Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
251/15.3GESTB.E1
Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS
Descritores: CRIME DE VIOLAÇÃO
ABSOLVIÇÃO EM JULGAMENTO
CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 03/12/2019
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I - A jurisprudência fixada na AFJ nº 1/2015 do STJ não se reporta à exigência de articulação da “consciência da ilicitude” na acusação, pois o objeto daquela fixação de jurisprudência, ditado pela questão relativamente à qual se verificou oposição de julgados, centrou-se na inaplicabilidade do mecanismo previsto no art. 358º do CPP para a alteração não substancial de factos aos casos de falta de descrição, na acusação, [dos factos integradores] dos elementos subjetivos do crime - máxime o dolo –, não se afirmando explicitamente na fixação de jurisprudência que “a consciência da ilicitude” teria que ser autonomamente descrita na acusação e julgada provada na sentença, para que o arguido pudesse ser condenado pelo crime doloso respetivo.

II - Assim, não tendo que constar da acusação e da sentença a locução “o arguido agiu com consciência da ilicitude” ou semelhante, não há sequer lugar ao cumprimento do disposto no art. 358º do CPP, pelo que se impõe proceder ao enquadramento jurídico-penal dos factos e à determinação concreta da pena a aplicar.

III - Em todo o caso, divergindo da jurisprudência fixada no AFJ 1/2015, entende-se, nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 445.', n.º3 e 446º, nº3, do CPP, que o vício formal de falta de narração na acusação de factos relativos aos elementos subjetivos do tipo pode ser suprido mediante o procedimento previsto no art. 358.º do CPP, por razões que se prendem com o princípio ou regra da conservação dos atos processuais inválidos, que não foi considerado e apreciado naquele mesmo acórdão

IV - Igualmente neste sentido, parece-nos ser de considerar ainda o teor do Ac TC 246/2017 de 17.05.2017, que tendo na base uma acusação por crime de condução em estado de embriaguez em que se omitira qual a taxa de alcoolemia no sangue, decidiu:

- “ Não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea d), e 283.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes.”.

V - Por último, tendo o acórdão do STJ nº 1/2015 sido proferido em 20.11.2014, verificou-se entretanto alteração significativa na composição das secções criminais do STJ, pois dos atuais dezasseis Juízes Conselheiros que as integram, apenas seis deles se encontravam em exercício de funções aquando da prolação do AFJ 1/2015, sendo certo que um deles votou vencido e que houve igualmente mudança no cargo de Presidente do STJ.

(Sumário redigido pelo relator)
Decisão Texto Integral:
Em conferência, acordam os Juízes na 2ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório

1. – Nos presentes autos de processo comum com intervenção do tribunal coletivo que correm termos no Juízo Central Criminal de Setúbal (Juiz 2) do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, foi julgado RR, divorciado, nascido em 11 de Agosto de 1975 a quem o MP imputara a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de:

- Dois crimes de importunação sexual agravados, previstos e punidos pelos artigos 170º e 177º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal.

- Um crime de violação agravada, previsto e punido pelo art. 164º, nº 1, al. a), e art. 177º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal.

2. - Realizada a Audiência de discussão e julgamento, o tribunal coletivo decidiu julgar improcedente a acusação, e em consequência, ABSOLVER o arguido RR da prática, em autoria material, e concurso efetivo de:

- Dois crimes de importunação sexual agravados, previstos e punidos pelos artigos 170º e 177º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal.

- Um crime de violação agravada, previsto e punido pelo art. 164º, nº 1, al. a), e art. 177º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal.

3. – Inconformado, o MP vem recorrer daquela decisão extraindo da sua motivação as seguintes conclusões que se transcrevem:

«CONCLUSÕES:

1ª Vinha o arguido RR acusado da prática, em autoria material, na forma consumada, de dois crimes de importunação sexual agravados e um crime de violação agravada, p. e p. pelos artºs 170,º 170 nº 1, alínea a), e 164º, nº 1, alínea a) e 177º, nº1, alínea a), todos do Código Penal.

2ª Na data designada para a leitura do acórdão, em 11 de Maio de 2018, a Exmª juiz Presidente comunicou a alteração substancial dos factos, no que concerne ao elemento subjectivo, da consciência da ilicitude e do conhecimento da proibição.

3ª Provou-se em audiência de julgamento que que o arguido, através da força, introduziu o seu pénis na boca do ofendido, seu filho, o quis e conseguiu, para satisfazer os seus instintos libidinosos, bem como sabia que atuava com violência sobre o menor Iúri, forçando-a a manter consigo um ato de coito oral, que o menor não queria, não se abstendo, ainda assim, de o praticar.

4ª O que vale por dizer que agiu com dolo, na vertente intelectual e volitiva, e tinha a consciência da ilicitude material.

5ª Entendendo assim o Exmº Colectivo, que a falta de alegação daquele elemento na acusação redunda na imputação de factos que não integram a prática de crime e que, ao acrescentá-lo, produz uma alteração substancial do que nela vem descrito. E, dada a palavra à defesa, esta opôs-se ao prosseguimento da audiência pelos novos factos.

6ª Todavia, o único facto acrescentado pelo Acórdão foi precisamente o do conhecimento da proibição, pelo que, no contexto do que vimos dizendo e do próprio Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/15, não transforma os factos que já vinham descritos na acusação de atípicos para típicos, de não puníveis para puníveis.

7ª Salvo o devido respeito parece ter de concluir-se que o próprio Acórdão n.º 1/2015, não abrange o conhecimento das proibições como alegação acusatória essencial, quando refere … “Na generalidade dos casos, porém, o sentido ou significado da ilicitude do facto promana da realização pelo agente da factualidade típica, agindo com o dolo requerido pelo tipo. Na verdade, em crimes como o de homicídio, ofensa à integridade física, furto, injúria ou violação, pôr a questão de saber se o agente, que atuou conscientemente, representando todas as circunstâncias do facto, e querendo, mesmo assim, a sua realização, atuou ou não com conhecimento da proibição legal, se sabia que matar, agredir fisicamente uma pessoa, subtrair coisa alheia para dela se apropriar, ofender a honra de alguém, era proibido legalmente, seria o mesmo que questionar se ele efetivamente vivia neste mundo ou se não seria uma extraterrestre acabado de aterrar neste planeta, como no filme de Steven Spielberg”.

8º Assim, alegando a acusação o dolo, nos seus elementos intelectual e volitivo, que o arguido agiu livre e conscientemente, ou seja, conhecendo todas as circunstâncias do facto e não estando obstaculizado a agir de outro modo, descreve todos os elementos típicos subjetivos do crime, tal como exigido pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência em referência.

9º Se a acusação não alega que o arguido sabia que a sua conduta é proibida por lei, é porque estamos perante uma delinquência axiologicamente significativa e desconforme aos costumes sociais mais abrangentes, caso em que, em conformidade com a referida jurisprudência, a sua alegação é despicienda.

10º Ou, não sendo despicienda, pelo menos não configura uma alteração substancial dos factos descritos na acusação, já que o comum dos cidadãos não ignora que é proibido matar, bater, injuriar, violar, etc.

11ª Salvo o devido respeito, expressões do género “o arguido agiu conhecendo o carácter proibido da sua conduta”, destinadas à uniformização do léxico judiciário, não podem transformar-se em fórmulas sacramentais, indo para além da materialidade do objeto da prova que se faz em julgamento.

12ª Há-de o arguido ficar impune com base no raciocínio de que não lhe está imputado um facto essencial para a sua defesa, quando é evidente que o conhecimento da proibição decorre da natureza do acto criminoso?

13ª Se não se suscitar qualquer questão de diminuição da imputabilidade ou outra causa que possa excluir a ilicitude, que prova mais terá o Ministério Público de fazer nesse julgamento aditando-se aquela imputação?

14ª Salvo o devido respeito parece ter de concluir-se que o teor do acórdão n.º 1/2015, não abrange a proibição em crimes como o roubo, a ofensa à integridade física ou a violação, bem como a consciência da ilicitude, como causa excluidora da culpa.

15º Há, pois, que concluir-se pela verificação “in casu” de uma alteração não substancial de factos, nos termos e para os efeitos do disposto no artº 358º do CPP, devendo dar-se a palavra à defesa para indicar, querendo, prazo ou novos elementos de prova, prosseguindo os autos os seus ulteriores termos.

16º Não tendo actuado desse modo, violou o Exmº Colectivo as normas previstas nos artºs 358º e 359º do CPP.

Nestes termos, dando provimento ao recurso e alterando o douto acórdão recorrido, substituindo-o por outro que:

- Considere estarmos perante uma alteração não substancial dos factos, dando-se cumprimento ao disposto no artº 358º do CPP».

4. – O arguido não apresentou resposta ao recurso.

5.- Nesta Relação, a senhora Procuradora-Geral Adjunto emitiu parecer em que manifesta a sua adesão aos fundamentos de facto e de direito do recurso, do que resultará pugnar pela sua procedência, ainda que, certamente por lapso, refira emitir parecer no sentido da improcedência do recurso.

6.Notificado, o arguido nada disse.

7. A sentença recorrida (transcrição parcial)
« A) FACTUALIDADE PROVADA:

Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:

« A- FACTOS PROVADOS
Da prova produzida e com interesse para a boa decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:

- IL é filho de RR e de CC e nasceu em 17 de Novembro de 1998.

