastando, para tanto, a verificação de factos geradores de responsabilidade civil e da respetiva obrigação de indemnização (cfr. entendimento da jurisprudência maioritária-Acórdão do T.R.G de 28/06/2018, bem como os do Supremo Tribunal de Justiça: de 23.10.2012, e de 29.10.2002, e de Tribunais da Relação Porto de 6.1.2011, do Guimarães de 15.3.2012, de Évora de 27.9.2007, e de Coimbra de 28.01.2014. 26. Da factualidade alegada pela A., ora Recorrida, e dada como provada nos presentes autos, é indiscutível que o facto ilícito gerador de responsabilidade civil é, também, suscetível, em abstrato, e no mínimo, de constituir um ilícito típico, previsto e punido, nos termos do artigo 150.º n.º 2 do CP, com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias; ou, no máximo, de constituir um crime de homicídio por negligência, previsto e punido, nos termos do artigo137.º n.º 1 do CP, com pena de prisão até 3anos ou com pena de multa, se se entender que pena mais grave se lhe aplica. 28. Os danos sofridos pela filha da Recorrida, laceração tangencial do ramo direito da veia porta, via biliar principal e leito hepático, que teve como causa provável uma tração excessiva ou intempestiva, mas acidental, sobre o infundíbulo vesicular, causadas no decurso da intervenção cirúrgica, determinaram que a paciente fosse submetida a um transplante hepático e determinasse a morte da filha da Recorrida e dois anos mais tarde em virtude de uma complicação (comum em doentes transplantados) decorrente desse transplante. 29. Conclui-se que a responsabilidade do 1.º R. não é de natureza exclusivamente delitual ou extracontratual, devendo antes ter-se entendido pela mobilização do concurso dos dois regimes de responsabilidade, contratual e delitual, sendo que, independentemente do regime de responsabilidade mobilizado, os direitos indemnizatórios da Recorrente não estão prescritos em virtude do alargamento do prazo prescricional previsto no artigo 498.º, n.º 3 do CC, ex vi dos artigos 150.º, n.º 2 ou 137.º n.º 1, e 118.º, n.º 1, al. c) do CP, não assistindo também razão ao alegado pela 2.ª R., Recorrente. 30. Contrariamente ao discorrido pela 2.ª R., Recorrente, ambas as relações estabelecidas respetivamente entre a A., ora Recorrida, e a 2.º R., Recorrente, e entre 1.º R., e a A., ora Recorrida, preenchem simultaneamente os regimes de responsabilidade delitual e contratual, segundo o sistema do cúmulo que se subdivide em três orientações: o lesado por optar por ser-lhe aplicado um dos regimes da responsabilidade civil (contratual ou extracontratual); ou outra que permite ações autónomas dos dois tipos de responsabilidade; ou, segundo a perspetiva que tem maior expressão, relativa a um concurso de normas dos dois regimes de responsabilidade, isto é, considera-se haver um concurso de fundamentos de uma mesma pretensão indemnizatória, que permite à A., ora Recorrida, mobilizar fundamentos das responsabilidades contratual e extracontratual. 31. E, independentemente do regime de responsabilidade mobilizado, ainda que se entenda que a responsabilidade do 1.º R., se move no exclusivamente no âmbito do regime da responsabilidade civil extracontratual (e, por isso, aplicando-se o prazo prescricional de 3 anos), os direitos indemnizatórios da A., ora Recorrida, também não estão prescritos por força da aplicação do disposto no artigo498.º, n.º 3 do CC, ex vi dos artigos 150.º, n.º 2 ou 137.º n.º 1, e 118.º, n.º 1, al. c) do CP. 32. Aliás, não obstante a qualificação do tipo de ilícito, seja imputável ao previsto e punido no artigo 150.º, n.º 2 do CP, ou, seja imputável ao presvisto no artigo 137.º, n.º 1 do CP, o prazo prescricional aplicável será sempre o previsto no regime do artigo498.º, n.º 3 do CC, extinguindo-se o direito indemnizatório da A., ora Recorrida, volvidos 5 anos sobre a data da prática do facto (in casu, desde data da morte da filha da A., ora Recorrida, em 10/07/2009), nos termos do artigo118.º, n.º 1, al. c) do mesmo inciso legal, razão pela qual não assiste razão ao alegado pela 2.ª R., ora Recorrente. 33. Por outro lado, segundo ANTUNES VARELA, “quanto aos danos patrimoniais a lei manda indemnizar no caso de morte como no de lesão, o prejuízo sofrido por aqueles que podiam exigir alimentos do lesado (o cônjuge, os seus descendentes, ascendentes, irmãos e sobrinhos 2009.º) ou por aqueles a quem este os prestava no cumprimento de uma obrigação natural. 34. O art.º 495.º, n.º 3 remete para o art.º 496.º, n.º 3 do CC definindo serem as pessoas referidas neste último inciso legal que podem reclamar os danos patrimoniais(próprios). 35. O n.º 3 do art.º 496.º do CC foi alvo da alteração, através da Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, sendo que na anterior redação do artigo, apenas se previa como titulares da indemnização os sujeitos elencados no n.º 2 – que corresponde ipsis verbis ao atual n.º 2 referindo que “Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.” 36. Esta alteração tem efeito ex nunc como aliás quedou decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça [RAUL BORGES], de 08/03/2012, que concluiu designadamente que não se aplicava às situações em que a morte do unido de facto fosse anterior à entrada em vigor da referida alteração, explicitando que: “(...) há que considerar que os direitos derivados da morte do membro de união de facto surgem à data da morte. Por essa altura (...), no horizonte de expectativas da companheira sobreviva não figurava direito a indemnização por dano desgosto com assento na lei. Mas do lado do lesante, a quem incumbirá pagar as indemnizações, o espectro do eventual arco indemnizatório a satisfazer tinha os seus contornos definidos, as suas limitações, as vigentes e conhecidas à face da lei então aplicável e apenas essas, e este tipo de consideração não pode ser arredado na análise a efectuar O falecimento é um facto que faz surgir uma situação jurídica de constituição instantânea, sendo aplicável a lei contemporânea da aquisição do direito. (…). 37. À data da morte da filha da A., ora Recorrida, era a sua única herdeira (cfr. Artigo 2.º da matéria de facto provada) e era a única que em razão do artigo495.º, n.º 3 do CC, poderia vir a exigir alimentos à falecida e, portanto, a única com legitimidade para exigir a indemnização por danos patrimoniais. 38. Quanto à indemnização por danos patrimoniais, refere ANTUNES VARELA, mas também os Acórdãos Supremo Tribunal de Justiça de 16/04/1974 [ABEL DE CAMPOS], de 18/02/2003 [PONCE DE LEÃO], de 02/03/2004 [SILVA SALAZAR] e de 05/05/2005[ARAÚJO BARROS] que têm excecionalmente, direito a indemnização por danos patrimoniais, nos casos de morte ou lesão corporal, os terceiros que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural, desde que, quanto àqueles, tenham a qualidade de que depende a possibilidade legal do exercício do direito aos alimentos, mesmo que não estivessem a receber da vítima qualquer prestação alimentar por carência efetiva deles. 39. Conclui-se que o Tribunal a quo errou ao decidir que apenas a própria lesada teria o direito a exigir a indemnização por dano patrimonial, entendendo a Recorrente que tal direito lhe foi transmitido pela falecida filha, pela via sucessória – cfr. arts. 2133, n.º 1, al. b) e 2024 do CC, e bem assim, contrariamente ao alegado pela 2.ª R., Recorrente, não se verifica a violação do disposto no artigo496.º do CC, inexistindo qualquer erro de julgamento. 40. Também sustenta a 2.ª R., Recorrente, que o Tribunal a quo não tomou em consideração os princípios estruturantes do direito processual civil, entre os demais, o princípio do dispositivo, sendo que cabia à “Autora alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir que limitam os poderes de cognição do tribunal, sem prejuízo de outros - expressão do princípio do inquisitório – que sejam instrumentais, complementares ou notórios (art. 3º, n.ºs 1 e 2 do CPC)”. 41. Considerando, aliás, o expresso no facto n.º 103 da matéria de facto provada (“103 – A laceração tangencial do ramo direito da veia porta, referidaem47 dos Factos Provados, teve como causa provável uma tração excessiva ou intempestiva, mas acidental sobre o infundíbulo vesicular tendo, eventualmente, contribuído a existência de aderências peri-vesiculares a esse nível.”), salvo devido respeito, não pode a 2.ª R., Recorrente, querer retirar partido da fundamentação do Parecer do Conselho do Colégio de Especialidade para alegar que o Tribunal a quo errou: - ao tomar como certo “o gesto meramente provável de ter provocado a lesão na veia porta”; - ao desconsiderar “categoricamente que a tração excessiva ou intempestiva foi acidental”; - “ao desvalorizar o facto assente da existência de aderências peri-vesiculares poderem eventualmente ter contribuído para a produção da lesão acidental”; e, - “o facto de ser rara a lesão da veia porta em cirurgias deste tipo, não permite que a sua ocorrência possa evidenciar culpa do Réu médico por não a ter prevenido”; desconsiderando totalmente que não basta alegar a possível existência de aderências, era preciso que tal tivesse sido provado, e provado pelos RR., já que, tratando-se de um facto modificativo ou extintivo do direito alegado pela A., ora Recorrida, o ónus da prova recairia sobre os RR. – cfr. art.º 342.º, n.º 2 do CC e 571.º do CPC - e, o 1.º R., não as documentou no processo clínico, nem as mencionou na sua contestação (nem constam dos temas de prova!) – aqui, sim, salvo devido respeito, devendo ser tomada em consideração a violação o princípio do dispositivo pelo 1.º R.. 42. Sendo certo que, do vocábulo contribuir (por referência ao facto n.º 103), só se pode concluir que há outras coisas a causar: a má avaliação do campo cirúrgico e, eventualmente, a existência de aderências peri-vesiculares. E é precisamente por isto que o parecer do colégio da especialidade refere no ponto 3. a) das suas conclusões que “em relação à atuação do Dr. …. (...) houve uma deficiente avaliação das condições locais que, associada a eventual manobra intempestiva provocaram uma lesão vascular grave que não foi passível de correção imediata apesar das medidas instituídas”. 43. Atendendo, ainda, a que o recurso ao adjetivo provável e ao advérbio eventualmente desvirtua o próprio conceito de facto provado, mostrando-se indiciador de uma incerteza quanto à ocorrência dos factos tal como relatados, tendo sido, aliás, esse o fundamento utilizado pelo Tribunal a quo para não alterar o artigo 103. dos factos provados: “os cirurgiões ouvidos (Dr. EE, Dr. FF, Dr. GG, Dr. HH, Dr. II e Dr. JJ) consideraram provável que uma tracção sobre o infundíbulo vesicular pudesse provocar uma lesão na veia porta a existirem aderências peri-vesiculares mas não são concludentes nesse sentido porquanto só admitem essa probabilidade.”
