Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2075/2005-7
Relator: ARNALDO SILVA
Descritores: ADMINISTRADOR
CONDOMÍNIO
LEGITIMIDADE
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/28/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: 1. A acção de impugnação das deliberações da assembleia de condomínio tem de ser intentada contra o administrador do condomínio, porque é este que representa o processualmente o condomínio, e é este, enquanto conjunto organizado dos condóminos, que tem interesse em contradizer (art.º 26º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil).
2. Com a  concessão da personalidade judiciária ao condomínio, pela reforma processual de 1995/96 (DL n.º 329-A/95, de 12-12, com a redacção do Dec. Lei n.º 180/96, de 25-09), deixou de haver qualquer razão para demandar os condóminos votantes, como anteriormente justificadamente sucedia. Por isso, tem de se concluir que, com a reforma processual de 1995/96 o legislador minus dixit quam voluit, devendo o inciso constante do n.º 6 do art.º 1433º do Cód. Civil « a representação judiciária dos condóminos contra quem as acções são propostas (...) » passar a ser interpretado extensivamente, por forma a ver nele escrito que « a representação judiciária do conjunto dos condóminos contra quem as acções são propostas (...) », já que o condomínio, a quem o legislador veio a conceder personalidade judiciária após a reforma processual de 1995/96, é o conjunto organizado dos condóminos.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes, em conferência, na 7.ª Secção Cível, do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:

1. As deliberações da Assembleia de Condóminos de 02-02-2005, respeitantes ao prédio sito […] que aprovaram as contas de 2004 e o orçamento de 2005, com a divisão proporcional das despesas são abusivas e contrariam o disposto no art.º 1424º, n.º 1 do Cód. Civil, porque não prevêem a comparticipação da Q.[…] SA __ locadora da fracção “N”, correspondente ao rés-do-chão, destinado a armazém, escritório e comércio, do mesmo prédio, em virtude do contrato de locação financeira que celebrou com E.[…]SA, mais tarde por fusão B.[…]SA __, para com o argumento de que a Q.[…] não tem direito à utilização das garagens por não comparticipar nas respectivas despesas de conservação.

Com base nestes fundamentos, e no disposto nos art.ºs 1424, n.º 1 e 1433º do Cód. Civil, veio Q.[…] SA, com sede […] Lisboa, intentar contra Ed.[…], na qualidade de Administradora do imóvel sito […] Lisboa, acção declarativa comum com forma ordinária, que correu termos […] na qual pedem que sejam anuladas as deliberações da Assembleia de Condóminos de 02-02-2005, no que respeita à aprovação de contas de 2004 e orçamento de 2005.
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2. Na sua contestação a ré argúi a excepção dilatória da sua ilegitimidade com fundamento em que o pedido deveria ser formulado contra os condóminos que aprovaram tais deliberações, nos termos do art.º 1433º, n.º 6 do Cód. Civil, visto que o eventual prejuízo com a eventual procedência da acção não é do administrador do condomínio, mas sim dos condóminos que votaram a deliberação em causa, a relação jurídica material controvertida, tal como é configurada pela autora, respeita não à ré administradora, mas sim aos condóminos que aprovaram as deliberações cuja anulação é pedida. E a ré não é condómina, nem alega tal qualidade.

A ré defendeu-se ainda por impugnação.

E conclui pela procedência da excepção e da sua absolvição da instância e pela sua absolvição do pedido.
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3. No despacho saneador foi julgada procedente a excepção dilatória da ilegitimidade da ré e esta absolvida da instância, com a condenação da autora nas custas, com fundamento no disposto no art.º 1433º, n.º 6 do Cód. Civil, por desta norma resultar com clareza, que são os condóminos que são partes.
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4. Inconformada agravou a autora. Nas suas alegações conclui:
(...)
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5. Nas suas contra-alegações, a ré agravada, em síntese nossa, conclui:
(...)
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6. As questões essenciais a decidir:

Na perspectiva da delimitação pelo recorrente, os recursos têm como âmbito as questões suscitadas pelos recorrentes nas conclusões das alegações (art.ºs 690º, n.º 1 e 684º, n.º 3 do Cód. Proc. Civil), salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2 in fine do art.º 660º do Cód. Proc. Civil).

Atento o exposto e o que flui das conclusões das alegações(1) __ e só se devem conhecer as questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, ainda que outras, eventualmente, tenham sido suscitadas nas alegações propriamente ditas(2) __, da autora agravante supra descritas em I. I. 4., a questão essencial a decidir é a de saber se a ré administradora do condomínio, tem ou não legitimidade passiva para ser demandada nas acções de impugnação das deliberações da Assembleia do Condomínio.

Houve dispensa de vistos.

Cumpre decidir.
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II. Fundamentos:
A) De facto:

Os factos com interesse para a decisão do recurso são os supra descritos em I. 1..
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B) De direito:

1. A legitimidade da ré:

A questão é controversa.

Para uns o administrador não tem legitimidade passiva nas acções de impugnação de deliberações da assembleia de condóminos. Para outros tem. Para os primeiros, não tem, porque resulta claramente do n.º 6 do art.º 1433º do Cód. Civil que, nestas acções, estes são representados pelo administrador do condomínio ou pela pessoa que a assembleia designar para esse efeito, o que implica que condóminos não impugnantes(3) devem ser individualmente demandados, para intervirem na acção, até que a assembleia designe pessoa para assegurar especialmente a representação dos condóminos (representante especial ad litem) contra quem a acção é proposta, já que são estes que são efectivamente titulares do interesse directo em contradizer, visto que a deliberação, enquanto não for anulada, vincula todo o condómino, e a decisão que julgar procedente a impugnação continua a vinculá-lo. O regime previsto para estas acções afasta-se do regime previsto no art.º 1437º do Cód. Civil, porque estão em causa interesses de outra natureza(4). Nas acções de impugnação de deliberações da assembleia de condóminos estão em causa aspectos internos da orgânica do condomínio e, como tal, não existe personalidade jurídica do condomínio, e só os condóminos podem ser demandados. A personalidade judiciária do condomínio [art.º 6º al. e) do Cód. Proc. Civil] só se limita às acções que, por força do estatuído no art.º 1437º do Cód. Civil, se inserem no âmbito dos poderes de administração e legitimidade do administrador. Para os segundos, tem, porque o administrador nunca é prejudicado pela procedência da acção. Ele age como representante orgânico do condomínio. A deliberação exprime a vontade do condomínio, do grupo, e não dos condóminos (individualmente considerados). E, sendo um acto do condomínio, a legitimidade passiva cabe ao administrador. A redacção do art.º 1433º, n.º 4 do Cód. Civil, é anterior à reforma de 1994 e não foi objecto de necessária actualização. As controvérsias respeitantes à impugnação de deliberações da assembleia apenas satisfazem exigências colectivas de gestão condominial, sem atinência directa com o interesse exclusivo de um ou vários participantes, pelo que, nas acções de impugnação de deliberações da assembleia de condóminos cabe exclusivamente ao administrador(5).

Que pensar?

Do disposto no n.º 6 do art.º 1433º do Cód. Civil resulta claramente que as acções de impugnação da assembleia de condóminos são intentadas contra os condóminos, os quais são representados judiciariamente pelo administrador ou pela pessoa que a assembleia designar para o efeito. Este número constava já do n.º 4 do mesmo artigo na redacção anterior ao Dec. Lei n.º 267/94, de 25-09. Passando o anterior n.º 4 a ser o actual n.º 6. