Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | BEATRIZ MARQUES BORGES | ||
Descritores: | AMEAÇA ELEMENTO SUBJECTIVO DOLO CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE | ||
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Data do Acordão: | 02/22/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I. A locução «o arguido atuou sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal» não é facto que careça de ser narrado autonomamente na acusação ou descrito nos factos provados na decisão final (embora o possa ser de modo a evitar recursos como o interposto neste processo), quando se está perante um crime do direito penal clássico, como sucede no caso concreto de ameaça dirigida propositadamente a agentes da PSP em exercício de funções e fardados, em que o arguido proferiu as seguintes expressões: “Amanhã apanho-vos na rua e vão levar tanta porrada”, «vou-te apanhar e levar para um tete-a-tete na sala de combate» e «vou-vos foder. Isto não fica assim. Eu parto isto tudo!» II. A omissão da fórmula estereotipada da sentença «atuou conscientemente sabendo que a sua conduta era proibida por lei» não pode justificar a absolvição do arguido, porquanto essa locução alicerça-se, neste tipo de crime (ameaça agravada), apenas na experiência da vida e da normalidade, sendo certo ter ficado provado que o arguido era sabedor de aquelas expressões serem adequadas a causar receio aos ofendidos. III. Em casos como o apontado a consciência de o arguido ter agido bem sabendo tratar-se de conduta proibida por lei decorre do preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do ilícito típico (dolo do tipo: elemento intelectual e volitivo), tendo a decisão recorrida efetuado uma errada interpretação do AUJ 1/2015. (Sumário elaborado pela relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I. RELATÓRIO 1. Da decisão No Processo Comum Singular n.º 11/21.2PBFAR, do Tribunal Judicial da Comarca Faro, Juízo Local Criminal de Faro, Juiz 2, submetido a julgamento por acusação do MP, foi o arguido TV absolvido da prática, em autoria material e na forma consumada, de três crimes de ameaça, previstos e puníveis pelo artigo 153.º, n.º 1 do CP, com a agravação ínsita na alínea c) do n.º 1 do artigo 155.º, do mesmo diploma legal. 2. Do recurso 2.1. Das conclusões do Ministério Público Inconformado com a decisão o MP interpôs recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição): “1 – A sentença recorrida deu como provados todos os factos constantes da acusação, absolvendo, porém, a final, o arguido, por ter considerado que, nesses, o elemento subjectivo estava descrito de forma insuficiente para alicerçar uma condenação; 2 – Com efeito, o Tribunal a quo considerou que a ausência da expressão “sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei”, ou outra, equivalente, se reporta a falta de elemento subjectivo, que determina, na sua visão, a impossibilidade de condenação; 3 – Ao fazê-lo, incorreu o Tribunal em violação do disposto nos artigos 13.º, 14.º e 17.º do Código Penal; 4 – A nosso aviso, a questão prende-se com consciência da ilicitude e não com elemento subjectivo de crime, mais concretamente com o dolo do tipo previsto no artigo 14.º do Código Penal; 5 – O dolo previsto no artigo 14.º do Código Penal abrange o elemento cognitivo e volitivo, ao passo que a consciência da ilicitude não exclui o dolo, mas antes a culpa, quando não censurável, nos termos do disposto no artigo 17.º do Código Penal; 6 – Assim, a expressão em causa, por não contender com o dolo, tal como configurado pelo artigo 14.º do Código Penal, não tem de constar do libelo acusatório e, consequentemente, dos factos provados, sentido em que o Tribunal a quo devia ter interpretado as normas em questão; 7 – A isto acresce que o Ministério Publico considera que, ainda que assim se não entendesse, não seria aplicável a jurisprudência fixada pelo AFJ 1/2015, visto que em tal aresto não foi apreciada a necessidade de descrição autónoma da consciência da ilicitude; 8 – Por tido, no mesmo sentido, se tem pronunciado vasta jurisprudência, designadamente o aresto desse Tribunal da Relação de Évora, relatado por António João Latas, no processo 251/15.3GESTB.E1, disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/980789832d3b6502802583c90038e4e3?OpenDocument; 