- O jovem IL residiu com os pais e duas irmãs, em endereço não concretamente apurado em Palmela, após o que mudaram para Azeitão e aí passaram a residir na Praceta da Amizade, onde o menor permaneceu até 03/02/2014, data que foi institucionalizado;

- Em data não concretamente apurada, o IL, ainda com 14 anos de idade, estava na sala sentado no sofá a ver televisão, sendo que ali também se encontrava o arguido, não estando mais ninguém presente;

- A certa altura o arguido começou a acariciar o filho na zona genital, e após o arguido retirou o pénis para fora, agarrou na cabeça do jovem com força e conduziu-a na direcção do seu pénis que introduziu na boca do filho, friccionando o mesmo, contra a vontade do jovem, até que IL se conseguiu libertar e fugiu da sala;

- IL só mais tarde veio a revelar o que o arguido lhe fazia;

- Ao actuar da forma descrita, o arguido quis e logrou satisfazer os seus instintos libidinosos, actuando por gestos sobre o menor, seu filho, bem sabendo que o constrangia a um toque de natureza sexual que o mesmo não queria, importunando-o, ofendendo assim a sua liberdade sexual e os seus sentimentos de pudor e vergonha, o que quis e logrou conseguir, bem como sabia o arguido que actuava com violência sobre o menor IL, forçando-a a manter consigo um acto sexual de coito oral, que o menor não queria, e apesar de o menor oferecer resistência, quis, ainda assim, o arguido actuar.
*
Factos apurados quanto à situação pessoal e condição socioeconómica do arguido:

O processo de crescimento e desenvolvimento de RR decorreu até aos 20 anos de idade na zona de Quinta do Anjo, uma localidade de características rurais;

O arguido é o mais velho de três irmãos, sendo oriundo de uma família de baixa condição social e financeira, sendo o pai, motorista de profissão, o único elemento laboralmente activo;

O consumo regular e excessivo de álcool por parte da progenitora terá contribuído para a perturbação do ambiente familiar, sendo usual as discussões entre os pais, por vezes com violência, que geravam no arguido, sentimentos de ansiedade;

Quando mais tarde (10-11 anos) ganhou consciência da problemática aditiva da progenitora, RR refere ter passado a sentir-se envergonhado;

Apesar da referida problemática, a mãe terá sido capaz de cuidar adequadamente dos filhos;

O arguido considera o pai uma pessoa recta e frontal, com quem continua a manter uma boa relação;

A relação com a progenitora terá ficado mais conturbada após problemas familiares que envolveram o próprio e um irmão, contexto em sentiu que a mãe lhe foi desleal, tendo cessado temporariamente a comunicação com aquela figura;

RR teve na infância problemas de raquitismo que condicionaram o seu desenvolvimento físico, bem como dois traumatismos cranianos que não terão tido aparentemente qualquer sequela no seu desenvolvimento;

Enquanto criança era enérgica e irrequieta, fazendo muitas birras, e que durante estes episódios se automutilava, nomeadamente batia com a cabeça no chão ou paredes;

RR abandonou a escola aos 12 anos de idade, após conclusão do 6º ano de escolaridade;

O abandono escolar foi justificado pela vontade de trabalhar, tendo iniciado o percurso laboral aos 14 anos, na área da restauração;

Cerca dos 15 anos terá passado a trabalhar numa empresa ligada à limpeza industrial, onde trabalhava o pai, e onde se manteve até ao início do Serviço Militar Obrigatório (SMO);

O seu modo de vida até então, para além do trabalho, era ocupado através do convívio com os amigos ou em cafés e bailes;

Após ter terminado o SMO, conheceu CC, com quem começou a namorar, tendo aos 22 anos iniciado vida marital;

O casal viveu inicialmente em casa do agregado de origem do arguido, vindo a autonomizar-se e a adquirir casa própria em Pinhal Novo, através de empréstimo bancário;

RR foi sempre o principal sustento do agregado, trabalhando então na construção civil, como pedreiro. A companheira apenas tem trabalhado de modo pontual, na área da restauração;

Durante 7 anos o casal viveu em Pinhal Novo, onde nasceram os três filhos, que têm actualmente idades compreendidas entre os 21 e os 17 anos, tendo a filha mais velha um atraso de desenvolvimento a nível cognitivo;

Na sequência de um período de inactividade mais prolongado da companheira e da subida da prestação relativa ao empréstimo da habitação, atravessaram dificuldades financeiras, deixando de conseguir pagar a referida prestação, culminando na entrega da habitação à entidade bancária;

O agregado mudou-se então para Palmela, onde viveram entre 2004 e 2008;

Numa fase de necessidade de organização do agregado, nomeadamente pelo facto de a progenitora ter começado a trabalhar, os pais solicitaram apoio aos avós paternos para assumirem os cuidados de Iuri quando este era ainda bebé.

Porém esta situação prologou-se no tempo por motivos não apurados;

Mesmo após IL ter integrado o agregado de origem, pernoitava com frequência em casa dos avós paternos, contra a vontade dos progenitores;

A relação entre o arguido e o filho sempre foi conturbada e disfuncional;

Entre 2012 a 2014, a relação entre os pais e IL foi marcada por conflitos e dificuldades no controlo do seu comportamento, sendo recorrente IL faltar às aulas, mentir e falsificar a assinatura dos pais para justificar as referidas faltas e ausentar-se para casa dos avós paternos, como estratégia de evitamento de conflitos ou reprimendas por parte dos pais;

Com idade não apurada surge a revelação de que IL é homossexual;

A homossexualidade do filho não foi bem aceite pelo arguido;

O conhecimento da existência de uma relação homossexual entre IL e uma pessoa mais velha gerou ainda mais tensões no seio familiar;

O modo de vida do arguido tem mantido ao longo do tempo um padrão similar, onde o trabalho tem um papel de relevo e que ocupa a maior parte do seu dia. Assim sai de casa cerca das 6 da manhã e só regressa cerca das 18 horas. Por regra não é um sujeito que tenha hábitos lúdicos ou desportivos de ocupação do tempo livre, permanecendo em casa, onde também se dedica a reparações/manutenção;

A situação financeira do agregado tem oscilado entre um quadro modesto e alguma precariedade;

RR tem mantido estabilidade laboral e trabalha desde há cerca de 10 anos para a empresa XX na área da logística, auferindo salário de 495€, após o desconto de 180€ relativos ao pagamento de um empréstimo de um irmão de quem foi fiador e que gerou atritos entre ambos, bem como entre o arguido e a mãe, motivo pelo qual não manteve relação com estes dois elementos durante bastante tempo;

RR terá entretanto diminuído a intensidade dos consumos de bebidas alcoólicas, não sendo reportado actualmente um padrão de consumo de álcool que interfira negativamente no seu funcionamento interpessoal;

O arguido aparenta ser um sujeito reservado e com poucos amigos. É um sujeito muito trabalhador, mantendo, no geral e neste contexto relações cordiais;

O arguido tem dificuldades na contenção dos impulsos no contexto intrafamiliar, bem como tendência para manipular a informação, sendo assim a sua imagem pouco credível junto dos serviços com os quais se tem articulado mais regularmente;

O seu desempenho parental tem sido avaliado de modo distinto. Assim, se a relação com as filhas é considerada afectuosa e adequada, já com o filho é descrita como sendo rude, tensa e conflituosa;

RR não tem tido qualquer relação o filho, com excepção de algum contacto pontual, ocorrido logo após a sua institucionalização, não mostrando o mesmo qualquer desejo em reatar esta relação;

A progenitora do jovem, actualmente, revela-se aliada do companheiro em desfavor do filho;

RR não aparenta revelar no seu funcionamento pessoal e interpessoal, indicadores significativos relacionados com factores de risco associados ao abuso sexual de crianças.

No entanto existem indicadores de défices ao nível do autocontrolo, em especial em contexto intrafamiliar e na relação com a alegada vítima;

Dos antecedentes criminais do arguido:

- O arguido não tem antecedentes criminais registados.
*
B- FACTOS NÃO PROVADOS
Com interesse para a decisão da causa, ficaram por provar os seguintes factos

- Foi devido à suspeita de maus tratos físicos perpetrados pelo progenitor sobre o filho, que foi instaurado processo de promoção e protecção que correu termos na Instância Central de Família e Menores desta Comarca, sob o nº---/14.3TMSTB, tendo sido aí que lhe foi aplicada a medida de acolhimento em instituição.

- Quando residiam na Praceta da Amizade…, em Azeitão, tendo o IL 14 anos, em dia não concretamente apurado, o arguido após tomar banho solicitou ao filho para lhe levar roupa ao quarto, quando o menor aí chegou o arguido começou a tocar nos órgãos genitais de IL, sobre a roupa que este trazia vestida, até que o jovem pediu ao arguido para parar com aquele comportamento e fugiu do quarto;

- Quando estavam a ver televisão na sala IL estava vestido só com boxers;

- Numa outra ocasião, depois das supra descritas, e em data não apurada, o IL estava na casa de banho, após tomar banho, quando ali entrou o arguido, em boxers, porquanto ia tomar banho a seguir, e fechou a porta;

- O jovem estava nu, a secar-se após ter saído do banho e quando se debruçou o arguido começou a tocar-lhe nas nádegas, após o que encostou o pénis erecto no ânus do menor, sem contudo o penetrar;

- Nesta altura, uma das irmãs do IL bateu à porta, ao que o arguido entrou para a banheiro e o ofendido saiu para fora da casa de banho.

C- FUNDAMENTAÇÃO
O Tribunal respondeu à matéria de facto da forma supra descrita tendo em consideração toda a prova produzida em audiência, nomeadamente:

-- Relatório de Perícia Psicológica relativo ao IL, fls. 40 a 58, de onde se conclui pela credibilidade do examinado, considerando uma realidade inverosímil outras hipóteses explicativas;

-- Relatório da Perícia de Natureza Sexual em direito Penal, fls. 70 a 81, do qual resulta que não existem vestígios físicos que permitam concluir pelo abuso, mas da abordagem complementar pela especialidade de psicologia avultam dados técnico-científicos específicos bastantes, indicadores, com elevada probabilidade, da existência de “abuso sexual” perpetrado por outrem, situação que, por si só, pode condicionar a autodeterminação sexual de IL.

- Assento de nascimento de IL de fls. 14;
- Declarações do arguido; e

- Depoimento da testemunha IL.

Com efeito, o arguido negou a prática dos factos, alegando que em causa está uma vingança por parte do filho, que sempre jurou que o pai lhe haveria de pagar pelo facto daquele ter ido tirar satisfações a um indivíduo de nome JC, pelo facto de lhe ter dado um telemóvel sem qualquer motivo aparente, telemóvel este que a mãe de IL partiu, atirando contra a parede. Mais, alegou que o filho não gosta do mesmo, não conseguindo perceber por qual motivo, embora admita que ralhasse com ele, que fosse frontal.

Ora, não obstante as declarações do arguido, as quais nem mesmo são muito coerentes, já que se quem partiu o telemóvel foi a mãe, a vingar-se de alguém seria desta e não do pai, o certo é que da conjugação das declarações de IL com os relatórios periciais juntos aos autos dúvidas não ficaram quanto aos factos dados como provados.

Com efeito, IL confirmou os mesmos, sendo perfeitamente compreensível o constrangimento e inibição do mesmo sempre que lhe era pedido para descrever, denominar, os actos de cariz sexual concretamente ocorridos.

Quanto às condições pessoais, socioeconómicas e familiares do arguido atendeu-se ao relatório social junto aos autos.

Relativamente aos antecedentes criminais, atendeu-se ao certificado de registo criminal constante de fls. 134.

Quanto aos factos não provados, os mesmos resultaram da não produção de prova nesse sentido, já que IL declarou não se recordar de qualquer situação ocorrida na casa de banho, e quanto aos factos ocorridos no quarto do pai, descreveu-os de forma totalmente diversa, mas que o Tribunal não pode ter em consideração face à oposição do arguido na continuação da audiência de julgamento pelos factos novos comunicados nos termos do art. 359º do Código de Processo Penal.

III- ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL DOS FACTOS

1- Qualificação jurídico-penal dos factos

Encontra-se o arguido acusado da prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de:

- Dois crimes de importunação sexual agravados, previstos e punidos pelos artigos 170º e 177º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal.

- Um crime de violação agravada, previsto e punido pelo art. 164º, nº 1, al. a), e art. 177º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal.

Dito isto vejamos:

Dispõe o art. 170º do Código Penal na redacção em vigor à data dos factos que:

Quem importunar outra pessoa praticando perante ela actos de carácter exibicionista ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.

Por sua vez, dispõe o art. 164º do Código Penal na redacção em vigor à data dos factos que:

“1 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:

a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou

b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;

é punido com pena de prisão de três a dez anos.

2 - Quem, por meio não compreendido no número anterior e abusando de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho, ou aproveitando-se de temor que causou, constranger outra pessoa:

a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou

b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;

é punido com pena de prisão até três anos”.

Por último, dispõe o art. 177º, nº 1, al. a), do Código Penal na redacção em vigor à data dos factos que:

“1 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima:

a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente; (…)”

Quer no crime de importunação sexual, quer no crime de violação o bem jurídico protegido é o da liberdade de sexual, sendo que em causa está sempre um crime de dano, ou seja, que pressupõe a efectiva lesão do bem jurídico.

No que respeita ao crime de importunação sexual, conforme resulta do art. 170º do Código Penal tem que existir um acto de importunação ou a prática de actos exibicionistas face a outra pessoa, actos estes de natureza sexual, ainda assim sem a gravidade do acto sexual de relevo.

Na verdade, e conforme refere Pinto de Albuquerque “a acção com conotação sexual realizada na vítima, que não tem a gravidade do acto sexual de relevo. O contacto pode incluir o toque (com objectos ou partes do corpo) da nuca, do pescoço, dos ombros, dos braços, das mãos, do ventre, das costas, das pernas e dos pés da vítima” – v. Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, Universidade Católica, 2008, pág. 468,

No caso do ilícito previsto no art. 164º, nº 1, al. a), do Código Penal são elementos objectivos do tipo:

- O constrangimento de outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem:

- cópula;
- coito anal; ou
- coito oral;

- Que o constrangimento decorra por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir.

Já em termos subjectivos ambos os crimes são dolosos.

Ora, em face da factualidade apurada, desde logo se conclui que nenhuma conduta do arguido é susceptível de integrar a prática dos crimes de importunação sexual agravados pelos quais o arguido vinha acusado, devendo em relação aos mesmos o arguido ser absolvido.

Com efeito, a única situação que poderia, caso se considerasse um acto autonomizável de toda a conduta posterior do arguido, levantar alguma dúvida seria quanto ao acariciamento por parte do mesmo dos órgãos genitais do filho. Contudo, para além de se entender que estamos perante um acto preparatório, tal acto sempre seria um acto de sexual de relevo e nunca um mero toque sem esta gravidade.

Na verdade, em face da factualidade apurada verifica-se que a conduta do arguido preenche os elementos objectivos de um crime de violação agravada, previsto e punido pelo art. 164º, nº 1, al. a), e art. 177º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal, sendo o primeiro contacto um acto preparatório de toda a sua conduta posterior.

Com efeito, o arguido constrangeu o filho a praticar-se coito oral, agarrando na cabeça do jovem com força e conduzindo a mesma na direcção do seu pénis que introduziu na boca do filho, contra a vontade do jovem, que logo que se conseguiu libertar fugiu. Dito isto, dúvidas não existem quanto ao arguido ter usado de violência para concretização dos seus intentos.

Também da factualidade apurada não restam dúvidas quanto a ter resultado provado que o arguido actuou de modo livre, deliberado e consciente, o que o chamado dolo do tipo.

Contudo, nenhum facto foi alegado, e nessa medida resultou provado (até porquanto o arguido deduziu oposição à alteração substancial lhe comunicada nos termos do art. 359ª do Código de Processo Penal), quanto ao dolo da culpa, à consciência da ilicitude, o que implica que não se possa considerar devidamente preenchido o elemento subjectivo do crime.

Na verdade, e conforme se refere no Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015, de 20/11/2014:

“… a acusação, enquanto delimitadora do objecto do processo, tem de conter os aspectos que configuram os elementos subjectivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido acima referido, englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação, de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), actuando, assim, conscientemente contra o direito”.

A este respeito, refere-se no Ac. do TRC de 02/03/2016, com o que concordamos integralmente, que:

“I - A consciência da ilicitude é momento constitutivo do dolo (não do tipo de ilícito mas do tipo de culpa), o seu momento emocional, sendo, portanto, uma exigência da atuação dolosa do agente na realização do tipo.

II - A jurisprudência fixada [Acórdão Uniformizador nº 1/2015 de 27 de Janeiro (in DR, 1ª Série, nº 18, de 27 de Janeiro de 2015)] não tem exclusivamente por objeto a falta absoluta, na acusação, da descrição do tipo subjetivo do crime imputado.

III - O aditamento feito em audiência de julgamento pelo tribunal recorrido, da expressão «Os arguidos sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei penal» não se traduz numa alteração inócua e despicienda, mera reprodução de bordão acolhido pela prática judiciária, sem qualquer valor funcional, antes dá plena satisfação à necessidade ‘prática’ de remediar uma deficiente descrição [por omissão de elemento essencial] do tipo subjetivo de ilícito levada ao despacho de pronúncia [e que já ocorria no requerimento para abertura da instrução].

IV - O Acórdão Uniformizador nº 1/2015 veio fixar o sentido oposto a tal entendimento [recurso ao mecanismo do art. 358º, nº 1 do C. Processo Penal], impedindo o recurso ao dito mecanismo para integrar a deficiente descrição, por omissão narrativa, do tipo subjetivo do crime imputado, onde se inclui a consciência da ilicitude e determinando, consequentemente, que a deficiente ou incompleta definição do tipo subjetivo de ilícito conduza, necessariamente, à absolvição”.

Dito isto, desde logo se conclui que não está devidamente preenchido o elemento subjectivo do crime de violação agravada, previsto e punido pelo art. 164º, nº 1, al. a), e art. 177º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal, devendo, consequentemente, o arguido ser absolvido.
IV- DECISÃO

(…) »
Cumpre agora apreciar e decidir o presente recurso.

Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso e dos poderes de cognição do tribunal ad quem

O acórdão recorrido absolveu o arguido da prática de dois crimes de importunação sexual agravados, previstos e punidos pelos artigos 170º e 177º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal, que lhe eram imputados na acusação, por considerar que em face da factualidade apurada, desde logo se conclui que nenhuma conduta do arguido é suscetível de integrar a prática dos crimes de importunação sexual agravados pelos quais o arguido vinha acusado, devendo em relação aos mesmos o arguido ser absolvido, pois, em síntese nossa, no caso concreto o acariciamento dos órgãos genitais do filho por parte do arguido constitui ato preparatório do crime de violação igualmente imputado ao arguido, que não é punível autonomamente.

O acórdão recorrido absolveu ainda o arguido da prática de um crime de violação agravada, previsto e punido pelo art. 164º, nº 1, al. a), e art. 177º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal, que lhe fora igualmente imputado pelo MP, pelas seguintes razões:

- Porque embora se verifique que a conduta do arguido preenche os elementos objetivos daquele crime de violação agravada, sendo o primeiro contacto um ato preparatório de toda a sua conduta posterior e não restem dúvidas quanto a ter resultado provado que o arguido atuou de modo livre, deliberado e consciente, o que [integra] o chamado dolo do tipo, nenhum facto foi alegado, e nessa medida resultou provado (até porquanto o arguido deduziu oposição à alteração substancial lhe comunicada nos termos do art. 359ª do Código de Processo Penal), quanto ao dolo da culpa, à consciência da ilicitude, o que implica que não se possa considerar devidamente preenchido o elemento subjetivo do crime, tal como decidido no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 1/2015.

2. Conforme decorre inequivocamente da sua motivação de recurso, o MP recorre apenas da absolvição do arguido pela prática do crime de violação agravada, previsto e punido pelo art. 164º, nº 1, al. a), e art. 177º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal, pelo que transitou em julgado a absolvição do arguido relativamente aos dois crimes de importunação sexual agravados, previstos e punidos pelos artigos 170º e 177º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal, de que vinha acusado.
3. Com efeito, o MP apenas põe em causa no presente recurso a decisão de absolvição pelo crime de violação agravada, previsto e punido pelo art. 164º, nº 1, al. a), e art. 177º, nº 1, al. a), ambos do Código Pena, por considerar que o acórdão de fixação de jurisprudência (AFJ) n.º 1/2015 não abrange a proibição em crimes como o roubo, a ofensa à integridade física ou a violação, bem como a consciência da ilicitude, como causa excluidora da culpa, pelo que pretende que o acórdão recorrido seja substituído por outro que considere estarmos perante uma alteração não substancial dos factos, dando-se cumprimento ao disposto no artº 358º do CPP.

4. Assim, as questões suscitadas no recurso do MP, podem enunciar-se do seguinte modo:

- A acusação (ou o despacho de pronúncia) deve conter, entre os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, a articulação de que o arguido tinha consciência da ilicitude ao praticar os factos que lhe são imputados?

- A falta de indicação na acusação de que o arguido agiu com consciência da ilicitude não pode ser suprida nos termos do art. 358º do CPP, mas apenas nos termos do art. 359º do CPP, por se encontrar abrangida pela fixação de jurisprudência operada pelo AFJ 1/2015 do STJ?

5. Porém, independentemente de saber se a articulação na acusação da “consciência da ilicitude” ou “consciência do ilícito” é imposta pelo AFJ 1/2015, somos levados a divergir da jurisprudência ali fixada, por se nos afigurar que a falta de descrição na acusação de factos relativos aos elementos do dolo na acusação (quaisquer que eles sejam e, portanto, mesmo que se entenda incluírem “a consciência da ilicitude”), pode ser suprida mediante cumprimento do disposto no art. 358º do CPP com base em fundamentação jurídica que não foi considerada naquela AFJ 1/2015 e porque, em todo o caso, ocorreu alteração significativa na composição das secções criminais do STJ.

Em todo o caso, mesmo que se entenda que a uniformização de jurisprudência operada pelo AFJ 1/2015 – que não se confunde com trechos da respetiva fundamentação que parecem apontar nesse sentido - abrange a necessidade de articulação da “consciência da ilicitude em todos os crimes dolosos”, sempre seríamos levados a divergir daquela jurisprudência especificamente nesse ponto.

Com efeito, para além de os argumentos expostos genericamente para todos os elementos do dolo valerem de igual modo para a falta de alegação da consciência da ilicitude, se tal omissão for considerada abrangida pelo AFJ 1/2015, nesse caso, devem ainda considerar-se, nos termos e para efeitos dos artigos 445º nº3 e 446º, nº2, CPP, os argumentos ora expostos em I para justificar o que constituiria, nesse caso, divergência específica com a jurisprudência que se considere fixada relativamente à falta de alegação da consciência da ilicitude.

Ou seja, a entender-se que a consciência da ilicitude é um dos factos relativos aos elementos subjetivos do crime que se impõe articular na acusação abrangidos pelo AFJ 1/2015, sempre divergimos dessa jurisprudência pelas razões específicas que se prendem com o lugar da “consciência da ilicitude” nas categorias dogmáticas da teoria geral da infração especificamente que se desenvolvem na parte I deste acórdão, as quais não foram consideradas naquele AFJ 1/2015.

Decidindo.
I
Comecemos, pois, por decidir as questões suscitadas pelo MP recorrente no seu recurso, ou seja que a acusação não tem que articular factos relativos “à consciência da ilicitude” porque os mesmos não integram os elementos subjetivos do crime, não se encontrando abrangidos pela fixação de jurisprudência operada pelo AFJ 1/2015 do STJ.

Antecipando conclusões, entendemos que o MP recorrente tem razão ao considerar que a jurisprudência fixada no AFJ 1/2015 não abrange a afirmação de que os factos do dolo incluem a alegação e prova de que o arguido agiu com consciência da ilicitude, contrariamente ao decidido no acórdão recorrido.

Na verdade, como vimos, depois de assentar que, face à factualidade provada, a conduta do arguido preenche os elementos objetivos de um crime de violação agravada, previsto e punido pelo art. 164º, nº 1, al. a), e art. 177º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal, bem como o chamado dolo do tipo, pois resultou provado que o arguido atuou de modo livre, deliberado e consciente, o tribunal recorrido absolveu o arguido da prática daquele crime de violação por considerar, invocando a jurisprudência fixada no AFJ 1/2015, que nenhum facto foi alegado, e nessa medida resultou provado, quanto ao dolo da culpa, à consciência da ilicitude, o que implica que não se possa considerar devidamente preenchido o elemento subjectivo do crime.

Ora, com todo o respeito por opinião contrária, entendemos que “a consciência da ilicitude” não integra o dolo do tipo, na conceção tripartida do crime, ou, na conceção bipartida do crime seguida entre nós por F. Dias e Taipa de Carvalho, o dolo do ilícito típico, relevando apenas em sede de dolo do tipo de culpa ou dolo da culpa, pelo que não carece de ser alegada em toda e qualquer acusação por crime doloso, Apenas tem que ser apreciada e decidida ex professo quando em concreto se suscite hipótese de erro sobre a ilicitude, que é um erro de valoração e não de conhecimento, que o art. 17º do C. Penal prevê como causa de exclusão da culpa, se o erro não for censurável ao agente do crime – vd F. Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª ed., 2007, pp. 628 a 640.

Vejamos, pois, as razões que nos levam a considerar, que “a consciência da ilicitude” não carece de ser alegada e provada no crime de violação aqui em causa, pois não tem que sê-lo em todo e qualquer crime doloso, deixando ainda referência aos motivos que nos levam a entender que não decorre do AFJ 1/2015 a exigência de “alegação da “consciência da ilicitude” em todos os crimes dolosos, por não estar tal exigência abrangida pela uniformização de jurisprudência ali operada.

1. Como destaca o Prof. F. Dias, ob. cit. pp 531 a 543, que seguiremos de perto neste excurso histórico, o lugar da consciência da ilicitude no quadro da teoria geral da infração é das matérias mais discutidas da dogmática penal, nomeadamente a propósito do regime do erro sobre a proibição ou falta de consciência da ilicitude, distinguindo-se a tal propósito as teorias do dolo e as teorias da culpa, que, por sua vez, podem assumir a versão estrita ou rígida e a versão limitada, configurando a evolução do direito e da lei penais portuguesas a este propósito um padrão das diversas compreensões que o problema foi historicamente assumindo no conspecto do direito comparado.

Na sua raiz comum, as teorias do dolo, identificadas com o causalismo clássico, consideram que a consciência do ilícito é necessário à verificação do elemento intelectual ou cognitivo do dolo, dolo que, por sua vez, faz parte da culpa e não do tipo. Teorias do dolo, precisamente, porque segundo elas o erro de proibição exclui o dolo, tal como sucede com o chamado erro do tipo. Para estas teorias, o cerne dos delitos dolosos reside na consciência do ilícito com que o agente atuou, na sua oposição consciente aos comandos do dever ser jurídico como tal reconhecido (dolus malus), o que implicaria, como ensina o Prof. F. Dias, que “a condenação por qualquer crime doloso suporia a prova de que o agente atuou com a consciência atual (se no momento do facto) de que o seu facto era contrário ao direito”.