44. A doutrina e a jurisprudência tendem a distinguir entre obrigação de meios e obrigação de resultado, contudo, tal distinção teve origem com Demogue, no ordenamento jurídico francês, um ordenamento diferente do nosso no que toca à responsabilidade civil, razão pela qual encontramos posições doutrinais e jurisprudenciais que negam importação da referida distinção para o nosso ordenamento. 45. Nesse sentido, atente-se na declaração de voto do Conselheiro CUSTÓDIO MONTES no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça [PIRES DA ROSA] de 17/12/2009: “Qualquer obrigação se pode qualificar como obrigação de meios, na medida em que ao devedor é sempre exigível um certo grau de diligência na realização da conduta devida; mas, também, se pode qualificar como obrigação de resultado, na medida em que toda a obrigação tende a um certo resultado. Devido àquela dificuldade em estabelecer a fronteira entre obrigação de meios e obrigação de resultado, importa é considerar, caso a caso, qual o grau aleatório do resultado para, desse modo, se saber se é ou não de exigir do devedor um mero comportamento diligente ou um comportamento garantístico do resultado”. 46. No campo da responsabilidade médica, a doutrina e a jurisprudência enquadra, via de regra, as obrigações assumidas pelos médicos nas obrigações de meios. Contudo, tanto a doutrina como a jurisprudência identificam casos que, pelo baixo grau de risco/aleatoriedade, configuram verdadeiras exceções à regra, identificando-as como obrigações de resultado (nesse sentido, por exemplo, ALMEIDA COSTA e ANDRÉG.DIAS PEREIRA). 47. Importa considerar que as lesões da veia porta são tão raras que entre 1996 e 2009, mais de 10 anos, apenas estão documentadas na literatura médica 16 lesões (cfr. resposta ao quesito 3 do complemento do parecer do colégio da especialidade 19/04/2016). 48. Face a essa raridade, será de convocar o raciocínio propugnado no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça [PIRES DA ROSA] de 17/12/2009 que refere competir ao médico “a prova de um grau de conhecimentos e de um zelo e diligência demonstrativos do emprego de todos os meios e conhecimentos e diligências adequados à obtenção do resultado (que se não obteve ou que só defeituosamente se conseguiu). E não apenas pela afirmação desta ou daquela diligência, deste ou daquele meio, ou desta ou daquela atitude ou opção como as que teve por adequadas, mas pela afirmação da coincidência dessas diligências, meios, atitudes ou opções com aquilo que seria adequado cumprir, por parte de um profissional qualificado, para o tipo de intervenção que ofereceu ao seu cliente. (...) Ao réu competia o ónus da prova da ausência de culpa sua na produção do resultado, o ónus imposto pelono1 do art.799.º”. 49. Ora, de facto, tal prova não foi produzida, decorrendo, aliás, que as lesões da veia porta são raras e não há sequer casos documentados em que simultaneamente se tenha lesionado a veia porta, o leito vesicular e a via biliar principal 50. Por outro lado, é chocante que na sequência de um procedimento de simples retirada da vesícula, alguém tenha que ser submetido a um transplante de fígado na sequência de – e atente-se bem nas lesões sofridas – “laceração extensa tangencial do ramo direito da veia porta, secção completada via biliar principal e laceração profunda do leito vesicular” (facto n.º 65 da matéria de facto provada). 51. Face ao baixo grau de risco do procedimento, à constatação de que na grande maioria dos casos as complicações estão associadas ao cirurgião, e atendendo ainda às lesões produzidas, é possível estabelecer por prova prima facie ou por res ipsa loquitur (nos termos do direito anglo-saxónico) que as lesões produzidas decorreram de uma má prática médica. 52. Por fim, alega a 2.ª R., Recorrente, que o Acórdão a quo “é omisso quanto à ponderação da verificação do nexo de causalidade entre o ato médico e os danos: quer quanto àqueles que a filha da Autora sofreu em momento contemporâneo e posterior à cirurgia até à alta hospitalar do Hospital ... (em 24/08/2007); quer a partir do momento em que teve alta do seguimento em consulta pós-transplante (em 16/05/2008) e pode, após o acidente iatrogénico, retomar uma vida com relativa normalidade (para um doente transplantado).” E que, “Essa normalidade só foi interrompida por causa do surgimento de outra patologia (colangite) decorrente, não do acidente iatrogénico, mas sim de complicações relacionadas com estenose da anastomose biliar realizada no decurso do transplante hepático – cfr. pontos 113 dos Factos Provados. 53. Ora, conforme resulta da resposta ao quesito 20 do 2.º complemento ao parecer do colégio da especialidade, datado 07/05/2018 (fls. 1148/1150), a estenose está diretamente relacionada com o transplante; e que o transplante está diretamente relacionado com as intercorrências ocorridas na colecistectomia (cfr. resposta ao quesito 21). 54. Salvo devido respeito, também não se pode ignorar, a contrario do alegado pela 2.ª. R., Recorrente, o que resulta nas conclusões do Parecer, (fls. 753), quando refere que: “2. A sua morte [da filha da A., ora Recorrida], cerca de dois anos depois tem como causa próxima complicações biliares resultantes de uma transplantação hepática por falência hepática fulminante isquémica devida à lesão vasculo-biliar ocasionada durante a intervenção para realização da colecistectomia” e que “Em relação à atuação do cirurgião Dr. BB, consideramos que: (...) b) a referida lesão [vascular grave, a laceração da veia porta] condicionou diretamente as complicações subsequentes e, indiretamente o desfecho final.” 55. Resulta, ainda, ponto 3.b) das conclusões do Parecer que “a lesão [vascular grave ocorrida no decurso da colecistectomia] condicionou diretamente as complicações subsequentes e, indiretamente, o desfecho final”. 56. E que, escolha do procedimento a realizar “depende de vários fatores, nomeadamente estado clínico da doente, grau de dilatação da via biliar, experiência da equipa. Sendo que, nenhuma das opções mencionadas no quesito é, no entanto, um “procedimento minor”, especialmente no contexto de abordagem da via biliar num doente transplantado e multi-operado” (cfr. resposta ao quesito 32 do 2.º complemento ao parecer do colégio da especialidade, datado de 13/12/2017). 57. Assim que, salvo devido respeito por opinião contrária, não restam quaisquer dúvidas que a morte da filha da A., ora Recorrida, decorreu da conduta do 1.º R. e que a filha da A. só teve que ser submetida ao transplante hepático (que se mostrou absolutamente necessário dado à gravidade e irreparabilidade das lesões), ficando exposta aos riscos e complicações deste procedimento, por causa da conduta do 1.º R.. Foi, por isso, o 1.º R. que expôs a filha da A., ora Recorrida, ao risco de estenose da via biliar (uma das complicações mais frequentes nos transplantes hepáticos) e ao risco de morte que efetivamente se veio a materializar. 58. Razão pela qual, entende a A., ora Recorrida, que mesmo que a intervenção do médico não fosse o único fator a contribuir para o dano morte, não se pode negar que o mesmo contribuiu significativamente para a produção daquele dano, ao expor a paciente aos riscos decorrentes de um transplante, que de outro modo não teria sido exposta, o que permite afirmar o nexo causal, seja ele um nexo de causalidade na sua formulação negativa, ou seja um nexo de imputação, de acordo com a teoria das esferas de risco do lesante, do lesado e da vida em geral. 59. Assim sendo, deve entender-se que, contrariamente ao alegado pela 2.ª R., Recorrente, que não se verifica a interrupção do nexo de causalidade ou de imputação entre a conduta dos RR. e a morte da filha da A., ora Recorrida, sendo os RR., solidariamente responsáveis pelos danos sofridos quer pela filha da A., ora Recorrida, quer pela própria A., ora Recorrida. 60. Face a tudo o exposto, não assiste razão à 2.ª R., Recorrente, porquanto, a A., Recorrida, alegou, e em sede própria, todos os factos integradores dos pressupostos de verificação da responsabilidade civil, sendo que, demostrada a ilicitude, cabia aos RR. ilidira presunção da culpa, nos termos do artigo799.º, n.º 1 do CC, o que não sucedeu, e provando-se o nexo causal entre a atuação do 1.º R., e os danos causados à filha da ora Recorrida, significa estarem preenchidos todos os requisitos da responsabilidade civil contratual, razão pela qual não existe qualquer erro de interpretação da matéria de facto ou erro de julgamento do Acórdão recorrido que mereça (e admita) quaisquer censura ou reparo. Colhidos os vistos, cumpre decidir. Fundamentação. Vem provada a seguinte matéria de facto: 1 - CC nasceu a .../.../1969 e foi registada como filha de KK e de AA (ora A.) – fls. 54 (A). 2 – A CC faleceu a … de Julho de 2009 – fls. 54 (B). 3 - Por Procedimento Simplificado, lavrado a 1 de Setembro de 2009, na Conservatória do Registo Civil ..., AA, de 78 anos, viúva, habilitou-se como única e universal herdeira de sua filha CC – fls. 56/57 (C). 