Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4029/18.4T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM MOURA
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
ACÇÃO DE DEMARCAÇÃO
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
AQUISIÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE POR USUCAPIÃO
Nº do Documento: RP202101254029/18.4T8STS.P1
Data do Acordão: 01/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Em caso de cumulação real de pedidos, para saber se há incompatibilidade substancial entre eles é fundamental conhecer os efeitos jurídicos derivados da procedência de cada um deles: se são inconciliáveis ou se o reconhecimento de um exclui a possibilidade de verificação do(s) outro(s), impõe-se concluir pela incompatibilidade;
II - Na acção de reivindicação o autor tem o ónus de alegar os factos constitutivos do direito de propriedade sobre a coisa de que se afirma titular, de caracterizar, de forma tão precisa quanto possível, o objecto a que respeita o seu direito e descrever a ofensa que foi feita ou está a ser feita a esse direito, pelo que está excluído que possa formular a pretensão de que seja delimitado o seu terreno no confronto com o(s) terreno(s) contíguo(s), que se determine a área e os limites do prédio de cuja propriedade se arroga titular;
III - É através da acção de demarcação que se põe fim a um estado de incerteza ou de dúvida sobre a localização da linha divisória entre dois (ou mais) prédios;
IV - Tal como no contrato de arrendamento, no contrato de locação financeira imobiliária o gozo temporário do imóvel que o locador lhe proporciona não confere ao locatário uma posse boa para usucapião.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 4029/18.4T8STS.P1
Comarca do Porto
Juízo Local Cível de Santo Tirso (J2)

Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

IRelatório
Em 13.12.2018, “B…, Unipessoal, L.da” intentou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra C…, peticionando a sua condenação nos seguintes termos (transcrição):
«Atento os elementos factuais e legais chamados à colação, requer-se a V. Excia. que digne a julgar por provada e procedente a presente ação e, em conformidade, ser o Réu condenado a:
a) concorrer para a demarcação das estremas do seu prédio com o prédio rústico in casu, nos termos do art. 1353.º e seguintes do CC, com as demais consequências legais;
b) demolir o muro construído na área do prédio rústico in casu, com as demais consequências legais;
c) restituir a área ocupada abusivamente, nos termos do art. 1311.º do CC, com as demais consequências legais.»
Em síntese[1], alega que:
No dia 21.09.2017, celebrou com o D… um contrato de locação financeira nos termos do qual este Banco «é o dono e legítimo proprietário e a Autora, enquanto locatária, é a legítima possuidora do prédio rústico denominado E…, sito em …, da união de freguesias …, concelho da Trofa, com a área de 4.100 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial da Trofa sob o número 4075 da freguesia … e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 5024».
Por si e pelos seus antecessores, há mais de 15, 20 (até 30) anos que vem possuindo esse prédio rústico, em toda a sua extensão e área, fruindo as suas utilidades, pagando os impostos necessários e cuidando dele, ininterruptamente, à vista de toda a gente, sem qualquer oposição e na convicção de exercer direito próprio e de não lesar direito alheio, pelo que «sempre o teria adquirido por usucapião».
Por seu turno, o réu é proprietário do prédio urbano, composto de edifício de sub-cave, cave, rés do chão, 1.º andar e logradouro, destinado a armazéns e atividade industrial, sito na Rua …, n.º …., …, Trofa, descrito na Conservatória do Registo Predial da Trofa sob o número 900 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 9422, «que se presume ser o prédio que confina a poente com o prédio rústico supra melhor identificado».
Em meados de Julho de 2018, o réu começou a construir «um muro alegadamente separador dos dois prédios sem que, contudo, fossem respeitadas as estremas que delimitam os prédios in casu, pois que com a construção do referido muro, o ora Réu ocupou uma área de 1400 m2 do prédio rústico supra melhor identificado, o que se presume ter ocorrido por o Réu desconhecer a localização da respetiva linha divisória entre ambos os prédios».
Com a construção do muro, a área do prédio rústico ficou reduzida a 2 700 m2.
Apesar de ter interpelado o réu para se abster de construir o referido muro porque estava a ser construído na área do prédio rústico, o réu persistiu na sua construção.