No que aos autos importa diretamente, tal significa que para os defensores das teorias do dolo, impunha-se a articulação e prova da consciência da ilicitude, usando-se tradicionalmente a locução tradicional, “ o arguido bem sabia ser proibida por lei a sua conduta”, ou semelhante, o que a praxis judiciária tem mantido sem problemas, apesar de tal não se ajustar às teorias da culpa, atualmente dominantes, e ao C.Penal de 1982, como veremos, até que em algumas decisões foi considerado essencial para a pronúncia (na fase de instrução) ou a condenação (na fase de julgamento), a articulação de que “o arguido bem sabia ser proibida por lei a sua conduta ou que tinha consciência da ilicitude dessa mesma conduta.

Para a teoria estrita do dolo a falta de consciência da ilicitude sempre exclui o dolo, enquanto a teoria limitada do dolo, partindo dos mesmos postulados teóricos, chega a consequências jurídico-práticas diferentes quando estão em causa crimes tão graves que o desconhecimento da proibição, isto é da ilicitude dos respetivos factos é revelador de uma personalidade “cega para o direito”. Nestas situações, entendem que embora o erro sobre a ilicitude exclua o dolo, o agente deve ser punido com a pena aplicável ao respetivo crime doloso.

As teorias da culpa encontram o seu fundamento na doutrina do finalismo penal, que reduziu o dolo ao conhecer e querer os elementos da situação típica objetiva, excluindo do dolo o conhecimento do seu significado antijurídico. Para estas teorias o conhecimento da ilicitude (enquanto conhecimento potencial e não atual) deve valorar-se como requisito autónomo da culpabilidade e a sua ausência, isto é, o erro de proibição ou erro sobre a ilicitude, não afeta a subsistência do ilícito doloso, afetando apenas a culpa do seu autor.

A teoria estrita da culpa estende este regime mesmo aos casos de erro sobre os pressupostos de uma causa de justificação, pelo que este erro também não exclui o dolo, mas apenas a culpa como se se tratasse de um erro sobre a proibição ou a ilicitude. Assim, se for considerado evitável (censurável) o agente responde a título doloso, se for considerado inevitável (não censurável), o agente é absolvido.

Para a teoria limitada da culpa, o dolo abrange não apenas os elementos do tipo legal mas também os pressupostos ou elementos das causas de justificação. Logo, o erro sobre um destes elementos também exclui o dolo, tal como o erro sobre a factualidade típica objetiva de cariz positivo, mantendo-se a punição a título negligente.

2. Ora, o atual C.Penal parece ter-se afastado claramente do causalismo clássico e das teorias do dolo, desde logo porque, optando por definir os elementos do dolo nas alíneas do art. 14º, fá-lo corresponder, basicamente, ao conhecimento e vontade de realização dos elementos típicos objetivos do crime, omitindo qualquer alusão à consciência da ilicitude.

Em segundo lugar, a solução acolhida no art. 17º do C.Penal para o erro de proibição ou erro sobre a ilicitude, confirma a sua autonomia face ao dolo, ao mesmo tempo que situa a consciência da ilicitude na culpa.

Daí poder afirmar-se que as teorias do dolo, próprias do causalismo clássico, não são compatíveis com o direito penal português atual, que terá acolhido solução identificada com as teorias da culpa, sustentadas no finalismo, precisamente ao colocar o dolo na tipicidade (art. 14º) e ao deixar na culpa o conhecimento da ilicitude (art. 17º).

Na verdade, é com este entendimento que se harmoniza quer a noção legal de dolo extraída do seu art. 14º, quer a disciplina do art. 17º do C.Penal, ao estabelecer que o erro sobre a ilicitude (a falta de consciência da ilicitude), sendo um erro de valoração e não de conhecimento, exclui a culpa e não o dolo, de acordo com as teorias da culpa próprias do finalismo, contrariamente à conclusão lógica a que chegava o causalismo clássico, com as teorias do dolo.

Diferentemente, o regime estabelecido no art. 16º para o erro sobre as proibições, que consiste num erro sobre o conhecimento, idêntico ao erro sobre circunstâncias do facto, exclui o dolo, como é próprio das teorias da culpa aludidas.

Isto é, contrariamente ao que se verifica relativamente à consciência da ilicitude (art. 17º), enquanto substrato valorativo e não factual, atual, da conduta dolosa, que se presume, ou, talvez mais rigorosamente, se mostra indiciada face à verificação do dolo enquanto elemento do tipo legal, na tradicional conceção tripartida do crime, o nosso C. Penal trata as proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da licitude do facto, (art. 16º nº1, 2ª parte) como se fossem elementos de facto ou de direito do tipo de crime, uma vez que o seu conhecimento, que em certos casos não pode ter-se por adquirido, é indispensável para que possa imputar-se o facto objetivo típico ao agente, a título de dolo.

Como distingue, por todos, José António Veloso, o art. 17º e o art. 16º nº1, 2ª parte, incidem sobre objeto ou incriminações diferentes.

Enquanto o art. 17º se refere aos crimes cuja punibilidade se pode presumir conhecida, e não é desculpável que não seja conhecida de todos os cidadãos normalmente socializados (“crimes naturais”, “crimes em si” ou “mala in se”), a 2ª parte do nº 1 do art. 16º reporta-se aos crimes relativamente aos quais não pode falar-se daquela presunção, nomeadamente por respeitarem a áreas em que os tipos legais se referem a condutas de pouca relevância axiológica, como sucede em muitos casos do chamado direito penal secundário, mas também em casos de novas incriminações, enquanto for aceitável o desconhecimento das novas normas (assim J.A. Veloso, Erro em direito Penal, 2ª ed., AAFDL, 1999, p. 25).

3. Na conceção tripartida do crime, a consciência da ilicitude respeita, pois, à culpa e em princípio não tem que ser alegada e provada, devendo sê-lo apenas nas hipóteses (residuais, pelo menos do ponto de vista estatístico), de falta de consciência da ilicitude, censurável ou não censurável, como sucede, aliás, com a generalidade dos elementos da culpa enquanto categoria autónoma da teoria geral da infração, que, integrando a categoria dogmática das causas de exclusão da culpa, apenas são discutidas, constituindo objeto de apreciação e decisão autónomas, nos casos em que as hipóteses factuais respetivas sejam tratadas na fase de inquérito pelo MP, sejam invocadas pelo arguido ou resultem da discussão da causa, pelo que não tem fundamento a exigência de articulação da “consciência da ilicitude” na acusação em todos os crime dolosos.

4. Por último, mesmo a considerar-se que a “consciência da ilicitude” integra o dolo do tipo de culpa na conceção bipartida do crime, seguida entre nós por F. Dias e Taipa de Carvalho, não nos parece que daí resulte a exigência de alegação da consciência da ilicitude, ou expressão de igual sentido, enquanto facto psicológico, suscetível de prova, em todos os crimes dolosos.

Na verdade, como vimos, a conclusão sobre a desnecessidade de alegação da “consciência da ilicitude” em todos os crimes dolosos, decorre sobretudo da articulação entre a regra base do art. 13º C.Penal, ao dispor que só é punível o facto praticado com dolo ou negligência, o estabelecido no art. 14º do C.Penal que se reporta apenas aos elementos intelectual e cognitivo do dolo, o regime do erro sobre a ilicitude estabelecido no art. 17º do C.Penal e o regime do erro sobre as proibições acolhidos no art. 16º do C.Penal, igualmente referidos, pelo que sempre se imporia demonstrar que da conceção bipartida do crime, decorre diferente interpretação daqueles preceitos legais, o que não se mostra sequer intentado no AFJ 1/2015 invocado pelo acórdão recorrido.

Que sentido faria o regime do erro sobre a ilicitude previsto no art. 17º do C.Penal, de acordo com o qual a exclusão da culpa aí cominada depende de o arguido agir sem consciência da ilicitude, que não lhe seja censurável, se a falta de alegação e/ou prova da consciência da ilicitude, em todo e qualquer crime doloso, implicasse a absolvição do arguido, independentemente de ser ou não censurável aquela ignorância, como entendeu o tribunal recorrido, invocando o AFJ 1/2015?

5. Por outro lado, parece-nos que da doutrina defendida entre nós pelo Prof. F. Dias não decorre a conclusão de que a consciência da ilicitude, enquanto facto psicológico, ainda que integrando o dolo do tipo de culpa (dolosa), deva ser articulado em todo e cada crime doloso.

Em primeiro lugar, embora deixe claro ser seu entendimento que “…o tipo de culpa doloso [em contraponto com o tipo de culpa negligente] se verifica apenas quando, perante um ilícito típico culposo, se comprova que o seu cometimento deve imputar-se a uma atitude íntima do agente contrária ou indiferente ao Direito e às suas normas…”, o prof. F. Dias refere que esta atitude interna do agente, própria da culpa dolosa, é indiciada (embora não fundamentada) pelo elemento volitivo do dolo, possibilitando assim que o agente seja punido a título de dolo (cf. ob. cit. pp. 529 e 350).