4 - Por sofrer de colecistite, CC submeteu-se, na manhã de 11 de Julho de 2007, a intervenção cirúrgica de colecistectomia por laparoscopia em litíase vesicular (D). 5 - Nos exames realizados na Clínica ... e ..., CC apresentava: a) “vesícula biliar repleta de múltiplos cálculos de grandes dimensões, os maiores com cerca de 15 mm, que se acompanham de forte atenuação acústica posterior, verificando-se que a sua parede se encontra ligeiramente espessada (3,7 mm) e colapsada sobre os mesmos; b) veia porta de calibre normal; c) pâncreas e baço de morfologia e dimensões normais e com textura homogénea” – fls. 63 (E). 6 - Durante a laparoscopia surgiu uma hemorragia que obrigou a converter de emergência a laparoscopia em laparotomia (operação de barriga aberta) (F). 7 - Como não estava a ser possível controlar a hemorragia recorrendo ao Packing e manobras de Pringle, o Dr. BB contactou os colegas do Hospital ..., que é um centro de referência em Cirurgia Hepatobiliopancriática, que aceitaram a transferência da doente para este Hospital (G). 8 - A transferência foi feita em ambulância medicalizada e acompanhada de médica anestesista e de uma enfermeira (H). 9 - Teve alta a 30/07/2007 (I). 10 - Submetida a Junta Médica, foi fixada, a 21/05/2008, a CC a incapacidade para o trabalho de 70% - fls. 122 (J). 11 - CC trabalhava na sociedade J..., L.da, e auferiu, em Agosto de 2008, o vencimento líquido de € 990,00 – fls. 123 (K). 12 - À data da intervenção cirúrgica (11/07/2007), a C ... Hospital... tinha validamente transferida a sua responsabilidade civil profissional e de exploração para a interveniente Tranquilidade, por contrato de seguro titulado pela apólice nº ...86 até ao montante de € 1.250.000,00 – fls. 339 e ss. (M). 13 - O Dr. BB tinha, à data da intervenção cirúrgica de 11/07/2007, a sua responsabilidade civil inerente ao exercício da sua atividade profissional de médico cirurgião validamente transferida para a interveniente AXA, por contrato de seguro titulado pela apólice nº ...95, até ao montante de € 600.000,00 por anuidade, ficando limitado, por sinistro, a 50% do respetivo valor, isto é, € 300.000,00 – fls. 193 (N). 14 – O Instituto da Segurança Social, IP, pagou à ora falecida CC, a título de subsídio de doença (equivalência por prestação de doença), entre agosto de 2007 e junho de 2009, a quantia de € 6.169,95 – fls. 545 e 546 e acordo das partes (fls. 894). 15 – A CC marcou uma consulta com o 1º R. para o dia 04/06/2007, consulta esta que decorreu nas instalações da Ré C ... Hospital.... 16 – O 1º R. nessa consulta procedeu à avaliação da sintomatologia, à realização do exame físico e à análise dos meios complementares de diagnóstico com que a CC se fazia acompanhar (a ecografia abdominal referida em 5 dos Factos Provados e análises clínicas feitas na A...). 17 – Estes exames complementares de diagnóstico eram atuais (de maio de 2007) e os adequados para que o 1º R. pudesse considerar que a doente tinha indicação e condições para poder ser submetida a cirurgia. 18 – O 1º R. fez o diagnóstico de litíase vesicular sintomática e deu indicação para a remoção da vesícula por laparoscopia. 19 – O 1º R. fez também a história clínica da doente, da qual resultou a referência a uma trombose venosa profunda nas pernas, com necessidade de tratamento e internamento hospitalar em 1998. 20 – E registou, ainda, que a doente apresentava refluxo gastroesofágico e gastrite antral, e que naquela data não fazia qualquer medicação habitual. 21 – O 1º R. informou a CC do seu quadro clínico, recomendou a realização da intervenção cirúrgica através de laparoscopia, por ser uma técnica segura, pouco invasiva e que possibilitava uma recuperação rápida. 22 – Após foi assinado pela doente consentimento informado no dia 04/06/2007 e marcada a intervenção cirúrgica para o dia 11/07/2007 – fls. 269. 23 – Na mesma consulta, foi entregue à doente um conjunto de notas escritas com as instruções de como esta teria de agir na véspera e na data da intervenção cirúrgica. 24 - O contrato para a operação cirúrgica de colecistectomia por laparoscopia foi celebrado entre CC e a ora Ré C ... Hospital.... 25 – A CC foi admitida nas instalações da Ré C ... Hospital... às 07,45 horas do dia 11/07/2007. 26 – A doente foi novamente observada e alertada pelo 1º R. do procedimento cirúrgico, dos seus riscos e benefícios e assinou um segundo consentimento informado – fls. 164. 27 – No quarto que lhe foi atribuído foi sujeita a um questionário de pré-operatório feito por uma enfermeira, tendo o mesmo sido registado no registo de cuidados pré-operatórios – fls. 165. 28 – Foi-lhe medida a tensão arterial e o pulso, ministrado “Diazepan – 5 mg” como medicação pré-anestésica e inserido um cateter nº 18. 29 – O Bloco Operatório da C ... Hospital... é uma área do hospital de acesso reservado que é composto por duas salas de operações, sala de recobro, lavabos, vestiários, lavatórios, sanitários e arrecadações de material médico e cirúrgico. 30 – A CC deu entrada no Bloco Operatório pelas 8,50 horas e foi levada para a sala de operações. 31 – Foi recebida pela Senhora Enfermeira a qual, dando cumprimento aos parâmetros conhecidos de “cirurgia segura”, registou os parâmetros da doente no registo de cuidados pré-operatórios. 32 – Seguidamente, foi colocada na mesa operatória em decúbito dorsal e monitorizada de acordo com os parâmetros internacionalmente aceites para se iniciar o ato anestésico, que começou cerca das 09,00 horas. 33 – O anestesista deu autorização para começo do ato cirúrgico cerca das 09,20 horas. 34 – O ato cirúrgico iniciou-se cerca das 09,25 horas com uma pequena incisão de cerca de 2 centímetros na região peri-umbilical, para, através dela, se introduzir a agulha de Veress e confecionar o pneumoperitomeu. 35 – Colocada a agulha na cavidade peritoneal foi realizada uma aspiração com seringa e fez-se a confirmação da correta introdução na cavidade peritoneal. 36 – Confecionou-se, então, o pneumoperitomeu, tendo sido necessário refazê-lo, o que atrasou o decurso da cirurgia. 37 – Foi introduzido o 1º Trocar na região peri-umbilical através do qual entrou a câmara televisiva e fez-se a revisão da cavidade abdominal. 38 – Posteriormente, seguindo-se o método francês, sob o controlo da câmara de televisão, foram colocado mais três Trocars: o 2º Trocar foi colocado no Epigastro; o 3º Trocar foi introduzido no flanco direito; e o 4º Trocar foi inserido através do flanco esquerdo. 39 – De seguida, e com a visão direta proporcionada pela câmara televisiva, introduziu-se um grasper pelo trocar do epigastro que foi aplicado no fundo da vesícula. 40 – Com este grasper faz-se a tração/mobilização que expôs o corpo/infundíbulo da vesícula. 41 – Introduziu-se, então, um segundo grasper pelo flanco direito que foi colocado no corpo/infundíbulo da vesícula de forma a expor a área do triângulo de Calot. 42 – Os grasper não são elementos cortantes (correspondendo às vulgarmente chamadas pinças), mas podem ser elementos traumáticos. 43 – A mobilização do corpo/infundíbulo da vesícula constitui um ato preliminar à dissecação do triângulo de Calot para identificação do canal cístico e da artéria cística. 44 – Os quais, depois de devidamente identificados, são clipados (com 3 clipes no canal cístico e três clipes na artéria cística) e seccionados, só depois se procedendo à remoção da vesícula do seu leito. 45 – Foi ao mobilizar o corpo/infundíbulo da vesícula que surgiu, de forma inesperada, cerca das 10,00 horas, uma hemorragia. 46 – Esta hemorragia foi originada pela laceração tangencial do ramo direito da veia porta. 47 – A conversão da laparoscopia em laparotomia (nº 6 dos FP) foi rápida pois todo o arsenal cirúrgico na mesa de operações estava pronto a ser utilizado para o efeito. 48 – No momento da emergência, foi pedido e ministrado sangue à doente (2+2 unidades) assim como uma fluidoterapia mais agressiva. 49 – Em simultâneo, já em laparotomia, o 1º R. procurou controlar a hemorragia recorrendo ao Packing (colocação de compressas na zona do sangramento para garantir a compressão, reduzindo-o, atenuando-o ou até eliminando-o) e à manobra de Pringle (clampagem da tríade portal), na tentativa de controlar a hemorragia. 50 – Inicialmente foi efetuada a compressão e, depois, colocado um clamp. 51 – A hemorragia persistiu e a dificuldade no seu controle e a impossibilidade de visualizar a sua sede/origem levaram o 1º R., em laparotomia, a remover a vesícula por via retrógrada (iniciando- se a dissecação pelo fundo da vesícula em direção ao triângulo de Calot). 52 – Apesar da remoção da vesícula e da manutenção das manobras para controlar o sangramento, a dificuldade na visualização da sua origem adensou a suspeita (porque não era possível a observação direta) da existência de uma lesão vascular grave da veia porta. 53 – Esta circunstância fez com que o 1º R. tomasse a decisão de contactar os colegas do Hospital ..., na cidade ..., que é um centro de referência em cirurgia hepatobiliopancriática. 54 – Esta decisão foi tomada logo que se suspeitou da probabilidade e uma lesão vascular grave, sem possibilidade de controlo com a manobra de Pringle, com o tamponamento e por não ser possível localizar a sede do sangramento, mesmo com a retirada da vesícula. 55 – Para tal, teria o 1º R. que concluir as manobras de estabilização que permitissem à paciente chegar ao ... com vida, o que se verificou. 56 – Já em período de verdadeira emergência, encontrando-se noutra sala do mesmo Bloco Operatório um colega do 1º R., também cirurgião e muito experiente – ... -, foi solicitada a sua colaboração, tendo havido concordância com os gestos já efetuados (conversão em laparotomia, packing, manobra de pringle, remoção da vesícula para tentar identificar o local do sangramento e intenção de transferir a doente para o Hospital ..., por se manterem as dificuldades no controle da hemorragia). 57 – A transferência referida em 8 dos Factos Provados foi feita cerca das 13,00 horas. 58 – Enquanto a doente aguardava a transferência, continuaram os esforços do 1.º R. para controlar a hemorragia. 59 – A paciente levou quatro unidades de sangue. 60 – Antes da transferência da doente para o ..., o 1.º R. informou o companheiro desta (que se identificou como marido e que viveu maritalmente com a CC, durante 14 anos, até à morte desta) que a doente ia ser transferida para o Hospital ..., no ..., por uma questão de precaução, devido a uma hemorragia difícil de controlar. 61 – E que estaria acompanhado no percurso por médico e enfermeiro da 2ª Ré. 62 – O companheiro e a irmã da CC ficaram preocupados e angustiados, deslocaram-se ao local onde a ambulância que levaria a paciente estava parada e ainda puderam vê-la a ser colocada na ambulância, inconsciente e com vária aparelhagem médica ligada ao corpo. 63 – À chegada ao Hospital ... estava uma equipa médica que recebeu a doente e lhe proporcionou os cuidados necessários de emergência. 64 – A nota de admissão deste Hospital e o resumo do episódio de urgência referem que a paciente foi admitida às 14,48 horas, em choque, com palidez, má perfusão, tensões arteriais não mensuráveis, com instabilidade hemodinâmica e respiratória. 65 – Foi operada às 16,30 horas desse mesmo dia, tendo sido verificado: a) hemoperitoneu volumoso (2,5 l + compressas); b) packing do leito vesicular; c) laceração extensa tangencial da veia porta direita 1 cm acima da bifurcação com hemorragia ativa; d) laceração hepática profunda a nível do leito vesicular; e) secção completa da via biliar principal a nível do colédoco abaixo da bifurcação. 66 – Foram efetuados os seguintes procedimentos: a) divisão do pedículo hepático; b) laqueação da tríade portal direita, packing e surgicel; c) fecharam sem dreno. 67 – O companheiro e a irmã da paciente foram informados, quando chegaram, que a paciente estava nos cuidados intensivos em situação de prognóstico reservado e que a sua situação era muito complicada e reservada, o que aumentou de modo significativo a apreensão e a angústia que já sentiam. 68 – A A. foi informada, por telefone, e sentiu-se muito angustiada e preocupada. 69 – A 13/07/2007, procedeu-se a nova intervenção para revisão do packing peri-hepático, constatando-se ausência de hemorragia ativa e necrose do fígado direito, tendo sido realizada hepatectomia direita regrada e “exteriorização”, sobre dreno, da “VBP esquerda”. Refez-se packing. 70 – No final desta operação, os médicos do H... informaram o companheiro e a irmã da CC que tinha controlado a hemorragia desta, que metade do fígado estava sem irrigação e necrótico, que no momento a paciente estava estabilizada e que nada mais poderiam fazer a não ser aguardar 24 horas para verificar a evolução da situação. 71 – E que não sabiam qual seria o estado do cérebro da paciente, por não saberem se teria estado sempre com irrigação e oxigenação. 72 – A 16/07/2007, a doente foi novamente revista cirurgicamente, verificando-se “áreas múltiplas de necrose no lobo hepático esquerdo”, “coleperitoneu/ascite biliar”, “ausência de hemorragia” e fluxos adequados, por eco intraoperatória, na veia porta esquerda, artéria hepática esquerda e veia hepática esquerda (“veia porta esquerda OK, artéria hep esquerda OK, outflow esquerdo OK”). Foi realizada remoção de packing, suspensão hepática, lavagem e encerramento sobre dois drenos (leito hepático e via biliar). 73 – Por agravamento clínico, com falência hepática, foi proposto transplante hepático urgente, realizado a 18/07/2007. Foi, segundo os registos operatórios, deixado packing com “5compressas” “à volta do fígado”. 74 – Foi reoperada a 19/07/2007, tendo sido efetuada “lavagem peritoneal, biopsia hepática e encerramento da parede”. 75 – Desde a entrada no H... e até ao final do dia 23/07/2007, a paciente esteve ou sob o efeito de anestesia geral ou sob coma induzido, com apoio de máquinas a todos os órgãos principais, suportando, entre outras, a função respiratória e a função renal. 76 – Apenas a 25/07/2007, dia em que recuperou a consciência, é que foi possível determinar que o cérebro não tinha sido afetado. 77 – A A. suportou uma enorme angústia até este dia. 78 – A A. manteve-se na UCI até 30/07/2007, tendo sido posteriormente transferida para a enfermaria dos transplantados. 79 – Aí fez a recuperação lentamente. 80 – A 24/08/2007, teve alta e passou à consulta de pós-transplante. 81 – Não conseguia andar sem o auxílio de muletas, não podia fazer esforços e com um receituário prescrito pelos médicos do H... composto por imunossupressores (fornecidos pelo H...) e outros medicamentos (Tracrolimus 3 mg, Lepicortinolo 15 mg, Omeprazol 20 mg, Lorenin 1 mg, Cotrimoxasol 960 mg, AAS 100 e Miconazol gel) – fls. 109. 82 – Desde 24/08/2007 e até 12/06/2009, a paciente deslocou-se mensalmente de ... ao ... às consultas externas do H..., onde lhe eram realizadas análises e ajustada a medicação. 83 – Durante este período a paciente sentiu necessidade de solicitar, em março de 2008, um pedido de consulta para psiquiatria. 84 - No dia 16/05/2008 foi-lhe finalmente concedida alta, tendo voltado ao trabalho no dia seguinte e tendo trabalhado consecutivamente até 06/01/2009. 85 – Foi atribuída à filha A., por atestado médico de incapacidade multiuso de 21/05/2008, um grau de incapacidade de 70% - fls. 122. 86 – No início de janeiro de 2009, a doente apresenta, pela primeira vez, sinais de estar ictérica, compatível com colangite, e entra de baixa médica a 07/01/2009. 87 – A 21/01/2009, a doente realiza análises no H... que evidenciam Bilirrubinas a 4,38, sendo este um elemento para alarme, uma vez que os valores limites máximos são de 1,00. 88 – Tais análises evidenciam uma provável estenose, como possível causa da colangite, tanto mais que lhe foi detetada icterícia. 89 – A 24/01/2009, com evidentes sinais de estenose, a doente dirigiu-se às urgências do Hospital ... e saiu contra parecer médico. 90 – Fê-lo para se dirigir, de imediato, ao H... onde estava a ser seguida. 91 – Foi internada no H..., nove dias depois, para avaliação e realização de possível CPRE (Colangio-Pancreático-Retrógrada-Endoscópica). 92 – A 02/02/2009 é relatado no registo clínico que a paciente esteve assintomática e manteve estabilidade analítica até novembro de 2008, altura em que inicia agravamento progressivo da colestase, e que é internada para esclarecer possível colangite, sendo a biopsia hepática contraindicada por existir ligeira dilatação das vias biliares detetada na ecografia então realizada. 93 – No dia 05/02/2009 é dada alta à paciente porque não foi possível realizar a CPRE em tempo útil naquele internamento (entre 2 e 5 de janeiro de 2009) tendo sido proposto novo internamento para realizar a CPRE. 94 – No dia 09/02/2009, a doente é novamente internada no H..., com diagnóstico de colangite, para realizar CPRE. 95 – No dia 10/02/2009 é realizada a intervenção CPRE, tendo havido passagem de dilatador e de cesto de dórmia com saída de lamas. 96 – No dia 11/02/2009, a doente teve alta por a colangite ter ficado resolvida. 97 - A CC esteve com incapacidade temporária para o trabalho até 01/03/2009. 98 – A 08/06/2009, deu entrada no H... com um novo quadro de colangite já com 3 dias de evolução. 99 – A 12/06/2009 foi novamente operada no H... por estenose da anastomose biliar realizada no transplante, tendo efetuado “anastomose bilio-digestiva”. 100 – Teve alta do Serviço de Cuidados Intensivos Pós-Cirúrgicos a 16/06/2009, mantendo-se internada. 101 – Encontrava-se hemodinamicamente estável, vigil, orientada, apirética e com algumas queixas álgicas. 102 – A 08/07/2009, encontrando-se ainda na enfermaria dos transplantados, sofreu uma insuficiência hepática aguda que motivou internamento imediato no Serviço de Cuidados Intensivos do H... num contexto de choque séptico em doente já transplantada hepática, que evoluiu para falência multiorgânica e veio a determinar a sua morte a 10/07/2009. 103 – A laceração tangencial do ramo direito da veia porta, referida em 47 dos Factos Provados, teve como causa provável uma tração excessiva ou intempestiva, mas acidental, sobre o infundíbulo vesicular, tendo, eventualmente, contribuído a existência de aderências peri-vesiculares a esse nível. 104 – A eventual toma de medicação anti-agregante plaquetária (“Cartia” ou aspirina) não teria qualquer relevância para a origem ou desfecho desta complicação hemorrágica. 105 – Também não teve qualquer relevância a eventual existência de variações anatómicas/malformações vasculares. 106 – A intensidade da hemorragia e a repercussão hemodinâmica condicionaram a decisão (correta) de conversão para laparotomia. 107 – A decisão de colecistectomia (retirada da vesícula) foi correta e ditada pela necessidade urgente de acesso ao local da hemorragia. 108 - A laceração hepática a nível do leito vesicular e a secção completa da via biliar principal a nível do colédoco abaixo da bifurcação foram efetuadas depois da transformação da laparoscopia em laparotomia. 109 – E foram produzidas durante a colecistectomia de emergência, atendendo que a violência da hemorragia, obscurecendo o campo operatório não permitisse uma definição correta das estruturas e planos a dissecar. Por outro lado, a clampagem hilar e a abundante presença de sangue podem ter contribuído para que o cirurgião não se apercebesse da secção da via biliar principal e da fuga biliar a ela associada. 110 – A hemorragia por lesão de um grande tronco portal é violenta e de controlo difícil, não sendo sempre eficazes as manobras preconizadas de clampagem hilar (manobra de Pringle) e compressão por tamponamento para seu controlo temporário. A taxa de sucesso desta hemorragia é baixa em centros não especializados. 111 – A decisão de transferência para o H... foi correta, atempada e o acompanhamento e assistência durante o transporte foram adequados. 