Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
43/22.3GAMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO AFONSO LUCAS
Descritores: CRIME DE CAÇA ILEGAL
PENAS ACESSÓRIAS
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
PROCESSO SUMÁRIO
Nº do Documento: RP2023030843/22.3GAMTS.P1
Data do Acordão: 03/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: DECLARADA NULA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - As penas acessórias previstas no art. 35.º da Lei n.º 173/99, de 21 de setembro (Lei da Caça), aplicáveis por via do cometimento de um crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas, não são um efeito automático do crime nem da pena principal, havendo que ter em conta a natureza e as finalidades específicas daquelas, por forma a determinar se a pena acessória deve ser aplicada em concreto e se mostra ajustada ao caso.
II - Decorrendo do teor da decisão recorrida, apesar de proferida oralmente em sede de processo sumário, que o tribunal decidiu como se a aplicação das sanções acessórias fosse uma consequência automática imposta legalmente em qualquer caso, a decisão mostra-se afetada de nulidade por omissão no que tange ao cumprimento da exigência de fundamentação que aqui se mostra ainda e sempre necessária.
III - A imposição do dever de fundamentação de facto e de direito não depende da forma escrita ou oral da sentença proferida – e apesar de, no caso de processos sob a forma sumária ou abreviada, tal poder traduzir–se num elenco “sucinto” ou “conciso” de motivos e razões que consubstanciem aquela fundamentação (conforme, respetivamente, artigos 389º-A e 391º-F do Cód. de Processo Penal), concisão e síntese não são sinónimos de dispensa ou ausência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 43/22.3GAMTS.P1


Tribunal de origem: Juízo Local Criminal de Matosinhos, Juiz 2 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto


Acordam em conferência os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:


I. RELATÓRIO

No âmbito do processo sumário nº 43/22.3GAMTS que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal de Matosinhos – Juiz 2, em 07/10/2022 foi proferida Sentença, cujo dispositivo é do seguinte teor:
«Pelo exposto, julga-se a acusação procedente por provada e, em consequência, o Tribunal decide:
1) Condenar o arguido AA pela prática em 22-09-2022 de um crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 30.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 173/99, de 21.09, 2.º, alínea g) e j), da Lei n.º 173/99, de 21.09, e os 52.º, n.º 1, e 53.º, n.º 1, alínea b), ambos do Decreto-Lei n.º 202/2004, de 18.09, numa pena de 35 (trinta e cinco) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros).
2) Condenar nas sanções acessórias de interdição do direito de caçar pelo período de 3 anos e a perda da arma e munições apreendidas, a favor do Estado, previsto e punido pelo artigo 35.º, n.ºs 1, 2, 3, 4 e 5, da Lei n.º 173/99, de 21.09
3) Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal. »

Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 06/11/2022, o arguido AA, extraindo da motivação as seguintes conclusões:
I. O presente recurso tem como objeto a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presente autos, a qual condenou o Arguido pela prática de um crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 30.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n. 173/99, de 21/09, 2.º, alínea g) e j), da Lei n.º 173/99, de 21/09 , e os 52.º, n.º 1, e 53.º, n.º 1, alínea b), ambos do Decreto-Lei n.º 202/2004, de 18/09, numa pena de 35 (trinta e cinco) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros).
E ainda nas sanções acessórias de interdição do direito de caçar pelo período de 3 anos e a perda da arma e munições apreendidas a favor do Estado, previsto e punido pelo artigo 35.º, n.ºs 1, 2, 3, 4 e 5 da Lei n.º 173/99, de 21/09.
II. O Tribunal a quo deu, designadamente, como provado que:
a) No dia 22/09 pelas 11h30 o Arguido AA deslocou-se para a Rua ... com o propósito de caçar pombos. Para tal dotou-se de 1 espingarda de caça, marca “Browning”, calibre 12, pertencente à classe D.
b) Uma vez chegado ao à Rua ... muniu a espingarda de caça marca “Browning”, calibre 12, pertencente à classe D e colocou-se em posição de disparar por de trás do veículo automóvel que ali se encontrava imobilizado.
c) A Rua ... é uma caminho agrícola de acesso a terrenos agrícolas composta por aglomerados populacionais.
d) O Arguido encontrava-se a cerca de 180 metros do aglomerado populacional mais próximo da Rua ....
e) A posição a que se encontrava o Arguido AA fica a cerca de 120 metros de uma habitação sita na Rua ..., ....
III. O douto Tribunal assentou a sua convicção no que foi parcialmente admitido pelo Arguido e nos depoimentos das testemunhas.
IV. Sucede que, relativamente ao facto descrito na alínea b) do artigo 5.º do presente Recurso, o Tribunal a quo assentou a sua convicção alegadamente no que foi parcialmente admitido pelo Arguido e essencialmente no depoimento da testemunha Agente da GNR - BB,
V. entendendo o douto Tribunal que a referia testemunha foi clara ao explicar que o Arguido estava no ceio de uma zona populacional, em posição de disparar, com a arma já preparada com cartuchos nos seu interior, encostada ao veículo e que aguardava o aparecimento de pombos.
VI. Tal convicção assentou no que foi parcialmente admitido pelo Arguido e no depoimento da testemunha – Agente da GNR BB
VII. entendendo o douto Tribunal que a referia testemunha foi clara ao explicar que o Arguido estava no ceio de uma zona populacional, em posição de disparar, com a arma já preparada com cartuchos nos seu interior, encostada ao veículo e que aguardava o aparecimento de pombos.
VIII. Sucede que, do depoimento do Arguido, o qual teve inicio às 10:08:30horas e fim às 10:21:32horas, em momento algum foi por este referido que se encontrava em posição de disparar, antes pelo contrário
IX. Resultou do depoimento do Arguido que no momento em que chegaram os Agentes não estava a exercer o ato da caça e que a arma estava encostada ao veículo automóvel.
X. Já do depoimento da Agente da GNR – BB – o qual teve início às 10:22:19 horas e termo às 10:32:39 horas, resultou que se deslocaram ao local porque populares tinham feito denuncia por terem ouvido tiros noutros dias.
XI. Resultou ainda do depoimento da referida testemunha que quando chegaram ao local encontraram o Arguido AA que se encontrava com a arma encostada ao carro, eventualmente à espera que aparecesse algum pombo, indicando ainda que não tinha o Arguido ainda iniciado a prática da caça.
XII. Nesse sentido, entende-se que o facto julgado como provado – que o Arguido se encontrava em posição de disparar
XIII. foi incorretamente julgado, porque não resulta de nenhuma das provas produzidas a veracidade deste facto, conforme supra se demonstrou.
XIV. Assim, o Tribunal a quo, ao dar como provado que no dia 22/09/2022, às 11h30, o Arguido se encontrava em posição de disparar, violou, entre outros, princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
XV. Mais a mais, ao dar como provados factos que não resultaram da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, violou, ainda, o disposto no artigo 355.º, n.º 1, do CPP – da qual resulta que não valem em julgamento, para efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas na audiência.
XVI. O Tribunal a quo condenou o Arguido pela prática, em 22/09/2022 de um crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 30.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n. 173/99, de 21/09, 2.º, alínea g) e j), da Lei n.º 173/99, de 21/09 , e os 52.º, n.º 1, e 53.º, n.º 1, alínea b), ambos do Decreto-Lei n.º 202/2004, de 18/09, numa pena de 35 (trinta e cinco) dias de multa, á taxa diária de €6,00 (seis euros).
XVII. E ainda nas sanções acessórias de interdição do direito de caçar pelo período de 3 anos e a perda da arma e munições apreendidas a favor do Estado, previsto e punido pelo artigo 35.º, n.ºs 1, 2, 3, 4 e 5 da Lei n.º 173/99, de 21/09.
XVIII. Em primeiro lugar, importa referir que para que se justifique a aplicação de uma pena acessória é necessário que haja condenação do agente numa pena principal mas não é, sua condição suficiente pois torna-se, porém, sempre necessário ainda que o juiz comprove, no facto, um particular conteúdo do ilícito, que justifique materialmente a aplicação em espécie, da pena acessória (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 197).
XIX. Acresce que, no caso concreto determinou o Tribunal a quo que o Arguido não estava a atuar com o conhecimento de que estaria a menos de 250 metros, mas que admitiu que podia efetivamente estar a menos e conformou-se com o resultando, determinando que atuou apenas com dolo eventual.
XX. Ora, do depoimento do Arguido resulta que não sabia que se encontrava a menos de 250 metros do aglomerado populacional e que se tivesse sido alertado para o facto de não puder caçar naquela zona, teria de imediato arrumado os seus pertences e abandonado o local, nunca mais lá voltando.
XXI. A própria testemunha Agente da GRN – BB – afirmou que se seria suficiente um alerta para o Arguido perceber que não poderia caçar naquela zona, afirmando, ainda, que acredita que o mesmo não voltaria aquele local.
XXII. Pelo que, não se entende, nem se aceita a conclusão a que o Tribunal a quo chegou quando estabelece que o Arguido admitiu que podia estar a menos de 250 metros, conformando-se com tal resultado.
XXIII. Nem se se compreende a aplicação da pena acessória, a qual entendemos não ser adequada nem ter sido devidamente fundamentada.
XXIV. Refere o n.º 1 do artigo 35.º da Lei nº 173/99 de 21 de Setembro que "a condenação por qualquer crime ou contra-ordenação previsto nesta lei pode implicar ainda a interdição do direito de caçar e a perda dos instrumentos e produtos da infracção a favor do Estado."
XXV. A expressão "pode implicar" deverá merecer por parte do Julgador a absoluta justificação.
XXVI. No presente caso e para além da profunda desproporcionalidade da condenação de que foi alvo o Recorrente, (condenação penal a que acresce a condenação acessória),
XXVII. Verifica-se que não existe nenhuma razão objetiva que fundamente a aplicação da sanção acessória.
XXVIII. Resulta da Lei que todas as decisões têm que ser objetivamente fundamentadas.
XXIX. O que não verifica no caso da aplicação ao Recorrente da sanção acessória.
XXX. Tal facto causa nulidade da sentença nesta parte, face ao disposto no n.º 2 do artigo 374° do Código de Processo Penal
XXXI. O artigo 374°, n.º2 do Código de Processo Penal impõe uma fundamentação, ainda que concisa, de facto e de direito e uma análise crítica da prova;
XXXII. Essa análise, ainda que também sucinta, é, por definição, mais que um resumo acrítico do que se passou em audiência de julgamento;
XXXIII. Devendo haver indicação, ainda que sumária, de que elementos de prova se considerou com ligação aos factos, provados e não provados, pois não havendo tal facto impossibilita uma pronúncia eficaz do Arguido sobre essa prova, cerceando os seus direitos de defesa;
XXXIV. O que determina nulidade da sentença nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal.
XXXV. No caso em concreto (aplicação ao Recorrente da sanção acessória) verifica-se uma absoluta falta de fundamentação pois não são minimamente explicitadas as razões de facto e de direito que permitam perceber o sentido daquela condenação.
XXXVI. Existe pois uma total e absoluta ausência de fundamentação (não existe sequer uma fundamentação mínima) e como tal, nesta parte, a sentença deve ser declarada nula.
XXXVII. Já no que diz respeito às noção das distâncias, entendemos ter ficado demonstrado que o Arguido sempre achou que estaria a mais de 250 metros do aglomerado populacional,
XXXVIII. Nesse sentido, resultou do depoimento das testemunhas CC (inicio registado a 10:33:21 horas e termo a 10:42:46 horas); DD (inicio registado a 10:42:47 horas e termo a 10:46:07horas) e EE (início registado a 10:46:08horas e termo a 10:49:52 horas),
XXXIX. que no local da ocorrência dos factos não é percetível a distância, ou seja, que é muito difícil perceber se estariam a menos de 250 metros,
XL. tendo todas as testemunhas declarado que conhecem o local e que acreditavam que naquele local estariam a mais de 250 metros do aglomerado populacional.
XLI. Pelo que, o Arguido atuou sem consciência de que estaria a violar qualquer disposição legal,
XLII. até porque, conforme também resultou provado através do depoimento do Arguido e das testemunhas, o local do factos era frequentado por outros caçadores que lá praticavam o exercício da caça.
XLIII. Pelo que, além de não se não se justifica a aplicação da pena acessória aplicada, não se aceita também o enquadramento da situação em dolo eventual.
XLIV. O Arguido é um senhor de 82 anos que se dedica exclusivamente aos cuidados da mulher que se encontra totalmente incapacitada de movimentos.
XLV. Desde jovem que o Arguido possui um sentimento especial pelo exercício da caça, sendo hoje em dia, o seu único e parco passatempo.
XLVI. O Arguido utiliza agora a caça como uma atividade para se abstrair das preocupações diárias que tem com o estado de saúde da mulher, XLVII. sendo que, no dia que vai praticar o exercício da caça, pede a uma sobrinha que o substitua, ainda que por poucas horas, isto porque a mulher do Arguido não pode estar sozinha.
XLVIII. O Arguido está habilitado para a caça, cumpre com todas as formalidades legais para aquele exercício e nunca cometeu qualquer infração relacionada com o exercício da caça.
XLIX. Em momento algum o Arguido teve a consciência de que se encontrava a cometer um ato ilícito,
L. até porque, se o Arguido tivesse a real perceção de que estava a menos de 250 metros do aglomerado habitacional, nunca praticaria o exercício da caça naquela zona.
LI. Sem prescindir, naquela zona não existe qualquer sinalização inerente ao exercício da caça, que permitisse alertar o Arguido para qualquer da situações supra descritas.
LII. O Arguido com 82 anos, não tem quaisquer antecedentes criminais, o que demonstra que toda a sua vida foi pautada pelo cumprimento da lei.
LIII. Apesar da idade avançada, o Arguido é um Senhor totalmente capaz de cumprir regras, pelo que um simples alerta para o facto de não puder caçar naquela zona seria suficiente para o Arguido não voltar lá mais e ter em atenção quando se deslocasse a outros locais.
LIV. Pelo se considera que a pena principal e a pena acessória aplicadas são manifestamente excessivas.
LV. Entendendo-se que, no caso concreto é totalmente errada a apreciação que mereceu pelo Julgador a matéria dada como provada atento o depoimento das testemunhas.
LVI. O que deverá conduzir à sua reapreciação e à aplicação de uma pena razoável e ponderada atenta a infração que o Recorrente cometeu.
LVII. Paralelamente, o Tribunal a quo, não teve em atenção a ilicitude, a inexistência de antecedentes criminais, as condições pessoais do Arguido, a sua situação económica e social.
LVIII. Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e de direito, entende-se estar cumpridas as formalidades previstas no artigo 412.º do CPP.
LIX. Ora, no caso concreto determinou o Tribunal a quo que o Arguido não estava a atuar com o conhecimento de que estaria a menos de 250 metros, mas que admitiu que podia efetivamente estar a menos e conformou-se com o resultando, determinando que atuou apenas com dolo eventual.
LX. Ora, do depoimento do Arguido resulta que não sabia que se encontrava a menos de 250 metros do aglomerado populacional e que se tivesse sido alertado para o facto de não puder caçar naquela zona, teria de imediato arrumado os seus pertences e abandonado o local, nunca mais lá voltando.
LXI. A própria testemunha Agente da GRN – BB – afirmou que se seria suficiente um alerta para o Arguido perceber que não poderia caçar naquela zona, afirmando, ainda, que acredita que o mesmo não voltaria aquele local.
LXII. Pelo que, não se entende, nem se aceita a conclusão a que o Tribunal a quo chegou quando estabelece que o Arguido admitiu que podia estar a menos de 250 metros, conformando-se com tal resultado.
LXIII. Resultou também do depoimento das testemunhas CC (inicio registado a 10:33:21 horas e termo a 10:42:46 horas); DD (inicio registado a 10:42:47 horas e termo a 10:46:07horas) e EE (inicio registado a 10:46:08horas e termo a 10:49:52 horas), que é no local da ocorrência dos factos não é percetível a distância, ou seja, que é muito difícil perceber se estariam a menos de 250 metros,
LXIV. tendo todas as testemunhas declarado que conhecem o local e que acreditavam que naquele local estariam a mais de 250 metros do aglomerado populacional.
LXV. Pelo que, o Arguido atuou sem consciência de que estaria a violar qualquer disposição legal,
LXVI. até porque, conforme também resultou provado através do depoimento do Arguido e das testemunhas, o local do factos era frequentado por outros caçadores que lá praticavam o exercício da caça.
LXVII. Pelo que, além de não se aceitar o enquadramento da situação em dolo eventual, não se justifica também a aplicação da pena acessória aplicada.
LXVIII. O Arguido é um senhor de 82 anos que se dedica exclusivamente aos cuidados da mulher que se encontra totalmente incapacitada de movimentos.
LXIX. Desde jovem que o Arguido possui um sentimento especial pelo exercício da caça, sendo hoje em dia, o seu único e parco passatempo.
LXX. O Arguido utiliza agora a caça como uma atividade para se abstrair das preocupações diárias que tem com o estado de saúde da mulher,
LXXI. sendo que, no dia que vai praticar o exercício da caça, pede a uma sobrinha que o substitua, ainda que por poucas horas, isto porque a mulher do Arguido não pode estar sozinha.
LXXII. O Arguido está habilitado para a caça, cumpre com todas as formalidades legais para aquele exercício.
LXXIII. Em momento algum o Arguido teve a consciência de que se encontrava a cometer um ato ilícito,
LXXIV. até porque, se o Arguido tivesse a real perceção de que estava a menos de 250 metros do aglomerado habitacional, nunca praticaria o exercício da caça naquela zona.
LXXV. Sem prescindir, naquela zona não existe qualquer sinalização inerente ao exercício da caça, que permitisse alertar o Arguido para qualquer da situações supra descritas.
LXXVI. O Arguido com 82 anos, não tem quaisquer antecedentes criminais, o que demonstra que toda a sua vida foi pautada pelo cumprimento da lei.
LXXVII. Apesar da idade avançada, o Arguido é um Senhor totalmente capaz de cumprir regras, pelo que um simples alerta para o facto de não puder caçar naquela zona seria suficiente para o Arguido não voltar lá mais e ter em atenção quando se deslocasse a outros locais.
LXXVIII. Pelo se considera que a pena principal e a pena acessória aplicadas são manifestamente excessivas.
LXXIX. Entendendo-se que, no caso concreto é totalmente errada a apreciação que mereceu pelo Julgador a matéria dada como provada atento o depoimento das testemunhas.
LXXX. O que deverá conduzir à sua reapreciação e à aplicação de uma pena razoável e ponderada atenta a infração que o Recorrente cometeu.
LXXXI. Paralelamente, o Tribunal a quo, não teve em atenção a ilicitude, a inexistência de antecedentes criminais, as condições pessoais do Arguido, a sua situação económica e social.
LXXXII. Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e de direito, entende-se estar cumpridas as formalidades previstas no artigo 412.º do CPP.

O recurso, em 24/11/2022, foi admitido.

A este recurso respondeu o Ministério Público, em 05/12/2022, pugnando pela improcedência do recurso, e concluindo da seguinte forma:
I. A douta sentença impugnada não merece qualquer reparo ou censura, porquanto o seu percurso decisório é lógico e adequado, ancorando-se na prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e naquela carreada para os autos, contemplando todas as circunstâncias relevantes para a boa decisão da causa e culminando numa resolução irrepreensível.
II. Mirando a sentença proferida pelo Tribunal a quo, o Arguido/Recorrido AA insurge-se contra a mesma, em três aspetos:
– no erro de julgamento, assente na incorreta apreciação das provas produzidas em sede de audiência de discussão e julgamento, traduzida na impugnação alargada da matéria de facto dada como provada, concretamente os Pontos a), b), c), d), e e), por violação do princípio da livre apreciação e do artigo 355.º, n.º 1, do Código de Processo Penal;
– nulidade da sentença, por omissão de fundamentação, na parte referente à condenação na sanção acessória;
– e na determinação da medida concreta da pena principal e da pena acessória de interdição do direito de caçar aplicadas, por ser excessiva e desproporcional.
III. Porém, e com o devido respeito, somos do entendimento que não lhe assiste qualquer razão.
IV. No que diz respeito à impugnação alargada da matéria de facto, o Arguido/Recorrente AA, não só não indicou as concretas passagens dos depoimentos e declarações que sustentam tal impugnação (cfr. artigo 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal), como também apenas manifestou uma discordância com a apreciação e valoração da prova realizada pelo Tribunal a quo, sem nunca indicar as concretas provas que impõem decisão diversa daquela tomada na sentença impugnada, pelo que, tal fundamentação se mostra parca para abalar a convicção formada em 1.ª instância, assente no princípio da livre apreciação da prova, (cfr. artigo 127.º, do Código de Processo Penal).
V. Relativamente à alegação de que a sentença proferida pelo Tribunal a quo se encontra ferida de nulidade, assente numa total falta de fundamentação para aplicação da pena acessória de interdição do direito de caçar pelo período de 3 anos, ao analisarmos a decisão não vislumbramos que a mesma padeça desse vício.
VI. O Tribunal a quo fundamentou, nos moldes exigidos pelo artigo 389.º-A, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, a aplicação da pena acessória de interdição do direito de caçar, por 3 anos, ao Arguido/Recorrente AA, prevista pelo artigo 35.º, n.º 2, da Lei n.º 173/99, de 21.09, pelo que a mesma não se encontra ferida de qualquer vício de falta de fundamentação, não sendo, portanto, nula.
VII. No que concerne à concreta medida da pena, quer a principal, que a acessória de interdição do direito de caçar, a que foi o Arguido/Recorrente AA condenado, somos da opinião que a sentença em crise não merece qualquer reparo ou censura.
VIII. Se é verdade que o Arguido/Recorrente AA não têm quaisquer antecedentes criminais, é igualmente verdade que este, sendo detentor de uma licença de caça, se deveria ter assegurado que a não exercia em lugar proibido para o efeito, pelo que, ao não o ter feito, conformou-se com esse resultado.
IX. Pelo que, sendo a medida concreta da pena principal e da pena acessória de interdição do direito de caçar aplicadas ao arguido adequada, justa e proporcional, deve ser mantida.