Atenta a divergência entre as partes quanto às estremas que delimitam os prédios confinantes, divergência que levou o réu a construir ilicitamente o muro, «não resta à autora outra opção que não a de intentar a presente ação de demarcação e de reivindicação, pedindo ao Tribunal a quo que fixe as fronteiras dos dois prédios confinantes nos termos aqui expostos e, em conformidade, ordene a demolição do muro ilicitamente construído na área do prédio rústico supra melhor identificado e a restituição da área ocupada abusivamente, nos termos que infra melhor se consignam».
*
Citado, o réu apresentou contestação, defendendo-se por excepção e por impugnação.
Na defesa por excepção, invoca a ilegitimidade passiva, pois o prédio urbano inscrito na respectiva matriz sob o artigo 9422 foi adquirido na constância do matrimónio com F…, com quem foi casado sob o regime de comunhão de adquiridos, e, apesar de dissolvido o casamento por divórcio, o prédio continua a ser um bem comum, pois não houve, ainda, partilha, pelo que também esta devia ter sido demandada.
Invoca, ainda, a ineptidão da petição inicial, porquanto:
Na perspetiva da autora, a presente ação apresenta-se como um misto de ação de demarcação e de reivindicação.
Na reivindicação, os limites e confrontações de terrenos já estão devidamente definidos, pretendendo-se a sua restituição aos legítimos proprietários, se a ocupação for ilegal.
Donde, na acção de reivindicação não se requer o reconhecimento de um prédio cujas áreas não estejam devidamente delineadas e em que se pretenda que o tribunal defira tal desiderato.
Nestes casos, o autor pretende reivindicar uma parcela de terreno, integrando-a no seu imóvel, mas definindo ele próprio as confrontações que assinala, como sendo inquestionáveis.
Por seu turno, na ação de demarcação a causa de pedir é complexa e consiste na existência de prédios confinantes pertencentes a donos diferentes e de estremas incertas.
O direito de demarcação pressupõe a incerteza ou a dúvida sobre a linha divisória entre prédios confinantes, por falta de marcos ou outros sinais exteriores que indiquem as estremas de cada prédio, incerteza ou indefinição que tanto pode resultar do desconhecimento sobre os limites dos prédios como do desacordo sobre os mesmos.
No caso concreto, a autora, pese embora afirme que há dúvidas acerca dos limites dos dois prédios e que não concorda com a linha divisória resultante do muro divisório construído na propriedade do Réu, aponta uma outra linha divisória.
A essência da presente ação, tal como ela está configurada pela autora, estriba-se na ocupação indevida de uma parcela de terreno pertencente ao prédio de que é locatária, ou seja, (1400 m2) de que se quer ver restituído.
Aliás, cumulativamente com o pedido de demarcação de extremas entre os dois prédios, pede que se restitua a área ocupada abusivamente, isto é, faz o pedido de reivindicação da referida parcela de terreno, alegadamente ocupada pelo Réu, de 1400 m2.
Assim, a autora confunde as consequências jurídicas da ação de demarcação e da ação de reivindicação ao revelar ter dúvidas sobre a definição das extremas de ambos os prédios e acabou por formular, cumulativamente, pedidos típicos da ação de reivindicação (pedidos formulados nas als. b) e c), o qual é incompatível com o pedido de demarcação que formula na alínea a), que são substancialmente incompatíveis.
Na defesa por impugnação, contesta os factos alegados pela autora, a quem acusa de litigar com manifesta má-fé e de querer apropriar-se, ilegitimamente, de parte do seu prédio.
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Correspondendo a convite do tribunal, a autora requereu a intervenção principal de “D…, S.A.”, admitida por despacho de 08.07.2019.
Citada, a chamada veio apresentar articulado próprio, no qual, além do mais, aceita ter celebrado com a autora o contrato de locação financeira por esta invocado, pelo qual lhe cedeu, mediante retribuição, o gozo temporário do prédio rústico supra identificado, que, para o feito, previamente adquiriu por contrato de compra e venda.
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Em 18.02.2020, foi proferido despacho saneador, no qual, conhecendo da excepção de ineptidão da petição inicial, o tribunal decidiu nos seguintes termos:
«Em face do exposto, julgo procedente a invocada exceção da ineptidão da petição inicial e, em consequência, julgo nulo todo o processado e absolvo o Réu da instância.
Custas pela Autora, nos termos do disposto no artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.»
