Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1193/21.9T8CVL.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: ACÇÃO DE DEMARCAÇÃO
CRITÉRIOS LEGAIS PARA PROCEDER À DEMARCAÇÃO
Data do Acordão: 05/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 236.º, 238.º E 1354.º, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 196.º; 186.º, 2; 527.º, 2; 557.º, B); 576.º, 1 E 2; 607.º, 5; 615.º, 1, C) E D) E 640.º, DO CPC
Sumário: I – Na ação de demarcação discute-se um conflito de prédios, não se discutindo, tal como na ação de reivindicação, o título de aquisição, mas a relevância dele em relação ao prédio, isto é, está em causa na ação de demarcação o conteúdo ou o limite do direito de propriedade e não a titularidade do direito de propriedade.
II – O art. 1354º, do Código Civil define quais os critérios a atender para proceder à demarcação dos prédios em confinância, a saber:

a) O primeiro critério atendível para a demarcação consiste e realizá-la em conformidade com os títulos de cada um dos proprietários dos prédios confinantes;

b) Na falta ou insuficiência dos títulos, recorre-se à posse em que estejam os confinantes ou segundo o que resultar de outros meios de prova.

c) Como critério residual, na falência de todos os demais, resta a aplicação da regra salomónica, em que a demarcação faz-se distribuindo o terreno em litígio por partes iguais.

Decisão Texto Integral:

Apelações em processo comum e especial (2013)

                                                           *

Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]                                                                                    *

1 – RELATÓRIO

AA, Unipessoal, L.da”, com sede na Rua ..., ..., instaurou ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB e CC, ambos residentes na Rua ..., ..., pedindo que os Réus sejam condenados a reconhecer que a Autora é a proprietária do prédio urbano situado no Largo ..., em ..., com a área de 5.700,25 m2, que se encontra inscrito na matriz sob o artigo ...04º da União das Freguesias ... e ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob os números ...64 e ...48, bem como a abster-se de “qualquer comportamento impeditivo e/ou restritivo do pleno uso e fruição do prédio” pela Autora.

Para além disso, a sociedade Autora solicitou ainda a condenação dos Réus a reconhecer que o prédio urbano pertencente à Autora apenas confronta com o prédio pertencente aos Réus pelo lado norte, e não também pelo lado nascente, e que a delimitação entre os dois prédios, na estrema norte do prédio pertencente à Autora, é efetuada pela linha reta traçada no sentido poente-nascente, desde o caminho até ao Largo ..., a dois metros de distância da parede em blocos aí existente, “e assim concorrerem com a Autora para a definição e fixação dessa linha divisória entre o seu prédio e o da Autora”.

Para tanto, alega, em síntese, a Autora que, por escritura pública de compra e venda outorgada no dia 15 de novembro de 2012, adquiriu o prédio urbano situado no Largo ... que se encontra inscrito na matriz sob o artigo ...04º da União das Freguesias ... e ... e que confina a norte, e apenas a norte, com um prédio pertencente aos Réus.

Efetivamente, a Autora sustenta que a delimitação entre os dois prédios é efetuada em linha reta, no sentido nascente-poente, no local onde existem dois marcos que se situam a dois metros da parede em blocos que visava a ampliação da fábrica existente no terreno.

Sucede, porém, que, “de há uns tempos para cá, os RR. vêm reivindicando uma parcela do terreno da Autora, mais precisamente do lado norte e nascente, alegando que lhes pertence, e tendo chegado até a, à completa revelia da Autora, a colocar marcos no mesmo, com o intuito assumido de a seguir colocarem uma vedação”.

                                                           *

Devidamente citados, os réus vieram aos autos apresentar a sua contestação, invocando, em primeiro lugar, a exceção dilatória de nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial.

Por outro lado, os Réus impugnaram a generalidade dos factos alegados pela Autora, sustentando que, contrariamente ao que foi pela mesma alegado, a delimitação entre os dois prédios não é efetuada apenas na estrema norte-sul, mas também na estrema nascente-poente, de acordo com a configuração indicada no documento n.º 4 junto com o articulado de contestação.

Com efeito, é dessa configuração que resulta a área de 3.754 m2 que, de acordo com a inscrição matricial efetuada no ano de 1979 e com a descrição predial realizada no dia 23 de julho de 2009, corresponde ao prédio urbano de que os Réus são proprietários.

Nestes termos, invocando o disposto no artigo 334º do Código Civil, acrescentam os Réus que, “ao reivindicar uma parcela de terreno que, objetivamente, não adquiriu, como, aliás, nunca poderia adquirir, por pertencer aos RR., a A. exerce uma posição jurídica manifestamente abusiva, merecedora de censura”.

Por último, sustentam ainda os Réus que a Autora litigou de má fé, por saber que a parcela de terreno que reclama não lhe pertence, deduzindo pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, razão pela qual solicitam que a mesma seja condenada como litigante de má fé.

Notificada do teor do articulado de contestação apresentado pelos Réus, a Autora juntou aos autos o requerimento a que corresponde a referência n.º 2727826, nos termos do qual veio sustentar que não se verifica a exceção dilatória invocada pelos Réus e que a sua atuação processual não configura qualquer litigância de má fé.

Foi dispensada oportunamente a realização da audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador, bem como despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova (cfr. referência n.º 34549822).

Em sede de despacho saneador foi julgada improcedente a exceção dilatória de nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial, nos termos e com os fundamentos aí indicados.

Procedeu-se à realização da audiência final, com observância de todas as formalidades legais aplicáveis, conforme resulta das atas respetivas (cfr. referências n.º 35411797 e n.º 35503709).

De referir que nessa audiência, produzida a prova, o tribunal indeferiu a produção do meio de prova inspeção judicial requerido por ambas as partes.

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            Sendo que, na oportuna sequência, foi proferida sentença final, através da qual se começou por considerar que a ação instaurada pela sociedade Autora, em função dos pedidos formulados e da causa de pedir alegada, configurava uma ação de demarcação, relativamente ao que se entendia ser «(…)inequívoco que a prova testemunhal, documental e pericial produzida no âmbito dos presentes autos permitiu determinar qual é a linha que delimita os prédios pertencentes à Autora e aos Réus», a saber, «(…) que a delimitação entre os dois prédios é efetuada nos moldes assinalados pela Autora na planta topográfica(…)», assim procedendo o pedido a esse respeito por ela formulado, sendo certo que carecia de fundamento a invocação da exceção perentória de abuso do direito suscitada pelos RR., e bem assim o pedido de condenação por litigância de má fé da A., o que tudo se traduziu no seguinte concreto “dispositivo”:

«V. Decisão

Em face do exposto, nos termos e com os fundamentos já indicados, decido julgar a presente ação procedente e, em consequência, reconhecer que o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...64 (mil, oitocentos e sessenta e quatro), de que a Autora AA, Unipessoal, L.da é proprietária, confina com o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...38 (dois mil, seiscentos e trinta e oito), de que os Réus BB e CC são proprietários, apenas pelo seu lado norte e que a delimitação entre os dois prédios é feita em linha reta, no sentido poente-nascente, desde o ponto mais a poente junto do caminho, no local onde existem dois marcos que distam cerca de dois metros da parede em blocos aí existente, até ao talude existente a nascente, o qual delimita os dois prédios urbanos até ao ponto mais a nascente junto do muro em pedra aí existente, nos termos assinalados na planta topográfica junta como documento n.º 8 (oito) à petição inicial.

Mais decido absolver a Autora AA, Unipessoal, L.da do pedido de condenação a título de litigância de má fé formulado pelos Réus.

As custas da ação ficam a cargo dos Réus (cfr. artigo 527º, n.º 1 e 2, do CPC).

As custas do incidente de litigância de má fé ficam também a cargo dos Réus, fixando-se a taxa de justiça devida em uma unidade de conta (cfr. artigo 7º, n.º 4, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela II anexa ao mesmo diploma).

Registe (como “decisão de mérito – com julgamento”) e notifique.»

                                                           *

Inconformados, apresentaram os RR. recurso de apelação contra o dito despacho de indeferimento da inspeção judicial e bem assim recurso de apelação contra a sentença.

Na apreciação destes recursos neste TRC, foi proferido acórdão no sentido de dar procedência ao primeiro deles, em consequência do que ficava prejudicada a apreciação do segundo recurso, o que se traduziu no seguinte:

«6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, tendo em conta o que antecede, acorda-se em julgar a 1ª apelação procedente, anulando-se a sentença e determinando-se a realização de inspeção judicial, nos termos e para os efeitos melhor assinalados supra.

Custas pela parte vencida a final e na proporção em que o for (art. 527º, nº 1, do n.C.P.Civil).»

                                                           *

Baixados os autos à 1ª instância, procedeu-se aí à determinada inspeção judicial, cujo resultado foi consignado na correspondente Ata, após o que foi proferida sentença, a qual no aspeto mais relevante, apresentou a conclusão de que «(…) tendo-se apurado, com base na prova produzida em sede de audiência final, que a delimitação entre os dois prédios é efetuada nos moldes assinalados pela Autora na planta topográfica junta à petição inicial como documento n.º 8, não poderá deixar de proceder o pedido pela mesma formulado», termos em que finalizou nos seguintes concretos termos:

«V. Decisão

Em face do exposto, nos termos e com os fundamentos já indicados, decido julgar a presente ação procedente e, em consequência, reconhecer que o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...64 (mil, oitocentos e sessenta e quatro), de que a Autora AA, Unipessoal, L.da é proprietária, confina com o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...38 (dois mil, seiscentos e trinta e oito), de que os Réus BB e CC são proprietários, apenas pelo seu lado norte e que a delimitação entre os dois prédios é feita em linha reta, no sentido poente-nascente, desde o ponto mais a poente junto do caminho, no local onde existem dois marcos que distam cerca de dois metros da parede em blocos aí existente, até ao ponto onde essa linha entronca no talude, o qual delimita os dois prédios urbanos desde esse ponto até à respetiva estrema nascente, no local onde termina o talude e que coincide com o local onde a altura do muro que pode ser observado na fotografia constante da página 7 do auto de inspeção a que corresponde a referência n.º 36618910 sofre uma redução.

Mais decido absolver a Autora AA, Unipessoal, L.da do pedido de condenação a título de litigância de má fé formulado pelos Réus.

As custas da ação ficam a cargo dos Réus (cfr. artigo 527º, n.º 1 e 2, do CPC).

As custas do incidente de litigância de má fé ficam também a cargo dos Réus, fixando-se a taxa de justiça devida em uma unidade de conta (cfr. artigo 7º, n.º 4, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela II anexa ao mesmo diploma).

Registe (como “decisão de mérito – com julgamento”) e notifique.»

                                                           *

Inconformados, apresentaram os RR. recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

« 1.ª – A decisão constante da sentença judice é errada, em termos adjetivos e substantivos, merecendo censura ad quem.

2.ª – Foram incorretamente julgados como provados os factos provados 18., 19. e 20., que deveriam ter tido resposta negativa, e incorretamente julgados como não provados os factos não provados 6. (parcialmente), 8., 9., 10., 11., 12., 13., 14. e 15., que deveriam ter tido resposta positiva.

3.ª – Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo proferiu sentença cuja decisão é ambígua e ininteligível e omitiu pronúncia quanto à exceção dilatória de ineptidão da petição inicial que, em face da fundamentação de direito que formulou, se verifica nos autos, situações que consubstanciam causas da sua nulidade, nos termos e para os efeitos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil.

4.ª – Não constando do texto da sentença, em termos de concretização, o que seja e signifique “no local onde termina o talude e que coincide com o local onde a altura do muro que pode ser observado na fotografia constante da página 7 do auto de inspeção a que corresponde a referência n.º 36618910 sofre uma redução”, que tanto pode ser o ponto A ou o ponto B melhor identificados a páginas 3 desta alegação, ou qualquer outro ponto, torna-se impossível, por ambiguidade e ininteligibilidade, entender o sentido da decisão proferida.

5.ª – Se, em face do alegado no terceiro parágrafo a fls. 18 da sentença, o “local onde termina o talude e que coincide com o local onde a altura do muro que pode ser observado na fotografia constante da página 7 do auto de inspeção (...) sofre uma redução” for o que se identificou como ponto B na página 3 desta alegação, como se entende que só poderá ser, por corresponder ao único muro que se visualiza no documento para o qual aquele parágrafo remete, então, isso significará que, como sempre alegaram os RR./Apelantes, o prédio da A./Apelada delimita-se do destes a Norte e a Nascente, ou se quiser, a Norte e a Nordeste, e não apenas a Norte, conforme consta da decisão, e, bem assim, que a parcela de terreno em litígio é, na sua globalidade, parte integrante do prédio dos RR./Apelantes.

6.ª – Advém da fundamentação de direito da sentença em crise a existência nos autos duma exceção dilatória de ineptidão da petição inicial por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, uma vez que, conforme resulta do seu pedido e da sua causa de pedir, a A./Apelada cumulou nos presentes autos uma ação de reivindicação (pedidos A., B. e D.) com uma ação de demarcação (pedido C.), o que é substancialmente incompatível, pois não é possível reivindicar-se a propriedade dum prédio (do qual se afirma fazer parte uma parcela de terreno – cf. artigo 17.º da petição inicial) e, ao mesmo tempo, pedir-se a demarcação desse mesmo prédio face ao do vizinho, pois, se na reivindicação está em causa o próprio titulo de aquisição, o que pressupõe um estado de certeza, na demarcação joga-se com a extensão do prédio possuído, o que pressupõe um estado de incerteza, sendo esta cumulação incompatível a situação dos presentes autos, tudo conforme melhor descrito em A.2. da motivação desta apelação.

7.ª – A conclusão anterior é atestada pelo facto de, contrariamente ao sustentado pela 1.ª instância, a discussão do título de aquisição da A./Apelada, i.e., da posse e da propriedade da parcela de terreno em dissídio, melhor descrita em 17.º da petição inicial e 22. dos factos provados, ser uma constante ao longo do processo, seja na fase dos articulados (cf., especialmente, artigos 58.º, 59.º e 62.º da contestação), seja na fase do julgamento (cf. despacho de junção de documentos proferido na 1.ª sessão da audiência de julgamento – referência citius 35411797 – e facto não provado 1.).

8.ª – Verificando-se nos autos, como se verifica, nos termos e para os efeitos do artigo 186.º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Civil, uma exceção dilatória de ineptidão da petição inicial, cuja consequência é a nulidade de todo o processo e a absolvição da instância, impunha-se à 1.ª instância que a conhecesse, dado ser de conhecimento oficioso (cf. artigos 576.º, n.º 1 e 2, 557.º, alínea b) e 578.º todos do Código de Processo Civil) – razão pela qual não tinha de ser alegada pelos RR./Apelantes –, ao invés de, como fez, numa questionável operação jurisdicional, convalidar, unilateral e oficiosamente, os pedidos formulados pela parte para um único, que qualificou de demarcação, em violação do princípio do pedido.

