Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
333/16.4T9VFR.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOLORES DA SILVA E SOUSA
Descritores: CRIME DE FALSIDADE DE TESTEMUNHO
CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
ACUSAÇÃO
Nº do Documento: RP20180613333/16.4T9VFR.P2
Data do Acordão: 06/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º763, FLS.118-123)
Área Temática: .
Sumário: I – A falta de descrição na acusação da consciência da ilicitude, usualmente descrita como “sabendo que a sua conduta é proibida e punida” relativa a um crime com relevo axiológico caracterizado e comunitariamente difundido, não é relevante, podendo ocorrer condenação atento o disposto no artº 17º2 CP por poder traduzir uma falta censurável de consciência do ilícito, a fundamentar uma culpa dolosa e a ser punida a esse titulo.
II – A Jurisprudência do AFJ nº 1/2015 não se aplica à omissão na acusação dos factos integradores do conhecimento da ilicitude.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec. Penal. n.º 333/16.4T9VFR.P1
Comarca de Aveiro
Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira

Acordam, em Conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.
I - Relatório.
No Processo Comum Singular n.º 333/16.4T9VFR do juízo local criminal de Santa Maria da Feira, Juiz 2, foi proferido o seguinte Despacho, datado de 06.02.2018:
«(…)
O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido B…, identificado a folhas 31, imputando-lhe a prática de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 356.º, n.º 1, do Código Penal.
*
Questões prévias
Da nulidade da acusação pública por falta de adequada narração dos factos:
A acusação (artigo 283.°) constitui a charneira entre o inquérito e o julgamento.
Trata-se duma consequência do princípio da estrutura acusatória do processo: a actividade do tribunal só pode ser exercida se um determinado conjunto de factos lhe for submetido por um órgão independente do julgador. Acusação e defesa são, assim, dois pólos dialécticos que não podem subsistir um sem o outro (Cunha Rodrigues). A defesa tem de estar, pois, numa situação de paridade relativamente à acusação. Nomeadamente, o processo não pode ser remetido para julgamento sem que o seu objecto tenha sido delimitado num documento (a acusação ou requerimento acusatório) que indique taxativamente os factos que o tribunal pode apreciar; e o arguido deve ter também a oportunidade de produzir um documento (a contestação) que contrarie o anterior. O arguido pode em julgamento questionar toda a matéria acusatória, sendo aí que o princípio do contraditório ganha a sua maior expressão, traduzindo-se no direito que o arguido tem de ser ouvido, de se defender e, designadamente, de se pronunciar sobre as alegações, as provas, os actos ou quaisquer iniciativas processuais da acusação. O princípio acusatório protege o arguido na medida em que lhe assegura que uma condenação só poderá ter sucesso se dois órgãos da administração da justiça - o acusador e o tribunal -, independentemente um do outro, chegarem ao convencimento de que ele é culpado (…).
O artigo 283.º impõe (n.º 3) que a acusação contenha, sob pena de nulidade: a) as indicações tendentes à identificação do arguido; b) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; c) a indicação das disposições legais aplicáveis (…).
ln casu, é a acusação pública que vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial. Como tal, deve conter todos os elementos de uma acusação, de sobremaneira a matéria de facto que consubstancie o ilícito que se pretende imputar ao arguido.
Com efeito, regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e do contraditório, a necessidade de uma tal demarcação tem subjacentes duas ordens de fundamentos, - um inerente ao objectivo imediato do julgamento: a comprovação judicial dos factos acusados (que, para que se possa demarcar o âmbito do objecto específico desta fase do processo e para que o arguido se possa defender, tem que reportar-se a imputação … de factos concretos delimitados) e - outro implícito a uma finalidade mediata mas essencial: a demarcação do próprio objecto do processo, reflexo da sua estrutura acusatória com a correspondente vinculação temática do Tribunal, que, por sua vez, na medida em que impede qualquer eventual alargamento arbitrário daquele objecto, constituindo uma garantia de defesa do arguido, possibilita a este a preparação da defesa, assim salvaguardando o contraditório.
