Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
338/22.6T8ORM-A.E1
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: REIVINDICAÇÃO
DEMARCAÇÃO
INCOMPATIBILIDADE DE PEDIDOS
Data do Acordão: 02/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - Pode acontecer que os proprietários confinantes estejam em desacordo quanto aos limites, tenham inclusivamente edificado sobre parte que o outro reclama como sua e, nessa medida, o proprietário lesado necessite para o integral reconhecimento do seu direito de propriedade e restituição da parte ocupada, a delimitação precisa das áreas de que é titular.
- Ora esse reconhecimento de propriedade é legitimador do pedido seguinte: de demarcação. Não prejudica este, o reconhecimento de propriedade com base nos títulos pode não ser suficiente por si só, para estabelecer os limites e confrontações, mas, confere justificação a este pedido delimitador. E, por sua vez este pedido de demarcação legitima objetivamente o pedido de restituição da parte indevidamente “ocupada” uma vez que a linha divisória se venha a demonstrar violada.
- Complementam-se, assim, os pedidos de reconhecimento de propriedade – demarcação – restituição, não havendo qualquer incompatibilidade substancial ou contradição entre os pedidos de reivindicação e de demarcação.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação 338/22.6T8ORM-A.E1

2ª Secção

Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I

(…) intentou a presente ação declarativa de processo comum contra (…) Construções, Lda., pedindo:

Seja a ação julgada procedente por provada e, em consequência:

1 - Proceder-se à demarcação dos prédios descritos em 1º e 3º da p.i., em conformidade com o constante no levantamento topográfico e georreferenciação juntos aos autos, com todas as legais consequências;

2 - Ser a Ré condenada a reconhecer e respeitar a servidão de vistas constituída nos termos dos artigos 1360.º e 1362.º do Código Civil, das janelas viradas a poente da moradia da Autora;

3 - Consequentemente deve ainda a Ré ser condenada a proceder à demolição do muro que erigiu entre os prédios 1º e 3º da p.i., por desrespeito dos limites existentes dos prédios e da servidão de vistas;

4 - Reconhecer a Ré que a Autora é dona e legítima proprietária do prédio descrito em 1º, com as áreas, confrontações e configuração constantes do ponto 1º desta p.i.;

5 - Ser oficiada a Conservatória de Registo Predial competente para ser registada a pendência da presente ação no prédio da Ré, nos termos do n.º 1 alínea a) do artigo 2.º do Código de Registo Predial;

6 - Ser a Ré condenada em litigante de má-fé em montante nunca inferior a 2.500,00 euros;

Invoca, para tanto, que os prédios de Autora e Ré são contíguos na sua confrontação a poente do primeiro e a nascente do segundo.

Como o anterior proprietário de ambos era a mesma pessoa houve necessidade de Autora e Ré se reunirem e determinarem as delimitações de cada um, pois inexistia parede ou muro que os delimitasse inequivocamente. O que foi feito com indicações do anterior proprietário e com mapas de georreferenciação. A Autora entretanto deslocou-se para França e passados uns meses constatou que a Ré havia construído um muro sem respeitar a delimitação acordada como previamente existente.

Mostra-se necessário tornar clara a linha divisória entre os dois prédios, tendo a A. documentação bastante para o efeito, nomeadamente um levantamento topográfico feito a mando do anterior proprietário.

A construção do muro pela Ré não só desrespeita as delimitações como desrespeita a servidão de vistas da casa de habitação erigida no prédio da Autora, porquanto, tendo esta várias janelas viradas a poente, o muro não respeita a distância mínima legal de 1,5 metros da servidão de vistas de tais janelas.

A Ré contestou por exceção e impugnação, invocando, para o que ora importa, a ineptidão da petição inicial e consequente nulidade de todo o processo, pedindo a sua correspondente absolvição da instância.

Considera a Ré que a acumulação dos pedidos de demarcação e de reivindicação assenta em causas de pedir inconciliáveis e contraditórias, estando sob os vícios previstos no artigo 186.º, n.ºs 1 e 2, alíneas b) e c), do CPC.