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 27/01/2023, emitiu parecer pela procedência parcial do recurso, propugnando mostrar–se verificada a nulidade processual da sentença que vem invocada, e dever ordenar–se o reenvio do processo à 1.ª instância para prolação de nova sentença onde seja sanado tal, ficando assim prejudicadas as demais questões suscitadas.
O que faz nos seguintes termos:
«Respondendo ao recurso, o Ministério Público na primeira instância defende a sua improcedência.
Antecipamos que não se adere totalmente às judiciosas considerações expostas na resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público na primeira instância, já que concordamos em absoluto com a argumentação expendida pelo arguido quando refere que a sentença recorrida não fundamentou a sua condenação nas sanções acessórias de interdição do direito de caçar pelo período de 3 anos e na perda da arma e munições apreendidas a favor do Estado.
De todo o modo, diremos, antes de mais, que analisando a motivação do recurso do arguido AA é patente que esta não observa a previsão legal do artigo 412.º, do Código de Processo Penal, que dispõe o seguinte:
“1. A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
2. Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e
c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.
3- Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4- Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 2, do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação (…)”.
Resulta claramente do n.º 1 do artigo 412.º do Código de Processo Penal que o recurso é composto pela motivação, onde se enunciam os fundamentos da impugnação e pelas conclusões, destinadas a sintetizar o pedido.
Assim, a motivação, além de obrigatória, compreende dois ónus: o de alegar e o de concluir.
Ou seja, o recorrente deve começar por expor todas as razões da impugnação da decisão de que recorre (enunciação específica dos fundamentos do recurso) e, depois, indicar de forma sintética, essas mesmas razões.
Acresce que as conclusões não se destinam a repetir ou sequer a continuar a argumentação, devendo consistir num apanhado conciso de quanto se desenvolveu no corpo da motivação, não podendo reconduzir-se à mera repetição exaustiva ou aproximada daquilo que nesta se exarou, nem tão pouco na simples remissão, em bloco, para a matéria constante da motivação.
Ora, parece-nos manifesto que o recorrente não cumpre o ónus legal mencionado, alegando em 60 artigos e concluindo em 82, reproduzindo nas conclusões as alegações antecedentes, não dando cumprimento à obrigação legal de fazer um resumo da razão do pedido, cuja perceção e inteligibilidade são desse modo claramente prejudicadas pelo excesso.
Posto isto, diremos, também, que o arguido invoca o erro de julgamento da matéria de facto.
O erro de julgamento da matéria de facto existe quando o tribunal dá como provado certo facto relativamente ao qual não foi feita prova bastante e que, por isso, deveria ser considerado não provado, ou então o inverso, e tem a ver com a apreciação da prova produzida em audiência em conexão com o princípio da livre apreciação da prova constante do artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Porém, para poder questionar a matéria de facto teria o recorrente de obedecer aos ditames do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, o que não sucedeu.
Na verdade, o recurso que impugne amplamente a matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, uma reapreciação total dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, destinando-se a corrigir erros manifestos de julgamento quanto aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Por isso, quando o recorrente impugna a decisão sobre matéria de facto com fundamento em erro de julgamento, de acordo com o disposto no citado normativo, tem de especificar:
- os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, o que implica a individualização de cada um dos factos impugnados.
- as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, ónus que só fica satisfeito, nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 2.ª edição atualizada, pág.1131, «com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida».
Além disso, o recorrente tem de expor a razões pelos quais essas provas impõem decisão diversa da recorrida.
Ora, o recorrente não concretiza sequer de forma processualmente admissível as razões da sua discordância em relação à fundamentação de facto da sentença recorrida, pelo que esse segmento do recurso é, segundo cremos, manifestamente improcedente.
Porém, como se disse, o recorrente foi condenado pela prática de um crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 30.º, n.º s 1 e 2, da Lei n.º 173/99, de 21.09, 2.º, alínea g), e 35.º, n.ºs 1, 2, 3, 4 e 5, todos da Lei n.º 173/99, de 21.09 (Lei da Caça) e 52.º, n.º 1 e 53.º, n.º 1, alínea b), ambos do Decreto-Lei n.º 202/2004, de 18.08 (Regulamento da Lei de Bases Gerais da Caça, na pena de 35 (trinta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros) e nas sanções acessórias de interdição do direito de caçar pelo período de 3 anos e na perda da arma e munições apreendidas a favor do Estado,
A Lei da Caça prevê no seu artigo 35.º, n.ºs 1, 2 e 3 que, em consequência da condenação por qualquer crime ou contraordenação nela prevista, pode ser imposta ao agente ainda a interdição do direito de caçar entre três e cinco anos e a perda dos instrumentos da infração, que abrange a perda das armas que serviram à prática daquela.
Fundado neste normativo, por estar o arguido incurso num crime previsto na Lei da Caça, e por considerar, como tal, verificados os requisitos necessários ao efeito, cominou-lhe o tribunal recorrido as apontadas sanções acessórias.
Ora, como ensina a esse propósito o Professor Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, págs. 157 e seguintes, depois de referir a confusão que reina entre a definição exata sobre o que sejam “penas acessórias” e “efeitos penais da condenação”, aquelas não podem traduzir-se em efeitos automáticos de qualquer condenação. Condição necessária, mas nunca suficiente, para uma sua aplicação é, desde logo, uma condenação numa pena principal. Para além deste requisito, torna-se também, sempre necessário, ainda, que o juiz comprove, no facto, um particular conteúdo de ilícito, que justifique materialmente a aplicação de uma tal sanção acessória.
Ainda na obra citada (páginas 177/178), o Professor Figueiredo Dias adverte para a circunstância de que a ratio da sanção acessória não se dirige à culpa que é possível vislumbrar na provada conduta do agente, antes se dirige às exigências de prevenção (segurança geral e individual) relacionadas com a personalidade do agente.
Como se anotou, também, no Acórdão da Relação de Évora, de 12 de março de 1998, in Coletânea de Jurisprudência, Ano XXIII, Tomo II, pág. 297, a interdição do direito de caçar não é automática, a sua aplicação “só se justifica quando a conduta do arguido permita concluir pelo fundado receio de voltar a praticar infrações idênticas”.
Ainda o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24-11-2004, processo 0442416, relator Brízida Martins, disponível em www.dgsi.pt, conclui que “A interdição do direito de caçar só se justifica quando a conduta do arguido leve a concluir que há fundado receio de voltar a praticar infrações idênticas.
No caso dos autos, se bem vemos as coisas, o tribunal recorrido não fundamentou minimamente as sanções acessórias aplicadas, como se entendesse que as mesmas eram mero corolário da pena principal aplicada.
A entender-se assim, evidente se nos antolha que a sentença proferida é nula, nos termos do disposto nos artigos 379.º, n.º 1, alínea) a e 389.º-A, n.º 1, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal.
Nestes termos, somos de parecer que se deve ordenar o reenvio do processo à 1.ª instância para prolação de nova sentença onde seja sanado tal vício, ficando assim prejudicadas as demais questões suscitadas.»

Foi cumprido o disposto no artigo 417º/2 do Cód. de Processo Penal, nada vindo a ser acrescentado no processo.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.

Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir.
*

II. APRECIAÇÃO DO RECURSO

O objecto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, devendo assim a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como é designadamente o caso das nulidades insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento (previstas expressamente no art. 119º do Cód. de Processo Penal e noutras disposições dispersas do mesmo código), ou dos vícios previstos no art. 379º ou no art. 410º/2, ambos do Cód. de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Acórdão do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995), podendo o recurso igualmente ter como fundamento a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada, cfr. art. 410º/3 do Cód. de Processo Penal.
São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – cfr. arts. 403º, 412º e 417º do Cód. de Processo Penal e, entre outros, Acórdãos do S.T.J. de 29/01/2015 (proc. 91/14.7YFLSB.S1)[1], e de 30/06/2016 (proc. 370/13.0PEVFX.L1.S1)[2]. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, ‘Curso de Processo Penal’, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

A esta luz, as questões a conhecer no âmbito do presente acórdão são as de apreciar e decidir sobre:
1. saber se a sentença proferida padece de nulidade por falta de fundamentação relativamente à aplicação da sanção acessória;
2. saber se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, nos termos do art. 412º/3 do Cód. de Processo Penal;
3. saber se as medidas concretas da pena de multa e da sanção acessória aplicadas ao arguido são excessivas.
Apreciemos então as questões suscitadas, pela ordem de prevalência processual sucessiva que revestem.
*
Comecemos por fazer aqui presente o teor da Sentença recorrida nas partes da mesma relevantes para a presente decisão, isto é, no que tange à matéria de facto considerada na mesma e à determinação das consequências penais no caso – tudo de acordo com a gravação da mesma sentença conforme documentada na supra aludida acta.

a. É a seguinte a matéria de facto considerada pelo tribunal de 1ª Instância:
«Factos provados:
– O arguido AA é titular de uma carta de caçador com o nº ...
– No dia 22/09/2022 pelas 11h30 o arguido AA deslocou-se para a Rua ..., em ..., com o propósito de caçar pombos.
– Para tal dotou-se de 1 espingarda de caça, marca “Browning”, calibre 12, pertencente à classe D onde apôs cartuchos.
– Uma vez chegado ao à Rua ... muniu a espingarda de caça marca “Browning”, calibre 12, pertencente à classe D e colocou-se em posição de disparar por detrás do veículo automóvel que aí se encontrava imobilizado.
– A Rua ... é um caminho agrícola de acesso a terrenos agrícolas composta por aglomerados populacionais.
– O arguido encontrava-se a cerca de 180 metros do aglomerado populacional mais próximo da Rua ..., sito na Travessa ..., ...,
– A posição onde se encontrava o Arguido AA fica a cerca de 120 metros de uma habitação sita na Rua ..., ...,
– O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito de exercer a actividade de caça em lugar onde sabia não o poder exercer, o que representou como possível, conformando–se com essa actuação,
– Sabia que se encontrava a caçar em lugar povoado numa faixa de protecção de 250 metros,
– Sabia ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Factos não provados:
Não se provou que o arguido tivesse querido exercer a caça nessa faixa de 250 metros e tenha concretizado essa vontade com dolo directo»

b. É como segue a apreciação efectuada pelo Tribunal de 1.ª Instância quanto à determinação das consequências penais no caso:
«Não se prova que o arguido tenha actuado com o conhecimento exacto, mas admitiu como possível essa distância [em causa na matéria de facto provada], pelo que actuou com dolo eventual.
O crime praticado pelo arguido é punível com pena de multa ou com pena de prisão.
O arguido não tem antecedentes criminais, tendo assim uma vida pautada pelo respeito pelo Direito.
Pelo que se opta por pena de multa.
Quanto à medida concreta da multa, fixa–se a mesma em 35 dias de multa, à taxa diária de €6,00, atendendo àquilo que se provou quanto à sua situação económica.
Assim sendo, julga–se a acusação procedente por provada, e decide–se condenar o arguido AA pela prática em autoria material de um crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas, previsto e punido pelo artigo 30.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 173/99, de 21.09, e artigo 2.º, alínea g) e j), da Lei n.º 173/99, de 21.09, e os 52.º, n.º 1, e 53.º, n.º 1, alínea b), ambos do Decreto-Lei n.º 202/2004, de 18.09, numa pena de 35 dias de multa, à taxa diária de €6,00.
Sendo certo que este tipo de crime prevê também dois tipos de sanções acessórias, uma delas é a indivíduo não identificado inibição do exercício da caça e a outra a perda dos instrumentos do crime, razão pela qual o tribunal determina a perda da arma apreendida e das munições a favor do Estado, e decide pela proibição do direito de caçar por três anos»

Analisemos então as questões suscitadas pelo recurso.

1. De saber se a sentença proferida padece de nulidade por falta de fundamentação relativamente à aplicação das sanções acessórias.

Impugna o arguido/recorrente a Sentença recorrida desde logo suscitando verificar–se na mesma uma total falta de fundamentação relativamente aos motivos e razões determinantes da decisão de aplicação das sanções acessórias de perda a favor do Estado da arma e das munições apreendidas ao arguido, e de proibição do exercício da caça.
Donde, suscita o recorrente que a decisão recorrida se mostra ferida de nulidade, por reporte aos arts. 379º/1/a) do Cód. de Processo Penal, o que pretende ver declarado.

Vejamos.
O artigo 205º/1 da Constituição da República Portuguesa consagra que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. Sublinhe-se que a necessidade de fundamentar as decisões judiciais é uma das exigências do processo equitativo, um dos Direitos consagrados no artigo 6º/1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem [3], na medida em que se traduz num elemento de transparência da justiça inerente a qualquer acto processual.
Aquele princípio constitucional encontra consagração nos termos do disposto no art. 379º do Cód. de Processo Penal, que prevê em especial os motivos pelos quais a sentença penal pode ser afectada de nulidade.
Ora, o nº1, alínea a) do citado art, 379º do Cód. de Processo Penal, comina de nula a sentença proferida em sede de processo sumário – isto é, na parte que aqui importa ponderar, atenta a forma processual dos autos – «não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A».

Na verdade, no caso importa ter presente q a Lei 26/2010, de 30 de Agosto, revogou o nº 6 do art. 389º do Cód. de Processo Penal que, em sede de processo sob a forma sumária, estipulava “A sentença é logo proferida verbalmente e ditada para a acta”, e aditou o art. 389º-A que tem por epígrafe “Sentença” e que dispõe agora o seguinte:
1- A sentença é logo proferida oralmente e contém:
a) A indicação sumária dos factos provados e não provados, que pode ser feita por remissão para a acusação e contestação, com indicação e exame crítico sucintos das provas;
b) A exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão;
c) Em caso de condenação, os fundamentos sucintos que presidiram à escolha e medida da sanção aplicada;
d) O dispositivo, nos termos previstos nas alíneas a) a d) do n.º 3 do artigo 374.º.
2- O dispositivo é sempre ditado para a acta.
3- A sentença é, sob pena de nulidade, documentada nos termos dos artigos 363.º e 364.º.
4- É sempre entregue cópia da gravação ao arguido, ao assistente e ao Ministério Público no prazo de 48 horas, salvo se aqueles expressamente declararem prescindir da entrega, sem prejuízo de qualquer sujeito processual a poder requerer nos termos do n.º 3 do artigo 101.º.
5- Se for aplicada pena privativa da liberdade ou, excepcionalmente, se as circunstâncias do caso o tornarem necessário, o juiz, logo após a discussão, elabora a sentença por escrito e procede à sua leitura”.
Ou seja, no tocante à sentença a proferir em processo sumário (assim como em processo abreviado, ao qual a disposição em causa é também aplicável por via da expressa remissão prevista no art. 391º–F do Cód. de Processo Penal), a regra passou a ser a de uma sentença oral e não uma sentença escrita, evidenciando–se o alargamento do princípio da oralidade, como princípio basilar do processo penal, agora extensível também à fase da sentença nestas formas de processo especiais.
E tal princípio da oralidade só cede perante particulares exigências, nos casos a que alude o nº 5, nos quais se continua a exigir que a sentença seja integralmente elaborada por escrito, nomeadamente - e para aquilo que aqui importa ponderar - se ao arguido for aplicada uma pena privativa da liberdade.