Inconformada, almejando a sua revogação e o prosseguimento da acção, a autora interpôs recurso desta decisão, com os fundamentos explanados na respectiva alegação, que condensou nas seguintes conclusões:
«I - O presente recurso versa apenas sobre matéria de direito, incidindo sobre a sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância nos presentes autos, que decidiu julgar procedente a exceção de ineptidão da petição inicial e, consequentemente, julgar nulo todo o processado e absolver o Réu da instância.
II - A Recorrente não se conforma com a sentença recorrida, por entender que a petição inicial in casu não é inepta, por não existir qualquer incompatibilidade dos pedidos formulados, pelo que, se apresenta recurso de tal decisão, com as demais consequências legais.
III - Da factualidade alegada pela Autora e da forma como a acção foi configurada pela Autora, resulta claramente que, através da presente ação judicial, a Autora instaurou contra o Réu uma ação mista, que cumula uma acção de demarcação e uma acção de reivindicação, tendo sido apresentadas as respetivas causas de pedir e sido formulados pedidos típicos de uma ação de demarcação e de uma ação de reivindicação.
IV - E é natural e lógico que assim o tenha feito, já que alega a Autora que o Réu decidiu construir um muro ilicitamente na área do seu prédio rústico, em clara violação das estremas que delimitam ambos os prédios confinantes, tendo ocorrido, consequentemente, violação do seu direito de propriedade, na parte abusivamente ocupada pelo Réu, mas que o mesmo pretende ou pensa ser sua.
V – Com efeito, atenta a factualidade in casu, a Autora instaurou cumulativamente uma acção de demarcação e uma acção de reivindicação, por forma a que seja feita a correspondente demarcação das estremas do prédio rústico da Autora e do prédio urbano do Réu e, bem assim, para que seja demolido o muro ilicitamente construído e restituída a área abusivamente ocupada pelo Réu.
VI - Autora e Réu são proprietários de prédios contíguos, sendo divergente o entendimento que cada uma das partes tem quanto aos respetivos limites na parte em que confinam (acção de demarcação). À divergência quanto às estremas/limites dos prédios, acresce o facto de a Autora ter verificado que o Réu estava a construir um muro na área do seu prédio rústico, violando o seu direito de propriedade, mais tendo verificado que, da ação do Réu (construção do muro), resultou a ocupação de 1.400 m2 do seu prédio rústico. Daí que, seja evidente que, ao construir o muro, o Réu não só discorda da Autora quanto aos respetivos limites/estremas de ambos os prédios, como também violou o direito de propriedade da Autora, sendo por isso igualmente necessário lançar mão da ação de reivindicação, nos termos que a Autora fez na sua petição inicial.
VII - Quando há divergências entre as estremas, como é o caso, há sempre uma parte, designadamente a parte que recorre ao Tribunal para dirimir o conflito, que entende ser sua uma área que a outra parte ocupa ou pretende que seja sua. Há, assim, um desacordo entre as partes quanto à delimitação dos respetivos prédios contíguos, sendo que este desacordo/ divergência leva a que a uma das partes viole o direito de propriedade da outra, o que in casu aconteceu. Está, assim, igualmente verificada a complementaridade entre os pedidos, atenta a factualidade do caso em concreto.
VIII – Ou seja, os pedidos formulados pela Autora não são incompatíveis. Antes pelo contrário. Os pedidos são plenamente compatíveis e podem fundir-se num único processo, como é o caso dos presentes autos, inexistindo qualquer incompatibilidade ou contrariedade entre a factualidade alegada, a causa de pedir e/ou quanto aos pedidos.
IX - Na ação de reivindicação o proprietário exige judicialmente o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição da coisa (art. 1311.º do CC); discute-se a titularidade. Na ação de demarcação, o dono pede que se fixem as fronteiras relativamente aos prédios confinantes; discute-se a extensão. Quando nenhum dos proprietários confinantes afirma saber os limites dos seus prédios, só lhes resta a ação de demarcação. Quando os proprietários confinantes pensam saber os limites dos respetivos prédios, mas estão em desacordo quanto a esses limites, podem gizar a ação como de reivindicação ou como de demarcação. Apesar de ambas as acções de demarcação e de reivindicação terem objetivos e fundamentos distintos, sucede com frequência embrenharem-se num mesmo processo, como se passa no caso sub judice.