112 – A atuação clínica no H..., no decurso do primeiro internamento, foi correta, estando as várias reintervenções inseridas numa estratégia de “damage control”, a mais adequada às circunstâncias clínicas da doente. 113 – A doente foi reoperada a 12/06/2009 por complicações relacionadas com estenose da anastomose biliar realizada no decurso do transplante hepático. 114 - O Dr. BB nunca tencionou ausentar-se do País a 12/07/2007. 115 – O 1º R. acompanhou, nas duas primeiras semanas, através de contactos diários com os colegas do H..., a evolução do quadro clínico da doente. 116 – O 1º R. tem 40 anos de exercício de profissão e mais de 30 anos de especialista em cirurgia geral. 117 – Desempenhou vários cargos médicos de responsabilidade, nomeadamente o de Diretor do Serviço de Cirurgia e o de Diretor do Bloco Operatório. 118 – Frequentou vários cursos nacionais e internacionais de cirurgia laparoscópica, desde 1992, e foi um dos pioneiros na aplicação desta técnica em Portugal. 119 – Realiza com frequência (uma ou mais vezes por semana) este tipo de cirurgia. 120 – A CC teve de suportar as dores permanentes relacionadas com as várias cirurgias e atos cirúrgicos a que foi sujeita, que eram excruciantes sem o auxílio dos medicamentos que lhe eram administrados. 121 – Necessitou durante vários meses do auxílio de muletas. 122 – E do apoio de terceiros na realização de atos como mictar, defecar, comer e atos de higiene pessoal, o que deixou marcas profundas na sua autoestima e auto-confiança. 123 – Manifestou sintomas de depressão. 124 – A morte da filha causou um enorme sofrimento à A.. 125 – A A. mantinha com a filha uma relação afetiva de grande proximidade. 126 – A morte da filha, após dois anos em que acompanhou de perto o seu sofrimento, e que com ela sofreu, provocou na A. uma situação de profunda tristeza. 127 – Tendo sentido um trauma, uma dor intensa e o desespero natural de quem perde um descendente direto a quem amava muito. 128 – A CC anteriormente à operação realizada a 11/07/2007 não tomava ácido acetilsalícílico. O direito. Preliminarmente importa saber se a interveniente acessória Generali Seguros SA tem legitimidade para recorrer da condenação da parte sua assistida, questão suscitada pelo relator. Notificada para os efeitos do art. 655º do CPC, a interveniente defendeu que lhe assiste o direito de recorrer, sob pena de lhe ser coartado o exercício do direito de defesa, dado que o que venha a decidir-se na acção poderá repercutir-se no seu património por via da acção de regresso. Como é sabido, é controversa a questão de saber se o interveniente acessório tem legitimidade para recorrer, dada não ser condenado no processo, e a regra sobre a legitimidade para fixada no art. 631º do CPC. Isto porque o incidente de intervenção acessória provocada, previsto nos arts. 321º e sgs,. do CPC, não visa a condenação do interveniente a cumprir qualquer obrigação mas apenas estender-lhe o efeito do caso julgado. Não sendo parte principal, e não tendo sido condenada, a legitimidade para recorrer depende de se considerar verificada a hipótese prevista no nº 2 do art. 631º do CPC: “As pessoas directa e efectivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes ou sejam apenas partes acessórias. Decidiram no sentido da legitimidade do interveniente acessório para recorrer os Acórdãos do STJ de 13.11.2007, CJ, Ac STJ, 2007, 3º, p.141, e de 17.04.2008. É esta também a opinião de Salvador da Costa, “Os incidentes da instância”, 11ª edição, pag. 114, e de Miguel Teixeira de Sousa, Blog do IPPC, Jurisprudência 2019 (135). Releva-se, basicamente, a consideração de a sucumbência do demandado se repercutir no direito de regresso, pelo que o chamado é directa e efectivamente prejudicado pela decisão, como resulta do no nº 4 do art. 323º do CPC: “A sentença proferida constitui caso julgado quanto ao chamado, nos termos previstos no artigo 332º, relativamente às questões de que dependa o direito de regresso do autor do chamamento, por este invocável em ulterior acção de indemnização.” A tese que recusa ao interveniente acessório o direito de recorrer de sentença condenatória da parte assistida estriba-se na circunstância de aquele não ser condenado no processo, e de o prejuízo para ele, decorrente do caso julgado, “ser apenas reflexo e indirecto, materializado na acção de regresso a propor eventualmente”, (Acórdão do STJ de 24.10.2019, P1152/15), exigindo a lei para a legitimidade das partes acessórios para recorrerem, um prejuízo directo e efectivo (art. 631º/2). Reponderando a questão, afigura-se-nos decisiva a consideração de que estendendo-se ao interveniente os efeitos do caso julgado, “relativamente às questões de que dependa o direito de regresso” (art. 323º/4), aquele tem todo o interesse na improcedência da pretensão do autor da acção, já que, a acontecer, fica livre da obrigação de indemnizar numa futura acção de regresso. É uma forte razão para lhe ser reconhecida legitimidade para interpor recurso da decisão condenatória da demandada. /// Visto as conclusões das alegações das revistas, que delimitam o âmbito de apreciação deste Tribunal (arts. 635º, nº 3 e 639º, nº 1) estão em causa as seguintes questões: Recurso da Ré C ... Hospital...: - Nulidade por falta de fundamentação de facto (art. 615º, nº 1, b) do CPC); - Nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão (art. 615º, nº 1 c)); - Não verificação dos pressupostos da ilicitude, da culpa, e do nexo de causalidade da obrigação de indemnizar; - Titularidade do direito à indemnização por danos não patrimoniais; Recurso da interveniente Generali Seguros: - Valor da indemnização; Recurso da Autora: - Natureza da responsabilidade do 1º Réu; - Prescrição; - Danos indemnizáveis e quantum indemnizatório. * Se o acórdão sofre de nulidade nos termos do art. 615º, nº 1, b) e c), ex vi do art. 666º do CPC. A Recorrente imputa ao acórdão a nulidade por falta de especificação dos fundamentos de facto, a causa de nulidade prevista na alínea b) do nº 1 do art. 615º - “é nula a sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”. Esta causa de nulidade, conforme entendimento constante, verifica-se apenas quando haja uma absoluta falta de fundamentos e não quando a fundamentação é deficiente, errada ou incompleta. No caso, o acórdão encontra-se fundamentado de facto e de direito, o que a Recorrente reconhece quando o acusa de estar parcamente fundamentado (conclusão 9ª). Uma fundamentação parca não é ausência de fundamentação. Quanto à nulidade da alínea c) - “é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível” – o que se deduz das conclusões do recurso (2ª e 41ª), é a discordância da Recorrente com o acórdão quando concluiu que o 1º Réu omitiu os deveres de cuidado e diligência, o que no seu entender a matéria de facto não permite. No entanto, o juízo da Relação, podendo constituir erro de julgamento, não integra a nulidade da alínea c), pois que esta apenas se verifica quando os fundamentos apontarem num certo caminho e a decisão final tomar um sentido contrário (cf. o Ac. STJ 09.11.2017, P. 9526/10, entre muitos outros.) No caso não se verifica oposição entre os fundamentos e a decisão, pelo que carece de fundamento a imputação de nulidade ao acórdão. Improcede este fundamento da revista. /// Estamos perante uma acção de responsabilidade civil por acto médico, em que a Autora pretende ser ressarcida pelos danos de natureza patrimonial e não patrimonial por morte da sua filha, em consequência de actuação errada e negligente do 1º Réu no decorrer de intervenção cirúrgica de colecistectomia por laparoscopia em litíase vesicular em 11.07.2007, realizada nas instalações da 2ª Ré. As instâncias coincidiram em considerar que não tendo sido celebrado qualquer contrato entre a filha da Autora e o 1º Réu, a responsabilidade deste seria de natureza extracontratual e a da 2ª Ré contratual. A 1ª instância julgou a acção improcedente por não resultar da factualidade apurada a prova da ilicitude e da culpa. Diferentemente, a Relação considerou que o 1º Réu praticou um acto ilícito e culposo, mas julgou a acção quanto a ele prescrita; e condenou a 2ª Ré por responsabilidade contratual a indemnizar a Autora em €100.000,00 por danos não patrimoniais. Defende a Autora que a responsabilidade do 1º Réu é também de natureza contratual, tendo sido celebrado um contrato total com escolha de médico, pelo que a sua responsabilidade está sujeita ao prazo normal de prescrição de 20 anos. Desde já se adianta que concordamos com o entendimento das instâncias quanto à natureza da responsabilidade do Réu médico. Dogmaticamente distingue-se entre responsabilidade civil extracontratual e responsabilidade contratual ou obrigacional: na primeira está em causa a violação de deveres absolutos ou a prática de actos lícitos ou ilícitos que provoquem danos a outrem; a responsabilidade contratual pressupõe a violação de um contrato, de uma relação jurídica de natureza creditícia. No caso da responsabilidade civil dos médicos, ela, está, simultaneamente próxima do tipo da responsabilidade extracontratual e da responsabilidade contratual. Como decidido no (Ac. STJ de 19.06.2001, P01A1008), “na actuação do médico, o não cumprimento pelo mesmo dos deveres de cuidado e de protecção a que está obrigado, pode ser causa de responsabilidade contratual, na medida em que viola deveres laterais a que está contratualmente obrigado, mas também de responsabilidade delitual, na medida em a referida violação represente igualmente um facto ilícito extracontratual. Refere o Conselheiro Nuno Manuel Pinto Oliveira, in Responsabilidade e Culpa na Responsabilidade Médica, do Centro de Direito Biomético da Universidade de Coimbra, que “será extracontratual a responsabilidade dos médicos pelos actos praticados em clínicas ou hospitais privados, desde que o contrato de prestação de serviços médicos tenha sido concluído com a clínica ou com o hospital.” Entendimento este