Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
625/20.8T8AVR-H.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALBERTO TAVEIRA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
Nº do Documento: RP20240220625/20.8T8AVR-H.P1
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O apelante deverá fixar o objecto do recurso de alteração da matéria de facto, pois que em caso contrário é manifestamente inócua qualquer discussão e decisão quanto a tal alteração da matéria de facto.
II – A exoneração do passivo restante é um instituto que é aplicável aos devedores singulares com o fito de dar uma oportunidade de começar de novo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º[1] 625/20.8T8AVR-H.P1
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Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo de Comércio de Aveiro - Juiz 1



RELAÇÃO N.º 105
Relator: Alberto Taveira
Adjuntos: Alexandra Pelayo
João Diogo Rodrigues
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

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I - RELATÓRIO.

AS PARTES


         Insolvente: A..., S.A.

         Administrador de Insolvência: AA.


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Nos[2] autos de insolvência que correm termos neste Juízo, sob o n.º 625/20.8T8AVR, relativos a A..., S.A., foi proferida a sentença, onde se declarou a insolvência da supra identificada sociedade, ao abrigo das disposições do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas [doravante designado por CIRE].

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Em cumprimento do disposto no art. 188.º do CIRE, o administrador da insolvência emitiu parecer no sentido da qualificação da insolvência como culposa com fundamento no art. 186.º, n.º 1, n.º 2, als. a) a i), e n.º 3, als. a) e b), do citado diploma, indicando, inicialmente, como pessoas a afetar a gerente da sociedade insolvente, BB e CC, enquanto administradores da devedora [cfr. Parecer junto a 17.06.2023].

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O MINISTÉRIO PÚBLICO, aderindo ao parecer apresentado pelo Administrador da Insolvência, pronunciou-se pela qualificação da insolvência como culposa, com fundamento no art. 186.º, n.º 1, n.º 2, als. a) a i), e n.º 3, als. a) e b) do CIRE, indicando como pessoas a afetar a gerente da sociedade insolvente, BB e CC, enquanto administradores da devedora.

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Notificada a insolvente A..., S.A. para os termos do incidente e citadas as pessoas indicadas pelo Administrador da Insolvência e pelo Ministério Público sobre as quais deveriam repercutir-se os efeitos da qualificação da insolvência como culposa, aos administradores da sociedade insolvente, BB e CC, vieram estes deduzir oposição, pugnando pela qualificação da insolvência como fortuita [cfr. Oposição junta a 25.07.2022].

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Findos os articulados, foi proferido despacho-saneador, tendo sido, designadamente, decidida a questão relativa à alegada extemporaneidade do parecer apresentado pelo Administrador da Insolvência, fixado o objeto do processo, definidos os temas da prova e designadas datas para a realização da Audiência Final [cfr. despacho proferido a 28.09.2022].

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Foi realizada Audiência Final.

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DA DECISÃO RECORRIDA

Após produção de prova testemunhal, foi proferida SENTENÇA nos seguintes termos:

A. Qualificar como culposa a insolvência da sociedade A..., S.A.;

B. Julgar afetado pela qualificação o requerido CC;

C. Declarar o requerido CC inibido para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de 3 anos.

D. Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelo requerido CC e condená-lo na restituição de quaisquer bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;

E. Condenar o requerido CC a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, correspondente ao valor dos créditos reconhecidos deduzido do montante que vier a ser pago no âmbito do processo da insolvência, até às forças do respetivo património; e

F. Absolver o requerido BB.

G. Custas pelo requerido CC, porque vencido, fixando a taxa de justiça no mínimo legal [cfr. art. 527.º do Código de Processo Civil], aplicável ex vi art, 17.º, n.º 1, do CIRE].“.


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DAS ALEGAÇÕES

O afectado CC, vem desta decisão interpor RECURSO, acabando por pedir o seguinte:

Nestes termos, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida e substituída por outra que indefira o despacho de exoneração do passivo restante.“.


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O ora recorrente apresenta as seguintes CONCLUSÕES:

a. Não pode o recorrente, com o devido respeito, concordar com a douta sentença que qualifica a insolvência como culposa, afetando o seu gerente (ora recorrente, CC).

b. Manifesta, assim, o recorrente, discordância quanto à sentença recorrida, numa dupla vertente (sobre a decisão de facto e sobre a decisão de direito).

c. Entende o recorrente que a prova documental junta aos autos não foi tida em consideração pelo tribunal a quo, a qual, conjuntamente com a declarações, quer do recorrente, quer da testemunha DD poderiam e deveriam a concluir por factos não provados.

d. No que concerne à decisão de direito a mesma enferma, com o devido respeito, de uma errada interpretação e aplicação das regras previstas em direito, nomeadamente quanto aos requisitos para a insolvência ter sido considerada como culposa.

e. Face às declarações do recorrente e à prova documental junta aos autos não poderiam ter sido dados como provados os seguintes factos:

Facto 9 – dado que não foi abatido o valor de 89 mil euros pago através da venda de património pessoal do recorrente, conforme referido nos artigos 36.º a 38.º;

Facto 10 – o valor dos mútuos não corresponde à quantia de 2.015.282,25€, tendo o recorrente explicando os valores dos mútuos através de prova documental (não resulta do parecer , nem da douta sentença, nem de qualquer declaração / depoimento , motivos para justificar o valor de 2.0153.282,25€);

Facto 11 - corresponde parcialmente à verdade, apenas na parte que refere : “ A sociedade B..., S.A. foi constituída com o intuito de adquirir as participações sociais dos acionistas, EE e filhos, FF e Filha, tendo recorrido para tal ao financiamento indireto da sociedade A..., S.A.; o restante deve ser dado como não provado;

Facto 12 – não debitou os juros de 2019 por esquecimento do TOC e, em 2020 porque não tinha contabilista ao serviço;

Facto 13 – é correto, mas deveria constar:

 Janeiro a setembro de 2017: valor mensal de 24.000 EUR + IVA

 Outubro de 2017 a julho de 2018: valor mensal de 12.000 EUR + IVA

 Agosto de 2018 a dezembro 2018: não foi cobrado qualquer valor

 Janeiro a dezembro 2019: valor mensal de 6.000 EUR + IVA

E sobretudo que em entre janeiro de 2020 a setembro 2020: não foi cobrado qualquer valor.

Factos 15 e 16 – saídas para a B... não corresponde o valor do quadro, com o valor inserto no ponto 16.

Facto 18 - não são aceites pelo recorrente esses valores (tão certos), aliás, o que recorrente confessa nas suas declarações são os valores constantes das reclamações de créditos, quer da Autoridade Tributária, quer da Segurança Social; também aqui deveria constar que foram feitos planos de pagamento, quer com a Autoridade Tributária, quer com a Segurança Social;

Facto 24 – não provado, dado que conforme supra referido a IPI até é devedora a A...;

Facto 26 - não provado, não só porque o empréstimo no valor de 29 mil euros foi em 2016, como se mostra esclarecido que o valor de 114.124,82 não corresponde à verdade (é apenas uma mera inscrição contabilística);

Facto 30 – não foram diversas vezes que o contabilista pediu esclarecimentos, conforme referido, o documento 28 são apenas 4 emails;

Facto 31 – não provado (a contrário) – foi possível apurar a quantia e os concretos montantes retirados da esfera jurídico patrimonial da insolvente para a esfera jurídico patrimonial da C...;

Facto 33 – apesar de provado, não deve ter relevância dado que o empréstimo ocorreu em 2016;

Facto 34 .- não provado ,todos os empréstimos têm documentos de suporte;

Facto 41 – não corresponde à realidade, não provado, dado que o recorrente explicou que esta era a única forma de contabilizar os movimentos;

Facto 45 - Deveria ainda constar como provado que a sociedade Insolvente deixou de pagar por conta desta sociedade ao banco Banco 1... no valor de 183.094,96€;

Facto 57 – não está provado que o Recorrente tivesse criado a convicção nos clientes de que ao efetuar os pagamentos para as contas bancárias que identificava estariam a efetuar pagamentos à insolvente (com o devido respeito é uma conclusão da Mma Juiz); – o que foi admitido pelo recorrente foi que indicou um novo IBAN, mas explicou o motivo;

Facto 60 – não foi qualquer valor para a conta da C...;

Facto 61 e 63 – não provados conforme referido supra, nos artigos 132 a 139;

Facto 70 – não provado, com o devido respeito, o Sr. Administrador é que não logrou provar que informações em concreto ou que documentos foram respondidos / dados pelo recorrente.

f. Acresce que, deveria ter sido dado como provado o facto constante do ponto D dos factos não provados.

g. Efetivamente, resultou provado que o valor da venda do empilhador serviu para pagar a trabalhadores conforme alegado supra (artigos 151.º a 159.º ) pelo que deve ser este facto ser considerado provado.

h. Tudo conforme, essencialmente, decorreu do depoimento e declarações do recorrente e da testemunha (contabilista) DD e ainda,

8. Dos documentos juntos pelo recorrente que pretende que sejam instruídos com o presente recurso ( Oposição ao parecer do Sr. Administrador de Insolvência junta ao processo em 25.07.2022 – requerimento com a ref.ª n.º 13312081; Requerimento do Recorrente datado de 26.01.2023, com a ref.ª n.º 14068173; Requerimento do Recorrente datado de 30.01.2023, com a ref.ª n.º 14081640; Requerimento do Recorrente datado de 27.02.2023 com ref.ª 14215173; Requerimento do Recorrente datado 27.02.2023, com a ref.ª 44846716; Requerimento do Recorrente datado de 10.03.2023, ref.ª 14280009 e Requerimento do Recorrente datado de 10.01.2023, com a referência 13985033.

i. Assim, entende o Recorrente que deverá ser alterada a fundamentação de facto da sentença em conformidade com o que resulta supra exposto, dando como NÃO PROVADOS os FACTOS constantes dos pontos 9, 10, 11, 12, 13, 15, 16, 18, 24, 26, 30, 31, 33, 34, 41, 45, 49, 57, 60, 61, 63, 70 quais teriam de merecer resposta NEGATIVA no sentido de NÃO PROVADOS, e dando como PROVADO o FACTO constante dos pontos d. o qual teria de merecer resposta POSITIVA no sentido de PROVADO, pela valorização adequada dos depoimentos das testemunhas e da prova documental.

j. Já quanto à matéria direito, entende o recorrente logrou provar, conforme se disse não só pelas suas declarações como através da prova documental que ,não só dispôs de bens em proveito pessoal ou de terceiros, como não fez do crédito ou dos bens da devedora um uso contrário ao interesse da sociedade insolvente (muito menos em proveito pessoal), nem favoreceu outras empresas nas quais tinha interesses diretos e/ ou diretos .

k. Quanto aos juros, com o devido respeito os juros de 2020 não foram debitados porque, nesse ano, conforme referido e conforme facto provado número 66 o contabilista suspendeu o seu contrato de trabalho.

l. Quanto ao empréstimo da C..., o recorrente explicou e provou documentalmente que relativamente ao empréstimo no valor de 29.000,00€ à C... o mesmo está relacionado com parte das prestações suplementares acordadas entre os sócios. (documento n.º 9 junto com a oposição)

m. Quanto ao empréstimo à sociedade A... com sede na Holanda, foi feito em 2016, conforme declarações do recorrente ( apesar de estar na contabilidade em 2019)

n. Quanto ao empréstimo à sociedade do DUBAI, o recorrente explicou que o empréstimo no valor de 49.405,37€ diz respeito a valores necessários à atividade da A... ME e ao gerente GG, entregues diretamente a este, para pagamento de salários, entre outras despesas, uma vez que a A... ME não reunia as condições necessárias para abertura de uma conta bancária no Dubai ( tal como resulta das suas declarações, no Dubai para abrir uma conta era exigido que o primeiro depósito fosse de cerca dos 50.000 EUR, pelo que para o pagamento dos salários e despesas, foram feitas transferências a título de empréstimo com a intenção de no futuro virem a ser registadas como suprimentos).

o. Quanto às guias de transporte (fornecimentos à C...) o recorrente explicou nas suas declarações de 13.04.2023 e também com a prova documental junta que muitas guias até eram só de assistência e não de entrega efetiva de material !