9.ª – Afastando, como afastou, a versão demarcativa alegada e peticionada pela A./Apelada, por impraticável (cf. pp. 16-17 da sentença), e ao desconsiderar, em absoluto, sem prejuízo de a considerar viável (cf. 1.º e 2.º parágrafos, p. 18 da sentença), a versão demarcativa alegada pelos RR./Apelantes – ambas refletidas na perícia realizada nos autos (cf. referência citius 35168241) – o Tribunal a quo adotou uma questionável demarcação oficiosa, que, contrariamente ao que sustenta, nada tem que ver com a alegada pela A./Apelada, que em momento algum alegou que a mesma se faria por aquilo que se designou por “talude existente na parte nascente do prédio”, antes com base no alinhamento dos dois marcos situados a dois metros da parede de blocos existente in loco.

10.ª – A demarcação decidida oficiosamente pelo Tribunal a quo – no sentido de que, a partir do ponto de interseção entre a linha reta definida pelos marcos existentes no local e o talude, seria este a estabelecer a delimitação entre os prédios em dissídio nos autos – não tinha de ser chamada à colocação, uma vez que, em face da prova carreada e produzida para os/nos autos, nomeadamente pericial, testemunhal e por inspeção ao local, e, bem assim, das regras substantivas aplicáveis, a delimitação correta é a alegada pelos RR./Apelantes, razão pela qual foram incorretamente julgados como provados os factos 18., 19. e 20., e, por seu turno, incorretamente julgados como não provados os que se lhe opõem, ou seja, os factos não provados 8. e 12. a 15., acrescendo a circunstância de nenhuma prova (carreada ou produzida) existir quanto à conclusão de que “os marcos (...) que já foram removidos do local estariam posicionados na base do talude” (cf. p. 18 da sentença, 4.º parágrafo).

11.ª – Os elementos recolhidos em sede de inspeção ao local demonstram, claramente, que é aos RR./Apelantes que assiste razão, carecendo de sentido a conclusão do Tribunal a quo no sentido de que, “se tal parcela de terreno integrasse o prédio urbano pertencente aos Réus seria expectável que estes pudessem aceder à mesma através do referido corredor”, pois o acesso à parcela nunca se fez, nem se faz, por esse corredor, mas pelo acesso que se assinalou na imagem aposta a fls. 19 da motivação desta apelação, razão pela se trata de conclusão absolutamente irrelevante para afirmar/infirmar o que quer que seja.

12.ª – As fotografias constantes das páginas 5 a 9 do auto de inspeção ao local, por um lado, e a existência, conforme atestado na inspeção ao local, de um desnível entre a zona onde está edificada a parede de blocos e a restante área de terreno no sentido poente-nascente, por outro, revela, claramente, que a delimitação entre os prédios inflete à direita, no sentido nascente, imediatamente após findar essa parede, cuja edificação ali terminou por ali terminar também o prédio onde foi edificada, circunstâncias que tornam manifestamente impossível e incoerente que a divisão dos prédios pudesse ser feita como afirma o tribunal a quo, cujo raciocínio empreendido vai contra a orografia do terreno e conduz, inadmissivelmente, a que os muros de blocos de cimento existentes no local, e que podem ser vistos nas páginas 7 e 8 do auto de inspeção ao local, deixassem pura e simplesmente de ser pertença dos RR./Apelantes, quando foram estes que os mandaram construir e pagaram, o que jamais se poderá aceitar.

13.ª – Não se pode aceitar a conclusão do Tribunal a quo aposta a fls. 29 da sentença no sentido de que “Porém (...) afigura-se que o desnível existente entre essa faixa de terreno e a parte restante do prédio a que se tem vindo a aludir não é relevante para a definição da linha que delimita os prédios urbanos pertencentes à sociedade Autora e aos Réus. Com efeito, em sede de audiência final a testemunha DD aludiu à realização de trabalhos de movimentação de terras que terão alterado, em parte, a orografia do terreno”, uma vez que não ficou minimamente demonstrado nos autos que trabalhos de movimentação foram esses, ou, na verdade, se ocorreram e, na afirmativa, em que local concreto da área do prédio e em que termos, para além de que tal testemunha é o gerente da A./Apelada, tendo um manifesto interesse no desfecho da lide.

14.ª - Existiam no local marcos que permitiam atestar de modo claro a delimitação dos prédios nos termos alegados pelos RR./Apelantes, os quais ali hoje não se encontram por terem sido derrubados pela A./Apelante, conforme confessa no artigo 27.º da sua petição inicial, mas que podem ser feitos nas fotografias apostas a fls. 21 da motivação desta alegação.

15.ª – Pela testemunha arrolada pela A./Apelada EE, sócio-gerente da sociedade comercial que vendeu àquela o(s) prédio(s) de que se arroga proprietária nos autos, foi confirmada a demarcação alegada pelos RR./Apelantes cf. ficheiro áudio 20230113115910_1838587_2870661.wma, minutos 04:31 a 06:04 e 08:32 a 08:50, não sendo críveis as críticas que lhe aponta o Tribunal a quo, uma vez que, merece mais credibilidade quem, não sendo arrolado pela parte que beneficia com o seu depoimento confirma o que essa parte alega, do que quem é arrolado pela pare e confirma o que esta alega e vê o que afirma ser desconsiderado, por impraticável, conforme sucede com a testemunha FF (cf. pp. 16-17 da sentença), tendo a testemunha GG, filha dos RR./Apelantes, sido perentória ao afirmar a inexistência do acordo de colocação de marcos por aquele referido – cf. ficheiro áudio 20230113151645_1838587_2870661.wma, minutos 14:08 a 15:02.

16.ª – Também as testemunhas GG cf. ficheiro áudio 20230 113151645_1838587_28706 61.wma, minutos 02:54 a 04:08 a 05:02 a 06:05 e 14:30 a 15:02 e HH cf. ficheiro áudio 20230113141124_1838587   2870661.wma, minutos 02:52 a 06:09 confirmaram a versão demarcativa alegada pelos RR./Apelantes, tendo ambas indicado as caraterísticas e as confrontações reais do prédio daqueles, e referido que existiam marcos na estrema nascente/poente que foram derrubados numa limpeza “há muitos anos atrás”, posteriormente repostos, e, de seguida, derrubados em 2020, alguns meses após a construção do muro de blocos que nesse ano, na confrontação com "II", se edificou no local, e, bem assim, que os RR./Apelantes têm mandado elaborar vários levantamentos topográficos para o prédio, o último em 2019, por motivos de obtenção de licença para a construção daquele muro, acrescentando a primeira que desde 1979, ano da aquisição do prédio, nunca existiram conflitos de demarcações ou confrontações, não sendo justas as críticas que lhe aponta a 1.ª instância a fls. 25-27 da sentença, uma vez que, adjetivamente, impõe-se valorar o depoimento antes da pessoa do depoente.

17.ª – Considerando as referências das testemunhas GG cf. ficheiro áudio 20230 113151645_1838587_28706 61.wma, minutos 05:02 a 06:05  e HH cf. ficheiro áudio 20230113141124_1838587_ 2870661.wma, minutos 02:52 a 06:09 ao derrube de marcos na estrema nascente no ano de 2020 e, bem assim, a confissão feita pela A./Apelada em 27.º da petição inicial quanto ao mesmo, o facto não provado 6. deveria ter sido dado como provado na parte referente ao derrube de marcos.

18.ª – Dos depoimentos das testemunhas DD e JJ não resultou qualquer contributo para a prova ou não prova da versão demarcativa alegada por cada uma das partes destes autos: o primeiro porque notou, tão-só, pese embora caricatamente, que foi ele quem detetou a existência de discrepâncias matriciais e registais e problemas de áreas no(s) prédio(s) da A./Apelada, e que isso apenas sucedeu em 2019 aquando da 3.ª fase do projeto de ampliação do hotel que exigiria avançar, note-se, para a parcela de terreno em dissídio cf. ficheiro áudio 2023011311200 0_1838587_2870661.wma, minutos 03:18 a 07:30 e 07:35 a 08:36; o segundo porque referiu nunca se ter inteirado concretamente da exatidão dos limites do(s) prédio(s) da A./Apelante nem deslocado à parcela de terreno em crise, devido ao facto de isso não ter sido relevante para o trabalho a executar (projeto de arquitetura), e, bem assim, de nessa parcela nada ir ser contruído cf. ficheiro áudio 20230113121145_18 38587_2870661.wma, minutos 20:21 a 21:45, 35:58 a 38:12, e 45:33 a 47:40.

19.ª – Da aplicação dos critérios demarcativos substantivamente previstos no artigo 1353.º do Código Civil resulta, igualmente, que é a versão demarcativa alegada pelos RR./Apelantes a correta, dado serem eles quem, por um lado, dispõe de títulos totalmente coincidentes quanto à área inscrita, à área descrita e à área existente in loco, e, por outro lado, tem a posse da parcela de terreno em dissídio, contrariamente ao que sucede com a A./Apelante, conforme melhor descrito no ponto A.3. da motivação desta alegação.

20.ª – Do cruzamento entre os documentos aquisitivos, matriciais, prediais e topográficos existentes para o prédio dos RR./Apelantes e os resultados advindos da perícia e da inspeção ao local realizadas nos autos resulta uma total e absoluta coincidência, a qual se justifica pelo facto de os elementos prediais do prédio estarem estabilizados desde, pelo menos, 1979, ano da sua aquisição e inscrição na matriz, dos quais (elementos prediais) resulta que confronta com o(s) prédio(s) urbano(s) da A./Apelante a Sul e Poente, e o(s) desta a Norte e a Nascente/Nordeste, numa extensão irregular da qual provém, por um lado, uma delimitação que, num primeiro momento, vai do caminho público até ao limite construtivo da parede de blocos in loco existente, após o que, num segundo momento, inflete à direita, no sentido nascente/poente, imediatamente após findar essa parede, cuja edificação ali terminou por ali terminar também o limite Norte do prédio onde foi edificada, e, por outro lado, a área de 3.754,00m2, corrigida pela perícia realizada nos autos para 3.790,00m2, que corresponde, precisamente, à que encontra inscrita na matriz desde 1979, há mais de 40 anos, e descrita no registo desde 23.07.2009, há mais de 12 anos, motivos pelos quais deveriam ter sido dados como provados os factos não provados 8., 12., 14. e 15.

21.ª – É devido à configuração e à delimitação referidas na conclusão anterior que na confrontação Norte/Sul não existem mais marcos do que aqueles que existem em frente da parede de blocos aí existente – cf. relatório pericial, referência citius 35168241 –, que apenas traçam uma linha reta naquilo que corresponde ao limite Norte/Sul de ambos os prédios – para cá e para lá desses marcos – e no termo edificativo dessa parede, e nada mais, sendo este o sentido dos artigos 39.º a 41.º da contestação, e não aquele que o Tribunal a quo lhes imprimiu a fls. 27 da sentença, e fez refletir no facto não provado 13., que deveria ter sido dado como provado com os termos que ora se expressam.

22.ª – A factualidade aduzida pelo Tribunal a quo no 1.º parágrafo da página 24 da sentença como necessária à conclusão da veracidade da demarcação alegada pelos RR./Apelantes é, precisamente, a que se verifica nos autos, pois, conforme se constata quer  do levantamento topográfico junto com a contestação (documento n.º 4), quer da perícia realizada nos autos, o prédio dos RR./Apelantes confronta a Sul e a Poente com o(s) prédio(s) da A./Apelada, e a Nascente consigo próprio, com KK e, ainda, com LL, sendo que é dessas confrontações, como não poderia deixar de ser, que resulta a configuração (irregular) do prédio e, sucedaneamente, a área de 3.574,00m2, corrigida pela perícia para 3.790,00m2, inscrita na matriz de 1979, o que é dizer, há mais de 40 anos, sendo irrelevantes, em face da interpretação que se vem fazendo do artigo 7.º do Código do Registo Predial, as insuficiências constantes do registo do prédio quanto à confrontação nascente e poente, não sendo sequer curial, em face do exposto na conclusão 19.ª, que se avente a possibilidade de existir um erro de medição.

23.ª – À harmonia entre a realidade documental e a realidade in loco existente, acresce a posse que os RR/Apelantes têm da parcela de terreno em dissídio nos autos, que é parte integrante do seu prédio urbano, posse essa que é evidente em face da não posse da A./Apelada (cf. facto não provado 1), e dos pedidos que esta formula nos autos, sendo, aliás, o fito dos presentes autos essa mesma posse, pois que se assim não fosse nunca seria possível intentar a presente ação, por falta de objeto, uma vez que não podem existir terras de ninguém, porquanto ou são do domínio público ou são do domínio privado, e a parcela subjudice é, claramente, da posse e propriedade dos RR/Apelantes, que desde 1979 a possuem à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, e a têm inscrita a seu favor na matriz, não sendo possível concluir, num juízo sério e objetivo, que por nas fotografias referidas a fls. 32 da sentença, de pouca ou nenhuma qualidade, se visualizar vegetação na parcela de terreno sub judice isso signifique a ausência de posse pelos RR./Apelantes, razões pelas quais os factos não provados 9., 10. e 11. deveria ter sido dados como provados.

24.ª – A conclusão anterior é atestada pelo facto de, por um lado, a testemunha GG (que, sendo filha dos RR./Apelantes, é, salvo melhor opinião, a pessoa com melhor razão de ciência sobre o prédio, a seguir aos Pais) ter sido clara ao afirmar que o R./Apelante marido usava o prédio de que é proprietário como coadjuvante à atividade comercial de mecânico de automóveis que explorava noutro prédio confinante, e que, o mesmo atualmente está e é limpo a mando deles, não tendo árvores fruto ou outras por ser um prédio urbano destinado à construção urbana cf. ficheiro áudio 20230113151645_1838587_2870661.wma, minutos 03:09 a 05:00, e, por outro lado, pela testemunha HH, que foi clara ao referir que, diretamente ou a mando daqueles, procede limpeza do prédio (cf. p. 33-34 da sentença), e, ainda, por a testemunha DD, gerente da unidade hoteleira detida pela A./Apelante, ter dito que o estaleiro da obra de construção do hotel da A./Apelada não abrangeu aquela parcela, e que a mesma nunca foi limpa por esta, antes nela era deitado entulho vindo da parte superior, i.e., do prédio dos RR./Apelantes cf. ficheiro áudio 20230113112000_1838587_287 0661.wma, minutos 28:17 a 30:12 – o que é demonstrativo de que eram estes, como são, dado terem a posse e a propriedade dessa parcela de terreno, quem tem o poder facto sobre a mesma, uma vez que, a parcela confronta, precisamente, com um outro prédio dos RR./Apelantes.