seguido no Acórdão deste STJ de 23.03.2017 (Tomé Gomes): “Na prestação de serviços de saúde no sector privado (…) há casos em que as prestações de saúde são realizadas sem a prévia ou concomitante negociação entre o prestador de serviço e o paciente, não se gerando, por isso, qualquer vínculo negocial. Daí que a ocorrência de lesão no paciente, no quadro da realização da prestação, deva ser equacionada sede de responsabilidade civil extracontratual ou delitual, nos termos dos arts. 483º e seguintes do CC. De modo idêntico decidiu o recente acórdão do STJ de 12.01.2022, (Barateiro Martins): “Nas situações em que o médico se apresenta como um auxiliar do devedor da assistência médica – como é o caso de o doente celebrar um contrato com a clínica/hospital onde o médico exerce a sua actividade – a responsabilidade será extracontratual e da clínica/hospital será contratual.” É justamente este o caso dos autos. A intervenção cirúrgica à filha da Autora realizou-se num hospital privado, e foi com este que aquela celebrou o contrato “para a operação cirúrgica de colecistectomia por laparoscopia” (nº19 da matéria de facto). Não se provou que filha da Autora tenha estabelecido um contrato adicional, com o 1º Réu, para além do que celebrou com Ré C ... Hospital.... Ora, no contrato total com escolha de médico, além do contrato com o hospital/clínica para prestação de serviços médicos e paramédicos, há um contrato adicional com um médico, com quem se acorda um pagamento específico ou extraordinário, como esclarece o douto acórdão do STJ de 28.01.2016, CJ, AcSTJ, 1º, pag. 108, (Maria Graça Trigo), invocado pela Recorrente. Assim decidiu o Ac. STJ de 01.07.2021, P. 1279/13, (Catarina Serra): “No contrato total com escolha de médico (conhecido também como contrato médico adicional), o doente escolhe o médico atendendo às suas qualidades profissionais e acorda com ele um pagamento específico ou extraordinário”. À luz do acabado de expor, não merece reparo o entendimento da Relação que qualificou a responsabilidade do 1º Réu, como extracontratual. /// Se se verificam os pressupostos gerais da responsabilidade civil, à luz do princípio geral fixado no art. 483º do CCivil: facto ilícito, culpa, dano e nexo de causalidade entre facto e dano. No que tange à responsabilidade do 1º Réu, ela pressupõe a violação da legis artis. Como referido pelo Conselheiro Nuno Manuel Pinto Oliveira, obra citada, pag. 5: “Entre os pontos firmes na doutrina e na jurisprudência portuguesa está o de que o sistema da responsabilidade civil dos médicos deve representar-se como um sistema de responsabilidade subjectiva, ou seja, de responsabilidade por factos ilícitos e culposos – o médico só responde desde que a violação de um dever seja ilícita e desde que a violação ilícita de um dever lhe seja imputável, por dolo ou por negligência. (…). O STJ sublinha que a responsabilidade do médico pressupõe a negligência, a “violação das legis artis”, e só tem lugar quando, por indesculpável falta de cuidado, o médico deixe de aplicar os conhecimentos científicos e os procedimentos técnicos que, razoavelmente, face à sua formação profissional, lhe eram exigíveis.” Os conceitos de ilicitude e de culpa são diferentes. Enquanto o juízo de ilicitude é um juízo de censura dirigido a um comportamento (acção ou omissão), o juízo de culpa é um juízo de censura dirigido a uma pessoa (ao agente ou omitente) por ter adoptado um comportamento ilícito (desconforme com o direito), quando podia e devia ter adoptado um comportamento lícito – conforme ao direito. É dizer que, “O conceito de ilicitude indica que houve algo de errado na actuação do médico e o conceito de culpa, que aquilo que houve de errado na actuação do médico deve ser-lhe imputado – por dolo ou, como é praticamente a regra, por negligência.” (Conselheiro Nuno Oliveira, obra e local citado). Revertendo ao caso dos autos. Na 1ª instância a improcedência da acção foi assim justificada: A hemorragia foi originada pela laceração tangencial do ramo direito da veia porta – nº 46 dos Factos Provados. E foi esta hemorragia que levou à rápida conversão da laparoscopia em laparotomia – nº 47 dos Factos Provados. Como se vê dos nºs 48 a 56 dos Factos Provados, o Dr. BB e a equipa que o acompanhava praticaram os atos médicos que a situação impunha. Não conseguindo estancar a hemorragia, recorreram aos cirurgiões especializados do Hospital ..., para onde fizeram transportar a doente nas condições que o estado da paciente impunha – nº 57 e seguintes dos Factos Provados. Prova-se, pois, que o Dr. BB adotou a conduta devida em tais circunstâncias – nºs. 106 a 115 dos FP. Pelo que inexiste ato ilícito, no sentido de atos não devidos, por não conformes às legis artes. E também não parece que exista culpa, no sentido de simples negligência. A laceração tangencial do ramo direito da veia porta que desencadeou a hemorragia aconteceu na fase da laparoscopia – nº 46 dos Factos Provados. Esta hemorragia é que deu origem à decisão da conversão da laparoscopia em laparotomia, que foi decisão correta – nº 106 dos Factos Provados – e às constantes dos nºs. 107, 108 e 109 dos Factos Provados. Decisão correta foi também a transferência para o Hospital ... – nº 111 dos Factos Provados. A hemorragia teve lugar, inesperadamente, na tentativa de mobilizar o corpo/infundíbulo da vesícula – nº 45 dos Factos Provados. E foi devida, repete-se, à laceração tangencial do ramo direito da veia porta – nº 46 dos Factos Provados. E o ponto está aqui: a laceração tangencial do ramo direito da veia porta foi devida a culpa do 1º R.? Não está demonstrado que o tenha sido. E, repousando a obrigação do Dr. BB na responsabilidade extracontratual, por ser terceiro em relação ao contrato celebrado entre a C ... Hospital... e a CC, à A. cumpria fazer a prova da culpa, um dos elementos constitutivos da responsabilidade delitual – art. 483.º do C. Civil – que são (lembra-se): o facto, a ilicitude, o dano, o nexo de causalidade entre o facto e o dano (imputação objetiva) e a culpa, ou seja, o nexo de imputação subjetiva do facto ao agente ou lesante. A prova da culpa cumpre ao lesado – nº 1 do art. 487.º do C. Civil. Não a tendo feito, como lhe cumpria, os RR. têm de ser absolvidos de todos os pedidos.” Dissentindo deste entendimento, ponderou a Relação: “Como existiu uma relação contratual entre a filha da autora e a ré C ... Hospital... há que convocar o preceituado no art. 800º nº 1 do CC sendo, como se refere na decisão recorrida, a referida ré responsável pelos actos do 1º réu como se tais actos fossem praticados por ela própria. Como se está no contexto da responsabilidade contratual a culpa presume-se (art. 799º nº 1 do CC) pelo que no caso em apreço há presunção de culpa a onerar a clínica médica referida. Incumbia ao 1º réu, adstrito a uma obrigação de meios, o dever de tudo fazer para, no decurso da cirurgia que então realizava, não afectar a integridade física da filha da autora o que não aconteceu (houve laceração extensa tangencial da veia porta direita) pelo que demonstrado está o pressuposto da ilicitude do direito à indemnização consubstanciado na falta de cumprimento do dever objectivo de diligência ou de cuidado que emana da leges artis. Por outro lado, não se demonstra, como o atesta a laceração da veia porta, que o 1º réu tenha providenciado, na circunstância, todos os cuidados que a colecistectomia impunha designadamente avaliando todas as condições locais da paciente e promovendo uma cuidadosa intervenção no manuseamento dos instrumentos laparoscópicos pelo que não se mostra ilidida a supra referida presunção de culpa. Acresce que, mesmo sem presunção de culpa, que, como se disse, não se mostra ilidida, dos factos dados como provados emana a responsabilidade do 1º réu no evento em questão porquanto tendo a filha da autora uma veia porta de calibre normal (item 5 dos factos provados) a laceração extensa tangencial da mesma (item 65 dos factos provados) só é explicável, conforme item 103 dos factos provados, por tração excessiva ou intempestiva sobre o infundíbulo vesicular (porventura com aderências) movimento esse que deveria ter sido prevenido por forma a não afectar a veia porta (cuja lesão em cirurgias deste tipo é rara). Incide, por isso, sobre a ré C ... Hospital... a obrigação de indemnizar a autora pelos danos de natureza não patrimonial sofridos pela sua filha de quem é herdeira.” Que dizer? Do acervo factual apurado resulta de relevante o seguinte: - Por sofrer de colecistite, CC submeteu-se, na manhã de 11 de Julho de 2007, a intervenção cirúrgica de colecistectomia (remoção da vesícula) por laparoscopia em litíase vesicular; - Durante a laparoscopia surgiu uma hemorragia que obrigou a converter de emergência a laparoscopia em laparotomia (operação de barriga aberta); - Foi ao mobilizar o corpo/infundíbulo da vesícula que surgiu, de forma inesperada, cerca das 10,00 horas, uma hemorragia; - Esta hemorragia foi originada pela laceração tangencial do ramo direito da veia porta; - A laceração tangencial do ramo direito da veia porta, referida em 47 dos Factos Provados, teve como causa provável uma tração excessiva ou intempestiva, mas acidental, sobre o infundíbulo vesicular, tendo, eventualmente, contribuído a existência de aderências peri-vesiculares a esse nível, - Devido à dificuldade em controlar a hemorragia, o 1º Réu decidiu transferir a doente para o Hospital ... no ..., uma unidade de referência em cirurgia hepatobiliopancriática, onde chegou pelas 14,48h e foi operada às 16,30H, desse mesmo dia, tendo sido verificado: i) laceração extensa tangencial da veia porta direita 1 cm acima da bifurcação com hemorragia ativa; ii) laceração hepática profunda a nível do leito vesicular; iii) secção completa da via biliar principal a nível do colédoco abaixo da bifurcação; - No dia 13.07.2007, procedeu-se a nova intervenção, tendo-se constatado a ausência de