p. O recorrente admitiu que recebeu alguns valores das faturas emitidas pela sociedade C..., mas provou o que fez com esses recebimentos , como pagamentos a trabalhadores da Insolvente.

q. Quanto aos alegados fornecimentos à sociedade da Holanda, o recorrente explicou que as transferências desde novembro 2017 a maio 2018 dizem respeito a valores transferidos para resolver compromissos da D... NL com fornecedores e pessoal.

r. Além disso, o gerente desta sociedade foi o Sr. HH (que assumiu a gerência da sociedade em setembro 2017)

s. Quanto à sociedade no Dubai e o pagamento ao SR GG com o devido respeito, o Sr. GG teria que receber para trabalhar, assim como tinha que ser pago o local onde laborava a sociedade!

t. Quanto à sociedade E... , as saídas de valores também foram provadas pelo recorrente

u. Quanto à sociedade F..., também explicou o recorrente que durante os últimos anos como a A... , não estava a pagar à B... , os Management Fees, não tinha qualquer salário, e por esse motivo, a F... recebeu dinheiro da A... para pagar o salário do recorrente uma vez que , à data das alegadas saídas, não tinha qualquer fonte de rendimento ,

v. Quanto à venda de bens na OLX (não foi venda de bens, foi apenas um empilhador) o recorrente explicou e justificou documentalmente onde foi utilizado o produto da venda do empilhador.

w. Quanto ao recebimento de valores que eram devidos pela sociedade insolvente, nas contas da B..., S.A., da C..., LDA. e na própria conta pessoal do recorrente, conforme se disse, os clientes pagaram para as contas ,numa fase inicial para a conta pessoal do recorrente, depois para a conta da B... e depois novamente para a conta pessoal do recorrente

x. Nunca foi enviada qualquer comunicação do recorrente a indicar uma conta da C..., LDA.

y. O que aconteceu em relação à sociedade C..., LDA foi que em determinado momento, conforme explicou o recorrente e está provado documentalmente, a C..., LDA serviu como intermediária nos negócios face aos constrangimentos nas contas bancárias na insolvente.

z. E se é verdade que as faturas da C..., LDA tinham (algumas delas) o NIB da conta pessoal do recorrente, este explicou para onde foram os valores, através de prova documental junta ao processo !

aa. Quanto às obrigações fiscais, esclareceu o recorrente não só que após a saída do contabilista ( em abril de 2020) não foi possível cumprir com as obrigações fiscais, como explicou que as contas foram aprovadas, só não foram depositadas na Conservatória (o que, com o devido respeito, é um mero formalismo!):

bb. Quanto ao dever de colaboração, com o devido respeito, a sentença refere de forma simplista que o Recorrente não deu todas as informações ao Sr. Administrador Judicial.

cc. No entanto, não é isso que resulta provado , não só pelas declarações do recorrente (que referiu que forneceu todas as informações, que esteve presente nas reuniões, que respondeu aos emails) como da prova documental junta na oposição.

dd. No que ao DEVER DE APRESENTAÇÃO À INSOLVÊNCIA diz respeito, não podemos olvidar que a douta sentença à quo dá como provados os factos 75, 76 e 77 ( em clara contradição com o alegado incumprimento do dever de apresentação à insolvência).

ee. o recorrente sempre fez de tudo para evitar a insolvência da sociedade.

ff. Conforme resulta provado, ( facto 74) a sociedade insolvente sempre foi um dos principais fabricantes de referência do sector de iluminação, tendo como estratégia o investimento contínuo em equipamentos produtivos de última geração por forma a garantir a competitividade dos seus produtos.

gg. Infelizmente, o sector sofreu, desde 2010, várias mudanças tecnológicas e que se traduziram na adoção de modelos de negócios totalmente novos.

hh. no período de 2016 a 2020, a insolvente tentou alargar mercados, nomeadamente com o reforço da equipa comercial e a criação de duas subsidiárias, uma na Holanda e outra nos Emirados Árabes Unidos.

ii. Daqui surge a constituição das sociedades D... NL BV e G....

jj. Para além da constituição dessas sociedades, a Insolvente tentou também angariar investidores como forma de financiamento, mas dada a baixa atratividade do mercado tal não foi possível.

kk. Tentou igualmente, e em paralelo, renegociar as linhas de financiamento com as principais instituições financeiras com as quais trabalhava, tendo obtido respostas negativas por parte da banca espanhola.

ll. Em julho de 2018 contratou os serviços de uma empresa especializada em consultoria de gestão, com o objetivo de preparar um Plano de Recuperação.

mm. O recorrente corrobora a posição que têm sido adotadas pela maioria da jurisprudência e da doutrina, ou seja, que não basta requerer o incidente de qualificação de culposa sem a devida fundamentação, antes sim, exige-se prova cabal do que se invoca, mormente na junção de documentos que se mostrem imprescindíveis à descoberta da verdade material.

nn. O recorrente explicou que foram encetados esforços para apresentação da sociedade a PER.

oo. Mesmo após a declaração de insolvência o recorrente CC ainda tinha diversas encomendas que concretizou e o valor entrou para a conta da Massa Insolvente.

pp. Todos os esforços foram feitos no sentido de ser previamente evitada a insolvência e, após a sentença, manter a atividade da empresa.

qq. deverá atender-se a toda a factualidade exposta e vertida nos presentes autos, da qual não decorre a culpabilidade, os danos e o nexo de causalidade entre a conduta praticada e a situação de insolvência.

rr. A presunção de culpa grave prevista no n.º 3 do CIRE corresponde a uma mera presunção júris tantum, pelo que pode ser afastada de a matéria de facto resultarem factos que afastem a existência de culpa grave

ss. E, no caso em apreço, salvo melhor opinião, foi ilidida tal presunção, inexistindo os pressupostos fácticos em que assenta tal responsabilidade – ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade.

tt. Mal andou a sentença recorrida pois, por um lado, olvidou que o ónus da prova da existência de danos cabe aos interessados na qualificação da insolvência como culposa, não sendo exigível ao recorrente a prova de que tais danos não existiram - Ac. Rel. De Guimarães, de 14.6.2006, Proc. 751/06, 1ª’ Secção.

uu. Desta forma, a douta sentença recorrida fez errada interpretação do disposto no art. 186° do CIRE, preceito que por isso se mostra violado.

vv. Entende o Recorrente que cabia ao Sr. Administrador, na qualidade de requerente da qualificação da insolvência a demonstração do nexo de causalidade entre a situação que a empresa apresentava à data da declaração de insolvência e a que poderia existir se a recorrente tivesse requerido a apresentação à insolvência – tal prova não foi por qualquer forma efetuada.

ww. Já quanto à OBRIGAÇÃO DE ELABORAR AS CONTAS E DE AS DEPOSITAR NA CONSERVATÓRIA DO REGISTO COMERCIAL,

xx. Defendeu o Sr. Administrador que os requeridos incumpriram a obrigação de elaborar, apresentar e depositar contas no prazo legal, visto não depositarem as respetivas contas na Conservatória do Registo Comercial desde 2016.

yy. no caso, os documentos de prestação de contas da insolvente não foram elaborados, assinados e depositadas pelos gerentes desde 2016, assume-se que os requeridos, na qualidade de gerentes da insolvente, violaram a obrigação prevista no aludido art. 65.º do Código das Sociedades Comerciais, preenchendo a presunção de culpa grave a que se reporta a alínea b) do n.º 3 do art. 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

zz. No entanto, tal facto não deve determinar a qualificação da insolvência, desde logo porque a não aprovação e apresentação das contas é imputável à negligência do respetivo contabilista;

aaa. No que respeita à inexistência de nexo de causalidade entre o incumprimento da obrigação de elaborar, apresentar e depositar contas e a situação de insolvência, dissemos já perfilhamos do entendimento de que o n.º 3 do art. 186.º se não limita a estabelecer uma presunção de culpa grave, acarretando ainda a presunção da existência de um nexo causal entre o facto culposo e a criação ou agravamento da situação de insolvência.

bbb. Tem que ser uma irregularidade com algum relevo, segundo as boas regras e práticas contabilísticas, e tem, simultaneamente, que ser uma irregularidade com influência na perceção que uma tal contabilidade transmite sobre a situação patrimonial e financeira do contabilizado.

ccc. Assim, a falta de elaboração, apresentação e depósito das contas impostas por lei não traduz o incumprimento substancial do dever de manter uma contabilidade organizada.

ddd. No entanto, nada, para além da genérica invocação do conceito conclusivo de “falta de contabilidade organizada” foi alegado, e provado, quanto ao incumprimento substancial de tal dever, não poderá a insolvência ser qualificada por essa via.

eee. Quanto ao Incumprimento da obrigação de aprovação e apresentação das contas no prazo, de acordo com o art. 65.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, as sociedades comerciais encontram-se obrigadas a, através dos respetivos gerentes ou administradores, apresentar anualmente os documentos de prestação de contas previstos na lei, nos quais se incluem o relatório de gestão e as contas do exercício.

fff. Não bastaria ao Sr. Administrador invocar que a conduta criou ou agravou a situação de insolvência, tendo que provar que o incumprimento dos deveres gerentes não determinou a criação ou agravamento daquela situação, nomeadamente por este resultar de outros fatores, o que não sucedeu.

ggg. Pelo que, por tudo quanto resulta supra exposto, a Douta Decisão recorrida violou, por errada interpretação e aplicação o disposto nos artigos 186.º do C.I.R.E., o que tudo deverá conduzir à sua revogação e substituição por nova decisão, julgue não verificados os requisitos previstos no artigo 186.º do C.I.R.E. para a qualificação da insolvência como culposa, face à prova produzida e sua correta interpretação e valoração e qualifique a insolvência como fortuita, assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA !“.


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O Ministério Público apresentou CONTRA-ALEGAÇÕES, pugnando pela improcedência do recurso.

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A Massa Insolvente, veio apresentar CONTRA-ALEGAÇÕES, pugnando pela improcedência do recurso do afectado, apresentando as seguintes conclusões:

A) As alegações sob resposta não têm o mínimo fundamento de facto e de Direito, assentando em rebuscadas teorias e em alegações conclusivas;

B) Não se vislumbra qual a relevância processual pretendida pelo Recorrente de repetir e reformular as alegações como se as mesmas tivessem resultado provadas nos autos (que não resultaram) ou pudessem ser agora consideradas provadas pelo Tribunal da Relação, sendo aqui de realçar que na realidade o Recorrente não logrou, colocar em causa nenhum dos factos dados como provados e constantes dos pontos 1 a 77 do Item: ―II.- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO A. FACTOS PROVADOS e da Sentença recorrida, não impugnando, no seu recurso, a decisão de facto proferida pelo Tribunal de maneira a poder alterar a condenação tal qual foi proferida.

C) Aliás, as considerações vertidas nas alegações sob resposta carecem, em absoluto, de fundamentação, assentando em interpretações totalmente deturpadas do sentido e alcance das disposições legais aplicáveis, em particular das que regulam a qualificação da insolvência e matéria relativa a direito societário, prestação e aprovação de contas e até do ponto de vista fiscal.

D) A prova produzida é extensíssima e implicava – e implica – a prolação de Sentença de qualificação como culposa;

E) Na verdade a Sentença peca por ser muito branda com o recorrente dado que a sua gravidade elevada (e não meramente mediana) da actuação, o modus operandi requintado, a violação das normas ocorrida, a sua decisiva contribuição para o agravamento da insolvência, consubstanciado na factualidade dada como provada e descrita na Sentença in casu ditavam que o ora Recorrente devesse ser inibido para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de pelo menos 8 anos e meio.

F) Mesmo considerando uma gravidade mediana, tendo em conta as demais circunstâncias de facto e de direito dadas como provadas ao Tribunal impor-se-ia que fixasse que o ora Recorrente fosse inibido para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de, pelo menos, 5 anos e meio.

G) Existindo erro de julgamento de facto e de direito apenas quanto a este particular;

H) Será apenas quanto à fixação do prazo de inibição do Recorrente para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa APENAS pelo período de 3 anos que motiva a discordância da ora Recorrida.

I) Quanto ao resto a Sentença recorrida não merece qualquer reparo devendo ser mantida.

J) O recurso interposto por CC deve ser julgado improcedente.

K) Devendo, ao invés, com a fundamentação supra, dar-se como assente a gravidade elevada (e não meramente mediana) da actuação, o modus operandi requintado (que advém dos factos dados como provados arvoados nos documentos juntos aos autos e no depoimento do TOC da insolvente – a par da violação das normas ocorrida, a sua decisiva contribuição para o agravamento da insolvência, consubstanciado na factualidade dada como provada e descrita na Sentença in casu - o ora Recorrente ser inibido para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de pelo menos 8 anos e meio.“.


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II-FUNDAMENTAÇÃO.


O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil

Como se constata do supra exposto, a questão a decidir, é a seguinte:

A) Modificação da decisão da matéria de facto:

i) Dar como não provados os factos constantes dos pontos 9, 10, 11, 12, 13, 15, 16, 18, 24, 26, 30, 31, 33, 34, 41, 45, 49, 57, 60, 61, 63, 70 quais teriam de merecer resposta negativa no sentido de não provados, e

ii) dando como provado o facto constante dos pontos d. o qual teria de merecer resposta positiva no sentido de provado.

B) Em face da factualidade dada como provada a conduta do afectado quanto às consequências a retirar da alteração dos factos.


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OS FACTOS

Os factos com interesse para a decisão da causa e a ter em consideração são os constantes no relatório, e bem como aqueles da sentença ora em crise.

A. FACTOS PROVADOS

Com relevo para a decisão a proferir, atentos os factos e a prova documental carreados e demonstrados nestes autos, no processo principal e demais apensos ao processo de insolvência, e, bem assim, considerando a posição assumida nos articulados, resultou provada a seguinte factualidade:

1. A sociedade A..., S.A. tem por objeto o exercício da indústria e comércio de material elétrico para equipamento, aquecimento, arrefecimento e iluminação.

2. A 16.02.2020, 24 dos trabalhadores da referida sociedade instauraram a ação de insolvência que constitui os autos principais.

3. Na sequência de tal ação, a sociedade foi declarada insolvente por sentença proferida a 07.09.2020, transitada em julgado a 28.09.2020.

4. À data da declaração da insolvência da requerida BB e CC figuravam como membros do Conselho e Administração, sendo o primeiro presidente e o segundo vogal.

5. Tal sociedade obrigava-se com a assinatura de dois membros do conselho de administração, com a assinatura de um administrador e de um procurador constituído para a prática de determinado ato pelo conselho de administração ou com a assinatura de dois procuradores com poderes para a prática de ato certo e determinado, conferidos pelo conselho de administração.

6. O capital da A..., S.A. era detido, em 98,38% pela sociedade B..., S.A..

7. Esta sociedade B..., S.A.. tinha como objeto a consultoria em projetos de engenharia industrial [elétrica e eletrónica, mecânica, de sistemas, geológica e hidráulica] e como sócios CC, II, JJ e BB, obrigando-se com a intervenção conjunta de dois dos gerentes CC, II ou BB.

8. Na contabilidade da devedora, relativamente à B..., S.A.. apresentava os seguintes saldos:


9. E, a 31.12.2019, na contabilidade da A..., S.A., a B..., S.A. apresentava os seguintes saldos:

10. Ou seja, na referida data, a sociedade B..., S.A. era devedora à A..., S.A. do montante de € 2.015.282,25 e credora de € 88.560,00, tendo reclamado créditos nos presentes autos no montante de € 84.466,16.

11. A sociedade B..., S.A. foi constituída com o intuito de adquirir as participações sociais dos acionistas, EE e filhos, FF e Filha, tendo recorrido para tal ao financiamento indireto da sociedade A..., S.A., razão pela qual se mantem devedora, à data de 31.12.2019 no montante de € 2.015.282,25.

12. A exemplo do verificado em anos anteriores, a A..., S.A. não debitou nos anos de 2019 e de 2020 os juros contratualizados nos respetivos contratos de mútuo.

13. A B..., S.A. em 16.08.2018 faturou honorários relativos a Management Fees no valor mensal de €12.000,00 [conforme fatura n.º 3 emitida em 16.08.2018] e em 31.12.2019 faturou honorários relativos a Management Fees no valor mensal de € 6.000,00 [conforme fatura n.º 3 emitida em 31.12.2019] - cfr. extrato da conta ...01.

14. Tal montante destinava-se a justificar o pagamento de salário/vencimento da administração da A..., S.A., porquanto esta não processava salários aos membros do órgão de Administração.

15. Da análise documento intitulado Razão Geral [junto aos autos, com o parecer do AI, como doc. n.º 2, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido] de 01.01.2017 a 31.12.2020, que a partir de junho de 2017 a insolvente permitiu a saída da sua esfera jurídico patrimonial dos montantes identificados no quadro infra, para a esfera jurídico patrimonial da sociedade B..., S.A.:

16. Na contabilidade da A..., S.A., inexistem documentos de suporte válidos, subjacentes aos documentos contabilísticos lançados que justifiquem a saída dos ativos da insolvente no valor global de € 185.088,64, nos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência, mais concretamente no período compreendido entre junho de 2017 e abril de 2019, para a esfera jurídico patrimonial da sociedade B..., S.A..

17. A saída dos montantes acima referidos da esfera jurídica da A..., S.A., para a esfera jurídica da empresa B..., S.A. aconteceu por ordem e vontade do administrador daquela [e desta] CC, o qual sabia, e não podia ignorar que tais ativos eram essenciais para que a A..., S.A. pudesse fazer face aos compromissos assumidos com os seus credores.

18. A A..., S.A. entrou em incumprimento perante a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA em setembro de 2017 e perante a SEGURANÇA SOCIAL em novembro de 2017;

19. A 31.12.2017, as dívidas da perante a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA ascendiam a cerca de € 200.000,00 e perante a SEGURANÇA SOCIAL, a, pelo menos, € 367.000,00.

20. Sendo que de 2017 em diante, até à data da declaração da insolvência, as dívidas da perante a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA e a SEGURANÇA SOCIAL foram-se agravando [cfr. cópia das reclamações de créditos e respetivos documentos, apresentadas pela Autoridade Tributária e pela Segurança Social, juntos com o Parecer do AI como docs. n.ºs 4 e n.º 5, cujo teor se dá por integralmente reproduzido].

21. A sociedade H..., S.A. tem por objeto a exportação e importação, fabrico e comércio por grosso e a retalho de material elétrico para iluminação, é detida a 100% pela sociedade A..., S.A.

22. A administração da H..., S.A. era exercida por BB e CC.

23. A H..., S.A. foi declarada Insolvente, por decisão proferida a 14.08.2019, no âmbito do processo que sob o n.º 1964/19.6T8STR, corre termos no Juízo do Comércio de Santarém – Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém.

24. A 31.12.2019, na contabilidade da A..., S.A., a H..., S.A. apresentava um saldo credor, relativamente à primeira, de € 230.952,86, relativo a fornecimentos de matéria-prima e ativos fixos:

25. A sociedade C..., LDA. tem por objeto o fabrico, montagem e comércio de materiais e equipamentos para iluminação, lâmpadas elétricas, tem como sócios KK, com uma quota de € 2.450,00, LL com uma quota de € 35.000,00, e a A..., S.A. com uma quota de € 12.550,00 [25,1%] e obrigava-se com a intervenção de um gerente, no caso, KK.

26. Na contabilidade da A..., S.A., a C..., LDA. apresentava os seguintes saldos em 14.05.2020:


27. O valor em dívida pela C..., LDA. à A..., S.A., de € 114.124,82, respeita a fornecimentos efetuados e o de € 29.000,00 diz respeito a empréstimo/contrato.

28. No ano de 2020 a A..., S.A., por iniciativa de CC, utilizou a sociedade C..., LDA. como intermediária em negócios onde não pretendia vender diretamente aos seus clientes, ou seja, no caso em que tais clientes que tinham sido notificados da penhora de créditos pela AT.

29. Nessa sequência, foram emitidas guias de transporte da A..., S.A. para a C..., LDA. [cfr. notas de transporte, juntas a fls. 948/954 v.º, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido].

30. O contabilista certificado da insolvente solicitou, por diversas vezes, a CC, a entrega dos documentos para poder facturar a favor da insolvente [cfr. doc. n.º 28 junto com o Parecer do AI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido].

31. Contudo, tal pedido não foi satisfeito, não tendo sido possível apurar a quantidade e os concretos montantes retirados da esfera jurídico-patrimonial da insolvente para a esfera jurídico patrimonial da C..., LDA..

32. A A..., S.A., no período compreendido entre julho de 2017 e maio de 2018, forneceu à D..., com sede na Holanda, diverso material, tendo ficado em dívida, o montante de € 117.145,83 [cfr. extrato de conta de 01.01.2017 a 30.12.2018, junto com o Parecer do AI, como doc. n.º 6, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido].

33. No mesmo período, a A..., S.A., procedeu à injeção de capital através de transferências bancárias ordenadas das contas daquela para esta, com a justificação ..., isto é, empréstimo, no montante global de € 67.300,00 [cfr. cópias das transferências bancárias, juntas como doc. n.º 7 com o Parecer do AI].

34. Inexistem na contabilidade da A..., S.A., quaisquer documentos de suporte que justificassem os alegados empréstimos, o que era do conhecimento de CC.

35. A partir da morte do administrador da D..., em janeiro de 2018, CC assumiu a administração desta empresa.

36. A sociedade D... foi declarada insolvente em junho de 2018;

37. Tendo sido constituída, em 2019, imparidade, pelo valor de € 117.145,83, relativa aos fornecimentos efetuados.

38. A sociedade G... foi constituída com sede no Dubai, tendo um escritório sediado num apartado no Aeroporto ....

39. A insolvente A..., S.A., efetuou, diversas transferências bancárias para a G..., para conta bancária cujo beneficiário era GG Dim ....

40. Tais transferências foram ordenadas da conta que a insolvente detinha no Banco 1... e da detida no Banco 2..., tendo CC aposto as seguintes justificações: “... to D... ME ...”; “... to G...”, “salary” [cfr. documentos comprovativos as transferências e extratos de conta de 01.01.2017 a 30.12.2018, juntos, como docs n.ºs 9 e10 do Parecer do AI].

41. Inexistem na contabilidade da A..., S.A., quaisquer documentos de suporte que justificassem os alegados empréstimos ou mesmo pagamentos de salários, o que era do conhecimento de CC.

42. A E... E I..., LDA. tinha como objeto a compra, venda e arrendamento de imóveis, tinha como sócios CC, com uma quota de € 45.000,00, e BB, com uma quota de € 5.00,00, sendo ambos gerentes.

43. A A..., S.A. em 2016 efetuou, a favor da E... E I..., LDA., a cedência da posição contratual no contrato de Locação Financeira Imobiliária n.º ...59, cujo bem locado era o armazém da ..., pelo valor global de € 676.601,43.

44. A partir de então, a E... E I..., LDA. Passou a debitar mensalmente à A..., S.A. o valor de € 6.000,00, a título de rendas.

45. Decorre do documento intitulado Razão Auxiliar, de 01.01.2017 a 31.12.2020, e respetivos documentos de suporte [juntos com o Parecer do AI, como docs. n.ºs 11 e 12, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido], que a partir de junho de 2018 a insolvente permitiu a saída da sua esfera jurídico-patrimonial dos montantes identificados no quadro infra, para a esfera jurídico patrimonial da E... E I..., LDA. beneficiando esta empresa:


46. Na contabilidade da insolvente verifica-se a existência de diversas entregas. Por conta, à sociedade E... E I..., LDA., que, em 31.12.2019, apresenta um saldo em dívida à A..., S.A. de € 84.366,92.

47. Não obstante a E... E I..., LDA. reclamou, nos presentes autos, créditos no valor de € 130.720.52.

48. A sociedade F..., LDA. tinha como objeto a confeção de refeições prontas a levar para casa, tinha como sócios CC, com uma quota de € 5.000,00, e MM, com uma quota de € 5.00,00, sendo ambos gerentes [cfr, certidão de matrícula junta a fls. 773v.º/775, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido].

49. Decorre do documento intitulado Razão Auxiliar, de 01.01.2017 a 31.12.2020, e respetivos documentos de suporte [juntos com o Parecer do AI, como doc. n.º 11, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido], que a partir de junho de 2018 a insolvente permitiu a saída da sua esfera jurídico-patrimonial dos montantes identificados no quadro infra, para a esfera jurídico patrimonial da F..., LDA. beneficiando esta empresa:


50. Assim, na contabilidade da A..., S.A., a F..., LDA. apresentava, em 31.120.2019, um saldo devedor no montante de €108.625,81 relativa a pagamentos por conta.

51. Inexistem na contabilidade da A..., S.A., quaisquer documentos de suporte que justificassem os alegados pagamentos por conta, o que era do conhecimento de CC.

52. Os ativos que foram objeto dos atos acima identificados eram essenciais para o exercício da atividade comercial da empresa insolvente, para que a mesma pudesse fazer face aos compromissos assumidos com os seus credores.

53. CC não ignorava que de tais atos resultava para os credores da A..., S.A. a impossibilidade de obter a integral satisfação dos seus créditos ou, pelo menos, o agravamento substancial dessa possibilidade.

54. Parte das transferências referidas em ...00.... foi destinada, pela F..., LDA. ao pagamento de indemnizações devidas a ex- funcionários da H..., S.A. [cfr, extratos de conta bancária da F..., de fls. 775/779, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido].

55. No dia 19 de junho de 2019 o administrador da insolvente, CC solicitou ao Contabilista informasse o seguinte: «(…) em termos legais podemos solicitar aos nossos clientes o pagamento de facturas para uma conta que não seja da A..., por exemplo para conta da B...? (…)» [cfr, doc n.º 13, junto com o Parecer do AI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido].

56. Ao que o Contabilista da sociedade insolvente respondeu que não, tendo inclusivamente reproduzido a norma que justificava a sua resposta.

57. Não obstante, o administrador da insolvente, CC contactou alguns clientes da insolvente e solicitou-lhes que os pagamentos fossem efetuados para contas não tituladas pela insolvente, em alguns casos emitindo documentos na folha timbrada da insolvente e declarando e assinando os documentos necessários a criar a convicção nos clientes de que ao efetuar os pagamentos para as contas bancárias que identificava – cujos titulares eram diversos da insolvente – estariam a efetuar os pagamentos à insolvente [cfr, docs n.ºs 15, 16, 17, 18, 19 20 e 21, juntos com o Parecer do AI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido].

58. Ao detetar tal situação, o Contabilista da insolvente enviou a CC uma comunicação advertindo-o expressamente para esta situação [cfr, doc n.º 14, junto com o Parecer do AI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido].

59. Não obstante, CC persistiu na prática das suas condutas.

60. Assim, os montantes que se destinavam à insolvente acabaram por ser entregues em contas bancárias não tituladas pela insolvente, designadamente nas contas da B..., S.A., da C..., LDA. e na conta pessoal de CC.

61. Da contabilidade da A..., S.A. resulta que, à data de 31.12.2019, a conta do administrador BB apresentava um saldo devedor de € 42.300,86, por adiantamentos efetuados, através de utilização de cartão de crédito e caixa.

62. Não obstante, a utilização do cartão de crédito atribuído a BB foi efetuada por CC, o qual movimentava, ainda, as contas bancárias com as passwords/coordenadas do primeiro.

63. Da contabilidade da A..., S.A. resulta que, à data de 31.12.2019, a conta do administrador CC apresentava um saldo devedor de € 166.163,48 e um saldo credor de € 23.554,27, por adiantamentos efetuados, através de utilização de cartão de crédito, caixa e recebimentos de clientes.

64. A A..., S.A. não possuía seguro de acidentes de trabalho válido desde setembro de 2019.

65. Não existia contabilidade da A..., S.A. desde o dia10 de abril de 2020:

66. Data em que o respetivo contabilista suspendeu o contrato de trabalho, com fundamento na falta pontual de retribuição, não tendo sido cumpridas, desde então, as obrigações fiscais, designadamente:

▪ IRC e IES - não foi entregue declaração Modelo 22 de IRS e IES, relativa ao período findo em 31.12.2019.

▪ Declaração de IRS/DMR - desde fevereiro de 2020, que não procederam à entrega das DMR.

▪ Declarações de IVA - encontram-se por entregar as declarações de IVA, relativas aos períodos de 03/2020, 04/2020, 05/2020, 06/2020, 07/2020 e 08/2020.

▪ Por conta da falta de entrega das Declarações de IVA a AT procedeu à emissão das seguintes declarações oficiosas para o período de Março a Junho de 2020:


▪ E- Faturas - último Ficheiro SAF-T, entregue diz respeito ao mês de Março 2020, conforme mapa infra:


67. A sociedade A..., S.A. procedeu à emissão de faturas, sem que as mesmas tenham sido informadas à AT, quer através de declaração no E-Faturas quer na declaração de IVA mensal:


69. A situação económica, financeira e patrimonial da sociedade, bem como a sua evolução nos três últimos exercícios encontra-se refletida na contabilidade da sociedade que se reproduz nos quadros abaixo, capital próprio da sociedade que apresenta valores negativos desde o exercício de 2019.


70. CC não forneceu ao Administrador da Insolvência todas as informações/documentos solicitados, ignorando algumas das solicitações e respondendo apenas parcialmente a outras, sendo que grande parte dos documentos e elementos a que o Administrador da Insolvência conseguiu ter acesso foram fornecidos pelo contabilista certificado em virtude dos contactos que o mesmo estabeleceu.

71. CC, no início de 2020, encontrava-se a vender bens da insolvente através da plataforma OLX [cfr. documento n.º 26, junto com o Parecer do AI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido], tendo procedido à venda de um empilhador da insolvente, pelo preço de 3.800,00 acrescido de IVA [cfr. fatura junta a fls. 782/785, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido].

72. BB desde 2013 não teve participação direta e ativa na gestão da insolvente e na definição do rumo e da estratégia da sociedade A..., S.A..

73. CC era quem, após 2013, diariamente representava a sociedade insolvente junto dos clientes, fornecedores e instituições bancárias, encetava contactos e concluía negociações e contratava trabalhadores.

74. A sociedade A..., S.A. foi um dos principais fabricantes de referência do sector de iluminação.

75. O sector de atividade a que se dedicava a insolvente sofreu, a partir de 2013, várias mudanças tecnológicas.

76. No período de 2016 a 2020, a insolvente tentou alargar mercados, designadamente na Holanda e nos Emirados Árabes Unidos.

77. Em julho de 2018 contratou os serviços de uma empresa especializada em consultoria de gestão, com o objetivo de preparar um Plano de Recuperação, o que não veio a suceder.


*

B. FACTOS NÃO PROVADOS

Não se provaram quaisquer outros factos relevantes para a decisão da causa alegados pelas partes, que não se encontrem descritos como provados ou que se mostrem em oposição aos provados ou prejudicados por estes. Designadamente não se provou que:

a. A partir de 2010, o mercado da distribuição do setor da iluminação desapareceu por completo quando os clientes distribuidores deixaram de comprar os produtos aos fabricantes nacionais e europeus e passaram a fazer aquisições no extremo-oriente.

b. E o mercado do projeto do referido setor teve também uma quebra significativa, causada pelo baixo nível de investimento do sector privado ao longo dos anos.

c. Todos os pagamentos/recebimentos dos montantes referidos em 60., efectuados para as contas de terceiros, apesar de não terem sido efetuados para contas da A..., S.A., foram inseridos na contabilidade como tal.

d. O valor da venda do empilhador, referido em 72., foi utlizado para pagar a fornecedores e a trabalhadores.


*

A demais matéria alegada é de direito, conclusiva ou constitui matéria de facto instrumental ou sem relevo para a decisão da causa, designadamente porque relativa ao período anterior aos três anos que antecederam o início do processo de insolvência, ou seja, anterior a 16.02.2017, razão pela qual não consta a mesma da presente decisão. “, realçado nosso.

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DE DIREITO.

A)

Modificação da decisão da matéria de facto.

Dispõe o artigo 640.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, com a epígrafe, “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, o seguinte:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguin-te:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. (…)“.

A Doutrina e Jurisprudência têm vindo a expor, de modo repetido e claro, quais os requisitos que o recurso de apelação, na sua vertente de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, terá de preencher para que possa ocorrer uma nova decisão de matéria de facto.

Nesta sede, ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, in Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5.ª Ed., em anotação à norma supratranscrita importa reter o seguinte.

a) Em primeiro lugar, deve o recorrente obrigatoriamente indicar “os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões”;

b) Em segundo lugar, tem o recorrente que indicar “os concretos meios probatórios” constantes dos autos que impõe sobre aqueles factos (alínea a)) decisão distinta da recorrida;

c) Em terceiro lugar, em caso de prova gravada, terá de fazer expressa menção das passagens da gravação relevantes;

d) Por fim, recai o ónus sobre o recorrente de indicar a decisão que, no seu entender, deveria ter sido proferida sobre as questões de factos impugnadas (alínea a)).

Com a imposição destes requisitos o legislador faz recair sobre o recorrente o ónus de alegação, de modo reforçado, para que a instância de recurso não se torne aleatória e imprevista, ie, que os recursos possam ter natureza genérica e inconsequente (neste sentido o autor citado, in ob. cit., pág. 166).

Assim, será caso de rejeição total ou parcial do recurso da impugnação da decisão da matéria de facto, nos seguintes casos:

a) Ocorrer a falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto – artigos 635.º, n.º 4 e 641.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil.

b)      Ocorrer a falta de indicação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados – artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil.

c) Ocorrer a falta de indicação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes dos autos, designadamente, documentos, relatórios periciais, ou registados, designadamente, depoimentos antecipadamente prestados, ou nele gravados, com expressa indicação das passagens da gravação que funda diversa decisão.

d) E por fim, ocorrer a falta de indicação expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido por cada segmento da impugnação.

Como refere, ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, in ob. cit, 5.ª Ed., pág. 169, em anotação ao artigo supratranscrito, a apreciação rigorosa destes requisitos deve ocorrer sempre, pois só assim se dá efectiva validade ao princípio da auto-responsabilidade das partes. Com efeito, são as partes e não o Tribunal que fixam o objecto do recurso através das conclusões. O Tribunal de 2.ª instancia deste modo poderá proceder a um verdadeiro novo julgamento da matéria de facto, tendo como baliza a fixação do tema a decidir, os concretos pontos de facto.

Mais, é de atender ao decidido pelo recente Ac do Supremo Tribunal de Justiça de UJ de 14.11.2023, n.º 12/2023, do qual consta: “Nos termos do art. 640.º/1/c, do CPCivil, o recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões do recurso a decisão alternativa pretendida, desde que essa indicação seja feita nas respetivas alegações “.

Na fundamentação do citado Ac. pode-se ler:

Em síntese, decorre do artigo 640, n.º 1, que sobre o impugnante impende o dever de especificar, obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera julgados de modo incorreto, os concretos meios de probatórios constantes do processo, de registo ou de gravação nele realizado, que imponham decisão diversa da recorrida, bem como aludir a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Tais exigências, traduzidas num ónus tripartido sobre o recorrente, estribam-se nos princípios da cooperação, adequação, ónus de alegação e boa-fé processuais, garantindo a seriedade do recurso, num efetivo segundo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, necessariamente avaliado de modo rigoroso, mas sem deixar de ter em vista a adequada proporcionalidade e razoabilidade, de modo a que não seja sacrificado um direito das partes em função de um rigorismo formal, desconsiderando aspetos substanciais das alegações, numa prevalência da formalidade sobre a substância que se pretende arredada.

O recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto, cumpre o ónus constante do n.º 1, c), do artigo 640, se a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, constar das conclusões, mas também da leitura articulada destas últimas com a motivação do vertido na globalidade das alegações, e mesmo na sequência do aludido, apenas do corpo das alegações, desde que do modo realizado, não se suscitem quaisquer dúvidas.”.

Vejamos como o apelante configura e argumenta a instância de recurso.

O objecto do recurso quanto à matéria de facto é a seguinte:

De início o recorrente argumenta o recorrente/afectado que face às declarações do recorrente e à prova documental junta aos autos não poderiam ter sido dados como provados certos e determinados factos, que mais adianta indica.