No julgamento o juiz encontra-se limitado pelos factos descritos na acusação: o juiz não decide nunca os termos da acusação, decide unicamente sobre a acusação já deduzida; está vinculado aos termos da acusação, tal como ela foi deduzida ou ao despacho de pronúncia. Existindo duas ou mais acusações, como por vezes acontece, por ex., a do Ministério Público acompanhado pelo assistente, «(…) o juiz pode apenas acolher uma delas, quando entre si sejam incompatíveis, ou ambas, quando sejam complementares, mas não pode pronunciar o arguido por factos que sejam substancialmente distintos dos constantes numa daquelas acusações sob pena de nulidade da decisão instrutória (…).» (Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal", III, p. 154).
Vistos em traços largos o respectivo enquadramento jurídico importa agora analisar a acusação à luz de tais princípios.
Conforme é descrito na acusação pública:
«No dia 23 de Março de 2011, pelas 19h30m, o arguido foi ouvido no âmbito do Inq. n.º 2/15.2GAOAZ, que correu termos nos Serviços do Ministério Público desta comarca, na qualidade de testemunha.
No acto, confrontado com os factos descritos no respectivo auto de notícia, o arguido, no Posto da GNR de Oliveira de Azeméis, afirmou perante o Cabo C…, militar da GNR, que era consumidor de produtos estupefacientes consumindo cocaína de forma ocasional.
Afirmou conhecer ao ali arguido D… sendo que já em2010 e 2011 ia à boleia com o mesmo ao Porto, dando-lhe dinheiro para a gasolina e juntamente com a E…, a F… e a G…, para que estas comprassem droga.
Na mesma ocasião declarou que passou a comprar cocaína (que apelidou de "branca") ao D… a partir de Janeiro de 2015, comprando uma "base" por e 10, deslocando-se às imediações da casa daquele.
Referiu ainda que lhe terá comprado cocaína por duas vezes.
Posteriormente, no dia 21.12.2015, neste Tribunal de Santa Maria da Feira, ocorreu a audiência de julgamento referente ao mesmo processo (Em Processo Comum e perante Tribunal Colectivo n° 2/15.2 GAOAZ), onde o arguido jurou por sua honra responder com verdade após advertência pelo Mmo. Juiz Presidente que, se assim não fizesse, incorreria na prática de um crime.
No seguimento da audiência, quando o Digno Magistrado do Ministério Público perguntou ao arguido se conhecia o ali arguido D… e se alguma vez o vira a vender cocaína, aquele negou que este alguma vez lhe tivesse vendido tal produto estupefaciente.
Constata-se que as declarações prestadas pelo arguido no decurso da audiência de discussão e julgamento são antagónicas com aquelas prestadas em fase de inquérito, pelo que o mesmo prestou um depoimento que não corresponde à verdade.
O arguido sabia que tinha de responder com verdade às perguntas que lhe foram feitas, pois conhecia a qualidade e competência de quem as fez, não obstante, mentiu e fê-lo deliberada, livre e conscientemente.».
Ora, tendo por referência o imputado crime, este, no seu momento subjectivo, suporá, naquele que actua, a intencional vontade de faltar à verdade no depoimento que presta num âmbito de um processo judicial, e a factualidade correspondente encontra-se efectivamente inserta na acusação em análise.
Todavia, já no que respeita à consciência da ilicitude e punibilidade da conduta alegadamente empreendida, o mesmo não se verifica.
Na realidade, dos factos vertidos na acusação pública não consta que o arguido tivesse actuado com tal conhecimento e consciência.
Com efeito, não obstante constar de tal acusação que: «( ... ) o arguido jurou por sua honra responder com verdade após advertência pelo Mmo. Juiz Presidente que, se assim não fizesse, incorreria na prática de um crime.», em nenhum momento se alega ou afirma que o arguido actuou ciente que a sua actuação o faria incorrer nessa mesma responsabilidade criminal, o que equivaleria a afirmar a consciência da ilicitude da sua conduta, apenas se reproduzindo o facto da advertência que foi efectuada e não a consequente consciência que tal advertência poderia ter tido no íntimo do arguido.
Por conseguinte, os factos alegados são penalmente irrelevantes ou atípicos. Neste sentido e muito embora decidindo questão diversa - a inaplicabilidade do mecanismo previsto nos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal, a situações como a agora em apreço -, pronunciou-se já o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 1/2015, de 20 de Novembro de 2014, publicado no Diário da República n.º 18, Série I, de 27 de Janeiro de 2015, fixando-se o seguinte: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.° do Código de Processo Penal.».