Retomando a nossa análise, sumariamente se dirá que o dever de fundamentação vem plasmado desde logo no art. 97º/4 do Cód. de Processo Penal, onde se estipula que «Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão», encontrando, como acaba de se enunciar, concretização reforçada no que tange às sentenças penais nos termos do disposto nos aludidos arts. 389º–A/1 e 379º/1/a) do Cód. de Processo Penal.
Como escreve o Conselheiro Oliveira Mendes (em “Código de Processo Penal Comentado”, 5ª edição, pág. 1168), essa fundamentação reforçada «visa, por um lado, a total transparência da decisão, para que os seus destinatários (aqui se incluindo a própria comunidade) possam apreender e compreender claramente os juízos de valoração e de apreciação da prova, bem como a actividade interpretativa da lei e sua aplicação e, por outro lado, possibilitar ao tribunal superior a fiscalização e o controlo da actividade decisória, fiscalização e controlo que se concretizam através do recurso, o que consubstancia, desde a Revisão de 1997, um direito do arguido constitucionalmente consagrado, expressamente incluído nas garantias de defesa - artigo 32º, nº1, da Constituição da República».
É na fundamentação da sentença, sua explicitação e exame crítico que se poderá avaliar a consistência, objectividade, rigor e legitimidade do processo lógico e subjectivo da formação da convicção do julgador, do mesmo passo se viabilizando a possibilidade de controlo da decisão, de forma a impedir a avaliação probatória caprichosa ou arbitrária e deve ser conjugada com o sistema de livre apreciação da prova.
Assim, a fundamentação da decisão deve obedecer a uma lógica de convencimento que permita a sua compreensão pelos destinatários, mas também pelo tribunal de recurso.
Essa lógica de convencimento e de possibilidade de controlo por via de recurso, porém, apenas se impõe na medida do necessário para a compreensão da decisão, da sua lógica intrínseca, de modo a que não possa apresentar-se como arbitrária ou injustificada – não porque o fosse, mas porque indemonstrada a sua justificação.

Aproximando–nos do caso dos autos, e começando pela concreta alegação, nesta parte, do arguido/recorrente, tenha–se presente que, no que em especial se refere à especificação dos fundamentos que presidiram à aplicação das consequências penais dos factos, esta se integra no aludido dever de fundamentação da decisão penal, imposto (no caso) na alínea d) do nº 1 do art. 389º–A do Cód. de Processo Penal.
Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 18/06/2013 (proc. 523/11.6PAPTM.E1)[4], «A fundamentação de direito da pena não se basta com a simples reprodução acrítica dos critérios legais de ponderação ou com meras afirmações doutrinárias aplicáveis a qualquer situação. A determinação da pena inclui a escolha da pena principal (nos casos de pena compósita alternativa), a determinação da medida concreta da pena principal, a ponderação da aplicação de pena de substituição (sempre que legalmente prevista para o caso), a escolha e medida desta, e por último, sendo também o caso, a consideração dos mecanismos previstos nos arts. 44º, 45º e 46º ».
Não se olvidando que, em sede de processo de natureza sumária, as alíneas b) e c) se referem apenas à necessidade de uma «exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão», e à indicação dos «fundamentos sucintos que presidiram à escolha e medida da sanção aplicada», certo será que ainda e sempre a ausência ou insuficiência (por inadmissível parcimónia) na elucidação dos motivos da aplicação da pena concretamente aplicada, configurará uma omissão dos fundamentos que alicerçam essa decisão, conduzindo à nulidade da sentença por falta de fundamentação.