Em segundo lugar, o Prof. F. Dias parece mesmo afastar explicitamente a necessidade de articulação da “consciência da ilicitude” ou expressão semelhante quando ao referir-se à diferença de gravidade entre a culpa presente no crime doloso e no crime negligente, escreve o seguinte:

- “ O reconhecimento desta diferença foi tradicionalmente reconduzido à ideia de que, para justificar a punição a título de dolo, o facto deve revelar que, ao praticá-lo, o agente sobrepôs conscientemente os seus interesses ao desvalor do ilícito …, o que conduziu a que a questão, durante muito tempo, se considerasse incindivelmente ligada ao problema da consciência do ilícito: uma punição a título de dolo suporia que, para além de o agente representar e querer a realização do tipo objetivo de ilícito (dolo do tipo), actuasse com [a negrito no original] consciência do ilícito, isto é, representasse por alguma forma que o facto intentado era proibido pelo Direito. Veremos em seguida [conclui o autor] que uma tal conceção não é necessária, nem sequer exata. Mas ela revela que, já no entendimento tradicional, com o mero dolo do tipo não se justificava a punição a título de dolo, antes se requeria um qualquer elemento adicional (na verdade, um elemento emocional) que, deste modo, traduz a vera essência do tipo de culpa doloso” – cf. ob cit pp 529-530).

Ora, se há conclusão que este trecho permite tirar é que, a considerar-se (o que não temos por certo), que o Prof. F. Dias entende ser necessária a comprovação da atitude íntima do agente contrária ou indiferente ao Direito, indiciada pelo dolo do ilícito típico, mediante a articulação de um qualquer elemento adicional, é que este elemento, respeitando ao dolo da culpa, não se traduz na ultrapassada articulação da consciência do ilícito, contrariamente ao assumido pelo acórdão recorrido com base na jurisprudência que invoca.

Em todo o caso, sempre se diga que não se encontra demonstrado que de acordo com a doutrina bipartida do tipo seguida por F. Dias e Taipa de Carvalho – ou apesar dela – seja necessária, por regra, a articulação e prova de factos que acresçam aos que integram os elementos do dolo do tipo tal como são apresentados no art. 14º do C.Penal.

Na medida em que, na generalidade dos casos, aqueles elementos indiciam que o agente se afasta consciente e voluntariamente do Direito, orientando a sua conduta para o desvalor jurídico, para a ilicitude, da conduta que levou a cabo, parece que não será necessária a comprovação desta indiciação em cada caso, através do apuramento de outros factos de natureza psicológica, deixando-se à categoria dogmática das causas de exclusão da culpa e, no que aqui mais releva, ao regime previsto no art. 17º C.Penal para a falta de consciência da ilicitude, a solução dos casos especiais, se não mesmo excecionais, em que se coloca verdadeiramente o problema da desconformidade entre os valores da comunidade social e política em que assenta a incriminação e a pauta de valores do agente, designadamente em casos de conflito entre regras étnico-culturais e normas estatais, para além de outras. – Vd., por todos, Augusto Silva Dias, Faz sentido punir o ritual do fanado? Reflexões sobre a flexibilidade da excisão clitoridiana, RPCC Ano 16, nº2, especialmente p 218 a 228 sgs.

Mais claramente neste sentido parece expressar-se Taipa de Carvalho, Direito Penal. Parte Geral, Vol. II, “2004, Publicações Universidade Católica, pp 127-8, ao falar da “dupla dimensão ou estrutura do dolo”. Diz ele que não basta o “…dolo do tipo (i.e. da factualidade típica), dolo do facto ou dolo psicológico-intelectual, para que o respetivo agente possa ser punido por crime doloso. (…) Para haver crime doloso é necessário que a esta dimensão psicológica do dolo acresça a dimensão ético-pessoal do dolo …dolo-culpa, dolo ético ou culpa dolosa [que] consiste numa atitude ético-pessoal de oposição ou de indiferença do agente perante o dever-ser jurídico-penal (i.e. perante o bem jurídico-penal), atitude esta concretizada no facto típico praticado, que o agente corretamente representou e quis”. (negrito acrescentado ao original.

Ou seja, apesar de deixar claro que não basta o dolo do tipo ou do facto e que deve acrescer-lhe o dolo da culpa, sem a qual o agente não será punido por crime doloso, e que a culpa dolosa pressupõe a consciência da ilicitude do facto típico praticado, o autor não se reporta a quaisquer outros factos concretos, de natureza psicológica ou outra, que careçam de ser alegados e demonstrados em cada caso. Deixa, pois, em aberto, entendimento da sua doutrina em termos mais próximos das teorias da “dupla valoração” do dolo, segundo as quais o dolo (e a negligência, no tipo de culpa negligente) sofrem uma dupla valoração no sistema, uma em sede de tipo de ilícito e outra em sede de tipo de culpa, de tal forma que dolo e negligência devam relevar automaticamente, ao nível da culpa, como expressões respetivas de uma certa atitude pessoal perante as exigências jurídico-penais. – v.d. F. Dias, ob. cit. pp 272-3 e 278.

Assim sendo, a dupla valoração dos factos do dolo do tipo ou dolo do facto [entre nós os que resultam do art. 14º do C.Penal], reportar-se-á à exigência de que, em sede de tipo de culpa, se comprove a atitude ético-pessoal de oposição ou de indiferença do agente perante o dever-ser jurídico-penal indiciada pelo dolo do tipo ou dolo do facto, no sentido de não se mostrar afastada, pela verificação de alguma causa de exclusão da culpa, caso em que, por não se ter por verificado o dolo da culpa, apenas pode ter lugar a punição a título de negligência, quando a lei a preveja.

Em todo o caso, a hipótese sub judice parece-nos ilustrar bem a dispensabilidade da comprovação autónoma da “consciência da ilicitude”, enquanto realidade valorativa que traduz a atitude ético-pessoal de oposição ou de indiferença referida e que não se confunde com a necessidade de prova do dolo do tipo ou dolo do facto, objeto de conhecimento e prova direta ou indireta, cuja presunção é atualmente inaceitável.

Na verdade, que sentido faz defender-se a necessidade de demonstração positiva, autónoma, da consciência do significado penalmente desvalioso da sua conduta na nossa ordem jurídica, relativamente a arguido que “… constrangeu o filho a praticar coito oral, agarrando na cabeça do jovem com força e conduzindo a mesma na direção do seu pénis que introduziu na boca do filho, contra a vontade do jovem, que logo que se conseguiu libertar fugiu. … bem sabendo que atuava com violência sobre o menor IL, forçando-o a manter consigo um acto sexual de coito oral, que o menor não queria, e apesar de o menor oferecer resistência, quis, ainda assim, o arguido actuar.”?

6. Finalmente, a jurisprudência fixada na AFJ 1/2015 do STJ não se reporta à exigência de articulação da “consciência da ilicitude” na acusação, pois o objeto daquela fixação de jurisprudência, ditado pela questão relativamente à qual se verificou oposição de julgados, centrou-se na inaplicabilidade do mecanismo previsto no art. 358º do CPP para a alteração não substancial de factos aos casos de falta de descrição, na acusação, [dos factos integradores] dos elementos subjetivos do crime - máxime o dolo –, não se afirmando explicitamente na fixação de jurisprudência que “a consciência da ilicitude” teria que ser autonomamente descrita na acusação e julgada provada na sentença, para que o arguido pudesse ser condenado pelo crime doloso respetivo.

7. Assim, não tendo que constar da acusação e da sentença a locução “o arguido agiu com consciência da ilicitude” ou semelhante, não há sequer lugar ao cumprimento do disposto no art. 358º do CPP, pelo que se impõe proceder ao enquadramento jurídico-penal dos factos e à determinação concreta da pena a aplicar, conforme jurisprudência fixada no AFJ 4/2016 do STJ, uma vez que o acórdão recorrido apurou factualidade suficiente para o efeito, conforme se encontra pressuposto naquele AFJ.

II
Em todo o caso, somos levados a divergir da jurisprudência fixada no AFJ 1/2015, por razões que se prendem com a relação entre a reduzida gravidade do vício processual que afeta a acusação nestes casos – falta de descrição na acusação de factos relativos ao dolo - e a acentuada gravidade da respetiva consequência processual, tal como fixada no AFJ 1/2015.Ou seja, diverge-se daquela jurisprudência por se entender que de acordo com o princípio ou regra da conservação dos atos processuais inválidos, que não foi considerado e apreciado naquele mesmo acórdão, o vício formal de falta de narração, na acusação, de factos relativos aos elementos subjetivos do tipo pode ser suprido mediante o procedimento previsto no art. 358º do CPP.

O que nos parece tanto mais relevante quanto em casos tão graves como o presente – crime de violação perpetrado pelo pai contra o filho de 14 anos de idade, punível com pena entre 4 e 13 anos e 4 meses, de prisão -, a jurisprudência fixada conduz à absolvição do arguido mesmo que se encontre provada toda a factualidade objetiva e boa parte da factualidade subjetiva, desde que faltasse na acusação referência factual ao elemento intelectual ou ao elemento volitivo do dolo, expresso na locução sacramental, o arguido atuou de modo livre, deliberado e consciente, como se verifica no acórdão recorrido, ou formulação semelhante. Isto é, quer-nos parecer que casos desta gravidade ilustram bem a desproporcionalidade entre o vício verificado (falta de narração de factos na acusação) e a consequência processual dele resultante, ou seja, a impunidade de facto a que se chega em casos tão graves – bem distintos dos crimes de injúria que estiveram na base da fixação de jurisprudência -, apenas porque se chegou à Audiência de Julgamento sem que se mostrassem articulados todos os factos integradores do dolo, sendo certo que o princípio da proporcionalidade exige que a gravidade da sanção utilizada reflita a gravidade intrínseca de cada vício cf. João Correia, Contributo para a Análise da Inexistência e das Nulidades processuais penais, 1999, p. 177.