Face à diferente decisão que irá recair sobre a instância recursiva, quanto à matéria de facto, iremos agrupar em diversos segmentos/grupos.

1.º Grupo:

Facto 9 – dado que não foi abatido o valor de 89 mil euros pago através da venda de património pessoal do recorrente, conforme referido nos artigos 36.º a 38.º;

Facto 10 – o valor dos mútuos não corresponde à quantia de 2.015.282,25€, tendo o recorrente explicando os valores dos mútuos através de prova documental (não resulta do parecer , nem da douta sentença, nem de qualquer declaração / depoimento , motivos para justificar o valor de 2.0153.282,25€);

Facto 11 - corresponde parcialmente à verdade, apenas na parte que refere : “ A sociedade B..., S.A. foi constituída com o intuito de adquirir as participações sociais dos acionistas, EE e filhos, FF e Filha, tendo recorrido para tal ao financiamento indireto da sociedade A..., S.A.; o restante deve ser dado como não provado;

Quanto a estes segmentos de facto argumenta o recorrente em singelo o que atrás se transcreveu.

Não especifica quais os meios de prova que no seu entender levam a uma resposta ou decisão distinta daquela tomada pelo Tribunal a quo.

2.º Grupo

Facto 12 – não debitou os juros de 2019 por esquecimento do TOC e, em 2020 porque não tinha contabilista ao serviço.

No entender do recorrente “deveria ter sido dado como provado, pelo menos que, em 2020 não foram debitados os juros contratualizados nos contratos de mútuo, dado que o contabilista suspendeu o contrato de trabalho em abril de 2020, conforme facto provado n.º 66”.

Que tal resulta das declarações do recorrente e do contabilista, DD, prestadas em audiência de julgamento.

Facto 41 – não corresponde à realidade, não provado, dado que o recorrente explicou que esta era a única forma de contabilizar os movimentos;

Argumenta que tal resulta das declarações do recorrente.

3.º Grupo

Facto 13 – É correto, mas deveria constar:

 Janeiro a setembro de 2017: valor mensal de 24.000 EUR + IVA

 Outubro de 2017 a julho de 2018: valor mensal de 12.000 EUR + IVA

 Agosto de 2018 a dezembro 2018: não foi cobrado qualquer valor

 Janeiro a dezembro 2019: valor mensal de 6.000 EUR + IVA

E sobretudo que em entre janeiro de 2020 a setembro 2020: não foi cobrado qualquer valor. Tudo para concluir “que a B... reduziu ovalor em dívida perante a sociedade Insolvente no valor de 89.000,00€”.

Argumenta que tal resulta das declarações do recorrente e do contabilista, DD, prestadas em audiência de julgamento. Mais alega que não foi valorado o “documento junto pelo recorrente em 17.02.2023 – requerimento com ref.ª 14180454 que corresponde a uma Email enviado ao Exmo. Sr. NN, datado de 15.10.2012 sobre o pagamento de salários à Administração da Insolvente e da IPI (honorários de gestão)” e bem como um outro “26.01.2023 - requerimento com referência 14068173, o recorrente juntou o extrato de conta da sociedade B... referente ao período de 01/11/2018 a 31/01/2019, onde se constata a transferência no valor de 90.000,00€ (noventa mil euros) efetuada em 25/01/2019 pelo Recorrente CC para a conta da sociedade B... a título de suprimentos “.

Factos 15 e 16 – saídas para a B... não corresponde o valor do quadro, com o valor inserto no ponto 16.

Argumenta que tal resulta das declarações do contabilista, DD, prestadas em audiência de julgamento. Que do quadro do ponto 15 não consta a quantia de 185.088,65 €.

Facto 18 - não são aceites pelo recorrente esses valores (tão certos), aliás, o que recorrente confessa nas suas declarações são os valores constantes das reclamações de créditos, quer da Autoridade Tributária, quer da Segurança Social; também aqui deveria constar que foram feitos planos de pagamento, quer com a Autoridade Tributária, quer com a Segurança Social;

Argumenta que existe prova documental que permite concluir por o recorrido ter feito esforços para liquidar as dívidas à AT. Sendo que tal resulta, igualmente, das declarações do recorrente prestadas em audiência de julgamento.

Facto 24 – não provado, dado que conforme supra-referido a IPI até é devedora a A...;

Argumenta que existe prova documental que permite concluir por ser a sociedade IPI a devedora da insolvente A.... Isso mesmo resulta das declarações do recorrente.

Facto 26 - não provado, não só porque o empréstimo no valor de 29 mil euros foi em 2016, como se mostra esclarecido que o valor de 114.124,82 não corresponde à verdade ( é apenas uma mera inscrição contabilística);

Argumenta que tal tem sustento nas declarações do recorrente e em documentos.

Facto 30 – não foram diversas vezes que o contabilista pediu esclarecimentos, conforme referido, o documento 28 são apenas 4 emails;

Facto 31 – não provado (a contrário) – foi possível apurar a quantia e os concretos montantes retirados da esfera jurídico patrimonial da insolvente para a esfera jurídico patrimonial da C...;

Que tal tem sustento nas declarações do recorrente e em documentos – facturas e nota de crédito.

Facto 33 – apesar de provado, não deve ter relevância dado que o empréstimo ocorreu em 2016;

Facto 34 .- não provado ,todos os empréstimos têm documentos de suporte;

Sustenta que não foram tidos em conta para tal realidade prova documental. Conjugado com as declarações do recorrente.

Facto 45 - Deveria ainda constar como provado que a sociedade Insolvente deixou de pagar por conta desta sociedade ao banco Banco 1... no valor de 183.094,96€;

Sustenta que tal resulta de prova documental – razão auxiliar. E nas declarações do recorrente.

Facto 57 – não está provado que o Recorrente tivesse criado a convicção nos clientes de que ao efetuar os pagamentos para as contas bancárias que identificava estariam a efetuar pagamentos à insolvente (com o devido respeito é uma conclusão da Mma Juiz); – o que foi admitido pelo recorrente foi que indicou um novo IBAN, mas explicou o motivo;

Argumenta que tal resulta das declarações do recorrente e documentos – razão auxiliar.

Facto 60 – não foi qualquer valor para a conta da C...;

Facto 61 e 63 – não provados conforme referido supra, nos artigos 132 a 139;

Argumenta em prova documental, e nas declarações do recorrente.

Facto 70 – não provado, com o devido respeito, o Sr. Administrador é que não logrou provar que informações em concreto ou que documentos foram respondidos / dados pelo recorrente.

Sustenta na prova documental, que não foi valorada, e nas suas declarações.

f. Acresce que, deveria ter sido dado como provado o facto constante do ponto D dos factos não provados.

Argumenta na prova documental e nas declarações do recorrente.


**

Quanto ao 1.º Grupo de factos, supra identificados, será de rejeitar o recurso, pois que o recorrente não indica quais os precisos e concretos meios de prova que fundamenta a sua discordância e muito menos o porquê, ie, qual o percurso lógico dedutivo que o recorrente pretende ver recorrido de modo a atingir a conclusão de que aquela factualidade seja declarada provada ou não provada conforme a sua pretensão.

É ónus do recorrente, no presente caso, de fazer a apreciação critica da prova produzida que permita uma resposta distinta daquela dada pela decisão objecto de recurso. A não ser assim, estaria a admitir-se recurso genéricos da decisão da matéria de facto.

Pelo exposto, rejeita-se a presente pretensão recursiva.

Quanto ao 2.º e 3.º Grupo de factos impugnados, a pretensão do recorrente terá que improceder. Vejamos porquê.

A mera insuficiência da fundamentação probatória do recorrente, ie, a análise critica da prova que terá de fazer, não constitui requisito formal que permita a decisão de rejeição. Contudo, tal deficiência é apreciada a nível de mérito da decisão impugnada.

Deste modo, trazendo à colação os apontados meios de prova invocados ou chamados em auxílio pretensão apresentada, tal como são apresentados pelo recorrente, não são suficientes para atingir tal desiderato.

Analisados todos os meios de prova não podemos deixar de chegar à mesma conclusão da primeira instância.

Vejamos.

A convicção do Tribunal, para a determinação da matéria de facto acima referida, assentou na posição assumida nos articulados pelas partes e no conjunto de toda a prova produzida nos autos, designadamente a prova documental, a prova por declarações e depoimento de parte do Administrador da Insolvência, por declarações e depoimento de parte do requerido CC e a prova testemunhal, analisadas conjugada e criticamente, à luz das regras de experiência, segundo juízos de normalidade e de acordo com as regras da repartição do ónus da prova aplicáveis ao caso.

(…)

Para prova da factualidade que consta dos pontos 7. a 14, 18. a 23..25. a 30., 32., 33., 35. a 40., 42. a 44., 48., 50., 55. a 67., 69., 70., 72. a 75. e 78., o Tribunal valorou as declarações e depoimento de parte prestados pelo Administrador da Insolvência e pelo requerido CC, que confirmaram tal matéria, o depoimento das testemunhas DD e OO, respetivamente, contabilista certificado da insolvente, ao serviço da insolvente de 1982 a 09.04.2020, e financeiro ao serviço da insolvente de abril de 2016 a abril de 2020, que, dadas as respetivas funções, demonstraram possuir conhecimento direto da realidade da empresa, e a documentação contabilística junta aos autos, consubstanciada, essencialmente, no IES de 2017 e de 2018, no balancete analítico a 31.12.2019, no mapa de amortizações/depreciações, no inventário e nos demais elementos contabilísticos e fiscais juntos aos autos.

O tribunal valorou, ainda, a reclamação de créditos apresentada pela B..., S.A. [cfr. ponto 10.], as faturas mencionadas nos ponto 13. dos factos provados, as reclamações de créditos e respetivos documentos apresentados pela AT e pela SS [cfr. pontos 20. e 21.], as comunicações mencionadas nos pontos 30., 55. a 58. , as cópias das transferências bancárias referidas no ponto 33. e 40., a reclamação de créditos apresentada pela E... e I..., Lda. [cfr. ponto 47.], a certidão de matrícula da insolvente [cfr. ponto 69.], os anúncios de venda na plataforma OLX [cfr. ponto 72.], a fatura de venda do empilhador, referida no ponto 72., a listagem elaborada pela testemunha DD, de fls. 975 e a documentação contabilística e bancária junta a fls. 976/1111 e 1145/1168v.º.

Para prova da factualidade vertida no ponto 78., o Tribunal valorou também o depoimento da testemunha PP, economista ao serviço da Sociedade J..., Lda., contratada em julho de 2018 para apoiar na restruturação da devedora, através da apresentação de um PER – que se revelou inviável -, o qual referiu que, no seu entendimento, nessa fase, a devedora já estaria em situação de insolvência, mas que a sua função era elaborar o Plano que lhe foi solicitado. Tal depoimento foi valorado em conjugação com as comunicações estabelecidas com a SS e com o Banco 3..., S.A., juntas a fls. 119v,º/1129.

Foram, ainda, relevantes para a prova os depoimentos das testemunhas QQ, que, de 2012 a 2018,era geria a carteira de clientes da insolvente no mercado de exportação para a Bélgica, a Holanda e Espanha, a qual acompanhou a relação estabelecida entre a A..., S.A. e a D...; e RR, responsável de vendas ao serviço da requerida de janeiro de 2015 a março de 2019, nas Zonas de África e Médio Oriente, o qual afirmou que a G..., apenas possuía um escritório na Zona Franca do aeroporto e reportava, através de GG, toda a sua atividade, diretamente, a CC, sendo que a testemunha apenas ajudava nos preços, novidades e feiras – esta testemunha afirmou, ainda, que não foram as mudanças de mercado ao nível da iluminação que afetaram a insolvente, mas, antes, a gestão que nela era efetuada por quem a governava, do que é exemplo o facto de, a determinado momento, existirem encomendas que não era possível satisfazer por falta de componentes, pois que não havia falta de clientes, mas, antes, dificuldade na produção e nos fornecimentos.