Na fundamentação de tal aresto, escreve-se o seguinte:
(…) Ora, a acusação deve conter com a máxima precisão a descrição dos factos da vida real, os que configuram o acontecimento histórico que teve lugar e que correspondam aos elementos constitutivos do tipo legal de crime, tanto os do tipo objectivo do ilícito, como os do tipo subjectivo.[3]
Na verdade, os factos da vida real, os que se traduzem no recorte de um determinado pedaço de vida, ditos também "naturalísticos'', só têm interesse enquanto reportados a uma acção relevante do ponto de vista jurídico-penal, isto é, consubstanciando um crime. Este, na definição de FREDERICO ISASCA, vem a traduzir-se, precisamente, num «comportamento socialmente relevante tipificado pela ordem jurídica - portanto um comportamento formal e materialmente ilícito ­susceptível de um juízo de culpa, isto é, de uma reprovação jurídico-penal, que se traduz na imposição de uma sanção, sempre e em última instância privativa de liberdade» (ob. cit., p. 117).
Entre os elementos relevantes que dão um sentido a uma determinada conduta ou acção emergentes num dado contexto social e histórico, ou a uma omissão que se traduza num desvalor, uma e outra enquanto referidas a uma acção ou omissão abstractamente tipificadas como crime, estão os que configuram os aspectos objectivos do tipo de ilícito e os que consubstanciam os seus aspectos subjectivos.
Com efeito, enquanto os elementos do tipo objectivo de ilícito definem o conteúdo ou objecto da acção ou omissão tipificadas como crime, os elementos subjectivos definem a relação do agente ou omitente com essa acção ou omissão, a sua particular ligação com elas, com o facto objectivo praticado ou omitido.
(…)
Tendo a acusação passado no crivo do art. 311.º, n.º 2, alínea a) e 3, alínea b), o tribunal não pode socorrer-se do disposto no art. 358.º do CPP para colmatar a deficiência encontrada. É que tal integração não consubstancia uma alteração não substancial dos factos.
Com efeito, a latitude do princípio do acusatório, na sua conjugação com o princípio da investigação da verdade material, ou, por outras palavras, a flexibilidade do objecto do processo, encontra como limite a alteração substancial dos factos.
Alteração substancial dos factos, na definição legal, é «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis» (art. 1.º, alínea f) do CPP).
No caso, o acrescento dos elementos constitutivos do tipo subjectivo do ilícito, compreendendo aqui também o tipo de culpa, corresponde a uma alteração fundamental, de tal forma que alguma da jurisprudência inventariada (supra, ponto 9.2.2.) considera que tal alteração equivale a transformar uma conduta atípica numa conduta típica e que essa operação configura uma alteração substancial dos factos. O mecanismo adequado a uma tal alteração não seria, pois, o do art. 358.º, mas o do art. 359.º, n.ºs 1 e 2 do CPP, implicando o acordo entre o Ministério Público, o assistente e o arguido para o prosseguimento da audiência por esses factos, como única forma de evitar a anulação do princípio do acusatório, ou, na falta desse acordo, a comunicação ao Ministério Público para procedimento criminal pelos novos factos, se eles fossem autonomizáveis. Na circunstância, sendo o crime de natureza particular, não se imporia a comunicação ao M." P." e, por outro lado, não sendo os factos autonomizáveis, o procedimento criminal ficaria dependente do acordo referido e, principalmente, da boa vontade do arguido, o que seria grave se o crime fosse, por exemplo, um crime de homicídio.
Porém, se não é aplicável, nestas situações, o mecanismo do art. 358.° do CPP, também não será caso de aplicação do art. 359.°, pois, correspondendo a alteração à transformação de uma conduta não punível numa conduta punível (e, nesse sentido, substancial), ou, como querem alguns, uma conduta atípica numa conduta típica, a verdade é que ela não implica a imputação ao arguido de crime diverso. Pura e simplesmente, os factos constantes da acusação (aqueles exactos factos) não constituem crime, por não conterem todos os pressupostos essenciais de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou medida de segurança criminais.