Vejamos, então, nos termos e para efeitos do preceituado nos artigos 445º nº3 e 446º nº2, do CPP, os argumentos que não foram considerados no AFJ 1/2015 e que nos levam a divergir a da jurisprudência aí fixada.

1. Como refere João Conde Correia, ob. e loc. citados, a propósito do princípio ou regra da conservação dos atos processuais inválidos, “O confronto entre os interesses individuais, que reclamam a observância das disposições processuais penais e a destruição de todos os atos defeituosos, e os interesses comunitários, que reivindicam a rápida realização da justiça, o restabelecimento da paz social e, em consequência, o maior aproveitamento possível da atividade processual desenvolvida, revela aqui uma dimensão inexcedível, capaz de gerar problemas de difícil resolução.» No entanto, como conclui o autor, a síntese conseguida pelo legislador não deve privilegiar nenhuma destas finalidades, sob pena de postergar as restantes. Qualquer intervenção menos conseguida é capaz de alterar o difícil equilíbrio do sistema, gerando injustiças ou disfuncionalidades”.

Ora, se bem vemos a questão, nada obsta e tudo conduz a que o art. 358º do CPP, interpretado à luz da citada regra ou princípio da conservação dos atos processuais inválidos, possa ser visto como meio processual de suprir a omissão verificada na acusação ou despacho de pronúncia em processo que, não obstante o vício, prosseguiu até à audiência de julgamento.

1. Em primeiro lugar, a nulidade prevista no art.º 283º nº3 b) CPP por falta de narração de algum dos factos aí referidos constitui nulidade dependente de arguição, conforme decorre do princípio da tipicidade das nulidades insanáveis acolhido no art. 119º, corpo, e no art. 120º nº1, ambos do CPP, por não se encontrar incluída em nenhuma das alíneas do art. 119º CPP nem ser prevista como nulidade insanável noutra disposição legal.

Tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito, a mesma só pode ser arguida até ao encerramento do debate instrutório (quando haja instrução) ou, em alternativa, até 5 dias após a notificação da acusação se não houver lugar a Instrução, nos termos do art. 120º nº3 c) CPP, após o que não pode mais ser arguida.

No entanto, prosseguindo o processo sem ter havido instrução, pode ainda ter lugar a rejeição da acusação com fundamento na falta de descrição de factos, nos termos do art. 311º do CPP, mas se não houver lugar a rejeição da acusação, o processo prosseguirá para julgamento.

Se houver lugar a instrução e o despacho de pronúncia padecer de vício idêntico, sem que tenha sido arguida a nulidade do despacho de pronúncia com tal fundamento (cf., por todos, A. Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, em anotação ao art. 309º CPP), o processo seguirá inevitavelmente para julgamento, pois o art. 311º CPP não prevê a rejeição do despacho de pronúncia.

Em qualquer daquelas hipóteses constatamos, pois, que apesar da persistência da falta de articulação de factos na acusação (ou no despacho de pronúncia) geradores da nulidade relativa cominada no art. 283º nº3 CPP, o processo prossegue para que tenha lugar audiência de julgamento com base na acusação ou despacho de pronúncia viciados, o que decorre do regime das nulidades dependentes de arguição e da possibilidade de sanação que lhes está subjacente, permitindo-se, assim, que a audiência de discussão e julgamento tenha lugar com base em acusação (ou despacho de pronúncia) inválida ou imperfeita.

2. Ora, na lógica do regime das nulidades e, mais amplamente, das leis de processo, o prosseguimento do processo para julgamento com base em acusação (ou despacho de pronúncia) imperfeito, a que falte a narração de factos relativos aos elementos subjetivos do tipo legal de crime imputado ao arguido, não pode significar que o efeito do vício originário persista inapelavelmente apesar de o processo ter prosseguido para as fases seguintes àquela em que podia/devia ter sido suscitado e apreciado, nem tão pouco que, por via processual, se produzam efeitos substantivos inaceitáveis, como seria, por absurdo, poder dar-se como escritos na acusação os factos que o não estão. Como refere João Conde Correia (ob. cit. p. 129)A conservação dos atos imperfeitos consiste em reconhecer-lhes capacidade para provocar os efeitos correspondentes aos atos válidos [in casu sujeição do caso a julgamento e eventual condenação], mediante a sua coligação com outros factos sucessivos, que vêm suprir ou tornar irrelevantes as deficiências cometidas.”(negrito acrescentado ao texto original).

Ou seja, a conservação da acusação imperfeita e a sujeição do facto a julgamento pressupõem que o vício formal gerador de nulidade processual consistente na falta de articulação de factos integradores do dolo (art. 283º nº3 CPP) possa ser suprido em momento posterior ao início da audiência de julgamento mediante a enunciação expressa dos factos omitidos e confrontando o arguido com ela, para que possa apresentar defesa contra aqueles factos, de acordo com o procedimento previsto no art. 358º do CPP. Só após a confrontação do arguido com os factos sucessivamente expressos, tal como se os mesmos se encontrassem originariamente enunciados na acusação ou no despacho de pronúncia imperfeitos, o tribunal decidirá se julga provados tais factos, incluindo-os entre os factos provados ou não provados, de acordo com o julgamento que faça da matéria de facto.

Na verdade, ainda que o artigo 358º surja no CPP ligado à temática do objeto do processo, isso não significa que a teleologia do preceito, tributária da salvaguarda dos princípios do acusatório e das garantias de defesa, não permita a sua aplicação aos casos de falta de articulação de factos relativos aos elementos subjetivos do tipo na acusação (ou despacho de pronúncia), geradora do vício de nulidade não declarada do articulado processual respetivo, sendo certo que a sua letra também não o impede. Está em causa factualidade nova, na medida em que a mesma não consta da acusação ou despacho de pronúncia originariamente viciados, e da sua consideração na audiência de julgamento não resulta a condenação do arguido por crime diverso do que lhe vinha imputado, nem tão pouco a agravação dos limites máximos das sanções previstas nos tipos legais incriminadores, pois estes também não sofrem qualquer alteração.

3. Todavia, o AFJ 1/2015 não teve em conta as razões jurídico-processuais atinentes ao regime das nulidades da acusação (e do despacho de pronúncia), pois não o analisou ex professo referindo-se à nulidade da acusação de forma sumária e, até, pouco clara, pois parece pressupor, sem mencionar o respetivo enquadramento legal, que a nulidade prevista no art. 283º nº3 pode ser conhecida oficiosamente), ao dizer que “… tendo o processo sido despachado para julgamento, sem ter passado pela instrução, o respectivo juiz (presidente) deveria rejeitar a acusação, não só por a mesma ser nula, nos moldes referidos, mas também por ser manifestamente infundada, nos termos do art. 311.º, n.ºs 2, alínea a) e 3, alínea b) do CPP – não conter a narração dos factos”.

Nada refere, porém, sobre o enquadramento jurídico aludido, quer nas hipóteses de acusação não rejeitada a que falte a narração de factos, que integrava o objeto do AFJ, quer, em termos argumentativos, sobre as consequências da falta de narração dos factos referidos no art. 283º nº3 do CPP quando a mesma se verifique no despacho de pronúncia, pois não sendo aquela nulidade tempestivamente arguida o processo sempre terá que prosseguir para a audiência de discussão e julgamento com base em despacho imperfeito, como aludido. Sendo assim, é dificilmente compreensível que em ambas as hipóteses a consequência jurídica da nulidade não suscitada fosse a absolvição - quase inevitavelmente - dado o regime apertado do art. 359º do CPP (apesar de não estar em causa crime diferente) – e que, sendo-o, aquela consequência apenas pudesse ser declarada na sentença, após realização da audiência de discussão e julgamento com cumprimento do disposto no art. 359º CPP.

Tanto mais que, como refere, de novo, João Conde Correia,“ O legislador português …. cri[ou] um sistema responsabilizador e progressivo, onde … as possibilidades de sanação do vício vão aumentando à medida que o processo se afasta do ato imperfeito e se aproxima do seu epílogo” – cf. ob. e loc. citados.

Estas considerações reconduzem-se, afinal, à defesa da aplicabilidade do art.º 358º do CPP à falta de articulação de factos relativos aos elementos subjetivos do tipo (quaisquer que eles sejam), por razões jurídico-processuais atinentes ao regime das nulidades da acusação (e do despacho de pronúncia), regime este que não foi considerado ex professo no AFJ 1/2015, apesar da importância que assume na discussão e decisão da questão controvertida naquele AFJ, que se centrou, antes nos temas do objeto do processo e do tratamento substantivo dos elementos do dolo a partir das lições do Prof. F. Dias, pelo que nada obstará ao reexame da jurisprudência fixada, se assim for entendido.

4. Igualmente neste sentido, parece-nos ser de considerar ainda - no estrito cumprimento do dever de fundamentação a que se refere o art. 445º nº3 CPP, que abrange a indicação de todas as razões que podem justificar o reexame da jurisprudência fixada (art. 446º nº3 CPP) -, o teor do Ac TC 246/2017 de 17.05.2017, que tendo na base uma acusação por crime de condução em estado de embriaguez em que se omitira qual a taxa de alcoolemia no sangue, decidiu “ não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 311.º, n.ºs 1, 2, alínea a), e 3, alínea d), e 283.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes.”.