Também valorou, o Tribunal, o depoimento das testemunhas SS, comercial ao serviço da A..., S.A. de 02.07.1992 a junho de 2020, o qual confirmou que , em 2019, foi-lhe liquidado o salário, por, pelo menos, uma vez, através da conta pessoal de CC e, bem assim, que não foi o mercado que abalou a insolvente, mas, antes, a gestão que nela era feita por quem definia os seus destinos, que identificou como sendo o referido CC; TT, engenheiro, ao serviço da requerida de 2013 a 2018, que exercia as funções de vendedor nos mercados do Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia e Irlanda, reportando sempre apenas a CC; UU, comercial de uma empresa fornecedora de moldes para a requerida, o qual disse que, nos últimos anos, tratava dos assuntos dos orçamentos dos moldes com CC e já não com o pai deste.

O Tribunal atendeu, ainda, ao depoimento da testemunha VV, empresário, do ramo da iluminação, o qual disse ter sido abordado, há cerca de uns três anos, pelo requerido CC, tendo em vista capitalizar a empresa – investir um milhão e meio de euros por cerca de 30% do capital social da empresa - o que não sucedeu, dado que, através da análise das contas, identificou problemas de leitura de mercado e de má-gestão, designadamente ao nível do peso das rendas altíssimas a que se vinculou a requerida.

Por fim, foi relevante o depoimento das testemunhas WW e XX, bancários ao serviço do Banco 2... e do Banco 1..., respetivamente, os quais confirmaram os constrangimentos a que estiveram sujeitas a contas bancárias, designadamente ao nível da penhoras diversas em diferentes momentos, tendo o primeiro confirmado que, nesses períodos, a conta da B..., S.A. recebia fundos que eram depois movimentados por conta da insolvente. Mais, confirmaram que os níveis de acesso da requerida aos serviços da Banca on line, também foram sendo reduzidos e controlados; já ao segundo disse que o Banco 2... não subscreveu a declaração para entrada do PER, porque não havia confiança na recuperação da empresa e, bem assim, na sua administração.

(…)

No que respeita ao Parecer Técnico junto a fls. 1308/1326, cumpre dizer que o mesmo se fundamenta, no essencial, em informações fornecidas por CC, muito especialmente no que respeita à atuação do contabilista certificado, DD, sendo que tais informações não coincidem inteiramente com o transmitido a este Tribunal pelo próprio CC e pelo referido contabilista certificado que, de modo claro, explicitou ao Tribunal as circunstâncias em que suspendeu ao contrato de trabalho que, até 09.04.2020, manteve com a insolvente, e os esforços realizados ao longo dos tempos para efetuar a contabilidade da mesma, em face da falta de informação e de documentação e da atuação do respetivo administrador, CC. Quanto ao mais, traduz o que decorre da lei e das normas contabilísticas, não tendo a virtualidade de infirmar os demais depoimentos prestados em audiência pelas pessoas que tiveram efetivo contacto direto com a devedora e os respetivos documentos contabilísticos e fiscais.

No que respeita à demais factualidade provada, vertida nos pontos 15., 16., 17., 24., 31.º, 34., 41., 45., 46., 47., 49., 51. a 54., 68. e 71., o tribunal valorou as declarações de parte prestadas pelo Administrador da Insolvência e o depoimento da testemunha DD, contabilista certificado da insolvente, ao serviço da insolvente de 1982 a 09.04.2020, que demonstrou possuir um conhecimento profundo acerca da situação económica, patrimonial e financeira da requerida, em conjugação com a documentação neles mencionada. O Administrador da Insolvência e a referida testemunha asseguraram, ainda, que CC foi o único responsável pela condução a vida da sociedade nos últimos anos, em especial nos três anos que antecederam a declaração da sua insolvência.

Assim, ao nível a documentação, o Tribunal atendeu ao Razão Geral de 01.01.2017 a 31.12.2020, junto como doc. n.º 2, pelo Administrador da Insolvência [cfr. ponto 15.], ao Razão Auxiliar de 01.01.2017 a 31.12.2020, juntos como docs. n.ºs 11 e 12, pelo Administrador da Insolvência [cfr. pontos 45. e 49].

Mais, atendeu o Tribunal às comunicações estabelecidas entre o AI e o requerido CC, juntas a fls, 800/849.

Cumpre realçar que o Administrador da Insolvência e as testemunhas ouvidas em juízo depuseram de forma que se nos afigurou sequencial, circunstanciada, objetiva, espontânea e isenta, tendo demonstrado conhecimento da circunstâncias relativas à vida económico financeira e patrimonial da requerida, em especial a testemunha DD, não se tendo denotado no respetivo discurso que qualquer delas procurasse, ampliar, em desfavor dos requeridos, os factos sobre que depuseram.

Importa também, realçar, que o requerido CC, quando confrontado com os dados que constavam da contabilidade da insolvente, confirmou-os, tendo, no entanto, apresentado justificações para a existência dos saldos descritos na factualidade provada e tendo, ainda, afirmado desconhecer os concretos montantes que saíram da esfera patrimonial da insolvente para a de outras empresas, como a B... e a C... e, ainda, para a sua conta pessoal e que terão retornado àquela – com o que se comprova a falta de organização da respetiva contabilidade ou, melhor, a falta de correspondência da contabilidade que foi possível efetuar com a realidade da vida da A..., S.A. – essencialmente devida a esquemas engendrados por CC, para contornar as penhoras dos créditos junto dos seus fornecedores e dos Bancos.

No que respeita aos factos que resultaram não provados, cumpre dizer, para além de tudo o que supra ficou exposto, que o tribunal se fundamentou na ponderação de toda a prova produzida e, bem assim, na ausência de produção de prova documental e/ou testemunhal suficientemente consistente e segura para considerar como provada a sua realidade.

Do exposto decorre que, ainda que considerados de forma conjugada a posição assumida pelas partes nos articulados, os depoimentos das testemunhas, as declarações e depoimentos de parte do Administrador da Insolvência e do requerido CC e a prova documental junta aos autos, a prova produzida, no seu confronto, não permitiu fundar um juízo probatório favorável para possibilitar, de forma segura, dar como assente a matéria que acima se considerou como não provada.

Considerandos.

Importa ter presente que a prova produzida deve ser conjugada, harmonizada e ponderada no seu conjunto enquanto base da convicção formulada pelo Tribunal, não sendo legítimo valorizar meios probatórios isolados em relação a outros, sopesando os critérios de valoração, numa perspectiva racional, de harmonia com as regras de normalidade e verosimilhança, mas sempre com referência às pessoas em concreto e à especificidade dos factos em apreciação.

Com vista a este Tribunal ficar habilitado a conhecer dos factos em discussão, e deste modo formar a sua convicção autónoma, própria e fundamentada, teve de analisar todos os meios de prova produzidos em 1.ª instância.

Deste modo, este Tribunal ponderou a prova documental junta aos autos e citada na sentença em crise e que aqui se dá por reproduzido.

De seguida, procedeu-se à audição integral e completa das gravações da sessão de audiência de julgamento, depoimentos das testemunhas e declarações de parte.

Em sede de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, a Relação tem, efectivamente, poderes de reapreciação da matéria de facto, procedendo a julgamento sobre a factualidade, assim garantindo um verdadeiro duplo grau de jurisdição.

Quanto ao âmbito da intervenção deste Tribunal, tal matéria encontra-se regulada no artigo 662.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “modificabilidade da decisão de facto”, que preceitua no seu n.º 1 que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

No âmbito dessa apreciação, incumbe ao Tribunal da Relação formar a seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em 1.ª instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC, em ordem a verificar a ocorrência do invocado erro de julgamento.

Não se ignora o papel relevante da imediação na formação da convicção do julgador e que essa imediação está mais presente no tribunal da 1.ª instância. Todavia, ainda assim, o resultado dessa imediação deve ser objetivado em argumento probatório, suscetível de discussão racional, além do mais, para evitar os riscos da arbitrariedade“, in Ac. Supremo Tribunal de Justiça, 62/09.5TBLGS.E1.S1, de 02.11.2017, relatado pelo Cons. TOMÉ GOMES, in dgsi.pt.

A fundamentação elaborada pela M.ma Juíza de julgamento, supratranscrita, não merece qualquer reparo por parte deste Tribunal face à sua clareza e lógica.

Com efeito, a resposta à matéria de facto, ora em crise, deverá manter-se, dado o manancial dos depoimentos das testemunhas, designadamente aqueles não incluídos na alegação do recorrente, devidamente conjugado com a extensa prova documental. De modo consistente, coerente e espontânea, a prova testemunhal, toda ela, afirmaram a realidade que o Tribunal a quo deu como demonstrada e provada. A prova testemunhal, indicada, vem corroborada pela prova documental, tal como, acertadamente, vem referido na decisão em crise.

Cirurgicamente, o recorrente não argumenta uma maior ou menor credibilidade da prova testemunhal. Isto é, a força probatória atribuída pela M.ma Juíza mantém-se, não impugnada e inalterada. A argumentação que o recorrente apresenta é a mera reprodução das declarações do próprio durante a audiência de julgamento, que apresentou justificações e explicações que apontam em sentido aos factos dados como provados (sua pretensão). Pretende a alteração da resposta à factualidade indicada sem explicar ou explanar o caminho lógico para chegar a tal destino. Limita-se a transcrever o seu depoimento para logo, depois, afirmar que ficou provada a sua versão factual. Como ficou supra afirmado, recaía sobre o recorrente apresentar as razões e os porquês de querer a alteração da factualidade dada como provada e não provada.

A fim de evitar redundâncias de argumentação, este Tribunal chega à mesmíssima conclusão que a 1ª instância quanto à resposta a esta factualidade.

Pelo exposto, improcede o recurso quanto à matéria de facto.


**

*

B)


Em face da factualidade dada como provada a conduta do afectado quanto às consequências a retirar da alteração dos factos.

Na sequência ante decidido, a questão em apreço diz directamente respeito à operação jurídica de subsunção ao direito da factualidade dada como provada.

Dispõe o artigo 186.º do CIRE, com a epígrafe, Insolvência culposa, o seguinte:

1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:

(…)

d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;

(…)

f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;

g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;

h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;

i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º

3 - Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:

a) O dever de requerer a declaração de insolvência;

b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.

É jurisprudência pacífica neste Tribunal da Relação, quanto à distinção das situações/hipótese legais do n.º 2 e do n.º 3 e as suas consequências legais.

“Destarte, fora dos casos previstos no nº 2, (de automática qualificação da insolvência) tem de existir culpa (efetiva (nº 1) ou presumida (nº 3)) e tem de estar demonstrado o nexo de causalidade para que a insolvência possa ser qualificada como culposa.

Nos casos do nº 2, que constituem situações, taxativas, de presunção de culpa (“sempre culposas”), não é necessária a prova de culpa, sequer se admite prova em contrário. E o nº 2, não presume apenas a existência de culpa, mas também a existência de nexo de causalidade entre a atuação dos administradores do devedor (que não seja uma pessoa singular) e a criação ou o agravamento da situação de insolvência. Decorre, pois, deste artigo que, verificando-se uma das vicissitudes contempladas no n.º 2, aplicável, com as necessárias adaptações, ao insolvente pessoa singular, ex vi n.º 4, tem de se considerar a insolvência como culposa, atenta a presunção inilidível ou iuris et de iuris nele consagrada, dado que impõe um regime, não admitindo prova em contrário – não é necessária prova da culpa nem é admitida prova em contrário – art. 350º, nº2, in fine, do Código Civil. Só a presunção de culpa nos casos do nº2 é que é inilidível (presunção absoluta). A presunção derivada da qualificação da culpa como grave, prevista no nº3 é iuris tantum, ilidível (presunção relativa) “, Ac Tribunal da Relação do Porto 908/12.0TYVNG-A.P1, de 06.09.2021, relatado pela Des EUGÉNIA CUNHA, in dgsi. Entre outros no mesmo sentido, 3668/18.8T8STS-B.P1, de 21.04.2022, relatado pelo Des PAULO DIAS DA SILVA, 252/20.0T8AMT-A.P1, de 13.04.2021, relatado pelo Des RODRIGUES PIRES, 876/13.1TYVNG-A.P1, de 13.07.2022, relatado pelo Des JORGE SEABRA e 1067/12.4TYVNG-A.P1, de 13.07.2021, relatado pelo Des CARLOS QUERIDO, todos disponíveis em dgsi.pt

No mesmo sentido, MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, in Manual de Direito da Insolvência, 8ª ed, pág. 156 e seguintes:

Para auxiliar o intérprete, o art. 186, depois de definir a insolvência culposa (no seu nº 1), prevê dois conjuntos de presunções: o nº 2 contém um elenco de presunções iuris et de iure de insolvência culposa de administradores de direito ou de facto do insolvente e do próprio insolvente pessoa singular; por seu turno, o nº 3 prevê um elenco de presunções iuris tantum de culpa grave dos administradores de direito ou de facto e do próprio insolvente pessoa singular.