A A. veio impugnar esta nulidade na resposta à contestação, solicitando a improcedência da mesma.

No despacho saneador proferido em 24/10/2022, o tribunal a quo decidiu julgar improcedente a nulidade invocada pela Ré, consistente na ineptidão da P.I. resultante do facto de existir, alegadamente, contradição entre os pedidos.

Inconformada com tal decisão, veio a Ré recorrer, assim concluindo as suas alegações de recurso:

1.º Vem o presente recurso interposto da Decisão que julgou “improcedente esta nulidade invocada pelo R., consistente na ineptidão da P.I. resultante do facto de existir, alegadamente, contradição entre os pedidos”.

2.º Dos pedidos formulados pela A., haverá a considerar que esta pretende, além do mais:

-Proceder-se á demarcação dos prédios descritos em 1º e 3º desta PI, em conformidade com o constante no levantamento topográfico e georreferenciação juntos aos autos, com todas as demais e legais consequências;

-Reconhecer a Ré que a Autora é dona e legítima proprietária do prédio descrito em 1.º com as áreas, confrontações e configuração constantes do ponto 1.º desta PI.

3.º A A. pede a condenação da R. a reconhecer o seu direito de propriedade sobre o prédio que descreve em 1.º com áreas e confrontações definidas; pede a demolição do muro erigido entre os prédios 1.º e 3.º por desrespeito dos limites dos prédios e da servidão de vistas e, em cumulação, pede que se ordene a demarcação entre esse prédio e o prédio da R., contíguo ao 1.º.

4.º Entendemos não ter razão o Tribunal a quo, pois que, o pedido de demarcação é incompatível com o pedido de reivindicação, dando lugar à ineptidão da petição inicial.

5.º Os pedidos cumulados de demarcação e reivindicação, sendo incompatíveis entre si, geram ineptidão da petição inicial e nulidade de todo o processo nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 186.º, n.º 1 e 2, alínea c), do CPC.

6.º Da análise dos factos alegados pela A. na P.I. e que sustentam os pedidos deduzidos, verifica-se que a A. pede o reconhecimento e reivindica a propriedade do prédio descrito em 1.º com as áreas, confrontações e configurações constantes do ponto 1.º da P.I. (ponto 4 do pedido), em simultâneo, pede a condenação da R. a proceder à demolição do muro que erigiu por desrespeito dos limites existentes dos prédios (ponto 3 do pedido), e em cúmulo, pede a A. que se proceda à demarcação dos prédios (ponto 1 do pedido).

7.º Na ação de reivindicação, o Autor tem o ónus de alegar e provar os factos constitutivos do direito de propriedade sobre o bem de que se arroga titular, donde se extrai que neste tipo de ação não existe dúvida sobre a exata delimitação do bem de que se arroga titular e, nessa medida, peticiona que o demandado seja condenado a restituir-lhe a coisa que é sua.

8.º Já na ação de demarcação, a qual se encontra prevista no artigo 1353.º do Código Civil, o Autor, de forma bem diversa, peticiona junto do Tribunal que este demarque/delimite o seu prédio no confronto com o prédio que lhe é adjacente, propriedade dos Réus, peticionando assim que o Tribunal elucide a área e os limites do prédio de que é proprietário.

Com efeito, a causa de pedir na ação de demarcação emerge da incerteza ou controvérsia sobre a localização da linha divisória entre dois (ou mais prédios) que confinam entre si.

9.º O que não pode suceder, em nossa modesta opinião, é simultaneamente, tal como fez a Autora, deduzir um pedido de demarcação das estremas entre o seu prédio e o prédio da Ré (que pressupõe a incerteza, por dúvida ou controvérsia, da linha divisória entre os dois prédios), cumulativamente com o pedido de reconhecimento e reivindicação do prédio descrito em 1.º com as áreas, confrontações e configuração constates do ponto 1.º da P.I., porquanto este último pedido tem como pressuposto a certeza por parte da Autora da exata localização e confrontações do seu prédio.