X – Assim sendo, nada obsta a que se cumule numa única acção pedidos subjacentes à acção de reivindicação e pedidos subjacentes à acção de demarcação. Veja-se, a título de exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-02-2009, proc. 554/06.8TBAND.C1, disponível para consulta em www.dgsi.pt, que refere o seguinte: “Nada obsta a que se cumule esse pedido com pretensão deduzida com vista à demarcação, o que acontece quando o demandante peticiona ainda a condenação dos réus a “contribuírem para a demarcação dos dois prédios”.
XI - À semelhança do aresto citado, há inúmera jurisprudência de referência que defende que podem ser cumulados pedidos de uma acção demarcação e de uma acção de reivindicação, dependendo obviamente da factualidade de cada caso em concreto.
XII - Por conseguinte, atento o exposto, nada obsta a que nos presentes autos a Autora tenha configurado a presente acção com pedidos de uma acção de reivindicação e de uma acção de demarcação, não havendo aqui qualquer contrariedade ou incompatibilidade quanto aos pedidos, mas sim uma relação de complementaridade essencial para resolver o litígio que opõe Autora e Réu.
XIII - Uma última nota quanto ao facto de quer a ação de reivindicação quer a de demarcação seguirem a forma de processo comum desde a reforma processual de 1995, que eliminou os processos de arbitramento.
XIV – Com efeito, atento o exposto, dúvidas não restam de que ao proferir a sentença, ora em crise, o Tribunal de Primeira Instância violou manifestamente o disposto nos artigos 36.º e 555.º do Código de Processo Civil, por não estar verificada a exceção de ineptidão da petição inicial, devendo, em conformidade, ser julgada procedente a presente Apelação e revogada a sentença recorrida, devendo a acção prosseguir os seus termos sem obstáculo da discutida ineptidão, que se julga inverificada, com as demais consequências legais.»

Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Objecto do recurso
São as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação, onde sintetiza os fundamentos do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e, portanto, definem o âmbito objectivo do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, naturalmente, sem prejuízo da apreciação de outras questões de conhecimento oficioso (uma vez cumprido o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do mesmo compêndio normativo).
A questão que a recorrente submete à apreciação deste tribunal de recurso consiste em saber se há incompatibilidade substancial entre os pedidos que formulou (mais exactamente, entre os pedidos formulados nas alíneas a) e c) da p.i.) de modo a tornar inepto o articulado inicial.

IIFundamentação
1. Fundamentos de facto
O relatório que antecede contém os elementos necessários e suficientes para decidir a questão equacionada, que é uma questão, essencialmente, de direito.

2. Fundamentos de direito
Embora não esteja refletido nas conclusões do recurso, a recorrente começa por afirmar que, ao contrário do que se diz na decisão recorrida, «a ação, na forma que foi configurada pela Autora, apresenta dois pedidos subsidiários» para, logo depois, admitir que cumula os pedidos próprios da acção de reivindicação e da acção de demarcação[2], negando qualquer incompatibilidade entre eles, «mas sim uma relação de complementaridade essencial», pelo que nada obstaria à cumulação, e citando em abono o acórdão da Relação de Coimbra de 10.02.20009 (proc. 554/06.8TBAND.C1)[3].
Importa, pois, começar por assinalar que esta é uma acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum com cumulação real de pedidos, dado que a autora formula uma pluralidade de pretensões, que pretende lhe sejam reconhecidas in totum e ao mesmo tempo[4].
Tal como estão formulados, é patente que não existe relação de subsidiariedade ou de alternatividade entre os pedidos.
É ponto pacífico que a autora formula, realmente, os pedidos típicos daquelas duas acções (reivindicação e demarcação).
A vexata quaestio está em saber se são substancialmente incompatíveis.
Há incompatibilidade substancial dos pedidos quando estes se excluem reciprocamente, levando a que, no limite, inexista pedido algum[5].
Verifica-se uma tal incompatibilidade «(…) quando os efeitos jurídicos que com eles se pretendem obter estão, entre si, numa relação de oposição ou contrariedade, de tal modo que o reconhecimento de um é a negação dos demais.
Como o autor os apresenta a todos simultaneamente, e no mesmo plano, torna-se impossível discernir qual é, na realidade, a pretensão que pretende ver judicialmente reconhecida» (Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, Vol. I, págs. 388 e 389).