In casu, temos que o arguido vem condenado, pela prática de um crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas, previsto e punido – nos termos expressos pelo dispositivo da sentença – «pelas disposições conjugadas dos artigos 30.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 173/99, de 21.09, 2.º, alínea g) e j), da Lei n.º 173/99, de 21.09, e os 52.º, n.º 1, e 53.º, n.º 1, alínea b), ambos do Decreto-Lei n.º 202/2004, de 18.09», na pena principal de multa, fixada em 35 dias à taxa diária de €6,00.
Além disso, vem ainda, sempre pela prática do mesmo crime, condenado, nos termos do artigo 35.º, n.ºs 1, 2, 3, 4 e 5, da mesma Lei 173/99, nas sanções acessórias de interdição do direito de caçar pelo período de 3 anos e a perda da arma e munições apreendidas, a favor do Estado.
Dispõe, na verdade, o agora citado art. 35º da Lei 173/99, de 21 de Setembro – Lei da Caça –, e na parte que aqui particularmente releva, o seguinte:
«Artigo 35.º
Sanções acessórias
1 - A condenação por qualquer crime ou contra-ordenação previstos nesta lei pode implicar ainda a interdição do direito de caçar e a perda dos instrumentos e produtos da infracção a favor do Estado.
2 - A interdição do direito de caçar pode ter a duração de três a cinco anos.
3 - A perda dos instrumentos da infracção envolve a perda das armas e dos veículos que serviram à prática daquela
Como, de forma clarividente, decorre da utilização do verbo “pode” no nº1 agora transcrito, estamos perante (mais) uma expressão do princípio plasmado no nº4 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa, de acordo com o qual «Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos
O que significa que, por princípio, a pena acessória não é um efeito automático da prática do crime que a prevê, porque tem que ser decretada numa sentença condenatória, dependendo a sua aplicação da verificação de pressupostos autónomos, em função de cada crime, da existência de uma moldura abstracta privativa e da valoração dos critérios gerais de determinação das penas criminais.
Ou seja, a pena acessória é aplicável ao agente imputável em cumulação com uma pena principal, dependendo desde logo de uma condenação nesta última ; porém, não é um efeito dessa pena (principal), mas antes uma consequência do crime – sendo por isso que também aqui as finalidades de prevenção geral e integração assumem o primordial lugar, enquanto as finalidades de prevenção especial de qualquer espécie apenas actuam no interior da moldura penal construída dentro do limite da culpa, mas na base daquelas primeiras.
Como escreve o Prof. Figueiredo Dias – em “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime”, ed. 1993, pág. 96 –, “continua a considerar–se que certos efeitos jurídicos da condenação desempenham uma função preventiva adjuvante da pena principal, de que o sistema penal não pode, ou não quer, prescindir ; e, na verdade, e uma função preventiva que não se esgota da intimidação da generalidade, mas se dirige também, ao menos em alguma medida, à perigosidade do delinquente”, sendo necessário, para a sua aplicação, «que o tribunal comprove, no facto, um particular conteúdo do ilícito, que justifique materialmente a aplicação em espécie, da pena acessória» – ob. citada, pág. 197.
Porque se trata de uma pena, ainda que acessória, a determinação da sua medida deve operar-se de acordo com os critérios gerais utilizados para a fixação da pena principal.
Ou seja, deve ter–se desde logo presente que também aqui, e como impõe genericamente o art. 40º do Cód. Penal, as finalidades das penas são a protecção de bens jurídicos e a socialização do agente do crime, determinando-se que a culpa constitui o seu limite.
Depois, como factores de escolha e graduação da pena concreta há a considerar os parâmetros do art. 71º do Cód. Penal – com a ressalva, como melhor veremos de seguida, de que a finalidade a atingir pela pena acessória tem sobretudo em vista prevenir uma determinada específica perigosidade do agente revelada pela sua conduta, ainda que se lhe assinale também um efeito de prevenção geral.
Apesar da identidade dos critérios base a que se recorre para definição da medida concreta, quer da pena principal, quer da pena acessória, haverá que ter em conta a natureza e as finalidades próprias desta última, por forma a que a pena acessória aplicada em concreto se mostre ajustada às suas finalidades específicas.
A pena acessória tem uma função preventiva adjuvante da pena principal, constituindo uma censura adicional pelo facto praticado pelo agente, mas do mesmo passo o que se procura com a mesma é prevenir a perigosidade imanente à norma incriminadora, e, assim, reforçar e diversificar o conteúdo penal sancionatório da condenação.
Assim, e para justificar a aplicação também de uma pena acessória em caso de condenação por crime cuja previsão estipule tal possibilidade, é essencialmente necessário ter desde logo em especial atenção a natureza dos factos e do ilícito – ou seja, dos valores jurídico–penais cuja tutela é demandada – e, nessa perspectiva, aquilatar sobre se na conduta do agente de tais factos se vislumbrem exigências de prevenção – relacionadas desde logo com a personalidade do mesmo e a prognose sobre o seu comportamento futuro que dela seja possível extrair – que imponham tal cominação adicional.
No que em particular tange ao crime aqui em equação, é quase auto–explicativo o que está em causa na previsão e punição do crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas. Mas dúvidas existam, e nomeadamente as alíneas a) e b) do art. 3º da Lei 173/99 encarregam–se de especificar que «Os recursos cinegéticos constituem um património natural renovável, susceptível de uma gestão optimizada e de um uso racional, conducentes a uma produção sustentada, no respeito pelos princípios da conservação da natureza e dos equilíbrios biológicos, em harmonia com as restantes formas de exploração da terra», e que «A exploração ordenada dos recursos cinegéticos, através do exercício da caça, constitui um factor de riqueza nacional, de desenvolvimento regional e local, de apoio e valorização do mundo rural, podendo constituir um uso dominante em terrenos marginais para a floresta e agricultura».
Ora, em caso de condenação pela prática de um crime desta natureza, será de condenar o arguido, além de numa pena principal, numa das sanções acessórias (ou em ambas) previstas, sempre que a partir do modo de execução dos factos e tendo em conta a personalidade daquele, se conclua que tal(is) medida(s) se revelam necessárias para acautelar o risco da reiteração de factos similares.
Como se nota no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24/11/2004 (proc. 0442416)[5], “A interdição do direito de caçar só se justifica quando a conduta do arguido leve a concluir que há fundado receio de voltar a praticar infrações idênticas».
Assim sendo, e em cumprimento do dever de fundamentação da decisão penal que acima vimos imposto, também com relação à aplicação de qualquer das sanções acessórias aqui em causa deverá o tribunal especificar os motivos que justificam a sua decisão nessa parte.
O que, na conduta e personalidade do arguido, denota a necessidade de acautelar os perigos de reiteração com a aplicação das mesmas? Trata–se de uma conduta persistente ou reiterada?, levada a cabo de forma ostensiva e particularmente temerária no desrespeito objectivo dos valores aqui em causa? A personalidade do agente é particularmente avessa ou imune aos mesmos valores? Ou verifica–se qualquer outro factor a ter aqui em consideração que determine uma tal decisão?
Pois bem, percorrida (ouvida) a Sentença ora impugnada, facilmente se constata que a mesma não se revela, de todo, minimamente proficiente no que tange à enunciação de quaisquer considerações que no caso concreto permitam compreender os fundamentos da decisão nesta parte.
Em bom rigor, e em quanto se reporta mais directamente à aplicação das aludidas sanções acessórias, a primeira instância, como acima se verificou, limita–se a, já em sede de enunciação da parte do dispositivo da Sentença (pese embora a formatação escrita mais esquemática deste último segmento plasmada na acta), comunicar que as sanções em causa são aplicáveis no caso e que por isso as aplica – e logo ambas – ao arguido.
Nada mais.
Ou seja, decorre do teor da decisão recorrida que o tribunal apreciou e decidiu como se a aplicação das aludidas sanções acessórias fosse uma consequência automática imposta legalmente em qualquer caso – o que, vimos já, não se mostra conforme com o regime aqui legalmente aplicável.
Donde, e na contemplação das considerações que vêm de se efectuar, não se suscitam dúvidas de que a decisão recorrida mostra–se na verdade absolutamente omissa no que tange ao cumprimento da exigência de fundamentação que aqui se mostra necessária.
Em momento algum da mesma Sentença se alude às razões ou motivos que justificam a necessidade de aplicar a este arguido qualquer das sanções acessórias aqui em causa, tornando assim inviável a compreensão dos fundamentos de tal decisão e o escrutínio da oportunidade e adequação da mesma no caso concreto.

O que nos conduz directa e imediatamente a uma outra vertente de análise (além da expressamente invocada no recurso) da qual decorre igualmente mostrar–se a sentença proferida nos autos ferida de nulidade.
Sendo de referir, como nota prévia, que o vício em causa é susceptível, nesta sede, de conhecimento e apreciação oficiosa pela instância de recurso. Como escreve o Cons. Oliveira Mendes em “Código de Processo Penal Comentado”, ed. 2014, pág. 183, «Quanto ao seu conhecimento pelo tribunal de recurso a lei, mediante a alteração introduzida em 1998, com o aditamento [ao artigo 379º do Cód. de Processo Penal] do nº 2, estabelece que “as nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso”, o que não pode deixar de significar que o tribunal de recurso, independentemente de arguição, está obrigado a conhecê-las. A letra da lei é unívoca: «as nulidades da sentença devem ser... conhecidas em recurso». Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Outubro de 2010, proferido no Processo nº 70/07.0JBLSB.L1.S1, as nulidades da sentença, conquanto não sejam insanáveis, uma vez que não incluídas nas nulidades previstas no artigo 119º, do CPP, são cognoscíveis em recurso, mesmo que não arguidas, visto que as nulidades da sentença enumeradas no artigo 379º, nº 1, têm regime próprio e diferenciado do regime geral das nulidades dos restantes actos processuais. Aliás, nem poderia ser de outra forma, sob pena de o tribunal de recurso, na ausência de arguição, ter de confirmar sentenças sem qualquer fundamentação, violadoras do princípio do acusatório e mesmo sem dispositivo. A não serem as nulidades da sentença susceptíveis de conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso, passaríamos a ter decisões, quer absolutórias quer condenatórias, eivadas de vícios e de anomias, algumas inexequíveis, apesar de sindicadas por tribunal superior.».
Pois bem.
Como acima se enunciou já, decorre do disposto na alínea a) do art. 389º–A do Cód. de Processo Penal, que a sentença proferidas em processo sumário deve conter desde logo «A indicação sumária dos factos provados e não provados, que pode ser feita por remissão para a acusação e contestação, com indicação e exame crítico sucintos das provas».
A enumeração, em sede de decisão recorrida – e isto independentemente da forma do processo que esteja em causa –, dos factos provados e não provados revela quais os factos que foram efectivamente considerados e apreciados pelo tribunal e sobre os quais recaiu um juízo probatório.
Por seu lado, em face do disposto no art. 368º/2 do Cód. de Processo Penal, a enumeração dos factos provados e dos factos não provados traduz-se na tomada de posição por parte do tribunal sobre todos os factos sujeitos à sua apreciação e sobre os quais a decisão terá de incidir, isto é, sobre os factos constantes da acusação ou da pronúncia, da contestação e do pedido de indemnização, e ainda sobre os factos com relevância para a decisão que, embora não constem de nenhuma daquelas peças processuais, tenham resultado da discussão da causa – resultando do nº 4 do art. 339º do Cód. de Processo Penal que a discussão da causa tem exactamente por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência.
No fundo, a enumeração dos factos provados – e não provados – a integrar a fundamentação que obrigatoriamente deve constar na sentença, seja qual for a forma do processo em causa, traduz-se na tomada de posição por parte do tribunal sobre todos os factos sujeitos à sua apreciação e em relação aos quais a decisão terá de incidir.
Quanto ao critério de acordo com o qual deve aferir–se se determinado facto é ou não relevante para a decisão da causa, temos desde logo o vislumbre do mesmo no art. 124º/1 do Cód. de Processo Penal, onde se prevê que «Constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis» –complementando o nº2 que «Se tiver lugar pedido civil, constituem igualmente objecto da prova os factos relevantes para a determinação da responsabilidade civil».