9 - No mesmo sentido, vide ainda, exemplificativamente, os seguintes arestos: - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, relatado por Maria Dolores da Silva e Sousa, no processo 833/15.3SMPRT.P1, de 12 de Julho de 2017, disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/-/06DC3357075322E8802581750046E07B ; - Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, relatado por Anselmo Lopes, no processo 1245/04-1, de 6 de Outubro de 2004, disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/-/2F3510EDC81C20EF80256F6300513A1B ; - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, relatado por Maria Dolores da Silva e Sousa, no processo 333/16.4T9VFR.P2, de 13 de Junho de 2018, disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/d47cca8ccc1d4ffa802582b7003c8052?OpenDocument ; - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, relatado por Eduarda Lobo, no processo 202/19.6GCVFR.P1, de 28 de Outubro de 2020, disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/JTRP.NSF/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/462596dca260ead780258623003dd8dd?OpenDocument. 10 – Pelo que, deverá ser julgado procedente o presente recurso, revogando-se a sentença recorrida e condenando-se o arguido pelos factos considerados como provados, aplicando-se as penas correspondentes aos crimes por ele cometidos, assim se fazendo a inteira e Acostumada Justiça!”. 2.2. Notificado do recurso interposto pelo MP o arguido silenciou. 2.3. Do Parecer do MP em 2.ª instância Na Relação a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer no sentido de ser julgada a improcedência do recurso interposto pelo MP. 2.4. Da tramitação subsequente Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP. Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência. Cumpre apreciar e decidir. II. FUNDAMENTAÇÃO 1. Objeto do recurso De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso. 2. Questão a examinar Analisadas as conclusões de recurso a questão a conhecer consiste em saber se a não inserção na acusação da expressão “o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal” implica a absolvição do arguido em julgamento. 3. Apreciação 3.1. Da decisão recorrida Definida a questão a tratar, importa considerar o que se mostra decidido pela instância recorrida. 3.1.1. Factos provados na 1.ª Instância O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição): “ 1. No dia 3 de janeiro de 2020, pelas 00h10, os agentes da PSP de Faro, BA, CA e DA deslocaram-se à residência do arguido sita na Rua (…) em Faro, para acorrer a uma situação de altercação familiar em que era interveniente o arguido. 2. Durante a intervenção dos agentes, que se encontravam devidamente fardados, o arguido, dirigindo-se aos agentes BA e DA, disse “vou-vos foder. Isto não fica assim. Eu parto isto tudo!”. 3. Transportado para a esquadra da PSP de Faro, o arguido neste local, dirigindo-se aos três agentes da PSP, disse “Amanhã apanho-vos na rua e vão levar tanta porrada”. 4. De seguida, dirigindo-se apenas ao agente BA, o arguido disse “vou-te apanhar e levar para um tete-a-tete na sala de combate”. 5. Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, ciente que os três ofendidos eram agentes da PSP no exercício das suas funções, e, não obstante, quis dirigir-lhes as expressões indicadas, sabedor que eram adequadas a causar receio aos três ofendidos. Mais se apurou que, 6. O arguido é casado e tem 2 filhos, com 23 e 13 anos de idade. 7. O arguido, a esposa e os dois filhos vivem em casa própria. 8. O arguido não tem trabalho certo dedicando-se a alguns biscastes esporádicos de construção civil, atividade da qual retira um rendimento incerto. 9. A esposa do arguido faz alguns trabalhos de limpezas, do que retira também um rendimento incerto. 10. O arguido é considerado, pelos amigos, como pessoa humilde e honesta, não lhe sendo conhecidos conflitos com ninguém. 11. Do certificado de registo criminal do arguido nada consta.“ 3.1.2. Factos não provados na 1.ª instância O Tribunal a quo considerou se provaram todos os factos com relevo para a decisão da causa, não tendo sido enunciados factos não provados. 