Trata-se em nosso ver de matéria estreitamente relacionada com a que se coloca nas hipóteses abrangidas pelo AFJ 1/2015, pois em ambos os acórdãos estão em causa as consequências processuais da falta de narração de factos na acusação.

Na verdade, embora tendo presente que o Tribunal Constitucional não se pronuncia sobre a melhor interpretação dos preceitos legais mas apenas sobre eventual inconstitucionalidade dos mesmos, aquele acórdão 246/2017 não deixa de ser particularmente relevante na medida em que a eventual violação do princípio in bis in idem sempre foi vista como o principal obstáculo à possibilidade de apresentação de nova acusação corrigida de algum dos vícios formais previstos no nº3 do art. 311º do CPP, seja ele a falta de identificação do arguido, a falta de narração dos factos, a falta de indicação das disposições legais aplicáveis ou as provas que fundamentam a acusação.

Decidido ali que a rejeição da acusação por falta de narração de factos não obsta, do ponto de vista constitucional, à sanação do vício formal e à apresentação de acusação corrigida, retira-se de tal entendimento mais um argumento no sentido de a sanação do vício poder igualmente ocorrer na audiência de discussão e julgamento nos termos do art. 358º do CPP, pois dificilmente se compreenderia que podendo o vício ser sanado naquele momento não pudesse sê-lo na audiência, apesar de a não rejeição ser exclusivamente da responsabilidade do tribunal que proferiu o despacho previsto no art. 311º CPP.

5. Por último, tendo o acórdão do STJ nº 1/2015 sido proferido em 20.11.2014, verificou-se entretanto alteração significativa na composição das secções criminais do STJ, pois dos atuais dezasseis Juízes Conselheiros que as integram, apenas seis deles se encontravam em exercício de funções aquando da prolação do AFJ 1/2015, sendo certo que um deles votou vencido e que houve igualmente mudança no cargo de Presidente do STJ.

São estas as razões que nos levam a considerar que a falta de narração de factos relativos aos elementos subjetivos do tipo pode ser suprida mediante o procedimento previsto no art. 358º do CPP, divergindo da jurisprudência fixada no AFJ 1/2015, pelo que mesmo que se entenda com o acórdão recorrido que no caso concreto se verifica falta de narração de factos relativos aos elementos subjetivos do tipo, consideramos que se impunha dar cumprimento ao disposto no art. 358º do CPP – e não no art. 359º do CPP, como fez o tribunal a quo – proferindo-se depois acórdão condenatório, como, aliás, resulta dos termos do acórdão absolutório ora recorrido.

III
Enquadramento jurídico-penal dos factos e determinação concreta da pena.

1. Conforme descrito na factualidade provada, o arguido constrangeu por meio de violência o seu filho IL, nascido em 17 de Novembro de 1998, em data não concretamente apurada mas quando aquele tinha 14 anos de idade, a praticar consigo coito oral, o que integra os elementos objetivos de um crime de violação agravada, previsto e punível pelo art. 164º, nº 1, al. a), e art. 177º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal.

Resultando ainda provado que ao atuar da forma descrita, o arguido bem sabia que atuava com violência sobre o menor IL, forçando-o a manter consigo um ato sexual de coito oral, que o menor não queria, e apesar de o menor oferecer resistência, quis, ainda assim, agir como descrito, mostram-se igualmente preenchidos os elementos cognitivo e intelectual do dolo correspondente àquele mesmo tipo legal, pelo que não prevendo a lei outros elementos subjetivos que se impusesse provar, conforme resulta do tipo legal previsto no art. 164º nº1 al. a) do C.Penal e dos termos do art. 14º do mesmo diploma legal, incorreu o arguido na prática de um crime de violação agravada, previsto e punível pelo art. 164º, nº 1, al. a), e art. 177º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal, com pena de 4 anos a 13 anos e 4 meses, de prisão.

2. Na determinação da pena concreta a aplicar-lhe dentro desta moldura legal, há que ter em conta os seguintes fatores que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem contra o arguido, na terminologia do art. 71º do C.Penal:

- Ter o menor 14 anos de idade, o que agravaria em 1/3 os limites mínimos e máximo da pena prevista no tipo legal se igual agravação não tivesse já lugar em virtude de o menor ser descendente do arguido (art. 177º nºs 5 e 7, do C.Penal);

- A relação familiar existente entre o arguido e a vítima, que sendo das mais estreitas entre as previstas como agravantes no art. 177º nº1 a) do C.Penal, depõe contra o arguido;

- O dolo direto;

- As fortes necessidades de prevenção geral positiva, decorrentes da frequência com que vêm sendo praticados crimes de natureza sexual contra descendentes menores e do particular impacto que produzem do ponto de vista da efetividade da tutela penal.

A favor do arguido, igualmente na terminologia do art. 71º do C.Penal, consideram-se as seguintes circunstâncias:

- Ter-se provado um único ato sexual praticado contra o menor, sendo certo que a eventual pluralidade de atos praticados no mesmo contexto seria compatível com a punição por um único crime;

- A modalidade da ação que, entre as previstas no tipo legal aplicáveis ao caso, ou seja, coito anal ou coito oral, é a menos intrusiva, sendo certo que não se provou que o arguido tivesse completado o ato sexual, ainda que por facto alheio à sua vontade, pois o menor conseguiu fugir-lhe;

- A forma como o arguido exerceu violência sobre a criança para a constranger a praticar consigo o ato sexual em causa, pois entre a diversidade de hipóteses que cabem no tipo legal, a violência exercida pelo arguido assume menor gravidade contra a integridade física, bem jurídico igualmente protegido pelo tipo legal;

- A ausência de específicas sequelas, físicas ou psicológicas, identificadas na pessoa da vítima em resultado da conduta do arguido;

- Ausência de antecedentes criminais, pois não pode dizer-se que as circunstâncias apuradas sobre o seu historial de vida assumam cariz favorável ou desfavorável para o arguido em matéria de determinação concreta da pena;

- Não resultou provado que o arguido confessou os factos ou que se encontre arrependido, o que implica maiores exigências em sede de prevenção especial positiva.

Apreciando estes fatores do ponto de vista das finalidades preventivas das penas a que se reporta o art. 40º do C.Penal e tendo em conta que o limite mínimo da pena de prisão aplicável é de 4 anos e o seu limite máximo é de 13 anos e 4 meses, como aludido, afigura-se-nos adequada a pena de 5 anos e 6 meses de prisão.

Dispositivo
Nesta conformidade, acordam os Juízes na 2ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso interposto pelo MP, decidindo julgar não abrangida pela jurisprudência fixada no AFJ 1/2015 a necessidade de alegação e prova da “consciência da ilicitude” e, em todo o caso, divergir daquela fixação de jurisprudência mesmo que se entenda que a mesma abrange a exigência de alegação da “consciência da ilicitude” ou expressão equivalente na acusação, e, em consequência, decidem:

- Revogar o acórdão recorrido na parte em que absolveu o arguido da prática de um crime de violação agravada previsto e punível pelo art. 164º, nº 1, al. a), e art. 177º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal, por considerar que, não obstante encontrarem-se preenchidos os elementos objetivos, bem como os factos integradores do chamado dolo do tipo, não se podia considerar devidamente preenchido o elemento subjetivo do crime por nada ter sido alegado na acusação e não poder ser julgado provado em audiência, dada a oposição do arguido (art. 359º do CPP), quanto ao dolo da culpa, à consciência da ilicitude;
- Decidir, em substituição, condenar o arguido pela autoria de um crime de violação agravada previsto e punível pelo art. 164º, nº 1, al. a), e art. 177º, nº 1, al. a), ambos do Código Penal, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão.

Sem custas.

Évora, 12 de março de 2019

(Processado em computador. Revisto pelo relator.)

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(António João Latas)

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(Carlos Jorge Berguete, com a declaração de voto que se segue.)

Votei a decisão, por concordar, quer com o enquadramento jurídico dos factos provados, sem necessidade de apelo ao mecanismo previsto no art. 358.º ou no art. 359.º do CPP, quer com a consequente condenação e pena fixada.

Concorda-se, pois, com a fundamentação reportada à dispensabilidade de alegação e prova da “consciência da ilicitude”, que ao caso afinal interessa, não se revelando que deva considerar-se inevitavelmente abrangida pelo AFJ n.º 1/2015 dada a sua peculiar natureza, conforme desenvolvido na decisão, tal como se concorda com a assumida divergência com aquele AFJ no caso de se considerar que do mesmo resulta a indispensabilidade de alegação e prova da “consciência da ilicitude”.

Contudo, já relativamente ao restante, ou seja, à assumida divergência com esse AFJ, enquanto possibilitando que os elementos do dolo sejam sempre integrados através do recurso àquele art. 358.º, manifesto sérias reservas.

Pese embora a pertinência dos argumentos convocados para sustentar a divergência, afigura-se que os princípios que nortearam a fundamentação expendida no AFJ ficariam desprezados, pelo menos quando se verifique integral omissão daqueles elementos, donde se entende continuarem a subsistir razões para a acompanhar no sentido de excluir, nessa situação, que a ausência seja colmatada mediante aquele procedimento.