A opção por esta técnica jurídica justifica-se pela necessidade de garantir uma maior "eficiência da ordem jurídica na responsabilização dos administra- dores por condutas censuráveis que originaram ou agravaram insolvências", para além disso, favorece a previsibilidade e a rapidez da apreciação judicial dos comportamentos,

2.3.2.2.1. As presunções do nº 2 do artigo 186

I. As alíneas do nº 2 do art. 186º podem ser agrupadas em três categorias fundamentais, a saber: 1) atos que afetam, no todo ou em parte considerável, o património do devedor; 2) atos que, prejudicando a situação patrimonial, em simultâneo trazem benefícios para o administrador que os pratica ou para terceiros; 3) incumprimento de certas obrigações legais.

No 1º grupo podemos subsumir a destruição, danificação, inutilização, ocultação ou desaparecimento, no todo ou em parte considerável, do património do devedor (al. a)); a compra de mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação (al. c)).

No 2º grupo, podemos enquadrar as alíneas b) (criação ou agravamento artificial de passivos ou prejuízos, ou redução de lucros, causando, nomeada- mente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com ele especialmente relacionadas), d) (disposição dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros) (Segundo o Ac. Rel. Co., de 13-11-2012 (ARTUR DIAS), "integra o fundamento de qualificação a insolvência como culposa, previsto na al. d) do n.º 1 do art. 186. do CIRE, a venda, ao seu pai, pelo sócio único e gerente da devedora, escassos dois meses e meio antes da insolvência ser requerida por um credor, pelo preço global de €10.032,66, de todo o activo, com o valor contabilístico de €49.331,04". Subsumindo também no art. 186.º, n.º 2, al. d) a celebração lo insolvente, com a sociedade constituída pela mulher e pelo filho, de contratos de venda totalidade do ativo da empresa, cfr. o Ac. Rel. Po., de 8-10-2015 (ARISTIDES RODRIGUES ALMEIDA). Considerando preenchida a previsão legal da al. d) do n.º 1 do art. 186. numa hipótese de celebração, pelo insolvente, de contrato promessa de compra e venda com eficácia e tradição, vide o Ac. Rel. Po., de 18-09-2017 (MANUEL DOMINGOS FERNANDES). No Ac. de STJ de 5-09-2017 (FONSECA RAMOS), o tribunal qualificou a insolvência como culposa apesar de os insolventes terem revogado a doação, por entender que no incidente de qualificação importa olhar a atuação dos devedores, não sob o prisma do resultado (no caso, o bem foi apreendido para a massa), mas sim do seu desvalor jurídico e ético-negocial.), e) (exercício, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, de uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa), f) (fazer do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, nomeadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto), g) (prossecução, no seu interesse pessoal ou de terceiro, de uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência).

Por último, no 3º grupo encontramos as als. h) (incumprimento, em termos substanciais, da obrigação de manter contabilidade organizada, manutenção de uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou prática de irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor), i) (incumprimento, de forma reiterada, dos seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no art. 83.º e até à data da elaboração do parecer referido no nº 6 do artigo 188).

II. O proémio do nº 2 do art. 186 prevê um elenco de presunções iuris ade, considerando "sempre culposa a insolvência" quando se preencha alguma das suas alíneas.

A doutrina e a jurisprudência têm-se questionado acerca do alcance destas presunções: será que também se presume o nexo de causalidade entre a conduta legalmente tipificada e a criação ou agravamento da situação de insolvência?

(…) Entre nós CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA também defendem que as alíneas do n° 2, direta ou indiretamente, envolvem efeitos negativos para o património do insolvente. Pelo contrário, se CARNEIRO DA FRADA concorda com os Autores quanto às als, a) ou g), já quanto às als. d) ou f) tem as suas reservas (pois estão em causa fatores fortuitos). Para este Autor, estas soluções legais aparentemente excessivas são determinadas pela necessidade de dissuadir ou prevenir condutas indesejáveis que, de acordo com a experiência, são suscetíveis de ocasionar insolvências e estão intimamente ligadas a ela (prevenção abstrata de um perigo). Por isso, o legislador incluiu na al. d) a disposição em proveito próprio dos bens do devedor, independentemente da prova do prejuízo daí adveniente.

Tratando-se de presunções inilidíveis, quando se preencha algum dos factos elencados no nº 2 do art. 1862, a única forma de escapar à qualificação da insolvência como culposa será a prova, pela pessoa afetada, de que não praticou o ato.“.

Não tendo obtido o recorrente vencimento quanto à alteração da matéria de facto, soçobrará a sua pretensão quanto ao direito. Face à factualidade dada como provada, e supra-transcrita, entendemos que a operação jurídica da subsunção dos factos ao direito está correcta e não merece censura por parte deste Tribunal.

A decisão em crise fundamentou do seguinte modo:

No entanto, da factualidade provada decorre que, com a sua atuação, em representação da requerida, CC, dispôs de bens da devedora em proveito pessoal ou de terceiros, e fez do crédito ou dos bens da devedora um uso contrário ao interesse desta, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outras empresas nas qual tinha interesses diretos e/ou indiretos, designadamente:

- não debitando os juros de 2019 e 2020 referentes aos empréstimos concedidos pela A..., S.A., à B..., S.A.;

- ao conceder empréstimos às sociedades C..., LDA., D... e G...;

- ao efetuar fornecimentos à C..., LDA., com destino aos seus clientes, que pagaram a esta, sem que aquela tenha faturado e recebido nas suas contas o preço de tais fornecimentos;

- ao efetuar fornecimentos à D..., sem que esta procedesse ao pagamento do preço;

- ao pagar da conta da A..., S.A. o salário de GG;

- ao permitir, a partir de junho de 2018, a saída da sua esfera jurídico-patrimonial dos montantes identificados no quadro que consta do ponto 45. dos factos provados, para a esfera jurídico patrimonial da E... E I..., LDA. beneficiando esta empresa, a qual, a 31.12.2019, apresentava um saldo em dívida à A..., S.A. de € 84.366,92;

- ao permitir, a partir de junho de 2018, a saída da sua esfera jurídico-patrimonial dos montantes identificados no quadro que consta do ponto 49. dos factos provados, para a esfera jurídico patrimonial da F..., LDA. beneficiando esta empresa, a qual, a 31.12.2019, apresentava um saldo em dívida à A..., S.A. de € 108.625,81 relativo a pagamentos por conta;

- ao solicitar aos clientes da A..., S.A. que procedessem ao pagamento dos créditos desta para as contas da B..., S.A., da C..., LDA. e para a sua própria conta pessoal; e

- ao vender bens da insolvente na plataforma OLX.

Ao acabado de referir acresce que da factualidade provada decorre, ainda que, em representação da requerida, CC, prosseguiu, no seu interesse pessoal e de terceiros, uma exploração deficitária, traduzida nos resultados negativos que apresentava desde o exercício de 2019 [cfr. ponto 70. dos factos provados], não obstante saber ou não poder ignorar que tal exploração conduziria, como conduziu, com grande probabilidade a uma situação de insolvência, tendo, ainda, incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, pois que a contabilidade não refletia a real situação da A..., S.A., tendo praticado irregularidades, designadamente ao solicitar aos clientes daquela que procedessem ao pagamento dos créditos àquela devidos para as contas da B..., S.A., da C..., LDA. e para a sua própria conta pessoal, com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da devedora, pois que não foi possível apurar, em concreto, quais os montantes que se destinavam à insolvente e que acabaram, sem retorno, entregues em contas bancárias não tituladas por aquela.

Mais, resultou provado que não existia contabilidade da A..., S.A. desde o dia10 de abril de 2020, data em que o respetivo contabilista suspendeu o contrato de trabalho, com fundamento na falta pontual de retribuição, não tendo sido cumpridas, desde então, as obrigações fiscais, designadamente:

▪ IRC e IES - não foi entregue declaração Modelo 22 de IRS e IES, relativa ao período findo em 31.12.2019.

▪ Declaração de IRS/DMR - desde fevereiro de 2020, que não procederam à entrega das DMR.

▪ Declarações de IVA - encontram-se por entregar as declarações de IVA, relativas aos períodos de 03/2020, 04/2020, 05/2020, 06/2020, 07/2020 e 08/2020.

Da factualidade provada decorre também que CC, em representação da requerida, incumpriu, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do art. 188.º, pois que não forneceu ao Administrador da Insolvência todas as informações/documentos solicitados, ignorando algumas das solicitações e respondendo apenas parcialmente a outras, sendo que grande parte dos documentos e elementos a que o Administrador da Insolvência conseguiu ter acesso foram fornecidos pelo contabilista certificado em virtude dos contactos que o mesmo estabeleceu.

Assim, dúvidas não restam de que, no caso presente, encontram-se, efetivamente, demonstrados factos que conduzem ao preenchimento das als. d), f), g), h) e i) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE.

Acresce que, no caso vertente, haverá, ainda, que ter em linha de conta o disposto no art.186.º, n.º 3, als. a) e b). do CIRE.

Com efeito, a devedora encontrando-se numa situação e insolvência [na medida em que era manifesto que se mostrava incapaz de cumprir com as suas obrigações vencidas e o seu ativo era insuficiente para total satisfação do passivo] desde, pelo menos, finais de 2017 – considerando o incumprimento perante a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA em setembro de 2017 e perante a SEGURANÇA SOCIAL em novembro de 2017 e que a 31.12.2017, as dívidas da perante a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA ascendiam a cerca de € 200.000,00 e perante a SEGURANÇA SOCIAL, a, pelo menos, € 367.000,00 - não requereu a sua insolvência, sendo que o facto de não se ter apresentado, no prazo legal, à insolvência determinou, tal como decorre da factualidade provada, um aumento efetivo do seu passivo, pois de daí em diante e até à data da declaração a insolvência, as dívidas foram-se agravando substancialmente.

Atendendo ao valor global do passivo da sociedade, é evidente que a sua situação de insolvência era sobejamente conhecida de CC, que, ao invés de, como estava obrigado, ter apresentado a sociedade, no prazo previsto no n.º 1 do art. 18.º do CIRE, à insolvência, para liquidação do respetivo ativo e passivo de acordo com os legais procedimentos e preferências de pagamento, foi atuando, certamente movido pela esperança de melhoria da respetiva situação financeira, e foi constituindo dívida - e, assim, agravando a situação da devedora - desde, pelo menos, finais de 2017 e até setembro de 2020, altura em que foi declarada a insolvência da devedora, requerida a 16.02.2020 por vinte e quatro dos seus trabalhadores.

Ao acabado de referir, acresce que a devedora não depositou na Conservatória do Registo Comercial as respetivas contas de 2017, 2018 e 2019, sendo que as contas de 2017 e 2018 foram aprovadas em março de 2020 e as contas de 2019 não foram sequer sujeitas a aprovação.

Tal atuação – relativa ao incumprimento do dever de requerer a insolvência e da obrigação de elaborar as contas e de as depositar na Conservatória do Registo Comercial -, imputável a CC, administrador da devedora, aqui requerido, constituiu causa direta, necessária e previsível do relevante agravamento das consequências para os credores do estado de insolvência, na medida em que o incumprimento do dever de tempestiva apresentação à insolvência e do depósito anual das contas, frustrou qualquer hipótese de viabilização económica da atividade da devedora e de cobrança dos seus créditos, ao mesmo tempo que constituía novo passivo, o que inviabilizava a possibilidade do ressarcimento dos créditos sobre a insolvência.

A falta de conhecimento das contas da sociedade e da respetiva contabilidade mostra-se, pois, apta a reduzir a possibilidade do ressarcimento dos créditos sobre a insolvência e esse desconhecimento determina um agravamento da situação patrimonial da sociedade com o aumento do passivo.