3.1.3. Da fundamentação da convicção pelo Tribunal recorrido O Tribunal motivou a factualidade provada e não provada pela seguinte forma: “Para formar a sua convicção quanto aos factos provados e não provados supra elencados, o tribunal atendeu à prova documental junta aos autos, bem como à prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, analisada e conjugada, criticamente, à luz das regras da experiência comum, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º do Código de Processo Penal). Vejamos, concretamente. Para prova dos factos elencados nos pontos 1 a 4 dos factos provados atendeu-se, desde logo, às declarações prestadas pelo arguido em audiência de julgamento, o qual admitiu a factualidade em questão, à exceção das concretas expressões que lhe são imputadas, dizendo que se encontrava alcoolizado e não se recorda do que disse naquelas circunstâncias. Mais se valorou o teor do auto e notícia de fls. 4 e 5 junto aos autos, cujo teor foi confirmado pela testemunha BA, um dos agentes da PSP com intervenção nos factos. Esta testemunha, tendo confirmado as circunstâncias de tempo e lugar em apreço, esclareceu a concreta atuação por parte do arguido e as expressões pelo mesmo proferidas, bem como os destinatários das mesmas, o que fez de forma segura, espontânea, coerente e isenta, pelo que mereceu total credibilidade, permitindo ao tribunal alcançar convicção segura quanto à matéria de facto em questão. Ora, apurada a concreta atuação imputada ao arguido bem como as circunstâncias em que a mesma teve lugar, dúvidas não restam, à luz das regras da experiência e da normalidade, que o arguido assim atuou de forma livre, voluntária e consciente, ciente que os três ofendidos eram agentes da PSP no exercício das suas funções, e, não obstante, querendo dirigir-lhes as expressões acima referidas, sabedor que eram adequadas a causar receio aos três ofendidos – ponto 5 dos factos provados. Com efeito, tratando-se de elementos da vida interior do agente e não sendo os mesmos admitidos pelo próprio, a sua prova terá de resultar, como sucede no caso em presença, de dados concretos que, com muita probabilidade, revelam aqueles factos internos, em conjugação com as regras da experiência e daquele que é o padrão de atuação do homem médio. Relativamente à situação familiar e socioeconómica do arguido – pontos 6 a 9 dos factos provados –, o tribunal valorou as declarações prestadas pelo arguido, as quais nos mereceram, nesta parte, credibilidade. Já a prova da matéria de facto contida o ponto 10 dos factos provados assentou nos depoimentos prestados pelas testemunhas EA e FA, respetivamente, vizinho e amigo e amiga da esposa do arguido, tendo ambos atestado a factualidade em questão, de forma segura e verdadeira, não ocorrendo qualquer circunstância que nos leve a duvidar da mesma. A ausência de antecedentes criminais – ponto 11 dos factos provados –, decorre do teor do certificado de registo crimina junto a fls. 148.”. 3.1.4. Da fundamentação de direito pelo Tribunal recorrido O Tribunal a quo fundamentou de direito pela seguinte forma: “Ao arguido é imputada a prática, em autoria material e na forma consumada, de três crimes de ameaça agravada, previstos e punidos pelos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea c), todos do Código Penal. Dispõe o artigo 153.º, n.º 1, do Código Penal, que “quem ameaçar outra pessoa com a prática de um crime contra a vida, contra a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”. O tipo objetivo deste ilícito consiste na comunicação, verbal ou escrita, a um destinatário, de uma mensagem com um significado da prática futura de um mal contra o destinatário ou contra um terceiro que se encontre na mesma situação de perigo do destinatário, ou numa situação de proximidade existencial da pessoa do destinatário. Ameaçar é anunciar o propósito de fazer mal a alguém. Pressupondo o conceito de “ameaça” um mal que constitua crime – crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor –, que seja futuro e, além disso, que a ocorrência desse mal futuro dependa (ou apareça como dependente) da vontade do agente. Exige, ainda, o tipo legal deste crime que a ameaça seja adequada a provocar no seu destinatário medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação. No que se refere ao tipo subjetivo do ilícito em questão, a lei exige o dolo, em qualquer das suas modalidades: direto, necessário ou eventual (artigo 14.º do Código Penal), traduzido, este, no conhecimento de todas as circunstâncias que compõe o tipo e na livre determinação do agente de praticar o facto com o conhecimento do respetivo desvalor. Aqui chegados, desde já se diga que a acusação proferida nos autos não contém todos os elementos necessários a, uma vez provados, se poder concluir pelo preenchimento do tipo subjetivo do ilícito em questão. Com efeito, a acusação deduzida nos autos é omissa quanto ao elemento subjetivo do tipo de crime pelo qual vem o arguido acusado, pois que ainda que se alegue que o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, nada se refere quanto ao conhecimento de que a sua atuação era proibida e punida por lei penal. Tal alegação factual, ou outra de idêntico teor, é essencial para que se verifique o preenchimento do elemento subjetivo do tipo e, consequentemente, a responsabilização do arguido. A este respeito, veja-se, por todos, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19.06.2017, onde se pode ler, além do mais, que «A alegação de que a arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal não é inócua e desnecessária, não passando de um protocolo ou fórmula pré-determinada acolhida pela prática judiciária, sem qualquer valor funcional. Ao contrário, a alegação da consciência da ilicitude, seja com a utilização daquela fórmula ou através de descrição mais objectiva desse facto da vida interior, corresponde à necessidade de descrever um dos elementos do tipo subjectivo, traduzido no dolo da culpa, o qual (…) constitui uma categoria autónoma, relativamente ao dolo do tipo». Sobre este tema e no mesmo sentido, vide os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 30.12.2015 e 11.09.2018, do Tribunal da Relação de Guimarães de 06.11.2017 e 06.02.2017 e do Tribunal da Relação de Coimbra de 09.05.2012, 13.09.2017 e 07.03.2018, todos disponíveis em www.dgsi.pt. Carecendo a acusação de tais alegações factuais, a mesma revela-se manifestamente infundada, pois que nunca levaria à condenação do arguido, isto é, mesmo admitindo que a descrição factual que consta da acusação permitiria preencher o elemento objetivo do crime pelo qual vem acusado, ainda assim, a acusação estava fadada ao insucesso, pois soçobrava por falta de descrição de factos que permitissem preencher o elemento subjetivo do tipo na sua plenitude. Por tal motivo deveria a acusação deduzida nos autos ter sido rejeitada, nos termos do disposto nos artigos 311.º, n º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), do Código de Processo Penal, o que só não sucedeu por lapso de que, desde já, nos penitenciamos. Sucede que, realizada a audiência de julgamento e apurada a matéria de facto constante da acusação, não é já possível suprir a omissão fáctica de que padece a acusação deduzida. Tal questão foi já decidida pelo Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão n.º 1/2015, de 20.11.2014, publicado no DR-1ª Série, n.º 18, de 27.01.2015, que fixou a seguinte jurisprudência: “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do CPP". Isto posto, apurada a atuação do arguido nos termos descritos na acusação pública deduzida, certo é que não se mostra preenchido o elemento subjetivo do tipo legal em análise. E não se mostrando preenchido o elemento subjetivo do tipo legal em análise, impõe-se, sem necessidade de mais considerações, concluir que o arguido não praticou os crimes de ameaça agravada pelos quais vinha acusado, pelo que deve ser dos mesmos absolvido.”. 3.2. Da apreciação do recurso interposto pelo Ministério Público Apreciemos, então, a questão suscitada e já assinalada em II., ponto 2. deste Acórdão, tema já por este coletivo abordado no processo 89/98.0TBELV.E1, a propósito do crime de dano qualificado[1]. 3.2.1. O elemento subjetivo do tipo do crime de ameaça agravada Na decisão recorrida considerou-se que a acusação continha factos suficientes que permitiam imputar de forma objetiva a prática de três crimes de ameaça qualificada ao arguido. O Tribunal a quo, todavia, concluiu pela absolvição do arguido, por não constar da acusação a expressão “o agente atuou sabendo que a sua conduta era proibida por lei”. Destacou o Tribunal a quo que faltando este elemento caracterizador do dolo na narração da acusação os restantes factos nela descritos não constituíam crime, sendo insuscetíveis de serem integrados em julgamento por via dos artigos 358.