hemorragia, e necrose do fígado direito por falta de irrigação; - Devido ao agravamento clínico, com falência hepática, foi realizado transplante hepático urgente no dia 18 daquele mês; A 12.06.2009, a doente foi novamente operada por anastomose biliar realizada no transplante; - A laceração hepática a nível do leito vesicular e a secção completa da via biliar principal a nível colédoco abaixo da bifurcação foram efectuadas depois da transformação da laparoscopia em laparotomia; - E foram produzidas durante a colecistectomia de emergência, atendendo que a violência da hemorragia, obscurecendo o campo operatório não permitisse uma definição correta das estruturas e planos a dissecar; De tudo isto resulta, em breve síntese: no decurso de uma intervenção cirúrgica por laparoscopia destinada a remover a vesícula da doente, o 1º Réu lacerou o ramo direito da veia porta, o que originou uma forte hemorragia; a necessidade urgente de acesso ao local da hemorragia levou o Réu a converter a laparoscopia em laparotomia, uma decisão correcta (facto nº 106), e é já após esta conversão que ocorre a laceração hepática, a secção completa da via biliar, num contexto de forte hemorragia que obscurecia o campo operatório. No Hospital ... para onde a doente foi levada no mesmo dia, foi constatado a necrose do fígado direito, por falta de irrigação sanguínea, o que determinou a necessidade de transplante hepático. Quase dois anos depois, “quando se encontrava na enfermaria dos transplantados sofreu uma insuficiência hepática aguda, que motivou o internamento nos Cuidados Intensivos, num contexto de choque séptico em doente já transplantada hepática, que evoluiu para falência multiorgânica e veio a determinar a sua morte em 10.07.2009.” (facto nº 102). Pois bem. De um modo geral tem-se entendido que no âmbito de um contrato de prestação de serviço médico de remoção de um órgão, o profissional assume uma obrigação de resultado quanto à referida remoção, e uma obrigação de meios quanto à aplicação da técnica adequada e conveniente a esse resultado, isto é, de observância diligente e cuidadosa das regras da ciência e da arte médicas (leges artis). No caso vertente, a obrigação de resultado foi cumprida, com a remoção da vesícula. Onde o problema se coloca é na execução de obrigação. Provou-se que o 1º Réu provocou uma lesão no corpo da filha da Autora, que consistiu na laceração da veia porta, que desencadeou a hemorragia que esteve na origem de tudo; a laceração ocorreu durante a execução do contrato destinado à realização do acto médico de remoção da vesícula. Objectivamente ocorreu uma lesão da integridade física da filha da Autora, não exigida pelo cumprimento do contrato; a ilicitude está verificada. (Ac. STJ de 01.10.2015, (Maria dos Prazeres Beleza). Provada a ilicitude, há que indagar sobre a verificação do requisito culpa. A culpa em sede de responsabilidade médica, traduz-se na omissão de diligência e competências exigíveis. Há assim culpa quando o médico, na sua actuação, se desvia do modelo de comportamento – em termos de prudência, competência e atenção – que ele podia e devia ter adoptado, desvio que, como sublinhado no citado acórdão do STJ de 12.01.2022, se pode manifestar por 3 formas: - negligência, entendida como omissão dos cuidados devidos; - imprudência, que se caracteriza pela adoção imponderada de condutas arriscadas e inadequadas; - imperícia, que se caracteriza pela ausência dos saberes teóricos, da capacidade técnica e da destreza prática adequada ao ofício que profissionalmente exerce. Em sede de responsabilidade extracontratual, como é o caso do 1º Réu, incumbe ao lesado a prova de culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpabilidade (art. 487º, nº 1 do CCivil). Importa ainda lembrar que o modelo padrão para reconhecer o carácter desvalioso do comportamento do agente – segundo o critério do art. 487º/2 do CC, segundo o qual, a culpa é avaliada pela “diligência do bom pai de família, em face das circunstâncias do caso” – que é o do bom profissional da mesma categoria (no caso, um médico-cirurgião), a actuar perante uma facti-species com os contornos daquela em que o concreto médico actuou. No caso sub judice, provou-se que a hemorragia violenta ocorreu por força da laceração da veia porta, o que teve como causa provável uma tracção excessiva ou intempestiva, mas acidental, sobre o infundíbulo vesicular (facto nº 103). É este facto, a intensidade da hemorragia, que determina a decisão (correcta, facto nº 107) de converter a laparoscopia em laparotomia. Se no caso da laceração hepática – que vem a ocorrer durante a colecistectomia de emergência, quando o campo operatório não era visível pela violência da hemorragia – não vemos que seja possível fazer um juízo de censura ao 1º Réu, já o mesmo não sucede com a laceração da veia porta, que só por imperícia, falta de cuidado, será explicável. Uma laceração ainda que acidental revela falta de cuidado, o que é bastante para ter por verificada a negligência. É que o conhecimento da gravidade dos riscos e do seu carácter significativo constitui um elemento que é controlado pelo médico especialista, que se presume dominar as leges artis e o estádio da ciência. E não nos parece haver dúvidas que foi a laceração da veia porta a causa dos problemas de saúde subsequentes da doente e que vieram a determinar a sua morte: a laceração hepática, necrose do fígado por falta de irrigação sanguínea, necessidade de transplante, complicações relacionadas com estenose da anastomose biliar realizada no decurso do transplante hepático, que determinaram que fosse novamente operada em 12.06.2009, vindo a falecer menos de um mês depois, na sequência de uma insuficiência hepática aguda. Como é sabido, no âmbito da responsabilidade civil, em qualquer das suas modalidades, a lei portuguesa consagra a teoria da causalidade adequada (art. 563º do CC). Para a teoria da causalidade adequada, na vertente negativa, que é a seguida no nosso direito (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 9ª edição, pag. 921 e ss), o facto que actuou como condição do dano deixa de ser considerado como causa adequada, quando para a sua produção tiverem concorrido decisivamente circunstâncias anormais, excepcionais, que intercederam no caso concreto. Esta vertente negativa da causalidade adequada não pressupõe a exclusividade do facto condicionante do dano, nem exige que a causalidade tenha de ser directa e imediata, pelo que admite não só a concorrência de outros factos condicionantes, contemporâneos ou não, como ainda a causalidade indirecta, bastando que o facto condicionante desencadeie outro que directamente suscite o dano. É causa jurídica de um dano no paciente a conduta (culposa) do médico, que segundo um juízo a posteriori formulado se revela idónea para a produção de tal resultado (Álvaro Cunha Rodrigues, Reflexões em torno da responsabilidade civil dos médicos, in Revista da Faculdade de Direito da UCP 191-198). Á luz destes princípios, entendemos que se verifica nexo de causalidade entre o facto culposo do Réu, a laceração da veia porta, e a morte da filha da Autora, embora ocorrida quase dois anos depois. Concorda-se, por conseguinte, com o juízo da Relação sobre a existência de nexo de causalidade entre o facto culposo e o dano. Mas não a acompanhamos quando concluiu pela prescrição da acção relativamente ao 1º Réu, por decurso do prazo de 3 anos a que alude o nº 1 do art. 498º do CC. É que aquele prazo de 3 anos é inaplicável quando “o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo”, sendo este que se aplica (nº 3 do art. 498º). Ora o comportamento do Réu enquadra-se na previsão do nº 2 do art. 150º do Código Penal – “As pessoas indicadas no número anterior (médicos, designadamente), que em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos violando as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou saúde são punidos com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa à 240 dias, se pena mais grave não lhes couber por força de outra disposição legal.” É de cinco anos o prazo de prescrição de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a um ano, mas inferior a cinco anos – art. 118º, nº 1, c) do CP. Sendo de 5 anos e não de 3 o prazo de prescrição do direito exercido contra o 1º Réu, não se verifica a prescrição: quando o Réu foi citado em 05.03.2013, ainda não haviam decorrido 5 anos sobre a morte da CC. Quanto à 2ª Ré a sua responsabilidade, de natureza contratual, não sofre dúvidas. Ela decorre do art. 800º, nº 1 do CCivil: “O devedor é responsável perante o credor pelos actos dos seus representantes legais ou das pessoas que auxilie para o cumprimento da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo devedor.” “Auxiliares são quaisquer terceiros de que o devedor necessita ou aos quais recorre com vista à prestação a que se encontra vinculado” (Cláudia Madaleno, Revista de Direito Civil, ano IV (2019), pag. 122.) Como se refere no supracitado acórdão de 28.01.2016, “o art. 800º abrange tanto a conduta de auxiliares dependentes como a conduta de auxiliares independentes”, pelo que no caso concreto é indiferente determinar qual o vínculo existente entre o 1º Réu e 2ª Ré, porque quer se trate de contrato de trabalho quer de outra natureza, o regime da responsabilidade do Réu Hospital é o mesmo. A razão de ser do art. 800º, segundo Vaz Serra, BMJ, nº 72, pag. 270, é a seguinte: “O devedor que se aproveite de auxiliares no cumprimento, fá-lo a seu risco e deve, portanto, responder pelos actos dos auxiliares, que são apenas um instrumento seu para o cumprimento. Com tais auxiliares alargaram-se as possibilidades do devedor, o qual, assim tira daí benefícios, deve suportar os prejuízos inerentes à utilização deles.” /// Vejamos agora quais os danos indemnizáveis e respectivo montante. Considerou o acórdão recorrido que há apenas um dano a indemnizar – os danos não