(…)
Ora, a consabida razão de ser do regime que decorre das normas dos artigos 1.º, alínea f), 358.º e 359.º situa-se num plano diverso, que tem como pressuposto que na acusação, ou na pronúncia, se encontravam devidamente descritos os factos que integravam, quer todos os elementos do tipo objectivo de ilícito, quer todos os elementos do tipo subjectivo de ilícito, respeitantes ao tipo de ilícito incriminador pelo qual o arguido fora sujeito a julgamento.
Por isso, a ausência ou deficiência de descrição na acusação dos factos integradores do respectivo tipo de ilícito incriminador - no caso, descrição dos factos atinentes aos elementos do tipo subjectivo de ilícito - conduz, se conhecida em audiência, à absolvição do arguido.».
Concluindo, não constando da acusação pública que o arguido actuou ciente de que a conduta empreendida era proibida e punida por lei, não pode reconhecer-se qualquer relevância criminal à sua actuação, pelo que, por falta de narração dos factos que determinam a aplicação de uma pena, terá a mesma de ser rejeitada.
Com efeito, de acordo com o artigo 311.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal: «Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.», por sua vez o n.º 3 do mesmo preceito legal dispõe que: «(…) a acusação considera-se manifestamente infundada: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; d) se os factos não constituírem crime.».
Assim sendo, de todo o exposto, resulta claro que terá de ser rejeitada a acusação pública por falta de narração dos factos que integrariam a descrição do tipo de ilícito, rejeição à qual não obsta a decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, pois que, decidindo pela procedência do recurso interposto pelo Ministério Público no que à declaração da prescrição concerne, consignou-se no final do respectivo acórdão que deveria ser proferido o despacho a que aludem os artigos 312.º e 313.º do Código de Processo Penal, caso não existisse outro motivo para a rejeição da acusação, o que, como se vem de expender, sucede.
*
Pelo exposto, nos termos que conjugadamente resultam do preceituado na alínea a) do n.º 2 e na alínea b) do n.º 3, ambos do artigo 311.º do Código de Processo Penal, decido rejeitar a acusação pública deduzida contra o arguido B….
Sem custas criminais.
*
Notifique. (…)»
*
Inconformado com o despacho veio o MP, recorrer, com a competente motivação que remata com as seguintes conclusões:
«1. Nos autos à margem identificados foi deduzida acusação pública contra o arguido B…pela prática do crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo art. 360º, n.º 1 e 3 do Código Penal.
2. Decidiu o Tribunal a quo rejeitar a acusação pública deduzida contra a arguida entendendo que factualidade constante da acusação pública, não preenche os elementos típicos do crime, nomeadamente, ao nível do elemento subjectivo, porquanto, não vem alegado na acusação pública que o "arguido actuou ciente de que a conduta empreendida era proibida e punida por lei".
3. A consciência da ilicitude é momento constitutivo do dolo (não do tipo de ilícito mas do tipo de culpa), o seu momento emocional, sendo, portanto, uma exigência da actuação dolosa do agente na realização do tipo.
4. Consta da acusação que:
- O arguido sabia que as suas declarações prestadas na referida audiência de julgamento não correspondiam à verdade mas não se coibiu de as prestar apesar de haver jurado dizer toda a verdade e de ter sido advertido que a falta a esse juramento a faria incorrer em responsabilidade penal.
- O arguido sabia que tinha de responder com verdade às perguntas que lhe foram feitas, pois conhecia a qualidade e competência de quem as fez, sabendo também que estava sujeita ao juramento que prestara e, não obstante, mentiu e fê-lo de forma livre, deliberada e consciente.
5. A consciência de que mentir em Tribunal a iria fazer incorrer em responsabilidade criminal foi tomado pelo arguido até mesmo antes da comissão do facto, a qual se operou no exacto momento em que foi advertido que ao prestar depoimento estava vinculado ao dever de verdade sob pena de incorrer em responsabilidade criminal e, ainda assim, decidiu mentir.
6. E, o arguido, sabendo que estava a mentir e que incorria em responsabilidade criminal "fê-lo de forma livre, deliberada e conscientemente".
7. Esta consciência, no caso concreto, não poderá ser reconduzida apenas e só à consciência de toda a factualidade objectiva, como também o é, mas igualmente que dessa factualidade decorreria para o agente a inerente responsabilidade criminal porque para tal foi advertido.