º ou 359.º do CPP. Fundamentou o decidido no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça 1/2015[2]. O citado AUJ do STJ debruça-se sobre dois Acórdãos que decidiram de maneira oposta a mesma questão de direito no domínio da mesma legislação e onde o crime em causa era o de injúria. A questão analisada pelo apontado Aresto do STJ traduziu-se em saber se, perante a omissão total ou parcial, na acusação, de elementos constitutivos do tipo subjetivo do ilícito, nomeadamente o dolo, o tribunal do julgamento pode, por recurso ao artigo 358.º do CPP (alteração não substancial dos factos) integrar os elementos em falta. Salientou-se no AUJ 1/2015 tratar-se tal questão de um dos problemas mais complexos, controversos e basilares do processo penal. O AUJ 1/2015 descreveu a jurisprudência publicada sobre as consequências da falta do elemento subjetivo do dolo em crimes como os de injúria, dano, violência doméstica, difamação e denúncia caluniosa. Num dos Acórdãos[3] ali referenciado, a propósito de um crime de injúria, é referido não constar da acusação a menção “ao conhecimento de a conduta ser proibida” (embora dela constasse a alusão à arguida ter agido com manifesta intenção de atingir a ofendida na sua honra e consideração), tendo-se nele concluído não ser possível na audiência de julgamento, por recurso ao artigo 358.º do CPP, integrar os elementos respeitantes ao tipo subjetivo do ilícito. Ainda num outro Acórdão da Relação do Porto de 16.6.2012[4], referenciado pelo AUJ 1/2015, relativo ao crime de dano, foi considerada a necessidade de, no requerimento para abertura de instrução, constarem os factos constitutivos do tipo subjetivo, enquanto integrante do tipo de culpa, sendo esse elemento necessário para a punibilidade. Nele se considerou a correção da decisão proferida pelo JIC que rejeitou o requerimento de abertura de instrução por total omissão de elementos referentes à consciência de ilicitude. Depois de no AUJ ser analisada a doutrina e a jurisprudência sobre o tema o STJ tomou posição sobre o conflito jurisprudencial salientando que de entre os elementos do tipo subjetivo de ilícito estão os relacionados com o dolo ou a negligência. No concernente ao dolo este é definido legalmente no artigo 14.º do CP, sendo que, de acordo com a doutrina tradicional[5], o dolo é composto por um elemento intelectual e um volitivo ou emocional. Já para a corrente mais recente[6] o dolo desdobrar-se-ia em três elementos: o intelectual, o volitivo e o emocional. O AUJ 1/2015 optando por aderir a esta última corrente concluiu que “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código Processo Penal”. Assim, o dolo, na tese acolhida pelo AUJ 1/2015, será constituído pelos elementos: - Intelectual ou cognoscitivo correspondente ao agente conhecer, saber, prever ou representar as circunstâncias dos elementos do tipo objetivo (tipo de ilícito); - Volitivo com o significado de o agente querer, ter a vontade ou o propósito de realizar o facto típico (tipo de ilícito); - Emocional correspondente ao agente conhecer o desvalor da sua conduta contra o direito (tipo de culpa). Estes elementos do dolo terão de constar da acusação sob pena de essa factualidade não poder ser integrada em julgamento, conduzindo essa falta de narração à absolvição do arguido. O AUJ 1/2015, todavia, salienta que quanto ao dolo emocional essa descrição nem sempre carece de constar na acusação, indicando os casos dos crimes de homicídio, ofensas corporais, furto, injúrias. Dando como exemplo concreto o do Acórdão do STJ de 7.10.1992 relativo a um crime de homicídio onde, embora não constasse qualquer referência na matéria de facto ao conhecimento que o arguido teria ou não da proibição legal, foi considerado que “tendo o arguido agido livre e conscientemente com o intuito de tirar a vida ao filho, não podia deixar de desconhecer o desvalor da sua conduta”. No AUJ 1/2015 conclui-se depois que apenas no direito contraordenacional ou penal secundário ou quando se esteja perante novas incriminações não suficientemente solidificadas na comunidade é de exigir o “conhecimento da proibição legal” por parte do agente e consequentemente é obrigatória a narração na acusação desse elemento como forma de realização do dolo do tipo. Revertendo ao caso em apreciação neste recurso onde está em causa a prática de crime de ameaça agravada, atentemos à matéria dada como provada: “No dia 3 de janeiro de 2020, pelas 00h10, os agentes da PSP de Faro, BA, CA e DA deslocaram-se à residência do arguido sita na Rua (…), em Faro, para acorrer a uma situação de altercação familiar em que era interveniente o arguido. 2. Durante a intervenção dos agentes, que se encontravam devidamente fardados, o arguido, dirigindo-se aos agentes BAa e DA, disse “vou-vos foder. Isto não fica assim. Eu parto isto tudo!”. 3. Transportado para a esquadra da PSP de Faro, o arguido neste local, dirigindo-se aos três agentes da PSP, disse “Amanhã apanho-vos na rua e vão levar tanta porrada”. 4. De seguida, dirigindo-se apenas ao agente BA, o arguido disse “vou-te apanhar e levar para um tete-a-tete na sala de combate”. 5. Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, ciente que os três ofendidos eram agentes da PSP no exercício das suas funções, e, não obstante, quis dirigir-lhes as expressões indicadas, sabedor que eram adequadas a causar receio aos três ofendidos”. Da fórmula utilizada na acusação resulta ter o arguido a intenção (querer) livre, voluntária e conscientemente dirigir a três agentes da PSP de Faro, em exercício de funções, as expressões “Amanhã apanho-vos na rua e vão levar tanta porrada”. Mais se apurou que em relação ao agente BA ainda lhe dirigiu as expressões “vou-te apanhar e levar para um tete-a-tete na sala de combate” e a este e ao agente DA ainda verbalizou “vou-vos foder. Isto não fica assim. Eu parto isto tudo!”. A acusação é, sem dúvida, completamente omissa em relação ao elemento emocional do dolo, embora dela constem claramente os elementos intelectual e volitivo. A locução “bem saber o agente ser proibida dor lei a sua conduta”, não é todavia facto que deva ser autonomamente narrado na acusação (embora o possa ser de modo a evitar recursos como o interposto neste processo) quando se está perante um crime do direito penal clássico[8], como sucede no caso concreto de ameaça dirigida propositadamente a agentes da PSP em exercício de funções e fardados. Em casos como o assinalado a consciência de o agente ter agido bem sabendo tratar-se a sua conduta proibida por lei decorre do preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do ilícito típico (dolo do tipo: elemento intelectual e volitivo).[9] Os Agentes da PSP, devidamente fardados, que acorreram às 00h10 à residência do arguido, por se ter verificado uma situação de altercação familiar em que era interveniente o arguido, estavam em exercício de funções. Apesar disso o arguido, dirigiu-lhes as expressões mencionadas (“apanho-vos na rua e vão levar tanta porrada”; “vou-vos foder. Isto não fica assim. Eu parto isto tudo”; “vou-te apanhar e levar para um tete-a-tete na sala de combate”) sabedor que eram adequadas a causar receio aos três ofendidos. A proteção do bem jurídico, “liberdade pessoal”, no caso, está suficientemente solidificada na consciência da comunidade. Qualquer homem médio que dirija tais expressões em que anuncia um mal futuro (dar porrada; bater; espancar; “foder”) propositadamente a três pessoas, sabe que pratica um crime de ameaça. Se essas ameaças se dirigem a agentes de autoridade policial, fardados e em exercício de funções não pode o agente ignorar que a sua atuação será punida criminalmente de forma mais intensa. A omissão da fórmula estereotipada da acusação “atuou conscientemente sabendo que a sua conduta era proibida por lei” não pode justificar a absolvição do arguido, porquanto essa fórmula alicerça-se, neste tipo de crime (ameaça agravada), apenas na experiência da vida e da normalidade, sendo certo ter ficado provado que o arguido era sabedor de aquelas expressões serem adequadas a causar receio aos três ofendidos. A decisão recorrida fez uma errada interpretação do Acórdão de Uniformização da Jurisprudência 1/2015, até porque nele os Acórdãos em oposição não se cingiam apenas à omissão narrativa do elemento emocional do dolo. Na verdade, no “Acórdão recorrido” da acusação não constava para além do dolo emocional o elemento subjetivo do dolo intelectual e no “Acórdão fundamento” da acusação não constavam para