25.ª – Se coerência dos RR./Apelantes existe quanto aos títulos de que dispõem, o mesmo não sucede com a A./Apelada, cujos títulos de que dispõe por tão variados e contraditórios serem impedem a formulação duma condigna conclusão, antes obrigam a remeter para o que se escreveu a pp. 26-30 da motivação desta alegação, sem prejuízo de não poderemos deixar de notar – e daí se crer na litigância de fé, cuja apreciação ad quem, de boa fé se prescinde – que se ela existe é por culpa da própria A/Apelada, pois que foi ela quem promoveu pela inscrição na matriz do prédio descrito no pedido A), que fundamenta este e os demais pedidos, e declarou que o mesmo teria uma área que, afinal, não tem, nem nunca poderia ter, e que proviria de apenas dois artigos anteriores, quando não provém, tudo isto sem prejuízo de ter mandado elaborar um projeto de arquitetura para o hotel, que obrigou a realizar levantamentos topográficos (um deles junto à petição inicial), motivo pelo qual, salvo melhor opinião, bem deveria saber o que deveria promover, inscrever e/ou registar.

26.ª – Não tendo sido dada razão à versão demarcativa alegada e peticionada pela A./Apelada, conforme claramente consta do 4.º parágrafo da página 17 da sentença, nunca os RR./Apelantes poderiam ser condenados, como foram, na totalidade das custas da presente ação, o que, por isso e devido a isso, deve ser corrigido pelo Tribunal ad quem.

27.ª – A celeuma da demarcação em dissídio mais não é do que uma questão unilateralmente criada pela A./Apelada após ter concluído em 2019 que o alargamento da sua unidade hoteleira apenas o poderia ser para a parcela de terreno em dissídio – conforme dito pela testemunha DD cf. ficheiro áudio 2023011311200 0_1838587_2870661.wma, minutos 07:35 a 08:36 – pois que, até então, não obstante ser proprietária no local desde 2012, nunca nada havia reivindicado ou posto em causa, bem sabendo, ou devendo saber, que os RR./Apelantes nenhuma culpa têm quanto ao mesmo.

28.ª – Mal andou o Tribunal a quo ao decidir como decidiu.

Nestes termos, e nos demais de Direito, sempre com o douto suprimento de V. Exas., deve julgar-se a presente alegação de recurso de apelação procedente e, em consequência, revogar-se a douta sentença proferida pelo tribunal a quo, proferindo-se, a final, decisão que julgue e improcedente a ação da A./Apelada, assim se fazendo

JUSTIÇA!»

                                                           *

Apresentou a A. contra-alegações relativamente a este recurso, das quais extraiu as seguintes conclusões:

«1. – O recurso apresentado deve ser liminarmente rejeitado por incumprimento do preceituado nos diversos números e alíneas do Art.º 640.º do C.P.C.

2. – A sentença em crise proferida pelo Tribunal “a quo” não padece de qualquer vício, nem enferma de qualquer nulidade, e foi lavrada com inteiro acerto, pelo que deverá ser mantida em toda a linha.

TERMOS EM QUE DEVE O RECURSO INTERPOSTO SER LIMINRAMENTE REJEITADO POR INCUMPRIMENTO DO PREVISTO NO ART.º 640.º DO C.P.C., OU, CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, DEVE SER-LHE NEGANDO PROVIMENTO E EM TUDO SE CONFIRMANDO A DOUTA SENTENÇA ORA EM CRISE, SE FARÁ A MAIS ELEMENTAR

JUSTIÇA!»

                                                           *

Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

De referir que no despacho de admissão do recurso, a Exma. Juíza a quo sustentou a não verificação das arguidas nulidades.

                                                           *

2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelos RR./recorrentes nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

- rejeição do recurso por incumprimento dos ónus estabelecidos no art. 640º do n.C.P.Civil? (como questão prévia suscitada nas contra-alegações da A., relativamente ao recurso dos RR.)?;

- nulidade da sentença (art. 615º, nº1, al. c) do n.C.P.Civil) [por prolação de decisão ambígua e ininteligível, e por ter sido omitida pronúncia quanto à exceção dilatória de ineptidão da petição inicial (cuja consequência é a nulidade de todo o processo e a absolvição da instância)]?;

- erro na apreciação da prova, que levou ao incorreto julgamento dos factos “provados” sob os nos18.”, “19.” e “20.” [que deveriam ter tido resposta negativa], e a serem incorretamente julgados como “não provados” os factos sob os nos6.” (parcialmente), “8.”, “9.”, “10.”, “11.”, “12.”, “13.”, “14.” e “15.” [os quais deveriam ter tido resposta positiva]?;

- errada subsunção jurídica [por assente em pressupostos de facto inverificados, pois que «(…) em face dos títulos de que os RR./Apelantes dispõem, e da posse que exercem, a delimitação dos prédios em discussão nos autos faz-se, não como alega a A./Apelante ou decidiu a 1.ª instância, mas como aqueles alegam»]?;

- errada condenação total em custas dos RR./apelantes?

                                                           *

3 – QUESTÃO PRÉVIA

Cumpre começar pela apreciação da invocada rejeição do recurso dos RR. por alegado incumprimento dos ónus estabelecidos no art. 640º do n.C.P.Civil.

Sustenta, em síntese, a A./recorrida nas suas contra-alegações, que «(…) os Recorrentes limitam-se a por em causa os factos provados e não provados, sem indicarem ou proporem nova formulação, e ou sequer proponham qualquer decisão para os mesmos, ou para outros que entendessem indicar ou propor» e, por outro lado, que «(…) é obrigatória a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda, o que os Recorrentes não fizeram».

Será assim?

Salvo o devido respeito, não assiste qualquer razão, nesta parte, à A./recorrida.

Em primeiro lugar porque, ao invés do aduzido, os RR./recorrentes foram suficientemente claros e especificadores em indicarem qual a decisão que, no seu entender, devia ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, a saber, que os factos “provados” objeto da sua impugnação deveriam ter tido resposta “negativa” [leia-se, deveriam transitar para o elenco dos factos “não provados”] e que os factos “não provados” também impugnados deveriam ter tido resposta “positiva” [leia-se, deveriam transitar para o elenco dos factos “provados”] – cf., inter alia, na conclusão2.ª”.

E quanto ao aspeto da indicação, com exatidão, das passagens da gravação em que se funda o recurso na parte respeitante à prova gravada, isto é, no que concerne aos requisitos atinentes à indicação das passagens da prova testemunhal gravada, importa ter presente que, in casu, os RR./recorrentes indicaram, relativamente a todos e cada uma das testemunhas que invocaram, o concreto período/tempo da gravação áudio, no suporte técnico da audiência de julgamento, em que se encontravam gravados os segmentos tidos por relevantes [cf., concretamente, as conclusões15.ª” a “18.ª”, 24.ª e 27.ª”].

Face a este conspecto, atentemos agora no melhor entendimento jurisprudencial sobre esta temática, a saber:

«I. Para efeitos do disposto nos artigos 640º e 662º, nº1, ambos do Código de Processo Civil, impõe-se distinguir, de um lado, a exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, previstas nas alíneas a), b) e c) do nº1 do citado artigo 640º, que integram um ónus primário, na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto.

E, por outro lado, a exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na alínea a) do nº 2 do mesmo artigo 640º, que integra um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida.

II. Na verificação do cumprimento dos ónus de impugnação previstos no citado artigo 640º, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

III. Nesta conformidade, enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1, alíneas a), b) e c) do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, já, quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, alínea a) do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso.

IV. Tendo o recorrente, indicado, nas conclusões das alegações de recurso, o início e o termo de cada um dos depoimentos das testemunhas ou indicado o ficheiro em que os mesmos se encontram gravados no suporte técnico e complementado estas indicações com a transcrição, no corpo das alegações, dos excertos dos depoimentos relevantes para o julgamento do objeto do recurso, tanto basta para se concluir que o recorrente cumpriu o núcleo essencial do ónus de indicação das passagens da gravação tidas por relevantes, nos termos prescritos no artigo 640º, nº 2, al. a) do CPC, nada obstando a que o Tribunal da Relação tome conhecimento dos fundamentos do recurso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto.»[2]

Ora se assim é, por maioria de razão em relação à situação ajuizada, não vislumbramos como dar acolhimento ao suscitado e enquadrado sob a questão prévia em análise.

Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, improcede o suscitado nesta questão prévia.

                                                           *

4 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

4.1 - Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado/fixado como “provado” pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se provou”, sem olvidar que tal enunciação poderá ter um carácter “provisório”, na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa factualidade.

Tendo presente esta circunstância, são os seguintes os factos que se consideraram “provados” no tribunal a quo:

«1. O prédio urbano situado no Largo ..., em ..., encontra-se inscrito na matriz sob o artigo ...04º da União das Freguesias ... e ..., constando da respetiva caderneta predial que confronta a norte com BB e outros, a sul com a Rua ..., a nascente com o Largo ... e a poente com caminho, que tem a área total de 5.700,2500 m2, que foi inscrito na matriz no ano de 2017, tendo tido origem nos antigos artigos ...72... e ...29º da União das Freguesias ... e ..., e que tem a sociedade Autora como titular inscrita junto da Autoridade Tributária e Aduaneira.

2. Os antigos artigos ...72... e ...29º da União das Freguesias ... e ... provieram, respetivamente, dos anteriores artigos ...90... e ...57º da extinta freguesia ....

3. Mediante escrito intitulado Compra e Venda, datado de 15 de novembro de 2012, o representante legal da sociedade comercial denominada A..., L.da, na qualidade de primeiro outorgante, e a representante legal da Autora AA, Unipessoal, L.da, na qualidade de segunda outorgante, declararam, perante Notário, o seguinte:

“Declarou o primeiro outorgante, em nome da sociedade sua representada, que pelo preço global de cem mil euros, que da sociedade representada da segunda, já recebeu, àquela vende os seguintes prédios, cujo valor patrimonial global é de € 119.415,10:

1)- Urbano, sito em Forca ou ..., inscrito na respetiva matriz da freguesia ... sob o artigo ...57º, com o valor patrimonial de € 92.723,20, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ..., da mencionada freguesia, pelo preço de oitenta mil euros.

2)- Urbano, sito em ..., composto por talhão de terreno destinado a construção urbana, inscrito na respetiva matriz da freguesia ... sob o artigo ...90º, com o valor patrimonial de € 26.691,90, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ..., da mencionada freguesia, pelo preço de vinte mil euros. Ambos os prédios se encontram inscritos a favor da Sociedade vendedora pela apresentação setecentos e sessenta e sete de dezasseis de outubro de dois mil e doze.

Declarou a segunda outorgante que para a Sociedade sua representada aceita o contrato nos termos exarados, tendo ambos declarado que o negócio aqui titulado teve intervenção da mediadora imobiliária B..., Limitada, (…).”.

4. A certidão predial do prédio urbano situado em ... que se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...25 contém a indicação de que o mesmo tem a área total de 4.280 m2, corresponde ao artigo matricial ...90..., é composto por talhão de terreno destinado a construção urbana e confronta a norte com BB, a sul com C..., L.da, a nascente com herdeiros de II e MM e a poente com caminho público.

5. Pela apresentação n.º ...16, de 19 de novembro de 2012, encontra-se registada a aquisição do prédio urbano identificado em 4., a favor da sociedade Autora, por compra à sociedade comercial denominada A..., L.da.

6. Consta da caderneta predial referente ao prédio urbano situado em ..., então inscrito sob o artigo ...72º, que o mesmo é composto por talhão de terreno destinado à construção urbana, com a área de 4.280 m2, que foi inscrito na matriz no ano de 1997, tendo tido origem no anterior artigo ...90º da extinta freguesia ..., e que tem a sociedade Autora como titular inscrita junto da Autoridade Tributária e Aduaneira.

7. Consta da caderneta predial referente ao prédio urbano situado em ..., então inscrito sob o artigo ...90º da extinta freguesia ..., que o mesmo é composto por talhão de terreno destinado à construção urbana, com a área de 4.280 m2, que foi inscrito na matriz no ano de 1997 e que tem a sociedade Autora como titular inscrita junto da Autoridade Tributária e Aduaneira.

8. A certidão predial do prédio urbano situado em Forca que se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...04 contém a indicação de que o mesmo tem a área total de 822,5 m2, corresponde ao artigo matricial ...29º, é composto por três pavilhões de rés-do-chão e primeiro andar, destinados a Fábricas de Confeções e confronta a norte com NN, a sul com OO, a nascente com ... e a poente com caminho.

9. Pela apresentação n.º ...16, de 19 de novembro de 2012, encontra-se registada a aquisição do prédio urbano identificado em 8., a favor da sociedade Autora, por compra à sociedade comercial denominada A..., L.da.

10. Consta da caderneta predial referente ao prédio urbano situado em ..., então inscrito sob o artigo ...29º, que o mesmo é composto por casa construída de pedra, cal e cimento, destinada a fábrica de confeções, constituída por três pavilhões, tendo o terreno a área total de 822 m2 e sendo também de 822 m2 a área de implantação do edifício, que foi inscrito na matriz no ano de 1978, tendo tido origem no anterior artigo ...57º da extinta freguesia ..., e que tem a sociedade Autora como titular inscrita junto da Autoridade Tributária e Aduaneira.

11. Consta da caderneta predial referente ao prédio urbano situado em ..., então inscrito sob o artigo ...57º da extinta freguesia ..., que o mesmo é composto por casa construída de pedra, cal e cimento, destinada a fábrica de confeções, constituída por três pavilhões, tendo o terreno a área total de 822 m2 e sendo também de 822 m2 a área de implantação do edifício, que foi inscrito na matriz no ano de 1978, tendo tido origem no anterior artigo ...95º da extinta freguesia ..., e que tem a sociedade Autora como titular inscrita junto da Autoridade Tributária e Aduaneira.

12. O prédio urbano situado em ..., ..., encontra-se inscrito na matriz sob o artigo ...85º da União das Freguesias ... e ..., constando da respetiva caderneta predial que confronta a norte com terrenos da Câmara Municipal, a sul com herdeiros de II e outros, a nascente com BB e a poente com caminho público, que tem a área total de 3.754 m2, que foi inscrito na matriz no ano de 1979, tendo tido origem no antigo artigo ...38º da extinta freguesia ..., e que tem o Réu BB como titular inscrito junto da Autoridade Tributária e Aduaneira.