10.º Assim, tais pedidos são substancialmente incompatíveis entre si, uma vez que, na ação de reivindicação é pressuposto da mesma a certeza sobre os limites do prédio, ao passo que na ação de demarcação, pelo contrário, é pressuposto a incerteza sobre os limites entre os dois prédios, por haver dúvidas ou controvérsia sobre os mesmos.

11.º Deste modo, entendemos que existe verdadeira incompatibilidade material entre o pedido de demarcação e o pedido de reivindicação.

12.º E não se diga, como faz o Despacho recorrido que “desapareceu qualquer óbice a partir do momento em que a ação de demarcação deixou de seguir uma forma especial para a mesma passar a ser comum”.

13.º Não é a simples alteração na forma do processo que vai fazer com que os pedidos de demarcação e reivindicação deixem de ser incompatíveis.

14.º Entendemos, pois, que o Tribunal a quo deveria ter declarado procedente a exceção de ineptidão da petição inicial por cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis, declarando-se em consequência a nulidade de todo o processo e absolvendo-se a Ré da instância, em conformidade com o disposto nos artigos 186.º, nºs 1 e 2, alínea c) e n.º 4, 576.º, nºs 1 e 2, 577.º, alínea b) e 578.º, todos do Código de Processo Civil.

A final requer que seja declarada procedente e exceção de ineptidão de petição inicial, declarando-se em consequência a nulidade de todo o processo, absolvendo-se a Ré da instância.

Não foram apresentadas contra-alegações.


II

Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (artigos 635.º, 3 e 639.º, 1 e 2, CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 608.º, in fine), a questão a decidir é a seguinte:

- Se há incompatibilidade substancial entre o pedido de reivindicação e o pedido de demarcação.


III

Os factos a considerar resultam do Relatório supra.


IV

Fundamentação:

Importa apurar se os pedidos deduzidos são substancialmente incompatíveis ou contraditórios.

Entendeu o tribunal a quo que:

“Em termos substantivos não vemos que haja incompatibilidade da existência de um pedido de apreciação da existência do direito de propriedade e de outro pedido de demarcação na mesma ação. Na verdade, poder-se-á num primeiro momento definir que um determinado prédio pertence ao A. Apesar de ficar definido a existência desse direito de propriedade sobre o prédio, poderão subsistir dúvidas quanto à extensão do mesmo, sendo que a faixa de terreno em disputa nos autos parte do prédio de uma das partes e encontra-se no limite do mesmo em relação ao prédio da outra de que é confinante. Haverá assim necessidade num segundo momento de definir a extensão de ambos os prédios, incluindo a faixa em causa, determinando o local onde se situa a estrema através da demarcação.

Na versão do Código de Processo Civil antes da alteração introduzida pelo D/L n.º 329-A/95, de 12-12, a ação de demarcação seguia a forma especial prevista para as várias ações designadas de arbitramento, previstas nos artigos 1052.º e seguintes.

Designadamente o Código estabelecia uma tramitação especial para esta ação de demarcação no artigo 1058.º. Deste modo, na altura da vigência dessa versão existia uma incompatibilidade processual entre a ação de reivindicação ou a ação de simples apreciação da propriedade e a ação de demarcação. Na verdade, enquanto que as primeiras seguiam a forma processual comum, a segunda seguia a mencionada forma especial. Em conformidade, não seria possível pedir na mesma ação a reivindicação ou o reconhecimento da propriedade e a demarcação.

Aquele diploma veio alterar esta situação ao eliminar as ações de demarcação dos processos que seguem formas especiais. Deste modo, esse tipo de ações passaram a seguir a forma comum.

(…) Em conformidade, atualmente e desde a entrada em vigor daquele diploma foi eliminada a incompatibilidade processual que existia entre as ações referidas. Na verdade, todas elas seguem agora a forma comum.

Terá assim que concluir-se que não existe qualquer obstáculo substantivo ou processual para que o A. deduza na mesma ação um pedido de reconhecimento de propriedade sobre um prédio e um pedido de demarcação do seu prédio em relação a um confinante.