Como explicava o Professor José Alberto dos Reis (in “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol. III, págs. 154 e 156) «duas ou mais prestações são legalmente incompatíveis quando produzem efeitos contraditórios ou sob o aspecto material ou sob o aspecto processual (…). A incompatibilidade substancial que conta para a ordem jurídica é a que resulta do facto de as pretensões produzirem efeitos jurídicos contraditórios».
O ponto fulcral está, pois, nos efeitos jurídicos derivados da procedência de cada um dos pedidos: se são inconciliáveis ou se o reconhecimento de um exclui a possibilidade de verificação do(s) outro(s), teremos uma incompatibilidade substancial[6].
Algo idêntico pode dizer-se quanto à incompatibilidade substancial de causas de pedir.
É nesse sentido que se expressa o Professor Antunes Varela para quem “devem considerar-se incompatíveis não só os pedidos que mutuamente se excluem, mas também os que assentam em causas de pedir inconciliáveis” (Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, pág. 246).
Em termos muito simples e sintéticos, pode dizer-se que o pedido é o meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor e a causa de pedir o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido (o mesmo é dizer, o facto constitutivo da situação jurídica material que quer fazer valer).
São o pedido e a causa de pedir que, em processo civil, conformam o objecto do processo.
Na sentença recorrida faz-se uma extensa e douta explanação, alicerçada em doutrina e jurisprudência (com destaque para o acórdão da Relação de Guimarães de 05.04.2018, longamente citado), sobre o objecto de cada uma das acções que aqui confluem: a reivindicação e a demarcação.
Procurando não ser repetitivos, diremos que, sendo o reconhecimento do direito de propriedade e a restituição da coisa os pedidos característicos da reivindicação, a causa de pedir é o facto jurídico de que emerge tal direito e a posse ou a detenção do réu não conferidas por qualquer relação de natureza real ou obrigacional.
O que importa acentuar é que na acção de reivindicação o autor tem o ónus de alegar os factos constitutivos do direito de propriedade sobre a coisa (móvel ou imóvel) de que se afirma titular, de caracterizar, de forma tão precisa quanto possível, o objecto a que respeita o seu direito e descrever a ofensa que foi feita ou está a ser feita a esse direito, delimitando a medida desse ataque, pedindo o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que afirma pertencer-lhe.
Por isso, na acção de reivindicação, está excluído que o autor possa formular a pretensão de que seja delimitado o seu terreno no confronto com o(s) terreno(s) contíguo(s), que se determine a área e os limites do prédio de cuja propriedade se arroga titular.
Das duas, uma: ou o reivindicante está certo de que o terreno que reivindica é, todo ele, parte integrante do seu prédio, ou afirma que são incertos ou desconhecidos os seus limites e então já não é a acção de reivindicação que deve propor.
É esse o sentido que se extrai dos arestos do STJ publicados com os seguintes sumários:
- Ac. de 25/09/2012 (processo n.º 3371/07.4TBVLG.P1.S1) in www.dgsi.pt
«I - Quando uma das partes sustenta que uma determinada parcela de terreno do seu prédio se encontra usurpada pelo vizinho, sempre que haja debate sobre a propriedade de certa faixa de terreno confinante e sobre os títulos em que se baseia, discutindo-se o título de aquisição, em vez da sua relevância em relação ao prédio, tratando-se de um conflito de títulos e não de um conflito entre prédios quanto à sua fronteira e extensão, não se definindo apenas a linha divisória que ofereça dúvidas, face aos títulos existentes, a acção correspondente não é a acção de demarcação, mas antes a acção de reivindicação»
- Ac. de 07/07/2010 (processo n.º 854-B/1997.L1.S1) in www.dgsi.pt
«I - Quando as dúvidas ultrapassam a zona de fronteira entre os dois prédios contíguos para atingirem uma parcela bem definida de terreno, na posse do vizinho, sai-se da esfera da acção de demarcação para se entrar no âmbito da acção de reivindicação, sendo certo que naquela se respeitam os títulos existentes, não se admitindo prova contra os mesmos, apenas se definindo a linha divisória que ofereça dúvidas, face aos títulos existentes».
Diversamente, a demarcação não visa a declaração do direito real, mas apenas pôr fim a um estado de incerteza ou de dúvida sobre a localização da linha divisória entre dois (ou mais) prédios e por isso a pretensão a formular pelo autor é a de que os proprietários dos prédios vizinhos sejam obrigados a concorrer para a definição e fixação das estremas dos prédios confinantes.