13. Consta da caderneta predial referente ao prédio urbano situado em ..., então inscrito sob o artigo ...38º, que o mesmo confronta a norte com terrenos da Câmara Municipal, a sul com herdeiros de II e outros, a nascente com BB e a poente com caminho público, que o terreno tem a área total de 3.754 m2, que foi inscrito na matriz no ano de 1979, e que tem o Réu BB como titular inscrito junto da Autoridade Tributária e Aduaneira.

14. Mediante escrito intitulado Justificação, datado de 8 de abril de 2009, os Réus, na qualidade de primeiros outorgantes, declararam, perante Notário, o seguinte:

“Declararam os primeiros outorgantes que são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, há mais de vinte anos, pelo facto de o terem ajustado comprar verbalmente, no ano de mil novecentos e setenta e nove, a PP, e mulher, QQ, compra nunca titulada por escritura pública, do seguinte prédio:

Urbano, composto por terreno destinado a construção, sito em ..., com a área de três mil setecentos e cinquenta e quatro metros quadrados, a confrontar de norte com Terrenos da Câmara Municipal, nascente com BB, sul com Herdeiros de II e outros, e poente com Caminho Público, inscrito na respetiva matriz da freguesia ... sob o artigo ...38, com o valor patrimonial e atribuído de trinta e seis mil trezentos e setenta euros, não descrito na Conservatória do Registo Predial ....

Que desde então, e tendo-se operado a tradição material do bem, o têm possuído e usufruído, ou têm permitido o seu uso e fruição, demarcando-o, limpando-o, utilizando-o como depósito de materiais diversos, pagando os impostos, tudo com ânimo de quem exercita um direito próprio, de forma reiterada e contínua, à vista de toda a gente da região, sem oposição de ninguém, sendo por isso a sua posse pacífica, pública, contínua e de boa fé, pelo que o adquiriram por usucapião, não tendo todavia, dado o modo de aquisição, documento que lhe permita fazer a prova do seu direito de propriedade.”.

15. Nessa ocasião, KK, RR e SS, na qualidade de segundos outorgantes, declararam, perante Notário, o seguinte:

“Declararam os segundos outorgantes que por serem verdadeiras confirmam as declarações que antecedem.”.

16. A certidão predial do prédio urbano situado em ... que se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...23 contém a indicação de que o mesmo tem a área total de 3.754 m2, corresponde ao artigo matricial ...38º, é composto por terreno destinado a construção e confronta a norte com terrenos da Câmara Municipal, a sul com herdeiros de II e outros, a nascente com BB e a poente com caminho público.

17. Pela apresentação n.º ...20, de 23 de julho de 2009, encontra-se registada a aquisição do prédio urbano identificado em 16., a favor dos Réus, por usucapião.

18. O prédio urbano a que se alude em 4. confina apenas de norte com o prédio urbano que se encontra identificado em 16..

19. A delimitação entre o prédio urbano a que se alude em 4. e o prédio urbano que se encontra identificado em 16. é feita em linha reta, no sentido poente-nascente, desde o ponto mais a poente junto do caminho, no local onde existem dois marcos que distam cerca de dois metros da parede em blocos que fez parte da obra de ampliação da fábrica ali existente e que não chegou a ser concluída, até ao ponto onde essa linha entronca no talude, o qual delimita os dois prédios urbanos desde esse ponto até à respetiva estrema nascente, no local onde termina o talude e que coincide com o local onde a altura do muro que pode ser observado na fotografia constante da página 7 do auto de inspeção a que corresponde a referência n.º 36618910 sofre uma redução.

20. Com a delimitação mencionada em 19. o prédio urbano a que se alude em 4. fica com uma área efetiva inferior a 3.700 m2 e o prédio urbano que se encontra identificado em 16. fica com uma área efetiva superior a 3.090 m2.

21. Os Réus sustentam que a delimitação entre o prédio urbano a que se alude em 4. e o prédio urbano que se encontra identificado em 16. é feita em linha reta, nos termos indicados em 19., apenas até ao limite da parede em blocos aí mencionada e, a partir daí, através de uma outra linha reta traçada no sentido norte-sul.

22. Em consequência, os Réus sustentam que uma parcela de terreno com a área de cerca de 700 m2, situada junto das estremas norte e nascente do prédio urbano a que se alude em 4., integra o prédio que se encontra identificado em 16.

23. Com a delimitação mencionada em 21. o prédio urbano a que se alude em 4. fica com uma área efetiva inferior a 3.000 m2 e o prédio urbano que se encontra identificado em 16. fica com uma área efetiva de 3.790 m2.

24. No mês de junho de 2020, sem qualquer consentimento da Autora, pessoa cuja identidade não se apurou entrou com uma máquina retroescavadora pelo lado sul/poente do prédio a que se alude em 4., abrindo através deste um caminho até ao seu ponto extremo do lado norte/nascente e procedendo à desmatação da vegetação invasiva e espontânea que se encontrava no local.

25. Na data indicada em 3. os únicos marcos existentes no local eram os mencionados em 19..

26. A abertura existente na parede em blocos a que se alude em 19. e que deita para a faixa com a largura de dois metros aí mencionada permitia a passagem para o antigo depósito de gás e para as caldeiras da fábrica.

27. A certidão predial do prédio urbano situado no Largo ... ou Forca, em ..., que se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...16, contém a indicação de que o mesmo tem a área total de 597,75 m2, dos quais 184,15 m2 correspondem à área coberta e os restantes 413,60 m2 à área descoberta, que corresponde ao artigo matricial ...04º, que é composto por casa de rés-do-chão, 1º andar e logradouro e que confronta a norte com rua pública, a sul com a Rua ..., a nascente com o Largo ... e a poente com caminho público.

28. Pela apresentação n.º ..., de 14 de julho de 2006, encontra-se registada a aquisição do prédio urbano identificado em 27., a favor de TT, casado com AA no regime da comunhão de bens adquiridos, por compra a UU, VV e WW.

29. Pela apresentação n.º ...41, de 5 de março de 2020, encontra-se registada a aquisição do prédio urbano identificado em 27., a favor da Autora AA, Unipessoal, L.da, por compra a TT.

30. Consta da caderneta predial referente ao prédio urbano situado no Largo ... ou Forca, inscrito sob o artigo ...04º, que o mesmo é composto por casa de primeiro andar e rés-do-chão, de construção em alvenaria, que confronta a norte com rua pública, a sul com a Rua ..., a nascente com o Largo ... e a poente com caminho público, tendo o terreno a área total de 597,7500 m2 e sendo de 184,1500 m2 a área de implantação do edifício, que foi inscrito na matriz no ano de 1947, tendo tido origem no anterior artigo ...68º, da extinta freguesia ..., e que tem a sociedade Autora como titular inscrita junto da Autoridade Tributária e Aduaneira.»

¨¨

E os seguintes os factos “não provados” elencados pelo tribunal a quo:

«1. A parcela de terreno com a área de cerca de 700 m2 a que se alude em 22. dos factos considerados provados tem vindo a ser possuída pela sociedade Autora e pelos seus antecessores, há mais de vinte anos, ininterruptamente, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, com a convicção de que exercem um direito próprio ao tratar e limpar o terreno e ao pagar as respetivas contribuições e impostos, dele colhendo os respetivos frutos.

2. À revelia da Autora, os Réus chegaram a colocar marcos no prédio a que se alude em 4. dos factos considerados provados com o intuito assumido de, a seguir, colocar uma vedação no local.

3. Foram os Réus que praticaram o facto mencionado em 24. dos factos considerados provados.

4. Na ocasião mencionada em 24. dos factos considerados provados os Réus procederam à colocação de marcos, constituídos por blocos de cimento, na parte nascente e norte do prédio a que se alude em 4. dos factos considerados provados, com o intuito de incorporarem no prédio de que são proprietários a parcela de terreno resultante dessa demarcação.

5. Assim que foi avisado de que os Réus se tinham introduzido no prédio identificado em 4. dos factos considerados provados, o marido da representante legal da sociedade Autora deslocou-se ao mesmo e deparou-se com a abertura de um caminho pelo lado norte, com o levantamento de terras e com a demolição de um muro em pedra.

6. O marido da representante legal da sociedade Autora mandou proceder ao arranque dos marcos a que se alude em 4., assim manifestando a sua discordância e oposição à delimitação pretendida pelos Réus.

7. O prédio urbano a que se alude em 1. dos factos considerados provados nada tem a ver com os artigos matriciais ...72... e ...29º.

8. O prédio urbano que se encontra identificado em 16. dos factos considerados provados estrutura-se irregularmente, em resultado da orografia do terreno, nos termos da configuração retratada no levantamento topográfico junto aos autos a fls. 40.

9. Há mais de vinte anos que os Réus e seus ante possuidores usam a parcela de terreno com a área de cerca de 700 m2 a que se alude em 22. dos factos considerados provados, ininterruptamente, nela exercendo atos de posse como proprietários, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.

10. Aos Réus e aos seus ante possuidores sempre foi reconhecida, publicamente, a propriedade da parcela de terreno com a área de cerca de 700 m2 a que se alude em 22. dos factos considerados provados, da qual continuamente cuidaram, com a realização de todos os trabalhos necessários à sua rentabilidade e defesa, pagando, ao longo dos anos, os respetivos encargos fiscais.

11. Tais atos foram praticados pelos Réus com a plena convicção de que os poderiam praticar por serem os proprietários da referida parcela de terreno.

12. A edificação da parede em blocos mencionada em 19. dos factos considerados provados terminou no local onde termina o prédio urbano a que se alude em 4. dos factos considerados provados.

13. É por essa razão que só existem marcos em frente dessa parede de ampliação da fábrica.

14. O prédio urbano que se encontra identificado em 16. dos factos considerados provados também confronta a poente com o prédio urbano a que se alude em 4. dos factos considerados provados.

15. O prédio urbano que se encontra identificado em 16. dos factos considerados provados encontra-se delimitado e estabilizado, há mais de quarenta anos, com a configuração retratada no levantamento topográfico junto aos autos a fls. 40, sem que alguém, ao longo desse período, tenha questionado os Réus sobre a configuração, a delimitação e os limites do seu prédio.

16. A Autora promoveu a inscrição do prédio urbano identificado em 1. dos factos considerados provados com a área de 5.700,25 m2 com o propósito de fazer sua uma parcela de terreno que não comprou e que integra o prédio que se encontra identificado em 16. dos factos considerados provados.

17. A Autora, por intermédio da sua representante legal, sabe que o prédio por si adquirido não inclui a parcela de terreno a que se alude em 22. dos factos considerados provados.

18. A Autora, por intermédio da sua representante legal, sabe que o prédio por si adquirido no dia 15 de novembro de 2012 não tem a configuração e a delimitação indicadas na petição inicial.»

                                                           *

4.2 – A primeira ordem de questões que com precedência lógica importa solucionar é a que se traduz na alegada nulidade da sentença.

Tendo sido arguida a nulidade da sentença por reporte a uma das causas expressamente qualificada como tal [alínea c) do nº1 do art. 615º do n.C.P.Civil], e também enquanto decorrente da exceção dilatória de ineptidão da petição inicial [arts. 186º, nº 2, alínea c), 576º, nos 1 e 2, 557º, alínea b) do n.C.P.Civil], vejamos um por um esses fundamentos.

Que dizer relativamente ao concreto fundamento aduzido pelos RR./recorrentes da arguição de nulidade da decisão consistente em ocorrer ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível ?

Segundo a referida alínea c) do citado art. 615º, nº1 do n.C.P.Civil, a sentença será nula quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão”, e bem assim quando “ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.

Será então que se verifica a 2ª vertente desta causa de nulidade, a saber, quando “ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”?

Recorde-se que os RR. arguiram esta causa de nulidade por reporte à circunstância de na definição da linha de estrema entre os prédios das partes a sentença ter lançado mão de um “talude”, relativamente ao qual se grafou que «(…) delimita os dois prédios urbanos desde esse ponto até à respetiva estrema nascente, no local onde termina o talude e que coincide com o local onde a altura do muro que pode ser observado na fotografia constante da página 7 do auto de inspeção a que corresponde a referência n.º 36618910 sofre uma redução», mas sem que se definisse o porque dessa qualificação, a localização do mesmo (onde começa e termina), nem como se estruturava ele em termos de dimensão, acrescendo que a referência à «fotografia constante da página 7 do auto de inspeção» [como igualmente grafado no segmento reproduzido], resulta numa indefinição/obscuridade, pois que se fica sem saber que concreto ponto do muro se assinalou/tomou como ponto de delimitação.

Que dizer?

A resposta a esta questão é negativa – e releve-se este juízo antecipatório! – aliás, só se compreendendo a sua arguição por um qualquer equívoco ou deficiente interpretação dos conceitos legais.

É que quanto ao vício da inintelegibilidade decorrente da ambiguidade ou obscuridade, importa ter presente que, no regime atual, tal se encontra limitado à parte decisória, e só releva quando um declaratário normal, nos termos do art. 236º, nº1 e 238º, nº1, ambos do C.Civil “não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar.”[3] 

Ora, compulsada a sentença, o que se constata é que foi face à matéria de facto nela alinhada como provada/assente, mais concretamente face à nova redação do ponto de facto “provado” sob “19.”, isto é, face ao dado neste como concretamente apurado, que, em coerência, veio a ser proferida a “decisão”.

Sucede que o vício invocado contenderia com a interpretação do que se quis significar com “talude” na redação desse ponto de facto e transposição da delimitação/demarcação feita tomando como critério e ponto de referência o mesmo.

Ora, salvo o devido respeito, não era suposto na sentença fazer-se uma averiguação científica ou técnica sobre o declive existente no terreno naquele local, antes, constatada a existência do mesmo, em termos da orografia do terreno, se optou por o tomar como ponto de referência.

Por outro lado, operando o devido confronto da dita «fotografia constante da página 7 do auto de inspeção», é clara e inequivocamente apreensível qual o concreto ponto do terminus da linha de delimitação entre os prédios das partes, a nascente, a saber, no local onde o “talude” entronca no muro aí igualmente existente, o que corresponde ao ponto onde a altura do muro sofre uma “redução”.

Sendo certo que só este ponto [a que os RR./recorrentes nas suas alegações  denominam de ponto “A”] figura na «fotografia constante da página 7 do auto de inspeção», e que essa interpretação é a única consentânea com as características físicas do próprio “talude” que aparece retratado nesta fotografia…

Tudo isto foi suficientemente “explicado” na fundamentação de direito da sentença, ou resulta de uma correta leitura da mesma!