patrimoniais sofridos pela falecida – que num juízo de equidade fixou em €100,000,00, tendo condenado a Ré C ... Hospital... a pagar a indemnização à Autora como herdeira da sua filha. A Recorrente C ... Hospital... defende que a Autora não tem direito à indemnização uma vez que se provou que a falecida vivia em união de facto há 14 anos com DD, e o estatuído no nº3 do art. 496º do CCivil, que, com referência aos danos não patrimoniais, estabelece que “se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior, cabe, em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes.” Mas não lhe assiste razão. Estatui o art. 1º da Lei nº 7/2001 de 11 de Maio – diploma que adopta medidas de protecção das uniões de facto – que “a união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos.” No caso presente, o que resultou provado (ponto 60) é que DD se identificou perante o 1º Réu como “marido”, e que viveu maritalmente com a CC durante 14 anos. Trata-se de uma afirmação cuja veracidade não está estabelecida, não estando, pois, provado, que a relação entre a CC e o DD preenchia as condições legais para ser considerada “união de facto.” Acresce que a Lei nº 23/2010 de 30.08, que alterou o art. 496º do CC, e que colocou o companheiro de facto na posição privilegiada que ora ocupa na hierarquia das pessoas com direito a indemnização por morte da vítima, é posterior ao decesso da CC, sendo a sua eficácia ex nunc (Acórdão do STJ de 08.03.2012), pelo que a nova redação do nº 3 do art. 496º não se aplica ao caso dos autos. Não vem questionado que a falecida sofreu de danos não patrimoniais, nem que os mesmos assumem gravidade bastante para justificarem a indemnização, como exige o nº 1 do art. 496º do C. A discordância resume-se ao quantum indemnizatório, pretendendo a Recorrente que o a indemnização não deve exceder €60.000,00. A falecida sofreu danos de natureza não patrimonial de indiscutível gravidade, demonstrada pelas várias intervenções cirúrgicas a que foi sujeita, esteve 13 dias em coma induzido, os internamentos hospitalares, a necessidade de se deslocar mensalmente durante quase dois anos ao H..., as dores físicas e morais, e as limitações físicas e na sua vida quotidiana, que os pontos 81 a 83 e 120 a 123 evidenciam. Tendo presente os valores habitualmente fixados pela jurisprudência, afigura-se-nos excessivo o valor de €100.000,00 e mais curial fixar a indemnização em €40.000,00. Peticionou ainda a Autora indemnização pela perda do bem vida, no valor de €150.000,00, e de €75.000,00 como compensação do dano moral próprio. Este pedido foi considerado prejudicado por se ter julgado prescrita a acção contra o 1º Réu. Com a alteração do acórdão, cumpre conhecer dos mesmos. A tutela do direito à vida, material e valor ativamente o bem mais importante, encontra-se reconhecido no art. 70º do CC, e no art. 24º da Constituição da República Portuguesa. Nesta conformidade, é hoje pacífico na jurisprudência, sobretudo a partir do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.03.1971, e sem prejuízo do direito de indemnização por danos não patrimoniais em vida pelo falecido, que há um direito autónomo, nos termos consignados no art. 496º do CC, abarcando, por um lado, a indemnização pela perda da vida, e, por outro, a indemnização pelos danos não patrimoniais que a morte é susceptível de provocar aos titulares do direito referidos nos nºs 2 e 3, daquele normativo. Na aferição do quantum a atribuir, necessariamente com apelo a um julgamento segundo a equidade, o tribunal de recurso deve apreciar, essencialmente, se foram observados, os critérios jurisprudenciais que generalizadamente vêm sendo adoptados, de molde a não pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade, dando assim satisfação ao comando legal do art. 8º, nº 3, CC. Ora, da análise da jurisprudência do STJ, colhe-se a orientação de que a indemnização pela perda do bem vida se situa, em regra, em valores que oscilam entre os €50.000,00 e os €80.000,00, como dá nota o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.03.2021, P. nº 3710/18.2T8FAR.E1.S1, que vimos seguindo de perto. Nesta conformidade, afigura-se-nos adequado, fixar a indemnização pela perda do direito à vida em €70.000,00. Quanto aos danos morais próprios da Autora com a morte da filha, num juízo equitativo, fixa-se a título de compensação a indemnização de €20.000,00. Pede ainda a Autora, enquanto herdeira da sua filha, a condenação dos RR a pagarem-lhe, a título de salários que aquela deixou de auferir, a quantia de €15.840,00. Fundamenta este pedido na circunstância de se ter provado que a CC trabalhava para a empresa “J..., L.da” e auferia o vencimento ilíquido de €990,00 em Agosto de 2008. Todavia, não se provaram factos que sustentem este pedido indemnizatório. Provou-se que a filha da Autora trabalhou consecutivamente entre 17 de Maio de 2008 e 06 de Janeiro de 2009 (nº 84), período em que recebeu o salário da sua entidade patronal. E relativamente ao período entre Agosto de 2007 e Junho de 2009 recebeu a título de subsídio de doença do Instituto da Segurança Social a quantia de €6.169,00. Em suma, a Autora não logrou provar que a sua filha tenha sofrido o dano patrimonial que invoca, o que conduz à improcedência do recurso nesta parte. Vejamos por último o pedido de condenação dos RR a pagarem-lhe a quantia de €93.555,00, que corresponde a ¼ da quantia de €374.220,00 – montante dos salários que Autora auferiria até à reforma – com fundamento no art. 495º, nº 3 do CCivil. Este artigo, com a epígrafe “Indemnização a terceiros em caso de morte ou lesão”, estatui no nº 3: “Têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.” Nesta norma, a lei, excepcionalmente, em caso de morte, reconhece o direito a indemnização por danos patrimoniais futuros, iure proprio, às pessoas que podiam exigir alimentos do lesado directo ou àquelas pessoas a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural. Em anotação a este artigo escreve Ana Prata, Código Civil anotado, Almedina, pag. 644, que “para que se tenha direito a indemnização, segundo o nº 3, não é indispensável que se estivesse a exercer o direito legal a alimentos, sendo bastante a prova de que se está em condições de o exercer.” Esta ilustre Jurista dá nota da divergência na jurisprudência do STJ quanto ao entendimento da prova que é necessária para o exercício deste direito. Assim, decidiram que o alimentando tem de provar a necessidade de alimentos os acórdãos de 14.07.2009 (Sebastião Póvoas), e de 21.05.2009 (Salvador da Costa); sustentando que tal prova é dispensável os acórdãos de 04.05.2010 (Salazar Casanova) de 13.04.2011 (Garcia Calejo), e de 10.01.2012, (Azevedo Ramos). Independentemente da posição que se tomar nesta questão, é, todavia, necessário fazer a prova de que à data do facto danoso se estava em situação de legalmente exigir os alimentos ao lesado (Ac. STJ de 20.10.2009, P. 85/07). Se é certo que os filhos estão vinculados à prestação de alimentos, não é menos certo que “os alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los” (art. 2004º, nº 1 do CC). Ora, a factualidade apurada não permite concluir que a Autora estava em situação de poder exigir alimentos à filha, não apenas por não ter provado a necessidade de alimentos, nem a previsibilidade dos mesmos, como não provou que aquela estava em condições de lhos prestar, atendendo a que auferia pouco mais que o salário mínimo nacional. Donde que a pretensão da Autora de serem os RR condenados a pagarem-lhe ¼ da totalidade das remunerações que a sua filha auferiria até à reforma, carece de total fundamento. E dada a ausência de factos alegados e provados, não há elementos que permitam proferir uma condenação com base na equidade, nos termos do art. 566º, nº 4 do CC. Da mesma forma não resultaram provados factos que sustentem o pedido indemnizatório por despesas várias, designadamente por consultas de psiquiatria, que a Recorrente pediu que fosse fixado equitativamente em €3.000,00, pelo que não pode ser atendido. Decisão. Em face do exposto, decide-se: Julgar procedente em parte o recurso subordinado da Autora e, em consequência, acorda-se em alterar a decisão recorrida, condenando-se os RR, solidariamente, a pagarem à Autora, na qualidade de herdeira da falecida CC, as quantias de €40.000,00 por danos morais próprios da falecida, €70.000,00 a título de indemnização pela perda do direito à vida, e a título de danos morais próprios €20.000,00, no valor total de €130.000,00; - Negar provimento às revistas da Rés C ... Hospital... e da Genearali Seguros. As custas da acção e do recurso serão suportadas pelas partes, na proporção do decaimento. Sumário: I - Na responsabilidade civil por acto médico, podem conviver a responsabilidade do Hospital privado com quem a doente celebrou um contrato para operação cirúrgica de colecistectomia por laparoscopia, que é de natureza contratual, com a responsabilidade extracontratual do médico quando no decurso da intervenção cirúrgica provoca uma lesão na saúde da doente, não exigida pelo cumprimento do contrato, o que é suficiente para revelar a prática de um acto ilícito, e se provam os demais pressupostos da responsabilidade civil; II - Para se ter como culposa a conduta do médico não é necessário que o acto lesivo da saúde da doente – a laceração da veia porta, causadora de hemorragia intensa que esteve na origem de falência hepática e necessidade de um transplante de fígado – tenha sido intencional; III - A culpa na responsabilidade médica traduz-se na omissão de diligência e competências exigíveis, que fica demonstrada quando se prova que o laceração da veia porta teve como causa provável tração excessiva ou intempestiva, mas acidental, sobre o infundíbulo vesicular, o que só pode explicar-se por falta do cuidado exigível ou imperícia na execução do acto médico. Lisboa, 31.03.2022
Ferreira Lopes (relator) Manuel Capelo Tibério Nunes da Silva |