Com efeito, e como anteriormente afirmamos, a qualificação da insolvência como culposa reclama cumulativamente uma conduta ilícita e culposa do devedor [ou dos seus administradores/gerentes]. A ilicitude relaciona-se com a criação ou agravamento da situação de insolvência, com culpa – imputando-se o conhecimento desse resultado e a vontade do mesmo a título de dolo ou negligência grave ou grosseira ao administrador/gerente da sociedade devedora - que nas situações de preenchimento das als. do n.º 2 do art. 186.º do CIRE a lei presume iure de iure.

Ora, a atuação que se tem vindo a descrever é apta a preencher uma conduta ilícita e culposa, sendo que os comportamentos acima descritos traduzem-se numa violação particularmente qualificada dos deveres de cuidado ou diligência presentes no caso, revelando uma atuação ao nível da negligência, senão grave, pelo menos, grosseira.

Mostram-se, pois, verificadas as situações previstas nas al. a) e b) do n.º 3 do art. 186.º do CIRE.

O agravamento da insolvência consubstancia-se, pois, na constante constituição, designadamente perante a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA e a SEGURANÇA SOCIAL, de dívida numa altura em que o requerido CC bem sabia que se encontrava impossibilitado, desde, pelo menos, finais de 2017, de cumprir com as suas obrigações vencidas – cfr. art. 3.º do CIRE.

Impõe-se, assim, concluir pela verificação, in casu, das presunções de insolvência culposa, a que alude o art. 186.º, n.º 2, als. d), f), g), h) e i) [inilidíveis] e n.º 3, als. a) e b) [ilidíveis, mas não ilididas], do CIRE e, considerando a factualidade provada, qualificar a insolvência, sendo por ela responsável o requerido CC, na medida em que foi quem exerceu a administração, praticando todos os atos necessários ao regular funcionamento da sociedade, designadamente contratando trabalhadores, adquirindo bens, procedendo a pagamentos e sendo o rosto visível daquela sociedade nas relações mantidas com clientes, fornecedores, trabalhadores e entidades públicas e bancárias.“.

Das alegações de recurso, pontos 187 a 208, conclui-se que a argumentação, apresentada pelo recorrente, está unicamente assente no pressuposto de que a factualidade tivesse sido alterada (no sentido por si proposto). Como ficou decidido, não obteve vencimento, a sua pretensão, pelo que quanto às diversas alíneas do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, que a sentença em crise diz que estão preenchidos os seus requisitos, nada há a acrescentar.

Bastaria que uma delas estivesse – como estão várias –, preenchida, para que o conhecimento das hipóteses das alíneas do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE se mostrasse inconsequente.

Ainda assim, sempre se poderá acrescentar o seguinte.

Quanto à alínea d), não restam dúvidas para este Tribunal da Relação do Porto que a acção do afectado CC, claramente, contribuiu ou agravou para a situação de insolvência da sociedade. Retirar da sociedade todo e qualquer património, é um dos casos clássicos, de qualificação da insolvência como culposa. E sendo tal “retirada de património” realizada sem qualquer justificação económico financeira, terá que ser tal conduta subsumida à apontada norma legal.

Por sua vez, quanto a estar demonstrado o preenchimento da hipótese legal da alínea f), é patente ter o recorrente actuado de modo a se poder afirmar ter usado crédito da insolvente em proveito pessoal e de terceira pessoa, designadamente de sociedades das quais detinha interesse directo.

Relativamente à alínea g) face à factualidade dada como provada, mormente aquela apontada na sentença em crise, é manifesto ter o recorrente ter actuado enquanto gestor da insolvente de modo a ter apresentado uma exploração deficitária, com resultados negativos. Desta situação e do seu agravar sempre o recorrente teve perfeita consciência.

A verificação de incumprimento em termos substanciais na obrigação de manter contabilidade organizada com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da insolvente, é obvio que os factos demonstram à saciedade ter o afectado, CC, actuado de modo a que a insolvente deixasse de ter contabilidade, sendo que tal comportamento foi-o em termos substanciais. Em sustento podemos consultar Ac Tribunal da Relação de Coimbra 167/09.2TYLSB-C.L1-1, de 11.12.2019, relatado pelo Des RIJO FERREIRA, dgsi.pt, “Assim, e como já se afirmou no acórdão da Relação de Coimbra de 08FEV2011 (proc. 1543/06.8TBPMS-O.C1)[1], o incumprimento deve “considerar-se substancial quando as omissões a esse nível atinjam um patamar que corresponde à não realização do que, em termos contabilísticos, é essencial ou fundamental”.

A contabilidade das empresas, através da escrituração, assume particular importância na medida em que, através das demonstrações geradas pela correlação dos respectivos dados, permite avaliar em cada momento a situação patrimonial e financeira da empresa. Em primeiro lugar, revela ao empresário a situação económico financeira da empresa, permitindo-lhe aferir dos fluxos financeiros, das perdas, dos prejuízos, as actuações onde se geram factores negativos e positivos. Mas também para quem se relaciona com a empresa (sócios, credores, clientes), quer porque constitui garantia de quem com ela contrata, que se serve dos dados contabilísticos como meio de prova, quer porque evidencia perante terceiros a situação económica e patrimonial da empresa e a maneira de negociar do empresário, satisfazendo um geral interesse público.

Para os efeitos da alínea h) do nº 2 do art.º 186º do CIRE o que releva não é tanto a contabilidade enquanto registo dos fluxos financeiros e operações comerciais, mas antes enquanto evidenciação do comportamento negocial do empresário pelo que a violação da obrigação de manter a contabilidade organizada só se pode ser tida em termos substanciais quando dessa omissão resulte não ser possível indicar com segurança a causa da insolvência e os seus responsáveis[2].“. “

Por fim quanto à alínea i), face à clareza do que vem exposto pela M.ma Juíza na fundamentação, não se nos afigura o que mais afirmar, para concluir por o recorrente haver incumprido os deveres e obrigações que sobre sai recaiam.

Ora, a letra da Lei impõe que para além da objectiva ocorrência de não cumprimento do dever de prestar informações ou colaboração com o Administrador de Insolvência, que tal acto/omissão seja reiterado.

Deste modo, o legislador entendeu atribuir relevância para efeitos de qualificação da insolvência como culposa não a um mero comportamento que viole o imposto pelo disposto no artigo 83.º do CIRE[3], mas a um acto/omissão reiterado.

O devedor insolvente, os seus administradores e membros do órgão de fiscalização atuais ou nos dois anos antecedentes (nº 4 do art. 83°) e os seus empregados e prestadores de serviços atuais ou nos dois anos anteriores (nº 5 do art. 83º) são obrigados a prestar todas as informações relevantes para o processo que lhes sejam pedidas pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal (nº 1, al. a), do art. 83º).

Para além disso, o devedor insolvente, os seus administradores e membros do órgão de fiscalização atuais ou nos dois anos antecedentes (nº 4 do art. 83º) são obrigados a prestar a colaboração que lhes seja solicitada pelo administrador da insolvência no âmbito das suas funções (al. c) do nº 1 do art. 83°).

A violação do dever de prestar informações e de colaboração é livremente apreciada pelo juiz para efeitos de qualificação da insolvência como culposa (arts. 83°, nº 3, e 186º, nº 1). Porém, se a violação do dever de colaboração assumir caráter reiterado, a insolvência deverá ser sempre considerada culposa (presunção inilidível de insolvência culposa, de acordo com o art. 186, nº 2, al. i))298, Depois, a violação pelo devedor, com dolo ou culpa grave, dos deveres de informação e de colaboração constitui motivo para indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante (art. 238º, nº 1, al. g)).”, MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, Manual de Direito da Insolvência, 8º ed. pág. 109.

A Lei exige e impõe que esta acção/omissão demonstre por parte do visado uma conduta demonstrativa de total desinteresse pelo decorrer do processo, não apresentando elementos que lhe forem solicitados, nem colaborando em certas e determinadas actividades que sejam relevantes para o processo e para a actividade do Administrador de Insolvência (cfr citado artigo 83.º, n.º 1 do CIRE). Mais, é de afirmar, que este incumprimento reiterado terá que ter influência ou produza efeitos na elaboração do parecer Administrador de Insolvência (artigo 188.º, n.º 6 do CIRE, “Declarado aberto o incidente, o administrador da insolvência, quando não tenha proposto a qualificação da insolvência como culposa nos termos do n.º 1, apresenta, no prazo de 20 dias, se não for fixado prazo mais longo pelo juiz, parecer, devidamente fundamentado e documentado, sobre os factos relevantes, que termina com a formulação de uma proposta, identificando, se for caso disso, as pessoas que devem ser afetadas pela qualificação da insolvência como culposa “).

Neste sentido Ac deste Tribunal da Relação do Porto, 252/20.0T8AMT-A.P1, de 13.04.2021, relatado pelo Des. RODRIGUES PIRES, Ac Tribunal da Relação do Porto 791/22.8T8OAZ-C.P1, de 30.05.2023, relatado pelo Des JOÃO RAMOS LOPES, Ac Tribunal da Relação do Porto 4458/17.0T8VNG-A.P1, de 27.04.2021, relatado pelo Des. JOSÉ IGREJA MATOS, Ac Tribunal da Relação do Porto 65/12.2TYVNG-H.P1, de 19.11.2020, relatado pelo Des FREITAS VIEIRA.

Deste modo, nada mais resta concluir, como o fez a sentença recorrida, por o afectado ter optado por um comportamento desleixado e de manifesta indiferença para com as suas obrigações e deveres.

Pelo exposto improcede o recurso, quanto às várias alíneas do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.

Por último quanto às alíneas a) e b), do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE, os factos dados como provados traduzem uma realidade bem distante da argumentada pelo recorrente.

A sociedade não estava em tal estado de pleno funcionamento normal, cumprindo as suas obrigações, para com terceiros e bem como para com os seus trabalhadores, já para não falar no Estado.

É obrigação de apresentação à insolvência, nos termos do artigo 18.º, n.º 3 do CIRE, em 30 dias a contar do conhecimento da situação de insolvência, ie, situação de impossibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas (artigo 3.º, n.º 1 do CIRE). A Lei expressamente prefigurou quais as hipóteses legais de índices da situação de insolvência as previstas no artigo 20.º do CIRE.

De igual modo, os factos são claros a apontar que foi incumprido o dever de elaborar as contas anuais da insolvente e a subsequente fiscalização e depósito. As regras de transparência e de uma sã concorrência, impõe tais deveres, que manifestamente foram desleixados pela insolvente, a mando do recorrente CC.

Não tem assim sustentação a argumentação do recorrente.

Quanto ao que vem “pedido” nas contra-alegações da Massa Insolvente, de fixação de um maior período de inibição para o exercício do comércio e para a ocupação de a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de pelo menos 8 anos e meio, sdr, não é este o rito processual para que seja colocada esta questão, designadamente por via de contra-alegações de recurso. Estamos perante “algo” inconsequente e irrelevante que não pode ser atendido.


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III DECISÃO


Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo afectado/apelante (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil).


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Porto, 20 de Fevereiro de 2024
Alberto Taveira
Alexandra Pelayo
João Diogo Rodrigues
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[1] O relator escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.
[2] Seguimos de perto o relatório elaborado pelo Exmo. Senhor Juiz.
[3] 1 - O devedor insolvente fica obrigado a:
a) Fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal;
b) Apresentar-se pessoalmente no tribunal, sempre que a apresentação seja determinada pelo juiz ou pelo administrador da insolvência, salva a ocorrência de legítimo impedimento ou expressa permissão de se fazer representar por mandatário;
c) Prestar a colaboração que lhe seja requerida pelo administrador da insolvência para efeitos do desempenho das suas funções.
2 - O juiz ordena que o devedor que sem justificação tenha faltado compareça sob custódia, sem prejuízo da multa aplicável.
3 - A recusa de prestação de informações ou de colaboração é livremente apreciada pelo juiz, nomeadamente para efeito da qualificação da insolvência como culposa.
4 - O disposto nos números anteriores é aplicável aos administradores do devedor e membros do seu órgão de fiscalização, se for o caso, bem como às pessoas que tenham desempenhado esses cargos dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.
5 - O disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2 é também aplicável aos empregados e prestadores de serviços do devedor, bem como às pessoas que o tenham sido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.