8. Ora a consciência no íntimo do agente está expressa quer na advertência que lhe foi feita quer no conhecimento da consequência dessa advertência, conhecimento este afirmado nos factos provados.
9. Mostram-se preenchidos todos os elementos típicos objectivos e subjectivos, mormente, neste tocante, o dolo do tipo e o dolo da culpa.
10. Ao considerar como não preenchido tal elemento subjectivo, a decisão recorrida violou o disposto no art. 360º, n.º l e 3 do Código Penal.
Sem prescindir....
11. Acresce que, tendo o agente sido advertido que a sua conduta o faria incorrer em responsabilidade criminal e que ainda assim mentiu, desconhecendo-se se o mesmo o fez (apenas por mera construção teórica) com a consciência da ilicitude, então terá o Tribunal de lançar mão do disposto no art. 17º do Código Penal que prevê os casos em que o agente actua em erro sobre a ilicitude, devendo, em conformidade com o disposto no n.º 2 do referido preceito, ser punido, porque o erro é-lhe censurável.
12. No caso, não se demonstrando que o agente actuou com consciência da ilicitude, essa falta de consciência não impede a sua condenação, porque é censurável pois que é do mais elementar saber que não se pode "mentir" em Tribunal.
13. Pelo que, sempre deveria a acusação pública ser recebida e ser a arguida submetida a julgamento.
14. Ao não considerar a não comprovação da consciência da ilicitude como erro censurável, o Tribunal recorrido violou ainda o disposto no art. 17º do Código Penal.
15. Por tudo o exposto, deverá decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que receba a acusação pública com a consequente submissão do arguido a julgamento pela prática do crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360º, n.º1e 3 do Código Penal.»
*
O recurso foi liminarmente admitido.
Nesta Relação o Exmo. PGA não emitiu Parecer.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*
II- Fundamentação.
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – vícios decisórios e nulidades referidas no artigo 410.º, n.º s 2 e 3, do Código de Processo Penal – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
1.- Questões a decidir
Face às conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, pela ordem em que são enunciadas, são as seguintes as questões decidir:
- Averiguar, se na acusação foram descritos os elementos subjectivos do crime, nomeadamente os que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor.
*
2. Reprodução da acusação.
«Em Processo Comum e perante Tribunal Singular o Ministério Público deduz acusação contra:
B…, pedreiro, solteiro, filho de H… e de I…, natural da freguesia de … concelho de Oliveira de Azeméis, onde nasceu a 19.06.1979, residente na Rua …, n° …, ….

Porquanto,
No dia 23 de Março de 2011, pelas 19h30m, o arguido foi ouvido no âmbito do Inq. N.º 2/15.2GAOAZ, que correu termos nos Serviços do Ministério Público desta comarca, na qualidade de testemunha.
No acto, confrontado com os factos descritos no respectivo auto de notícia, o arguido, no Posto da GNR de Oliveira de Azeméis, afirmou perante o Cabo C…, militar da GNR, que era consumidor de produtos estupefacientes consumindo cocaína de forma ocasional.
Afirmou conhecer ao ali arguido D… sendo que já em 2010 e 2011 ia à boleia com o mesmo ao Porto, dando-lhe dinheiro para a gasolina e juntamente com a E…, a F… e a G…., para que estas comprassem droga.
Na mesma ocasião declarou que passou a comprar cocaína (que apelidou de "branca") ao D… a partir de Janeiro de 2015, comprando uma "base" por €10, deslocando-se às imediações da casa daquele.
Referiu ainda que lhe terá comprado cocaína por duas vezes.
Posteriormente, no dia 21.12.2015, neste Tribunal de Santa Maria da Feira, ocorreu a audiência de julgamento referente ao mesmo processo (Em Processo Comum e perante Tribunal Colectivo n.º 2/15.2GAOAZ), onde o arguido jurou por sua honra responder com verdade após advertência pelo Mmo. Juiz Presidente que, se assim não fizesse, incorreria na prática de um crime.
No seguimento da audiência, quando o Digno Magistrado do Ministério Público perguntou ao arguido se conhecia o ali arguido D… e se alguma vez o vira a vender cocaína, aquele negou que este alguma vez lhe tivesse vendido tal produto estupefaciente.
Constata-se que as declarações prestadas pelo arguido no decurso da audiência de discussão e julgamento são antagónicas com aquelas prestadas em fase de inquérito, pelo que o mesmo prestou um depoimento que não corresponde à verdade.
O arguido sabia que tinha de responder com verdade às perguntas que lhe foram feitas, pois conhecia a qualidade e competência de quem as fez, não obstante, mentiu e fê-lo deliberada, livre e conscientemente.
Pelo exposto cometeu o arguido, em autoria material, um crime de falsidade de testemunho p. p. pelo art. 360.º, n.º 1 do Código Penal.
(…)»
*
3.- Apreciação do mérito do recurso.
Tendo presente o teor da acusação pública reproduzida, vejamos.
O artigo 311º do CPP dispõe que:
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
(…)
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
b) Quando não contenha a narração dos factos;
Nos termos da al. b), do n.º3, do artigo 283º do CPP os factos que devem ser narrados são aqueles que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve.
O crime imputado na acusação é um crime de falsidade de testemunho p. p. pelo art. 360.º, n.º 1 do Código Penal.
Resulta do disposto no artigo 360º, do CP que o crime em causa é um crime doloso.
Ora, dispõe o artigo 14º do C.P.
«1 - Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar.
2 - Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta.
3 - Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização

O Código Penal não define o dolo do tipo mas apenas, no artigo 14º, cada uma das formas em que ele se analisa.
A doutrina hoje dominante conceitualiza-o, como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito.
Conceitualização do dolo do tipo como conhecimento (momento intelectual) e vontade (momento volitivo) de realização do facto.
Sendo o elemento volitivo, ligado ao elemento intelectual que serve para indicar uma posição ou atitude do agente contrária ou indiferente à norma de comportamento, numa palavra, uma culpa dolosa e a consequente possibilidade de o agente ser punido a título de dolo.
Assim, no momento intelectual do dolo afirma-se a necessidade de que o agente conheça, saiba, represente correctamente ou tenha consciência (consciência psicológica, ou consciência intencional) das circunstâncias do facto que preenche um tipo de ilícito objectivo, visando que o agente conheça tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter ilícito.
O elemento volitivo supõe uma decisão de vontade do agente para a realização de um ilícito-típico, por via de uma acção ou omissão, sendo que é, especialmente, através do grau de intensidade desta relação de vontade que se diferenciam as várias formas de dolo.
Consciência e vontade não podem ser vistos isoladamente, pois, só se pode querer aquilo que se conhece.
Ora, no caso concreto foi alegado: «Constata-se que as declarações prestadas pelo arguido no decurso da audiência de discussão e julgamento são antagónicas com aquelas prestadas em fase de inquérito, pelo que o mesmo prestou um depoimento que não corresponde à verdade.
O arguido sabia que tinha de responder com verdade às perguntas que lhe foram feitas, pois conhecia a qualidade e competência de quem as fez, não obstante, mentiu e fê-lo deliberada, livre e conscientemente.»
Daqui resulta que se imputa ao agente o ter actuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico-penal), deliberada (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto).
No caso o arguido sabia que tinha de responder com verdade às perguntas que lhe eram feitas e não obstante mentiu e fê-lo deliberada, livre e conscientemente, isto é, querendo esse resultado, ficando assim preenchido o elemento intelectual e o elemento volitivo, como alegado.
É certo, não consta dos autos a expressão normalmente usada “sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei” (consciência da ilicitude), só que o tipo de ilícito em causa é concretamente o de falsidade de testemunho p. e p. pelo art. 360.º, n.º 1 do Código Penal, que não só tem um relevo axiológico suficientemente caracterizado e comunitariamente difundido, como ainda sobreleva o facto de em audiência o arguido após advertência pelo Mmo. Juiz Presidente que, se não respondesse com verdade, incorreria na prática de um crime, e não obstante jurou por sua honra responder com verdade. Deste modo mesmo que não alegada a consciência da ilicitude ou da proibição ou o que é o mesmo, ela se não prove, essa falta não é relevante e pode ocorrer condenação, como decorre do disposto no artigo 17º, n.º 2, do CP, por uma falta de consciência do ilícito no caso, vir a traduzir-se numa falta censurável de consciência do ilícito fundamentadora de uma culpa dolosa a requerer a punição a esse título.
A decisão sob escrutínio apela ao Acórdão Uniformizador de jurisprudência n.º1/2015, do seguinte modo: “Com efeito, não obstante constar de tal acusação que: «(…) o arguido jurou por sua honra responder com verdade após advertência pelo Mmo. Juiz Presidente que, se assim não fizesse, incorreria na prática de um crime.», em nenhum momento se alega ou afirma que o arguido actuou ciente que a sua actuação o faria incorrer nessa mesma responsabilidade criminal, o que equivaleria a afirmar a consciência da ilicitude da sua conduta, apenas se reproduzindo o facto da advertência que foi efectuada e não a consequente consciência que tal advertência poderia ter tido no íntimo do arguido.
Por conseguinte, os factos alegados são penalmente irrelevantes ou atípicos. Neste sentido e muito embora decidindo questão diversa - a inaplicabilidade do mecanismo previsto nos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal, a situações como a agora em apreço -, pronunciou-se já o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 1/2015, de 20 de Novembro de 2014, publicado no Diário da República n.º 18, Série I, de 27 de Janeiro de 2015, fixando-se o seguinte: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.° do Código de Processo Penal.»”.
Sem deixar de ponderar o mencionado Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, atendendo à doutrina citada e tendo em conta, relativamente ao referido Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, que o seu objecto consistiu na uniformização da jurisprudência a propósito da falta de alegação dos factos integradores do dolo e que da sua fundamentação decorre que esses factos são distintos dos relativos ao conhecimento da ilicitude [com efeito, no 6º parágrafo do ponto 10.2.3.1 da respectiva fundamentação, diz-se que a consciência da ilicitude se coloca no plano dogmático a um nível diferente da avaliação do dolo na realização do facto típico, porque tem a ver com a questão da relevância do erro sobre a ilicitude ou sobre a proibição. Diz-se ainda que se não se tratar de um caso em que se possa afastar a censurabilidade do acto, o facto praticado sem consciência da ilicitude é equiparável ao praticado com essa consciência. Alias, ali se escreve que a essa pressuposta exigência responde o acórdão do STJ de 07/10/92, (também referido na fundamentação em 9.2.1.) relativamente à questão colocada de inexistir qualquer referência, na matéria de facto, ao conhecimento que o arguido, autor de um crime de homicídio, teria ou não teria da proibição legal, considerou que, «tendo [o arguido] agido livre e conscientemente com o intuito de tirar a vida ao filho, não podia deixar de conhecer o desvalor da sua conduta”. E mais adiante, nos parágrafos 1º e 2º do ponto 10.2.4, faz-se de novo uma distinção entre as questões da tipicidade e do conhecimento da proibição], entendemos que a jurisprudência fixada naquele acórdão não se aplica à omissão na acusação dos factos integradores do conhecimento da ilicitude, quando o relevo axiológico do crime em causa – por enraizado ou difundido na comunidade [a que acresce de forma muito relevante, no caso, a expressa advertência funcional efectuada pelo juiz que toma o depoimento] - decorre da própria natureza do facto típico e, no caso, das circunstâncias da prática dos factos. Assim, afigura-se-nos que a acusação contém todos os elementos objectivos e subjectivos para se considerar que os factos alegados constituem um crime, o crime p. e p. pelo artigo 360, n.º1 do CP. – seguimos de perto o acórdão deste TRP.de 12.07.2017, proc. n.º 833/15.3SMPRT.P1, subscrito pelos mesmo relatores.
Pelo exposto, a rejeição da acusação em relação ao crime em causa não pode prevalecer, e o Despacho em recurso tem de ser revogado e substituído por outro que receba a acusação e designe datas para julgamento.
Pelo exposto procede o recurso.
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III- Decisão.
Pelo exposto, acordam os juízes da segunda secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo MP com a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que receba a acusação e designe datas para julgamento.
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Sem custas.
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Notifique.
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Observou-se o disposto no artigo 94º, n.º 2, do CPP.
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Porto, 13 de Junho de 2018.
Maria Dolores Silva e Sousa
Manuel Soares