além do dolo emocional os elementos intelectual e volitivo. Já o Acórdão desta Relação de Évora de 6.2.2018 relatado por António Latas, com data posterior à publicação do Acórdão Uniformizador 1/2015, debruça-se sobre situação similar à do presente recurso, onde a acusação apenas é omissa na descrição do elemento emocional (dolo do tipo de culpa). Assim, e em síntese, tratando-se a ameaça de um crime do direito penal clássico não tinha de constar da acusação[10], nem de ser alegado ou provado, no caso concreto, que o arguido “bem sabia que a sua conduta era proibida por lei”, pois a consciência da proibição legal decorreu do preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do ilícito típico (dolo do tipo)[11]. Chegados a este ponto cumpre retirar as consequências da conclusão alcançada. 3.2.2. Escolha da espécie e medida concreta da pena Ao arguido foi imputada a prática, em autoria material e na forma consumada, de três crimes de ameaça agravada, previstos e punidos pelos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea c), do CP, punível com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias. Tendo o arguido verbalmente anunciado o propósito de no futuro bater nos três agentes da PSP bem sabendo que essa sua atitude lhes provocava medo ou inquietação, cometeu um crime de ameaça agravada restando proceder à escolha da pena e à determinação da sua medida. A determinação concreta da pena deverá atender às necessidades de prevenção especial, de prevenção geral e da culpa, sendo certo que, tal como dispõe o artigo 70º, do Código Penal, se ao crime forem aplicáveis em alternativa, pena privativa e pena não privativa de liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. A opção por medida privativa da liberdade só deverá ser tomada por uma de duas razões: ou razões de prevenção especial de socialização, estritamente ligadas à prevenção da reincidência latu senso; e/ou na base de que aquela escolha é imposta por exigências irremediáveis de tutela do ordenamento jurídico. A esta escolha, são, pois alheias quaisquer considerações ligadas à culpa do agente. No caso em apreço, são elevadas as exigências de prevenção geral, em face da frequência com que os agentes de autoridade são ameaçados, em exercício de funções, sendo de reclamar uma punição que reafirme eficazmente a validade da norma violada. Em relação às exigências de prevenção especial estas são diminutas, pois o arguido não tem registado qualquer antecedente criminal, vive em casa própria com a mulher e os filhos e exerce biscates esporadicamente na construção civil. Assim, nos termos do artigo 70.º do CP opta-se pela aplicação de uma pena de multa por se julgar que esta ainda realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Escolhida a espécie da pena, cumpre determinar a medida concreta da multa a aplicar ao arguido atendendo a “todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, depuserem a favor ou contra ele” (artigo 71.º, n.º 1). No presente caso, é necessário encontrar a pena justa entre 10 e 240 dias de multa (artigo 47.º, n.º 1 do CP). No caso decidendo, a par dos aspetos já aludidos aquando da escolha da sanção, importa ponderar os seguintes fatores: a) O grau de ilicitude do facto: A ilicitude apresenta-se com grau mediano, pois o arguido reiterou as ameaças em três ocasiões distintas e em dois locais (na sua residência e na esquadra); b) O modo de execução do crime: As ameaças consistiram em o arguido verbalmente prometer provocar ofensas físicas a três pessoas distintas. Em relação ao ofendido BA ameaçando-o por três vezes consecutivas (uma em casa e as outras duas na esquadra); ao ofendido DA por duas vezes (uma na residência e outra na esquadra) e ao ofendido CA por uma vez (na esquadra); c) A intensidade do dolo: O arguido agiu com dolo direto, ou seja, na forma mais intensa de dolo; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica: O arguido vive em casa própria com a mulher e dois filhos, exercendo biscates esporadicamente na construção civil, sendo considerado pelos amigos pessoa humilde e honesta; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime: O arguido não tem antecedentes criminais; Tudo visto e ponderado, considera-se necessária, suficiente, adequada e proporcional, em relação à ameaça dirigida ao ofendido BA a pena de 115 dias de multa. No concernente a DA a pena de 105 dias de multa e relativamente a CA a pena de 90 dias de multa; A taxa diária da multa será fixada de acordo com as condições económicas e financeiras do arguido e os seus encargos pessoais, nos termos do disposto no artigo 47.