O acórdão da Relação de Coimbra de 13/05/2014 (processo n.º 3779/10.8TBVIS.C1), descreve, de forma cristalina, o objecto da acção de demarcação:
«I – A norma do art.º 1353º do Código Civil consagra o direito potestativo do dono de um prédio obter o concurso dos donos dos prédios vizinhos para a demarcação das estremas entre o seu prédio e o deles.
II - Visando efectivar esse direito, as acções de demarcação apresentam uma causa de pedir complexa, traduzindo-se na invocação da titularidade de prédios distintos, da confinância e, por último, da controvérsia quanto aos limites, sendo certo que se trata da acção adequada ainda naquelas situações em que a linha limite é conhecida e indiscutida, destinando-se a acção a obter o concurso do dono do prédio vizinho para a mera aposição dos marcos.
III - Por via da norma do artº 1354º, nº 2, do C. Civ., vê-se que o direito a demarcar prédios depende, não tanto da invocação de uma linha de demarcação, mas antes da própria inexistência de demarcação em si - tudo o mais deve ser conhecido pelo próprio tribunal, aplicando, para efeitos da fixação de uma linha de demarcação, os critérios principal e supletivo previstos no citado artº 1354º.
IV - Desde que se verifique a confinância de prédios pertencentes a proprietários diferentes e inexista linha divisória entre eles (seja porque, indiscutida entre os proprietários confinantes, não está marcada, sinalizada no terreno, seja porque ela (isto é, a sua localização), é objecto de controvérsia entre eles, seja porque eles pura e simplesmente desconhecem a sua localização) está aberta a porta para a actuação do direito de demarcação.
V - Se a divisão da área conflituante não puder ser resolvida pelos títulos de cada um, será sucessivamente resolvida pela posse ou outros meios de prova; no limite, não podendo ser resolvida por nenhum desses meios, será equitativamente dividida pelos proprietários confinantes».
É recorrente na doutrina e na jurisprudência a afirmação de que nem sempre é linear e fácil identificar quando estamos perante uma ou outra acção e que o critério de distinção reside em que, na reivindicação, há um conflito de títulos de aquisição, ao passo que na demarcação há um “conflito de prédios”, ou, como se discorreu no acórdão da Relação de Guimarães de 29.06.2017 (acessível em www.dgsi.pt), na primeira, discute-se a titularidade e na segunda discute-se a extensão (dos prédios confinantes).
Explicando esse critério diferenciador, Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, tomo III, 2ª edição, pág. 199) anotam: «se as partes discutem o título de aquisição, como se, por exemplo, o autor pede o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a faixa ou sobre uma parte dela, porque a adquiriu por usucapião, por sucessão, por compra, por doação, etc., a acção é de reivindicação. Está em causa o próprio título de aquisição. Se, pelo contrário, se não discute o título, mas a relevância dele em relação ao prédio, como, por exemplo, se o autor afirma que o título se refere a varas e não a metros ou discute os termos em que deve ser feita a medição, ou, mesmo em relação à usucapião, se não discute o título de aquisição do prédio de que a faixa faz parte, mas a extensão do prédio possuído, a acção já é de demarcação. Pretende-se com ela, no fundo, uma declaração da extensão da propriedade, sem que estejam em causa os títulos de aquisição».
Em suma, lança-se mão da “acção de reivindicação” para pedir o reconhecimento do direito de propriedade sobre um prédio ou parte dele e a respectiva restituição, mas intenta-se “acção de demarcação” para obrigar o dono de prédio confinante a concorrer para a definição e fixação da linha divisória que seja incerta ou duvidosa.
Munidos destes subsídios doutrinários e jurisprudenciais sobre o objecto destas acções, estamos em condições de enfrentar a questão decidenda.
Recordemos, então, como está configurada esta acção.
Alega a autora que, por si e pelos seus antecessores, está, há mais 30 anos, ininterruptamente, na posse, em toda a sua extensão e área, do prédio rústico denominado “E…”, sito em …, da união de freguesias …, Trofa, com a área de 4.100 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial da Trofa sob o número 4075 e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 5024.
Essa posse reuniria as características (e ter-se-ia prolongado pelo tempo legalmente exigido) de uma posse usucapível, pelo que teria adquirido, por usucapião, o direito de propriedade sobre esse prédio.