(…) Deste modo, nada impede que depois de ter ficado assente a titularidade do direito de propriedade do A. sobre uma parte de um determinado prédio, e depois do possuidor do mesmo ter sido condenado a proceder à sua restituição, se proceda à colocação de marcos para definir as estremas entre aquele prédio e um outro pertencente ao R. E ainda que se utilize para efeito de definição da estrema dos dois prédios e para a colocação de marcos, as conclusões a que se chegou na parte da reivindicação, quanto à área abrangida pelo prédio pertencente ao A.”

E entendeu bem.

Na ação de reivindicação o proprietário exige judicialmente o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição da coisa que apresenta identificada e delimitada de acordo com os títulos. Discute-se a titularidade.

Na ação de demarcação, o dono pede que se fixem as fronteiras relativamente aos prédios confinantes; discute-se a extensão e limites precisos na parte confinante.

Importa ter presente que a presunção de propriedade que emerge do registo predial e que legitima a ação de reivindicação, não abrange os limites, as confrontações, a área e demais elementos próprios da identificação física do prédio. O registo predial tem como finalidade essencial conferir publicidade à situação jurídica imobiliária, de modo a garantir a segurança nas operações de natureza predial. Não define os limites.

Pode, por isso, acontecer que os proprietários confinantes estejam em desacordo quanto a esses limites, tenham inclusivamente edificado sobre parte que o outro reclama como sua e, nessa medida, o proprietário lesado necessite para o integral reconhecimento do seu direito de propriedade e restituição da parte indevidamente ocupada, a delimitação precisa das áreas de que é titular.

Ora esse reconhecimento de propriedade é legitimador do pedido seguinte: de demarcação. Não prejudica este, porque o reconhecimento de propriedade com base nos títulos não é suficiente, por si só, para estabelecer os limites e confrontações, mas, confere justificação a este segundo pedido delimitador. E, por sua vez este pedido de demarcação legitima objetivamente o pedido de restituição da parte indevidamente “ocupada” uma vez que a linha divisória se venha a demonstrar violada.

Complementam-se, assim, os pedidos de reconhecimento de propriedade – demarcação – restituição.

Ou seja, muito embora sejam distintas as ações de demarcação e de reivindicação poderão cada uma delas em determinadas situações ser utilizadas integradamente na resolução dum mesmo litígio, onde para o pedido de restituição ser procedente seja necessário circunscrever determinada propriedade aos seus justos e claros limites.

Como bem refere o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25/01/2021, Proc. n.º 4029/18.4T8STS.P1 in www.dgsi.pt:

“Apesar de ambas as ações de demarcação e de reivindicação terem objetivos e fundamentos distintos, sucede com frequência embrenharem-se num mesmo processo, como se passa no caso sub judice.

Assim sendo, nada obsta a que se cumule numa única ação pedidos subjacentes à ação de reivindicação e pedidos subjacentes à ação de demarcação. Veja-se, a título de exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-02-2009, proc. 554/06.8TBAND.C1, disponível para consulta em www.dgsi.pt, que refere o seguinte: “Nada obsta a que se cumule esse pedido com pretensão deduzida com vista à demarcação, o que acontece quando o demandante peticiona ainda a condenação dos réus a “contribuírem para a demarcação dos dois prédios”.

À semelhança do aresto citado, há inúmera jurisprudência de referência que defende que podem ser cumulados pedidos de uma ação demarcação e de uma ação de reivindicação, dependendo obviamente da factualidade de cada caso em concreto.

Por conseguinte, atento o exposto, nada obsta a que nos presentes autos a Autora tenha configurado a presente ação com pedidos de uma ação de reivindicação e de uma ação de demarcação, não havendo aqui qualquer contrariedade ou incompatibilidade quanto aos pedidos, mas sim uma relação de complementaridade essencial para resolver o litígio que opõe Autora e Réu.”

Bem andou o tribunal a quo na decisão proferida ao reconhecer a compatibilidade substancial e formal dos pedidos e ao não reconhecer a ineptidão da petição inicial.

Improcede, pois, o recurso.

Síntese conclusiva:

(…)


V

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e confirmar a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

Évora, 09/02/2023

Anabela Luna de Carvalho (Relatora)

Mário João Canelas Brás (1º Adjunto)

Jaime Pestana (2º Adjunto)