Dito de outra forma: só fazendo uma interpretação enviesada ou redutora da linha de fundamentação seguida na sentença se poderia sustentar que foi cometido este vício – com referência à “decisão” constante do “dispositivo”...

Não obstante o vindo de dizer, o que foi citado em termos de fundamentação (latu sensu) pelo tribunal a quo, poderá constituir um eventual erro de julgamento (quer de facto, quer de direito) sobre a questão sub judice, mas não um vício estrutural da sentença, que tivesse virtualidades para conduzir à nulidade da mesma.

Termos em que improcede esta via de argumentação aduzida pelos  RR./recorrentes como fundamento para a procedência do recurso, sem embargo do que competirá decidir na apreciação dos também alegados fundamentos recursivos da “impugnação da matéria de facto” e do “erro na aplicação do direito”.

                                                           ¨¨

Vejamos agora do argumento da nulidade decorrente da exceção dilatória de ineptidão da petição inicial [qualificada pelos RR./recorrentes como «NULIDADE DA SENTENÇA POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA»].

Argumentam os RR./recorrentes nas alegações recursivas que A./Apelada, ao invés do entendimento perfilhado na sentença recorrida, não intentou, apenas e só, uma ação de demarcação, antes uma ação de reivindicação em cumulação com uma ação de demarcação, sendo isso que resulta do pedido e da causa de pedir, ocorrendo que tal «(…) cumulação é substancialmente incompatível e geradora da ineptidão da petição inicial dos autos, que acarreta a nulidade de todo o processo sub judice, e que o Tribunal a quo, ante a fundamentação de Direito aduzida na sentença, deveria ter conhecido e declarado oficiosamente, ao invés de alterar/convolar, unilateral e oficiosamente, como fez, os pedidos formulados pela parte, em clara violação do princípio adjetivo do pedido».

Será assim?

Começaremos por esclarecer que a ineptidão da p.i., como causa de nulidade desta, tal como prevista no art. 186º do n.C.P.Civil, não é uma nulidade da sentença, mas antes uma nulidade processual/de procedimento, de conhecimento oficioso [cf. art. 196º do n.C.P.Civil], s.m.j., na vertente de prática de ato que a lei não admita, qual seja, a apresentação de uma p.i. com os vícios relativamente à causa de pedir e ao pedido tal como concretizados nas diversas alíneas do nº2 do art. 186º do n.C.P.Civil[4].

Como quer que seja, aderimos ao entendimento de que se o Juiz de 1ª instância, ao proferir a sentença, não apreciou uma tal questão de conhecimento oficioso, estaria em causa uma nulidade da decisão, por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615º, nº1, al.d) do n.C.P.Civil[5], pelo que será à luz deste enquadramento que se vai prosseguir nesta parte.

Enfermará então a p.i. de “ineptidão”?

Não cremos que a resposta seja ou deva ser unívoca.

Temos presente ser corrente e comum sublinhar-se que «A ação de demarcação é suscetível de causar dúvidas relativamente à sua diferenciação da ação de reivindicação consagrada no artigo 1311.º dado que em qualquer dos casos se discute uma questão de domínio relativamente a uma faixa de terra e muitas vezes o recurso a uma ou a outra ação materializa-se no mesmo objetivo. No entanto, como sumariza Henrique Sousa Antunes (Sousa Antunes, Henrique, 2017: 211) na ação de reivindicação está em causa o próprio título de aquisição; na ação de demarcação está em causa apenas a extensão do título possuído [v. distinção em Ac RL 12.02.2009 (10789/2007-6)]. Daí que a ação de demarcação não constitua caso julgado relativamente à ação de revindicação, nem esta em relação àquela [neste sentido Ac, RP 30.05.2011 (376.09.4TBCDR.P1) e Ac. RL 20.11.2003 (7610/2003-2)].»[6]

Ocorre que a propósito da dicotomia entre pedido de reivindicação e pedido de demarcação, mais concretamente relativamente à cumulação de pedidos, já foi doutamente sustentado o seguinte:

«- Pode acontecer que os proprietários confinantes estejam em desacordo quanto aos limites, tenham inclusivamente edificado sobre parte que o outro reclama como sua e, nessa medida, o proprietário lesado necessite para o integral reconhecimento do seu direito de propriedade e restituição da parte ocupada, a delimitação precisa das áreas de que é titular.

- Ora esse reconhecimento de propriedade é legitimador do pedido seguinte: de demarcação. Não prejudica este, o reconhecimento de propriedade com base nos títulos pode não ser suficiente por si só, para estabelecer os limites e confrontações, mas, confere justificação a este pedido delimitador. E, por sua vez este pedido de demarcação legitima objetivamente o pedido de restituição da parte indevidamente “ocupada” uma vez que a linha divisória se venha a demonstrar violada.

- Complementam-se, assim, os pedidos de reconhecimento de propriedade – demarcação – restituição, não havendo qualquer incompatibilidade substancial ou contradição entre os pedidos de reivindicação e de demarcação.»[7]

Na fundamentação deste acórdão escreveu-se o seguinte:

«Na ação de reivindicação o proprietário exige judicialmente o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição da coisa que apresenta identificada e delimitada de acordo com os títulos. Discute-se a titularidade.

Na ação de demarcação, o dono pede que se fixem as fronteiras relativamente aos prédios confinantes; discute-se a extensão e limites precisos na parte confinante.

Importa ter presente que a presunção de propriedade que emerge do registo predial e que legitima a ação de reivindicação, não abrange os limites, as confrontações, a área e demais elementos próprios da identificação física do prédio. O registo predial tem como finalidade essencial conferir publicidade à situação jurídica imobiliária, de modo a garantir a segurança nas operações de natureza predial. Não define os limites.

Pode, por isso, acontecer que os proprietários confinantes estejam em desacordo quanto a esses limites, tenham inclusivamente edificado sobre parte que o outro reclama como sua e, nessa medida, o proprietário lesado necessite para o integral reconhecimento do seu direito de propriedade e restituição da parte indevidamente ocupada, a delimitação precisa das áreas de que é titular.

Ora esse reconhecimento de propriedade é legitimador do pedido seguinte: de demarcação. Não prejudica este, porque o reconhecimento de propriedade com base nos títulos não é suficiente, por si só, para estabelecer os limites e confrontações, mas, confere justificação a este segundo pedido delimitador. E, por sua vez este pedido de demarcação legitima objetivamente o pedido de restituição da parte indevidamente “ocupada” uma vez que a linha divisória se venha a demonstrar violada.

Complementam-se, assim, os pedidos de reconhecimento de propriedade – demarcação – restituição.

Ou seja, muito embora sejam distintas as ações de demarcação e de reivindicação poderão cada uma delas em determinadas situações ser utilizadas integradamente na resolução dum mesmo litígio, onde para o pedido de restituição ser procedente seja necessário circunscrever determinada propriedade aos seus justos e claros limites.

Como bem refere o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25/01/2021, Proc. n.º 4029/18.4T8STS.P1 in www.dgsi.pt:

“Apesar de ambas as ações de demarcação e de reivindicação terem objetivos e fundamentos distintos, sucede com frequência embrenharem-se num mesmo processo, como se passa no caso sub judice.

Assim sendo, nada obsta a que se cumule numa única ação pedidos subjacentes à ação de reivindicação e pedidos subjacentes à ação de demarcação. Veja-se, a título de exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-02-2009, proc. 554/06.8TBAND.C1, disponível para consulta em www.dgsi.pt, que refere o seguinte: “Nada obsta a que se cumule esse pedido com pretensão deduzida com vista à demarcação, o que acontece quando o demandante peticiona ainda a condenação dos réus a “contribuírem para a demarcação dos dois prédios”.

À semelhança do aresto citado, há inúmera jurisprudência de referência que defende que podem ser cumulados pedidos de uma ação demarcação e de uma ação de reivindicação, dependendo obviamente da factualidade de cada caso em concreto.

Por conseguinte, atento o exposto, nada obsta a que nos presentes autos a Autora tenha configurado a presente ação com pedidos de uma ação de reivindicação e de uma ação de demarcação, não havendo aqui qualquer contrariedade ou incompatibilidade quanto aos pedidos, mas sim uma relação de complementaridade essencial para resolver o litígio que opõe Autora e Réu.”

Bem andou o tribunal a quo na decisão proferida ao reconhecer a compatibilidade substancial e formal dos pedidos e ao não reconhecer a ineptidão da petição inicial.»

Também assim o entendemos, precisamente porque no caso dos autos está em causa o conteúdo ou o limite do direito de propriedade e não a titularidade do direito de propriedade, o que nos parece ser suficiente para afirmar a adequação da presente ação de demarcação.

A esta luz, os pedidos formulados na ação eram conciliáveis/compatíveis.

Acresce que, no caso vertente, como flui do Relatório supra, a exceção de ineptidão da petição inicial[8], foi conhecida no despacho saneador, que a julgou improcedente e por isso os autos prosseguiram.

Assim, como sustentou a Exma. Juíza a quo no despacho em que se pronunciou sobre esta arguida nulidade, «De qualquer forma, no despacho saneador proferido com a referência n.º 34549822 o Tribunal decidiu julgar improcedente a referida exceção dilatória, sendo certo que, caso considerasse verificado qualquer outro fundamento de ineptidão da petição inicial, o Tribunal não deixaria de o considerar nessa sede, por ser a adequada para esse efeito (cfr. artigo 595º, n.º 1, alínea a), do CPC).»

Sem embargo do vindo dizer, sempre ocorre no caso vertente que, conforme entendimento dogmático que temos por incontornável e decisivo, «(…) o vício de ineptidão da petição inicial não pode ser apreciado, mesmo oficiosamente, aquando do julgamento da apelação.

Efectivamente, face ao preceituado no art. 200º, nº1, do CPC a referida nulidade principal, prevista no art. 186º do CPC, é apreciada no despacho saneador, se o não tiver sido antes - podendo conhecer-se dela até à sentença final, se o processo não comportar despacho saneador.

Resulta, pois, claramente deste preceito legal – que reproduz inteiramente o regime que já constava do anterior art. 206º do velho CPC – que a nulidade por ineptidão da petição inicial está irremediavelmente precludida no momento em que é proferida sentença em 1ª instância, não podendo, consequentemente, ter-se por verificada, mesmo por impulso oficioso do Tribunal, apenas na fase de recurso.»[9]

Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, improcede a invocada nulidade por ineptidão da p.i..

                                                           *

4.3 – A seguinte questão que cumpre apreciar é a respeitante ao erro na apreciação da prova, que levou ao incorreto julgamento dos factos “provados” sob os nos18.”, “19.” e “20.” [que deveriam ter tido resposta negativa], e a serem incorretamente julgados como “não provados” os factos sob os nos6.” (parcialmente), “8.”, “9.”, “10.”, “11.”, “12.”, “13.”, “14.” e “15.” [os quais deveriam ter tido resposta positiva].

Vejamos então.

Rememoremos antes de mais, o concreto teor literal dos factos “provados” objeto da impugnação, a saber:

«18. O prédio urbano a que se alude em 4. confina apenas de norte com o prédio urbano que se encontra identificado em 16..»;

«19. A delimitação entre o prédio urbano a que se alude em 4. e o prédio urbano que se encontra identificado em 16. é feita em linha reta, no sentido poente-nascente, desde o ponto mais a poente junto do caminho, no local onde existem dois marcos que distam cerca de dois metros da parede em blocos que fez parte da obra de ampliação da fábrica ali existente e que não chegou a ser concluída, até ao ponto onde essa linha entronca no talude, o qual delimita os dois prédios urbanos desde esse ponto até à respetiva estrema nascente, no local onde termina o talude e que coincide com o local onde a altura do muro que pode ser observado na fotografia constante da página 7 do auto de inspeção a que corresponde a referência n.º 36618910 sofre uma redução.»;

«20. Com a delimitação mencionada em 19. o prédio urbano a que se alude em 4. fica com uma área efetiva inferior a 3.700 m2 e o prédio urbano que se encontra identificado em 16. fica com uma área efetiva superior a 3.090 m2.»

Já os enunciados factos julgados “não provados” objeto da impugnação, consistiam, grosso modo, na afirmação positiva e concretizada da versão da delimitação trazida aos autos pelos RR./recorrentes, sintetizada graficamente no levantamento topográfico que juntaram com a sua contestação (fls. 40 dos autos em papel), com descrição temporal dos alegados atos de posse sobre a parcela de terreno em litígio.   

E como é bom de ver, os pontos de facto “provados” sob “18.” e “20.”, traduzem o resultado ou são a consequência do que se considerou afirmado no ponto de facto “provado” sob “19.”.

Sustentam os RR./recorrentes que a versão constante desse ponto de facto “provado” sob “19.” constitui uma “terceira via/versão” de delimitação – relativamente à versão apresentada por cada uma das partes, a saber, por parte da A. no sentido de que a delimitação entre os prédios se faria em linha reta, de poente a nascente, com base no alinhamento dos dois marcos situados para lá da parede em blocos, e, por parte dos RR. no sentido de que a delimitação entre os prédios se faz nos termos constantes do levantamento topográfico junto à contestação como documento nº 4, i.e., com base em duas delimitações irregulares (mais concretamente que o prédio dos RR. se delimitaria do prédio vizinho sito a Sul e a Poente, sendo que a primeira delimitação entre os dois prédios, partia da extrema poente, e seria efetuada em linha reta, no local onde se encontram implantados dois marcos, até ao limite da parede em blocos existente; já a segunda delimitação, partindo deste ultimo ponto vindo de referir (imediatamente após findar essa parede), infletiria à direita, em linha reta, no sentido norte-sul.

Compulsando os autos, importa efetivamente concluir que a delimitação entre os prédios das partes que resulta “provada” por esse dito ponto de facto “19.”, particularmente quanto à apontada/designada como “segunda delimitação”, é distinta da propugnada/proposta por cada uma das partes, efetuando como que uma “divisão” da parcela de terreno de cerca de 700 m2 em litígio [cf. facto “provado” sob o ponto “22.”], entre as partes.

Para os RR./recorrentes tal decisão do tribunal «reflete uma incorreta análise da prova carreada e produzida para/nos autos», «nomeadamente pericial, testemunhal e por inspeção ao local».

Vejamos se assim é.

Quanto à prova pericial, salvo o devido respeito, desde já e definitivamente se afirma que não se vislumbra qual a concludência que a mesma pode aportar para a dilucidação da questão: é certo que localizou os marcos existentes, determinou com rigor as áreas de cada um dos prédios tendo em conta as delimitações sustentadas por cada uma das partes, apresentou graficamente as respetivas versões com plantas de áreas correspondentes a cada um dos prédios, e finalizou com o cálculo da área efetiva de cada um dos terrenos, consoante se perfilhasse a versão de uma ou outra das partes.

Ora, se estes elementos permitiriam introduzir rigor e certeza nas respostas a esses aspetos quantitativos, já não se perfilam propriamente como decisivos quanto à linha de delimitação relativamente à já apontada parcela de terreno de cerca de 700 m2 em litígio, posto que, como muito bem aduziu a Exma. Juíza a quo na sua “motivação”,  «(…) tendo em conta as áreas dos imóveis que foram apuradas pelo Ex.mo Senhor perito no relatório junto aos autos a fls. 137 a 143, dúvidas não restam de que a delimitação dos dois prédios nos termos indicados pela Autora no documento n.º 8 junto com a sua petição inicial é a que permite uma maior aproximação às áreas constantes das certidões prediais e das cadernetas prediais referentes aos prédios pertencentes à sociedade Autora e aos Réus.

É sabido que a presunção constante do artigo 7º do Código do Registo Predial consubstancia uma presunção de titularidade, não abrangendo, portanto, os elementos referentes à descrição predial e relativos, nomeadamente, às confrontações e áreas dos prédios em causa.

(…)

Deste modo, também no caso em apreço é patente que as indicações constantes das descrições prediais referentes aos prédios a que se reportam os presentes autos são insuscetíveis, por si sós, de demonstrar que as respetivas áreas e confrontações são as que delas constam.

Ainda assim, nada obsta a que os elementos constantes, a esse propósito, das referidas certidões emitidas pela Conservatória do Registo Predial ... sejam considerados pelo Tribunal e conjugados com a demais prova produzida em sede de audiência final2.

(…)»

Já em termos de prova testemunhal, os RR./recorrentes começam por afirmar a incredulidade em ter sido referido na “motivação” da sentença que «(…) apenas a testemunha XX revelou ter conhecimento direto dos factos relevantes para a determinação da linha divisória entre os dois prédios em causa», e não obstante esta testemunha ter apontado para uma linha divisória em termos coincidentes com a da A./recorrida, contudo veio a formar-se convicção no sentido de que a delimitação entre os prédios se fazia de forma distinta – cf. resposta que consta sob “19.” – , acrescendo que se desvalorizou injustificadamente o depoimento da testemunha GG devido ao facto de ela ser filha dos RR. [e, por isso “interessada” no desfecho da causa], para além de não ter sido espontânea no seu depoimento e até ter entrado em contradição, quando a mesma tinha, na realidade, perentoriamente confirmado a versão dos RR..

Na mesma linha, os RR./recorrentes sublinham que a testemunha EE, «(…) arrolada pela A./Apelada, sócio-gerente da sociedade comercial que vendeu a esta o(s) prédio(s) de que se arroga proprietária nos autos, quando confrontado com o levantamento topográfico da perícia, foi claro ao afirmar que na estrema nascente do prédio que vendeu àquela também existiam marcos, que foram inadvertidamente derrubados aquando duma limpeza de terreno mandada por ele promover na sequência duma notificação da Câmara Municipal, e que a delimitação entre o prédio que vendeu e o prédio dos RR./Apelantes se faz, grosso modo, nos termos por estes alegados – cf. ficheiro áudio 20230113115910_1838587_2870661.wma, minutos 04:31 a 06:04 e 08:32 a 08:50.»

Por outro lado, os RR./recorrentes também invocam o depoimento da testemunha HH, o qual por viver em união de facto com a filha dos RR. [dita testemunha GG], teria demonstrado um conhecimento direto e preciso da situação, tendo “indicado as confrontações reais do prédio”, com expressa referência aos marcos que lá existiriam (e seu derrube), bem assim aludindo a levantamentos topográficos feitos para a construção do muro lá existente, depoimento este que teria sido de molde a confirmar a versão dos RR. [mas que os RR./recorrentes apenas especificam, com referência à gravação áudio, nos minutos 02:52 a 06:09].

Finalmente, os RR./recorrentes aludem à falta de credibilidade que mereciam as testemunhas DD [gerente da unidade hoteleira implantada nos prédios da A./recorrida] e JJ [arquiteto responsável pelo projeto dessa unidade hoteleira], mormente porque do teor dos seus depoimentos não resultava ter existido qualquer posse da A./recorrida sobre a parcela de terreno em litígio, e relativamente aos quais afirmam conclusivamente «(…) nenhuma das testemunhas prestou um depoimento que permitisse pôr em causa a incorreção da versão alegada pelos RR./Apelantes, nem sequer dar razão à versão alegada e peticionada pela A./Apelada, que o Tribunal a quo, acertadamente, afastou.»

Ademais, em termos do resultado da inspeção judicial ao local, os RR./recorrentes, depois de transcreverem o que a propósito a Exma. Juíza a quo consignou na “motivação” da sentença recorrida[10], passam a sustentar que «Os elementos recolhidos em sede de inspeção ao local demonstram, claramente, que é aos RR./Apelantes que assiste razão», através de quatro ordens de razão, a saber, que o acesso pelos RR. à parcela de terreno em litígio se faz por um lugar distinto do que a Exma. Juíza intuiu, que as fotografias 5 a 9 que constam da Ata correspondente, também pelo desnível em que aparece retratada a parcela de terreno em litígio, apontam para a validação da delimitação reivindicada pelos RR., e que existiam no local os “marcos” comprovativos dessa mesma linha de delimitação, os quais podem «(…) ser vistos nas fotografias seguintes, tiradas antes desse derrube».  

Que dizer?

Desde logo que a “motivação” da sentença recorrida se encontrava particularmente elaborada de forma extensa e pormenorizada, distribuindo-se ao longo de 24 páginas, com uma análise crítica da prova produzida (testemunhal, pericial, documental e por inspeção judicial) relativamente a cada facto (ou conjunto de factos), quer os “provados”, quer os “não provados”.

Ora, estabelece o nº 5 do art. 607º do n.C.P.Civil que o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, exceto se a lei exigir, para a respectiva prova, alguma formalidade especial, o que não se verifica no caso concreto.

Por outro lado, a jurisprudência é uniforme no entendimento de que a utilização da gravação dos depoimentos em audiência de discussão e julgamento não modela de forma diversa o princípio da prova livre ínsito no direito adjectivo, nem dispensa as operações de carácter racional ou psicológico que geram a convicção do julgador.

O que bem se compreende, em virtude dos princípios da imediação, da oralidade e da concentração consagrados no nosso ordenamento jurídico, em matéria de prova, no que à decisão sobre a matéria de facto operada pelo Tribunal de 1ª instância diz respeito.

É também a jurisprudência unânime no entendimento de que a garantia do duplo grau de jurisdição não pode em caso algum subverter o princípio da livre apreciação da prova, de acordo com a prudente convicção do juiz acerca de cada facto.

Deste modo, o uso pelo Tribunal superior dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.

Dito de outra forma: só existindo um erro evidente na apreciação da matéria de facto é que devem ser modificadas as respostas dadas aos temas de prova.

Ademais, consabidamente, «na impugnação da matéria de facto, ao recorrente não basta fazer uma apreciação geral de toda a prova, fazendo dela a sua interpretação e tirar a conclusão de que todos os factos impugnados devem ser dados como provados na forma por si apontada. (…) [E]sta não é manifestamente a forma de alterar a matéria de facto, pela via da impugnação ampla, ou seja com base em erro de julgamento, em que na reapreciação da concreta prova se vai constatar se a testemunha disse ou não o que foi vertido na sentença, que não tem a ver com a valoração que o tribunal dá ao depoimento. Quando a atribuição de credibilidade ou falta de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção não tem uma justificação lógica e é inadmissível face às regras da experiência comum. Não se verifica o vício do erro quando o tribunal, face às versões contraditórias, justifica devidamente a sua opção.».[11]

Por último, não deverá esquecer-se que a função da Relação não é a de realizar um novo julgamento de facto: «Quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos ou estando em causa a análise de meios prova reduzidos a escrito e constantes do processo, deve o mesmo considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, seja no sentido de decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo; Importa, porém, não esquecer que se mantêm-se em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. Assim, em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte.».[12]

Será então que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao dar por positivamente “provada” – mormente sob o ponto de facto “19.” – uma linha de delimitação da parcela de terreno em litígio?

À luz dos critérios e ensinamentos vindos de enunciar, afigura-se-nos claro e inequívoco que a resposta tem de ser positiva.

Mas apenas nessa concreta dimensão, pois que no demais, isto é, quanto à pretensão de afirmação da versão da delimitação apresentada/proposta por eles RR./recorrentes, não obstante ser tão ampla e variada a argumentação apresentada, a mesma improcede.

É que as exigências legais constantes do art. 640º do n.C.P.Civil têm uma dupla função: delimitar o âmbito do recurso e tornar efetivo o exercício do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).

Assim, o recorrente deverá apresentar «um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido».[13]

  E, sobretudo, porque importa não olvidar, como já doutamente foi a este propósito salientado, que o recorrente ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, «deve fundar tal pretensão numa análise (crítica) dos meios de prova, não bastando reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos. Exige-se, pois, o confronto desses elementos com os restantes que serviram de suporte para a formulação da convicção do Tribunal de 1ª instância (e que ficaram expressos na decisão), com recurso, se necessário, aos restantes meios probatórios, v.g., documentos, relatórios periciais, etc., apontando as eventuais disparidades e contradições que infirmem a decisão impugnada e é com esses elementos que a parte contrária deverá ser confrontada, a fim de exercer o contraditório, no âmbito do qual poderá proceder à indicação dos meios de prova que, em seu entender, refutem as conclusões do recorrente», donde, neste contexto, ser compreensível que se exija da parte do recorrente a explicitação da sua discordância fundada nos concretos meios probatórios ou pontos de facto que considera incorretamente julgados, «ónus que não se compadece com a mera alusão a depoimentos parcelares e sincopados, sem indicação concreta das insuficiências, discrepâncias ou deficiências de apreciação da prova produzida, em confronto com o resultado que pelo Tribunal foi declarado», face ao que, nesta perspetiva, «não cumprem as exigências legais de especificação a mera indicação, sem mais de um determinado meio de prova (salvo casos excepcionais em que o mesmo deixe dúvidas quanto ao desacerto da decisão proferida pela 1ª instância), e também se revela insuficiente no que respeita à prova testemunhal, o extracto de uma simples declaração da testemunha, sem correspondência com o sentido global do depoimento produzido de tal modo que não permita consolidar uma determinada convicção acerca de matéria controvertida.»[14].

Em contraponto, no caso vertente os RR./recorrentes, no que à sua versão da demarcação dizia respeito, dispersaram-se em interpretações subjetivistas dos meios de prova produzidos, não logrando evidenciar quais os elementos de prova que, com isenção e objetividade, eram e podiam ser taxativos e concludentes no sentido por si preconizado.

Mas comecemos pelo primeiro aspeto – o erro de julgamento da delimitação apurada pelo Tribunal e vertida no ponto de facto “provado” sob “19.”.

De referir que a Exma. Juíza a quo reconheceu ab initio que «(…) a própria orografia do terreno não permite excluir nenhuma das hipóteses mencionadas (…)».

Com efeito, dando por assente que a delimitação entre os dois prédios era efetuada, partindo do poente, em linha reta, até ao ponto de interseção entre a linha reta definida pelos dois marcos existentes no local, a partir deste ponto, isto é, a partir do limite da parede em blocos nele existente, considerou que a prova produzida em sede de audiência final permitia concluir que era o “talude” lá existente a estabelecer a delimitação entre os prédios.

Acontece que, confrontando os meios de prova invocados, sua interpretação e avaliação, só através de um “salto” na linha lógica de raciocínio seguida, se consegue obter um tal resultado.

Tenha-se presente que, como perfeitamente constatado na inspeção judicial ao local, nesse segmento da delimitação não existiam quaisquer marcos ou outros sinais com tal sentido – nem na base, nem a meio, nem nas imediações do dito “talude”.

Contudo, apoiando-se praticamente apenas no depoimento da testemunha XX, pela razão de ciência da mesma, qual seja, ter ela revelado conhecimento direto dos factos relevantes para a determinação da linha divisória entre os dois prédios em causa, concluiu que era o “talude” a estabelecer a delimitação entre os dois prédios.

Acontece que esta testemunha apontou na verdade e efetivamente para uma linha divisória em termos coincidentes com a versão da A./recorrida, isto é, que a delimitação entre os prédios se faria em linha reta, total e unicamente, de poente a nascente, com base no alinhamento dos marcos (um total de quatro ou cinco marcos), colocados pelos proprietários ao tempo, situados para lá da parede em blocos…

Ora, é pacífico nos autos – como a própria Exma. Juíza consignou na “motivação” – que «caso tal delimitação fosse efetuada em linha reta até à estrema nascente do prédio pertencente à Autora verifica-se que, de acordo com os levantamentos topográficos elaborados pelo Ex.mo Senhor perito e juntos aos autos a fls. 140 e 141, o prédio pertencente à Autora incluiria não só o talude a que se aludiu, mas também uma parcela de terreno situada numa cota bastante superior e na qual terá sido construída, pelo próprio Réu, a garagem que pode ser observada nas fotografias juntas com a petição inicial como documentos n.º 11 a 13 e 15 (cfr. referência n.º 2673652).»

Donde, era materialmente insustentável e implausível que a delimitação fosse sempre em linha reta! 

E ainda que a dita testemunha tivesse reconhecido que os marcos nesse segmento do “talude” haviam sido derrubados, subsiste a afirmação por ela de que a delimitação foi feita pelos marcos em linha reta!

No passo imediatamente subsequente da “motivação” a Exma. Juíza a quo aduz que o depoimento dessa testemunha [no sentido do prédio da A. confrontar com o prédio dos RR. apenas a Norte!] foi corroborado por outros meios de prova, a saber, a perícia e a testemunha JJ.

Sucede que a perícia foi feita em data recente e apenas se diz que a mesma constatou os dois marcos que efetivamente lá se encontram e são pacificamente aceites por ambas as partes.

E quanto à testemunha JJ, no que é citado do respetivo depoimento, s.m.j., só por ter afirmado que «(…) do lado norte “há um talude com uma diferença de cotas que delimita naturalmente o terreno”», nada resulta de conhecimento direto e pessoal sobre a delimitação (na parte que abrange a parcela em litígio) ser concludentemente com base no “talude”, quando é inequívoco que, pela configuração/localização no terreno desse “talude”, para poente do limite da parede em blocos assim não é!

O que tudo serve para dizer, salvo o devido respeito, que em nosso entender não se encontra feita prova segura de que a delimitação na parte que abrange a parcela de terreno em litígio se possa ou deva considerar feita pelo “talude”, mormente nos precisos termos que ficaram consignados no que foi dado como “provado” sob o ponto “19.”, 2ª parte, o que terá de ser eliminado enquanto tal.

Nesta linha de entendimento, porque a redação dada a este ponto de facto “provado” sob “19.” não traduz com fidelidade a convicção que é legítimo considerar adquirida neste particular, decide-se retificar essa redação, a qual passará a ser do seguinte teor:

«19. A delimitação entre o prédio urbano a que se alude em 4. e o prédio urbano que se encontra identificado em 16. é feita em linha reta, no sentido poente-nascente, desde o ponto mais a poente junto do caminho, no local onde existem dois marcos que distam cerca de dois metros da parede em blocos que fez parte da obra de ampliação da fábrica ali existente e que não chegou a ser concluída, até um ponto paralelamente equidistante do limite nascente dessa parede em blocos.»

Sendo certo que, pela restrição que tal significa, daqui decorre a reformulação dos pontos de facto “18.” e “19.” (este último também à luz e no acolhimento direto do que resultou da prova pericial, mormente de fls. 39 vº e fls. 141 dos autos em papel), os quais passam a figurar doravante com a seguinte redação, respetivamente:

«18. O prédio urbano a que se alude em 4. confina de norte com o prédio urbano que se encontra identificado em 16. quanto ao segmento aludido em 19..»

«20. Caso a delimitação mencionada em 19. se prolongasse até à estrema nascente em linha reta, o prédio urbano a que se alude em 4. ficava com uma área total de 3.700 m2 e o prédio urbano que se encontra identificado em 16. ficava com uma área total de 3.090 m2.»

Por outro lado, determina-se o aditamento aos factos “não provados” da materialidade correspondente à versão da delimitação que havia sido concretamente alegada pela A./recorrida na p.i.[15], e que concretamente não resulta apurada face ao vindo de decidir, com a seguinte numeração e teor:

«7-A. A delimitação entre o prédio urbano a que se alude em 4. e o prédio urbano que se encontra identificado em 16. é feita em linha reta, no sentido poente-nascente, no prolongamento do ponto paralelamente equidistante do limite nascente da parede em blocos aludido em 19., até à respetiva estrema nascente do prédio urbano aludido em 4.»

                                                           ¨¨

Assente isto, será que se pode e deve concluir no sentido de se encontrar “provada” a versão de delimitação dos prédios correspondente à versão sustentada pelos RR. nos autos [impugnação da decisão sobre a matéria de facto relativamente aos factos “não provados” – sob os nos6.” (parcialmente), “8.”, “9.”, “10.”, “11.”, “12.”, “13.”, “14.” e “15.”]?

Já supra se adiantou que não, o que cremos ser a resposta insofismável para o caso ajuizado, face aos critérios de apreciação e decisão das impugnações à decisão sobre a matéria de facto que sumariamente se expuseram.

Senão vejamos.

Quanto ao ponto de facto no6.” (parcialmente), respeita ele à autoria do arranque dos marcos “a que se alude em 4.” (também dos factos “não provados”).

A este respeito, grafou a Exma. Juíza a quo o seguinte na “motivação” da sentença:

«(…)

Relativamente aos factos indicados sob os números 5. e 6. do elenco dos factos considerados não provados, não tendo o marido da representante legal da sociedade Autora prestado o seu depoimento em sede de audiência final, não é possível determinar o que foi pelo mesmo percecionado quando se deslocou ao local na ocasião a que se tem vindo a aludir.

Por outro lado, importa acrescentar ainda que, no artigo 21º do seu articulado de contestação, os Réus declararam aceitar o facto alegado pela Autora no artigo 27º da petição inicial (consubstanciando mero lapso de escrita a alusão ao artigo 20º da petição inicial), a partir da palavra “tendo”.

Ora, no artigo 27º da petição inicial a Autora alegou o seguinte: “a verdade é que tais marcos de blocos em cimento não existiam no local quando a A. o comprou, em 2012, precisamente por a linha delimitadora das propriedades nesse local não ser, como não é nem nunca foi, aquela que passaria por onde os RR. queriam e os vieram a implantar em 2020, tendo o seu (da A.) marido, por isso mesmo, mandado proceder ao arranque dos mesmos”.

Porém, não tendo resultado da prova produzida em sede de audiência final que os Réus, no mês de junho de 2020, tenham providenciado pela colocação dos marcos mencionados pela Autora nos artigos 26º e 27º da petição inicial, não poderia ser considerado provado, com fundamento no disposto no artigo 574º, n.º 1 e 2, do CPC, o segmento do artigo 27º da petição inicial que os Réus não impugnaram.

Na verdade, a relevância do facto de o marido da representante legal da sociedade Autora ter mandado proceder ao arranque de marcos pressuporia que, previamente, se determinasse que marcos seriam esses, em que local e em que circunstâncias teriam sido colocados.

Assim, uma vez que nada se apurou, em sede de audiência final, a esse propósito, não poderia deixar de se considerar não provado o facto a que se aludiu.

Deste modo, em face das razões indicadas, foram integrados no elenco dos factos considerados não provados os factos a que aludem os números 5. e 6. dos factos não provados.»

Do arrazoado que consta das alegações recursivas dos RR./recorrentes nada se deteta de específico e concreto em termos de evidenciar o erro de julgamento nesta parte, donde improceder a impugnação nesse particular.

Resta, então, a apreciação dos factos “não provados” sob os nos8.”, “9.”, “10.”, “11.”, “12.”, “13.”, “14.” e “15.”.

Vamos proceder à apreciação e decisão em conjunto dos mesmos, dado se reportarem os mesmos em globo, como já aludido supra, à afirmação positiva e concretizada da versão da delimitação trazida aos autos pelos RR./recorrentes, [sintetizada graficamente no levantamento topográfico que juntaram com a sua contestação (fls. 40 dos autos em papel), com descrição temporal dos alegados atos de posse sobre a parcela de terreno em litígio], acrescendo que também nas alegações a alusão aos mesmos não é sempre individualizada (aliás, alguns deles nem são concretamente especificados!) e entendermos que a similitude de argumentos e razões assim o justificam.

No que à prova testemunhal concerne, se bem percebemos a posição dos RR./recorrentes, o erro de julgamento assentaria em terem sido desvalorizados injustificadamente os depoimentos das testemunhas GG e HH (filha dos RR. e companheiro daquela, respetivamente).

Compulsada a “motivação”, deteta-se com relevância o seguinte relativamente à primeira destas testemunhas:

«Já a testemunha GG, ao ser questionada acerca da localização dos marcos que teriam sido derrubados, apontou, no levantamento topográfico junto aos autos a fls. 40, o vértice que aí assinala a delimitação norte e nascente entre os dois prédios de acordo com a posição sustentada pelos Réus.

No entanto, depois de o Ilustre Mandatário dos Réus lhe ter apontado, no mesmo levantamento topográfico, a linha desenhada no sentido norte-sul para assinalar a delimitação entre os dois prédios de acordo com a posição sustentada pelos Réus, a testemunha GG passou a afirmar que também havia marcos colocados ao longo dessa linha, em número que não soube precisar, mas que não chegariam até ao “bico” correspondente ao limite dessa linha.

Como é bom de ver, o depoimento em causa não se revelou espontâneo. Para além disso, a mencionada testemunha limitou-se a fazer afirmações vagas, não logrando concretizar qualquer pormenor relacionado, desde logo, com o número de marcos que terão sido derrubados.

Por essa razão, a testemunha GG não demonstrou conhecer, de facto, a real configuração e as delimitações do prédio pertencente aos seus pais.

Por outro lado, por ser filha dos Réus, a testemunha GG prestou um depoimento que revelou o seu interesse pessoal no desfecho da presente ação declarativa, razão pela qual não poderia o mesmo ser também valorado pelo Tribunal.»

Já relativamente ao depoimento da segunda dessas testemunhas, na “motivação” da sentença, a Exma. Juíza a quo grafou o seguinte:

«Por outro lado, a testemunha HH afirmou também, em sede de audiência final, que a delimitação entre os dois prédios urbanos que se encontram em causa nestes autos é efetuada nos moldes indicados pelos Réus, tendo em conta, desde logo, que é essa a delimitação que resulta dos levantamentos topográficos e da escritura pública que tem em seu poder.

Para além disso, a mesma testemunha acrescentou ainda que havia no local, já desde o tempo das Confeções D..., marcos posicionados na estrema norte do prédio onde estava instalada a respetiva fábrica e também na estrema nascente desse prédio, sendo certo que estes últimos, depois de terem sido inadvertidamente derrubados por uma pessoa de nome YY, teriam sido recolocados no mesmo lugar pelo Réu BB.

Ainda assim, a testemunha HH acabou por admitir que apenas teve conhecimento desses factos através de conversas que manteve na casa dos Réus e que nem sequer sabe onde foram colocados os marcos a que aludiu.

Ora, a testemunha HH prestou um depoimento que evidenciou o seu interesse pessoal no desfecho da presente ação declarativa, tanto mais que, por viver em união de facto com a filha dos Réus, se referiu ao prédio que se encontra em causa nestes autos como “o nosso terreno”.

Por outro lado, a mencionada testemunha não só não revelou ter conhecimento direto de qualquer facto relacionado com o posicionamento dos marcos que terão sido removidos do local e com a efetiva utilização concedida ao imóvel, como prestou um depoimento incongruente, fazendo afirmações que em fases mais avançadas do seu depoimento teve que retificar, como sucedeu com o que referiu a propósito do desnível existente entre o local onde está instalado um supermercado e a parcela de terreno em litígio.

Deste modo, por se ter revelado interessado, contraditório e incoerente, o depoimento prestado pela testemunha HH não se revelou merecedor de qualquer credibilidade, razão pela qual não contribuiu para a formação da convicção do Tribunal.»

Que dizer?

Não se denega que ambas estas testemunhas apresentaram um depoimento em geral de sentido confirmativo da versão de delimitação sustentada pelos RR./recorrentes.

Acontece que se suscitam preponderantes razões de dúvida e incerteza quanto ao conhecimento direto e pessoal por parte das mesmas, particularmente quanto à segunda delas (como sublinhado na sentença!), acrescendo a menor isenção e objetividade que os depoimentos apresentaram.

Por outro lado, tendo-se procedido à audição integral da gravação áudio dos depoimentos de ambas essas testemunhas, quanto aos segmentos que foram concretamente invocados nas alegações recursivas [minutos 14:08 a 15:02, 02:54 a 04:08, 05:02 a 06:05 e 14:30 a 15:02, relativos à primeira, e minutos 02:52 a 06:09 relativos à segunda], não se vislumbra a consistência e concludência que os RR./recorrentes invocam, na conjugação contraditória com os demais elementos de prova que foram ponderados na “motivação” da sentença recorrida.

Atente-se que mesmo os atos de posse invocados quanto à parcela de terreno em litígio, pela equívoca intencionalidade da sua prática e falta de concretização da área em que efetivamente ocorreram, impõem a desvalorização dos depoimentos nesse particular. 

E quanto à testemunha EE que os RR./recorrentes enfaticamente invocam, tendo-se procedido à audição integral da gravação áudio do respetivo depoimento, salvo o devido respeito, o que efetivamente resulta é que a mesma não tinha um conhecimento preciso das estremas dos prédios em causa (durante os seis ou sete anos em que a sociedade comercial por si representada foi proprietária do imóvel, raramente se deslocou ao mesmo), olvidando (“convenientemente”, já se vê!) os RR./recorrentes na sua argumentação que «Inclusivamente, na parte final do seu depoimento a mencionada testemunha esclareceu que nem sequer pode excluir a hipótese de os marcos derrubados nessa ocasião se encontrarem posicionados no seguimento dos dois marcos que ainda se encontram no local (e, portanto, no sentido poente-nascente), e não no sentido norte-sul.» [como igualmente grafado na “motivação” da sentença relativamente a esta testemunha].

E que dizer da inspeção judicial ao local enquanto elemento de prova em abono da versão de delimitação apresentada/proposta pelos RR./recorrentes?

Salvo o devido respeito, nenhuma “clareza” de resultados em abono da versão dos RR./recorrentes.

Apreciando muito linear e sumariamente as “quatro ordens de razão” pelos mesmos aduzidos a este propósito, entendemos que não se extrai qualquer concludência duma afirmação de acesso subjetivista e apenas alegada em recurso (tanto quanto é dado perceber!), que as fotografias 5 a 9 que constam da Ata correspondente também são completamente inconcludentes, e que as duas fotografias juntas com as alegações e que constam a fls. 21 das mesmas, para além de não terem validade jurídico-processual à luz do estatuído nos arts. 425º e 651º do n.C.P.Civil[16], apenas retratam um (no singular) único e mesmo alicerce/toco de alegado “marco”.

Termos em que, sem necessidade de maiores considerações, igualmente improcede a impugnação neste particular.

                                                           *

5 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

5.1 – questão da errada subsunção jurídica [por assente em pressupostos de facto inverificados, pois que «(…) em face dos títulos de que os RR./Apelantes dispõem, e da posse que exercem, a delimitação dos prédios em discussão nos autos faz-se, não como alega a A./Apelante ou decidiu a 1.ª instância, mas como aqueles alegam»].

Recorde-se que a sentença recorrida concluiu que «(…) tendo-se apurado, com base na prova produzida em sede de audiência final, que a delimitação entre os dois prédios é efetuada nos moldes assinalados pela Autora na planta topográfica junta à petição inicial como documento n.º 8, não poderá deixar de proceder o pedido pela mesma formulado», termos em que finalizou em conformidade.

Independentemente de não nos parecer correta a afirmação de que do que se deu como provado na sentença recorrida resultava a delimitação nos moldes pretendidos pela A.[17], o que é certo é que essa sentença operou a demarcação que era objeto do litígio face ao que resultou da materialidade que se deu como “provada”, conforme previsto e determinado pela parte final do nº1 do art. 1354º do C.Civil.

Com efeito, neste normativo, com a epígrafe de “Modo de proceder à demarcação”, o qual contém a disposição legal substantiva sobre a matéria, preceitua-se o seguinte:

«1 - A demarcação é feita de conformidade com os títulos de cada um e, na falta de títulos suficientes, de harmonia com a posse em que estejam os confinantes ou segundo o que resultar de outros meios de prova.

2 - Se os títulos não determinarem os limites dos prédios ou a área pertencente a cada proprietário, e a questão não puder ser resolvida pela posse ou por outro meio de prova, a demarcação faz-se distribuindo o terreno em litígio por partes iguais.