Mais alega que o réu, proprietário confinante, em meados de Julho de 2018, começou a construir um muro, supostamente delimitador dos dois prédios, mas que, na realidade, não respeita as estremas que delimitam os prédios, pois que, com a construção do referido muro, o réu ocupou uma área de 1400 m2 do seu prédio rústico, que ficou com a área reduzida a 2700 m2.
Por isso, sob as alíneas b) e c), pede a condenação do réu, não só a demolir o muro que construiu na área do seu (dela, autora) prédio, mas também a restituir-lhe a área ocupada abusivamente (devendo considerar-se implícito o pedido de condenação no reconhecimento do direito de propriedade).
Daqui decorre que, na versão da autora, essa faixa de terreno, com a área de 1400 m2, é propriedade sua, é, sem dúvida, parte integrante do seu prédio e, portanto, não há qualquer estado de incerteza ou indefinição quanto aos limites dos dois prédios.
Aliás, também o réu tem certezas, mas de sentido oposto ao afirmado pela autora, pois alega que é esta que pretende usurpar essa faixa de terreno, parte integrante do seu prédio urbano, o qual, desde 1995, é vedado por um muro que ruiu parcialmente em consequência de uma tempestade que atingiu a região e que foi reconstruído (e não construído, como afirma a autora) em 2018.
Assim configurada, não podem restar dúvidas de que estamos perante uma acção de reivindicação, pois não é a extensão da propriedade, mas a titularidade do direito de propriedade sobre uma faixa de terreno que aqui se discute.
Sucede, porém, que a autora, em flagrante contradição com o que antes afirmara, vem admitir que, afinal, é controvertida a linha de demarcação entre os dois prédios, que não há concordância quanto à localização das respectivas estremas («No nosso caso em concreto, e atento os factos chamados à colação, facilmente se compreende que a linha divisória entre os dois prédios confinantes, supra melhor identificados, é controvertida, inexistindo concordância entre as partes quanto à sua localização e quanto aos limites dos dois prédios confinantes, pelo que (…) é necessário resolver o litígio sobre a localização dos limites») e, na alínea a), pede a condenação do réu a «concorrer para a demarcação das estremas do seu prédio com o prédio rústico in casu, nos termos do art. 1353.º e seguintes do CC, com as demais consequências legais».
Em poucas palavras, admite que, diferentemente do que começou por afirmar, pode não ser proprietária daquela parcela de terreno com a área de 1 400 m2, na totalidade ou em parte, e daí o pedido de que sejam fixadas as estremas dos prédios.
Alega a recorrente que «nada obsta a que nos presentes autos a Autora tenha configurado a presente acção com pedidos de uma acção de reivindicação e de uma acção de demarcação, não havendo aqui qualquer contrariedade ou incompatibilidade quanto aos pedidos, mas sim uma relação de complementaridade essencial para resolver o litígio que opõe Autora e Réu» (conclusão XII), mas, com todo o respeito devido, é manifesto que não tem razão.
O efeito jurídico da procedência do pedido de restituição da parcela de terreno reivindicada pela autora (e do implícito pedido de reconhecimento do direito de propriedade) será o de excluir qualquer necessidade de demarcação, pois tal significa que inexiste incerteza ou indefinição quanto aos limites dos dois prédios confinantes, pressuposto da acção de demarcação.
Aliás, a mesma conclusão se impõe caso se apure que a parcela disputada é parte integrante do prédio do réu e não do prédio da autora.
Assim se evidencia a incompatibilidade substancial, não só dos pedidos formulados pela autora, mas também das causas de pedir em que se sustentam.
É essa a posição que tem prevalecido na jurisprudência[7], ao contrário do que afirma a recorrente.
De resto, a ininteligibilidade da posição da autora também se revela num outro ponto.
Na decisão recorrida afirma-se que «existe manifesta falta de causa de pedir para sustentar o pedido de reivindicação» e, também com esse fundamento, seria inepta a petição inicial.
A afirmação não está justificada, mas facilmente se percebe que alude ao facto de a autora alegar que é locatária do identificado prédio rústico.