º, n.º 2, do Código Penal. Os limites mínimo e máximo são, respetivamente, de 5 € e de 500 €. Tendo-se apurado que o arguido exerce atividade na construção civil de forma esporádica, mas vive em casa própria com dois filhos e a mulher e esta faz alguns trabalhos de limpeza julga-se adequado fixar esse montante em 6 €. Assim, tudo sopesado, é adequado condenar o arguido nas seguintes penas de multa: - 690 € pela prática de um crime de ameaça agravada perpetrada contra o ofendido BA; - 630 € pela prática de um crime de ameaça agravada perpetrada contra o ofendido; - 540 € pela prática de um crime de ameaça agravada perpetrada contra o ofendido. Tendo em consideração as regras de punição do concurso previstas no artigo 77.º, n.º 2 do CP terá de ser aplicada uma pena única ao arguido, que tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 900 dias, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. No caso o limite mínimo da pena única abstratamente aplicável é de 115 dias e o máximo de 310 dias de multa. Considera-se ser de aplicar a pena perto do seu limite médio em 190 dias de multa à razão diária de 6 €, num total de 1 140 €. III. DECISÃO Nestes termos e com os fundamentos expostos: 1. Concede-se provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência, altera-se a sentença recorrida, condenando o arguido: a) Em 115 dias de multa à razão diária de 6 €, num total de 690 €, pela prática de um crime de ameaça agravada, previsto e punível pelos artigos 153.º, n.º 1 e alínea c) do n.º 1 do artigo 155.º do CP, perpetrada contra o ofendido BA; b) Em 105 dias de multa à razão diária de 6 €, num total de 630 €, pela prática de um crime de ameaça agravada, previsto e punível pelos artigos 153.º, n.º 1 e alínea c) do n.º 1 do artigo 155.º do CP, perpetrada contra o ofendido DA; c) Em 90 dias de multa à razão diária de 6 €, num total de 540 €, pela prática de um crime de ameaça agravada previsto e punível pelos artigos 153.º, n.º 1 e alínea c) do n.º 1 do artigo 155.º do CP, perpetrada contra o ofendido CA; 2. Operando ao cúmulo das penas parcelares referidas em 1. a), b) e c) condena-se o arguido na pena única de 190 dias de multa, à razão diária de 6 €, no valor global de 1 140 €. 3. Sem custas. Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelas signatárias. Évora, 22 de fevereiro de 2022. Beatriz Marques Borges - Relatora Maria Clara Figueiredo __________________________________________________ [1] Disponível para consulta em https://dre.pt/dre/detalhe/acordao-supremo-tribunal-justica/1-2015-66348204. [2] Publicado no DR 1.ª série, n.º 18 de 27 de janeiro de 2015. [3] Do Tribunal da Relação de Guimarães de 16.10.2004 proferido no processo 1245/04-1. [4] Proferido no processo 414/09.PAMAI-B.P1. [5] É a este propósito indicado Eduardo Correia como o defensor da tese tradicional. [6] Como defensor da tese mais recente é indicado Figueiredo Dias. [7] Sublinhado nosso. [8] Cf. Acórdão da RE de 6.2.2018, proferido no Processo 54/16.8T9CBA.E1, relatado por António Latas e disponível para consulta em www.dgsi.pt/jtre. [9] O Desembargador António Latas, no Acórdão da RE de 6.2.2018, refere que a locução “consciência da ilicitude” só assume autonomia quando se discute a falta de consciência da ilicitude, enquanto causa de exclusão da culpa (artigo 17.º do CP). No AUJ 1/2015 (P. 593) afirma-se que “o conhecimento da proibição não é exatamente equivalente a “consciência da ilicitude” e será de exigir em certos casos em que a relevância axiológica de certos comportamentos é muito pouco significativa ou não está enraizada nas práticas sociais e em que, portanto, o conhecimento dos elementos do tipo e a sua realização voluntária e consciente não é suficiente para orientar o agente de acordo com o desvalor comportado pelo ilícito criminal”. [10] Sem prejuízo de o MP o poder fazer com vista a evitar absolvições e recursos numa matéria que tem suscitado tanta controvérsia. [11] Cf. neste sentido Ac. RE de 6.2.2018, relatado por António Latas. |