3 - Se os títulos indicarem um espaço maior ou menor do que o abrangido pela totalidade do terreno, atribuir-se-á a falta ou o acréscimo proporcionalmente à parte de cada um.»

Consabidamente, o que se pretende com este tipo de acções não é solucionar a indefinição quanto à propriedade de certa faixa de terreno, mas sim de conseguir que os proprietários de prédios confinantes colaborem no sentido de demarcarem as respetivas estremas.

No presente caso, após a decisão relativamente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto por que se concluiu supra, mormente por via da reformulação da redação do ponto de facto “provado” sob “19.”, e bem assim do que resultou agora como “não provado” através do aditamento ao correspondente elenco do ponto sob “7-A”, temos agora que não foi possível apurar com segurança limites e áreas dos terrenos em presença, por via da disputa sobre uma parcela de terreno.

Há, assim, evidente litígio quanto à definição da estrema entre os prédios da A. e RR., particularmente quanto à delimitação entre o prédio da A. descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...64, e o dos RR., na estrema norte e nascente daquele.

Na verdade, existe agora uma parcela em litígio, com a área de cerca de 700 m2, à qual alude o ponto de facto “provado” sob “22.”. 

Como se resolve essa indefinição?

O critério é-nos fornecido pelo citado art. 1354º do C.Civil, a saber:

1º - Em conformidade com os títulos respetivos;

2º - Na falta ou insuficiência de títulos, segundo a posse em que estiverem os confinantes ou de acordo com o que resultar de outras provas que for possível coligir;

3º - Quando não haja provas que habilitem a determinar a linha divisória, distribui-se o terreno, objeto da contenda, em partes iguais.

Donde, num processo de demarcação – estabelecido que entre os prédios contíguos, de diferentes proprietários, não há linha divisória – não é possível, desde que se prove que a linha divisória entre eles é incerta e duvidosa, uma decisão de improcedência.

Sendo certo que, como já foi doutamente sublinhado a este propósito, importa ter presente que «Na actual acção comum de demarcação, têm pois que, em abstracção, continuar a considerar-se os vários “momentos” que antes existiam, autonomamente, no processo especial revogado; um primeiro “momento”, correspondente à alegação dos factos respeitantes ao direito à demarcação (a existência de prédios confinantes, pertencentes a proprietários distintos, cujas estremas são incertas ou duvidosas); e um segundo “momento”, estabelecido o direito à demarcação – estabelecido que a linha divisória entre eles é incerta e duvidosa – respeitante à efectivação delimitação dos prédios a efectuar de acordo com os critérios de demarcação supra indicados (critérios que funcionam de forma sequencial, na insuficiência do critério de demarcação anterior).

Sendo que, no primeiro “momento” abstracto, quanto ao estabelecimento do direito à demarcação, tratando-se da caracterização da causa de pedir da acção de demarcação, vale, em matéria de ónus da prova, o artigo 342º, nº 1 do CC, com a consequente necessidade de o autor provar os factos constitutivos do direito que alega; enquanto, no segundo “momento” abstracto, correspondente já à concretização da demarcação através dos critérios de decisão plasmados no artigo 1354º do CC, deixa de valer (enquanto critério de decisão) o sucesso ou insucesso da actividade probatória da parte que, propondo a acção, fornece ao tribunal uma determinada linha divisória, uma vez que, perante o insucesso de tal actividade probatória, a solução não pode passar pelo perpetuar da incerteza quanto aos limites dos dois prédios, mas antes pela distribuição “salomónica” do terreno em litígio (cfr. art. 1354º, nº 2, parte final do CC).

Enfim, neste segundo “momento” abstracto não funcionam, completamente, as regras do ónus da prova, devendo-se sempre curar de proceder à averiguação – se necessário pelo próprio tribunal, realizando diligências de iniciativa oficiosa – dos limites e áreas dos prédios, bem como à delimitação da parcela de terreno sob litígio, para, caso não se apurem os limites dos prédios, se possa aplicar a regra da divisão “salomónica” da referida parcela.»[18]

Revertendo ao caso, e operacionalizando a tarefa, não se vislumbram “títulos” que possam abonar a pretensão de delimitação ab initio proposta/apresentada por cada uma das partes.

Atente-se que embora os RR./recorrentes tenham enfaticamente argumentado nas alegações recursivas que havia uma superior «harmonia entre a realidade documental e a realidade in loco existente» no que ao seu prédio dizia respeito no confronto com o da A. [no que a áreas e confrontações dizia respeito tal como expressas nas certidões matriciais e registrais respetivas], sucede que os títulos por eles invocados não contêm elementos relevantes para o estabelecimento da linha divisória in casu, posto que, «(…) para efeitos do 1.º critério do art. 1354.º do C. Civil, não relevam/valem as áreas extraídas das escrituras, das matrizes fiscais e das descrições prediais».[19]

Passando ao 2º critério em causa – a posse – idêntico é o resultado no caso vertente, na medida em que, compulsando a matéria de facto “provada” e “não provada”, inequivocamente se conclui no sentido de que nenhuma das partes logrou fazer a correspondente prova – cf. o ponto de facto “não provado” sob “1.” quanto à A., e os pontos de facto “não provados” sob “8.” a “11.” no que aos RR. diz respeito.

Prosseguindo no nosso iter da “subsidiariedade sucessiva prevista no artigo 1354º do C.Civil[20], também importa concluir que, na linha do já supra expresso e decidido, não resulta agora para o nosso caso, de “outros meios de prova”, a solução para a questão.  

Resta-nos então a “divisão salomónica”.

A esta luz, cremos que importa ponderar que a parcela de terreno em litígio tem uma área de cerca de 700 m2, tem uma configuração geométrica aproximada a um retângulo, localiza-se nos limites de ambos os prédios, sendo parte dela a continuidade do talude de grande declive existente no prédio dos RR., parcela essa que não resulta ter sido até à data objeto de qualquer utilização económica.

A concreta localização dessa parcela consta definida na planta de fls. 140 (dos autos em papel), elaborada no contexto da perícia que teve oportunamente lugar nos autos.

Será então em função desta última que se irá proceder à demarcação, sendo certo que será conveniente e adequado tal se operar por forma a que o resultado se traduza numa forma final geometricamente equilibrada para ambos os prédios, e que permita um melhor aproveitamento económico, ainda que virtual, para qualquer das partes.

Por outro lado, a demarcação deverá naturalmente abranger e estender-se à restante estrema norte do prédio da A. com o dos RR. tal como foi pedido na ação interposta ao colocar-se em causa toda a estrema norte, isto é, também na parte onde existem os dois marcos e que se estende desde a estrema poente do prédio da A. até  ao ponto paralelamente equidistante do limite nascente da parede em blocos existente.

Finalmente, não se deve olvidar que a demarcação é a operação material de colocar marcos ou sinais exteriores permanentes e visíveis, que assinalem diversos pontos da linha divisória entre dois prédios contíguos.

Assim sendo determina-se que a demarcação entre os prédios confinantes seja efetuada da seguinte forma: a delimitação entre os dois prédios é feita através de dois segmentos de reta; considerando o sentido poente-nascente, o primeiro inicia-se no ponto mais a poente junto do caminho, no local onde existem dois marcos que distam cerca de dois metros da parede em blocos aí existente, até um ponto paralelamente equidistante do limite nascente dessa parede em blocos, onde se implantará um marco; o segundo, correspondente à divisão em partes iguais da parcela de terreno em litígio, que fica justaposta ao topo norte-nascente dos prédios da A., com a forma do polígono retangular irregular que figura na planta de fls. 140 (dos autos em papel), sob a mancha gráfica de um axadrezado verde e azul (colorido visível na versão digital), a qual tem a área de 700 m2, fazendo-se a respetiva divisão em partes iguais, na proporção de 350 m2 para cada uma das partes, através desse segundo segmento de reta que se inicia no vértice onde terminou o primeiro segmento de reta, seguindo a partir do marco aí a implantar, no sentido sudeste até ao topo final desta parcela, onde se encontra a respetiva estrema nascente-sul, sendo que se implantará um marco a meio deste percurso e outro no final.

De referir que não obstante o resultado final desta demarcação, a “olho nú”, até apresentar alguma similitude com a decisão recorrida, a delimitação agora determinada, porque operada no quadro do previsto pela parte final do nº2 do art. 1354º do C.Civil, significa a revogação da sentença na parte correspondente, procedendo nestes termos e medida, as alegações recursivas e o recurso.

                                                           *

5.2 - errada condenação total em custas dos RR./apelantes?

Da decisão precedente naturalmente decorre a procedência correspondente desta questão recursiva.

Com efeito, à luz do disposto no art. 527º, nº2 do n.C.P.Civil, as custas deverão ser suportadas por ambas as partes, na proporção de ½ para cada.

                                                           *                                                          

(…)

                                                           *

7 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida, que se substitui por decisão que, na procedência parcial da ação, reconhece que o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...64 (mil, oitocentos e sessenta e quatro), de que a Autora AA, Unipessoal, L.da é proprietária, confina a norte com o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...38 (dois mil, seiscentos e trinta e oito), de que os Réus BB e CC são proprietários, fazendo-se a delimitação nessa estrema entre os dois prédios, através de dois segmentos de reta:

a) considerando o sentido poente-nascente, o primeiro inicia-se no ponto mais a poente junto do caminho, no local onde existem dois marcos que distam cerca de dois metros da parede em blocos aí existente, até um ponto paralelamente equidistante do limite nascente dessa parede em blocos, onde se implantará um marco;

b) o segundo, correspondente à divisão em partes iguais da parcela de terreno em litígio, que fica justaposta ao topo norte-nascente dos prédios da A., com a forma do polígono retangular irregular que figura na planta de fls. 140 (dos autos em papel), sob a mancha gráfica de um axadrezado verde e azul (colorido visível na versão digital), a qual tem a área de 700 m2, fazendo-se a respetiva divisão em partes iguais, na proporção de 350 m2 para cada uma das partes, através desse segundo segmento de reta que se inicia no vértice onde terminou o primeiro segmento de reta, seguindo a partir do marco aí a implantar, no sentido sudeste até ao topo final desta parcela, onde se encontra a respetiva estrema nascente-sul, sendo que se implantará um marco a meio deste percurso e outro no final.

Custas nas duas instâncias por ambas as partes, na proporção de ½ para cada.

                                                           *

 Coimbra, 7 de Maio de 2024

      Luís Filipe Cravo

        Carlos Moreira

     Fernando Monteiro


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Carlos Moreira
  2º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
[2] Cf. acórdão do STJ de 21.03.2019, proferido no proc. nº 3683/16.6T8CBR.C1.S2, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[3] Citámos novamente JOSÉ LEBRE DE FREITAS / ISABEL ALEXANDRE, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 3ª ed., 2017, Livª Almedina, a págs. 734-735.
[4] No qual se preceitua da seguinte forma, na parte que ora releva:
«1 — É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
2 — Diz-se inepta a petição:
a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;
b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;
c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.
3 — Se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do número anterior, a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial.
(…)»
[5] Assim A. ABRANTES GERALDES, In “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Livª Almedina, 2013, a págs. 21-23.
[6] Vide MARIANA CRUZ in “Comentário ao Código Civil”, Direito das Coisas, UCP, 2021, a págs. 273 [com realces e sublinhados da nossa autoria].

[7] Trata-se do acórdão do TRE de 9/2/2023, proferido no proc. nº 338/22.6T8ORM-A.E1, acessível em www.dgsi.pt/jtre.
[8] Ainda que concretamente fundamentada apenas na existência de uma contradição entre o pedido e a causa de pedir” [cf. art. 186º, nº 2, al. b), do n.C.P.Civil]
[9] Citámos o acórdão do STJ de 26.03.2015, proferido no proc. nº 6500/07.4TBBRG.G2,S2; no mesmo sentido o acórdão do STJ de 13.05.2021, proferido no proc. nº 1934/17.9T8PNF.P1.S1; ambos os acórdãos acessíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[10] No sentido de que «Já a inspeção judicial realizada no âmbito dos presentes autos infirmou a alegação efetuada pelos Réus a propósito da configuração do prédio urbano de que são proprietários»…
[11] Cf. o acórdão do TRC de 13-09-2017, proferido no proc. nº 390/14.8PCLRA.C1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[12] Assim no acórdão do TRG de 30-11-2017, proferido no proc. nº 1426/15.0T8BGC-A.G1, acessível em www.dgsi.pt/jtrg.
[13] Citámos o acórdão do TRP de 17-03-2014, proferido no proc. nº 3785/11.5TBVFR.P1, acessível em www.dgsi.pt/jtrp.
[14] Assim ANA LUÍSA GERALDES, “Impugnação e Reapreciação da decisão da matéria de facto”, in www.cjlp.org /Ana Luísa Geraldes, a págs. 5-6.


[15] no sentido de que a delimitação entre os prédios se faria em linha reta, de poente a nascente, com base no alinhamento dos dois marcos situados para lá da parede em blocos.
[16] Sem que nada tenha sido alegado (nem comprovado) pela parte para justificar a sua junção só nesta fase processual…
[17] A este propósito já supra se aduziu que «a delimitação entre os prédios das partes que resulta “provada” por esse dito ponto de facto “19.”, particularmente quanto à apontada/designada como “segunda delimitação”, é distinta da propugnada/proposta por cada uma das partes, efetuando como que uma “divisão” da parcela de terreno de cerca de 700 m2 em litígio [cf. facto “provado” sob o ponto “22.”], entre as partes.»
[18] Citámos agora o acórdão do TRC de 07/02”012, proferido no proc. nº 497/08.2TBTNV.C1, acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
[19] Citámos novamente o aresto aludido na precedente nota, em cuja nota [11] mais se sublinhou doutamente o seguinte a este propósito: «Não se está a dizer – acrescenta-se, para que não haja equívocos – que tais áreas são totalmente irrelevantes, mas tão só que as escrituras, matrizes e descrições não são “títulos” e que o que delas consta não preenche o 1.º critério do art. 1354.º do C. Civil; as escrituras, matrizes e descrições relevam – podem porventura e quando muito, caso a caso, relevar – para o 3.º critério (“outro meio de prova”), sendo os seus conteúdos, para efeitos de demarcação, no âmbito deste 3.º critério, sujeitos ao princípio da livre apreciação (o seu valor há-de ficar incorporado nas respostas aos quesitos/pontos de facto).»
[20] Na feliz expressão constante do acórdão do TRL de 11/10/2018, proferido no proc. nº 22580/09.5T2SNT.L1-6, acessível em www.dgsi.pt/jtrl.