Com efeito, a autora começa por alegar que o “dono e legítimo proprietário” do prédio é o D… e que, em 21.09.2017, celebrou com esta instituição bancária um contrato de locação financeira, assim se tornando “legítima possuidora do prédio rústico” em causa, e prossegue com a afirmação de que, “há mais de 15, 20 (até 30) anos, vem possuindo esse prédio rústico, em toda a sua extensão e área, fruindo as suas utilidades, pagando os impostos necessários e cuidando dele, ininterruptamente, à vista de toda a gente, sem qualquer oposição e na convicção de exercer direito próprio e de não lesar direito alheio” pelo que o teria adquirido por usucapião.
O contrato de locação financeira imobiliária (também denominado “leasing imobiliário”) não tem eficácia translativa do direito de propriedade sobre o imóvel locado.
Pelo contrato, o locador obriga-se a proporcionar ao locatário o gozo temporário de uma coisa mediante retribuição.
Mais que a circunstância de o objecto do contrato ser adquirido ou construído pelo locador por indicação do locatário, a característica distintiva deste negócio está na possibilidade de o locatário, no termo do prazo contratual, adquirir a coisa pelo seu valor residual.
Enquanto tal não acontecer, o locador continua a ser o proprietário da coisa.
Por outro lado, o locatário é um possuidor “nomine alieno”. Tal como no contrato de arrendamento, o gozo temporário do imóvel que o locador lhe proporciona não confere ao locatário uma posse boa para usucapião. A actuação material, o poder de facto exercido sobre o imóvel consubstancia uma posse precária ou mera detenção que, por regra, não conduz à aquisição da propriedade por usucapião (cfr. artigo 1290.º do Código Civil).
Nos fundamentos de direito que expôs na sua petição inicial, a autora fala em “proprietário jurídico e não jurídico” e em “proprietário económico” do imóvel locado para justificar a sua legitimidade para demandar.
Salvaguardando sempre o devido respeito, trata-se de conceitos sem sentido, sem qualquer conteúdo jurídico.
Divergimos do entendimento expresso na decisão recorrida, apenas, porque se nos afigura que não é caso de falta, mas de ininteligibilidade, de causa de pedir na acção de reivindicação.
No entanto, bem andou o tribunal a quo ao julgar procedente a excepção de nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial, pelo que o recurso terá de improceder.

III - Dispositivo
Por tudo o exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso de apelação interposto por “B…, Unipessoal, L.da” e confirmar a decisão recorrida.
As custas do recurso serão suportadas pela autora/recorrente (artigo 527.º, n.os 1 e 2, do Cód. Processo Civil).

(Processado e revisto pelo primeiro signatário).

Porto, 25 de janeiro de 2021
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
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[1] Síntese não apertada, para permitir uma ideia exacta dos fundamentos das pretensões da autora.
[2] Assim denominadas, respectivamente, nos artigos 1311.º e 1353.º do Código Civil, apesar de não serem acções de processo especial.
[3] O acórdão citado está disponível em www.dgsi.pt.
Importa salientar que a terceira proposição do sumário com que foi publicado não traduz, com rigor, o que se diz no texto do acórdão, pois aí pode ler-se: «No caso em apreço, a demarcação entre o prédio dos autores e da ré está perfeitamente definida e não oferece qualquer dúvida. O que acontece é que os autores reivindicam área superior à que se contém dentro dos limites demarcados desse seu prédio e essa pretensão é aquela que é determinante na acção: só assim se compreende que os autores deduzam os pedidos supra enunciados nas alíneas a) a c), típicos da acção de reivindicação. O pedido de demarcação surge em segunda linha e na sequência do primeiro, sendo de salientar que, como a recorrida refere nas suas alegações de recurso, os autores nem sequer invocaram os factos pertinentes à fixação da linha divisória, não indicando qualquer traçado de demarcação.
Conclui-se, pois, que a acção configura uma acção de reivindicação, conjugando-se ainda pedido com vista à demarcação.
[4] Ao contrário do que sucede com os pedidos formulados em alternativa e com os pedidos subsidiários em que o autor visa alcançar a procedência de uma só das pretensões deduzidas.
[5] Cfr. A. S. Abrantes Geraldes, P. Pimenta e L. F. Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, 2019, pág. 221. [6] Na jurisprudência, cfr., por todos, o acórdão desta Relação de 24.01.2019 (Des. Madeira Pinto), disponível in www.dgsi.pt
[7] Cfr. citado acórdão da Relação de Guimarães de 05.04.2018 e a jurisprudência, designadamente do STJ, indicada na nota de pé de página n.º 22.