Ora, no presente caso, e percorrido o elenco da fundamentação de facto da sentença recorrida, facilmente se constata que o mesmo não alude nem elenca quaisquer factos relativos ao percurso de vida e às condições pessoais e sócio–económicas do arguido – sendo que alguns, aliás, se mostram expressamente alegados inclusive em sede da contestação oportunamente apresentada nos autos.
Pese embora, por exemplo, mais adiante na mesma sentença o tribunal aluda a que o arguido «não tem antecedentes criminais» ou «àquilo que se provou quanto à sua situação económica», a verdade é que do elenco da matéria de facto provada nada consta quanto a tal aspecto, nem a qualquer outro que, imanente da situação pessoal do arguido, possa contribuir para, muito em especial, permitir apreciação dos parâmetros em que, de acordo desde logo com o art. 71º do Cód. de Processo Penal, deve assentar a concretização das consequência penais a aplicar ao arguido.
É verdade – não se ignora – que atenta a fixação, no caso, da pena criminal principal de multa numa medida concreta que corresponde praticamente ao mínimo da moldura penal aplicável, a questão ora suscitada nem assumirá uma relevância grandemente substancial quanto à determinação de tal pena.
Porém, como gritantemente decorre do que já acima fica exposto, já assim não será no que tange à aplicação (ou não) das penas acessórias aqui aplicáveis, e/ou à determinação da medida temporal concreta pelo menos de uma delas (se aplicada).
Considera–se, pois, que a sentença recorrida padece também de omissão de fundamentação de facto nos termos das disposições conjugadas dos arts. 389º–A/1/a) e 379º/1/a) do Cód. de Processo Penal, o que é igualmente motivo da sua nulidade.

Note–se bem que, se é verdade – como acima se recordou já – que em face da especial forma sumária do presente processo, as exigências de fundamentação agora em causa podem traduzir–se na «indicação sumária dos factos provados e não provados», e numa «exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão» e dos «fundamentos sucintos que presidiram à escolha e medida da sanção aplicada», não menos certo é, como se advertiu, que tal não traduz, de todo, um sinónimo de tolerância de um exercício de fundamentação insuficiente ou, mais grave, completamente omisso dos motivos e fundamentos da decisão na parte da cominação penal.
A imposição do dever de fundamentação não depende da forma escrita ou oral da sentença proferida, podendo verificar–se em qualquer das duas modalidades – ainda que no segundo caso possa traduzir–se num elenco sucinto ou conciso de motivos e razões que consubstanciem aquela primeira.
Concisão e síntese não significam dispensa ou ausência.
Donde, e na mesma exacta medida de gravidade quanto às consequências do respectivo desrespeito, as exigências de conteúdo da sentença impostas no art. 379º/1 do Cód. de Processo Penal se aplicam independentemente da forma que a mesma sentença assuma.

No caso, pois, considera–se na verdade que, neste aspecto em particular, a decisão condenatória recorrida padece de omissão de fundamentação por falta de indicação quer de matéria de facto relativa às condições pessoais e sócio–económicas do arguido, quer dos motivos de facto e de direito em que assentou a aplicação das sanções penais cominadas, indicação essa que se impõe nos termos das alíneas b) e c) do nº1 do art. 389º–A do Cód. de Processo Penal.
E, consequentemente, a decisão em causa é nula, nos termos expressos no supra citado art. 379º/1/a) do Cód. de Processo Penal.

No que tange às consequências processuais de tal nulidade agora verificada, é verdade que do nº 2 do art. 379º do Cód. de Processo Penal – de acordo com a redacção introduzida pela Lei 20/2013, de 21 de Fevereiro –, decorre que o tribunal de recurso pode levar a cabo o suprimento das nulidades da sentença recorrida.
Porém, o exercício de tal poder/dever de suprimento pelo Tribunal da Relação impõe um prévio juízo de cautela processual, por forma a evitar uma situação de supressão de um grau de jurisdição, e o desrespeito do princípio do contraditório e do direito de defesa quanto à questão concreta em equação no caso – situação para que alerta designadamente Paulo Pinto de Albuquerque, no seu “Comentário ao Cód. de Processo Penal à luz da CRP e da CEDH”, ed. 2007, pág. 948 (onde, aliás, exprime uma interpretação acentuadamente restritiva do âmbito de aplicação do poder/dever de suprimento pela segunda instância, previsto no nº2 do art. 379º do Cód. de Processo Penal, limitando–o aos casos de nulidade por excesso de pronúncia verificada nos termos da alínea c) do nº1 do mesmo art. 379º/1.
Ora, no presente caso julga–se que deverá ser antes de mais o tribunal recorrido a suprir os vícios em causa:
elencando matéria de facto (que tenha por provada ou por não provada) relativa ao percurso de vida, e condições pessoais e sócio–económicas do arguido, nomeadamente (mas não só) aqueles nesse contexto elencados em sede de contestação,
– e apreciando e decidindo, de forma devidamente fundamentada, sobre a aplicação das sanções penais acessórias, em causa,
cumprindo assim integralmente o disposto no art. 389º–A/1/a)b)c) do Cód. de Processo Penal – permitindo a jusante o escrutínio, desde logo pelos sujeitos processuais, dessa decisão.

Assistindo desde logo razão ao recorrente neste concreto segmento, ficam prejudicadas as demais questões suscitadas no presente recurso, e que não serão assim objecto de apreciação.
*

III. DECISÃO

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em declarar a nulidade da sentença sob recurso, devendo o tribunal recorrido proferir nova sentença que, nos termos acima indicados, obedeça integralmente ao normativo do art. 389º-A/1/a)b)c) do Código de Processo Penal.

Sem custas.
*
Porto, 8 de Março de 2023
Pedro Afonso Lucas
Maria do Rosário Martins
Lígia Trovão

(Texto elaborado pelo primeiro signatário como relator, e revisto integralmente pelos subscritores – sendo as respectivas assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo da primeira página)
_____________________
[1] Relatado por Nuno Gomes da Silva, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[2] Relatado por Arménio Sottomayor, acedido em https://www.stj.pt
[3] Onde se consigna nomeadamente que «Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela.».
[4] Relatado por Ana Barata Brito, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf
[5] Relatado por Brízida Martins, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf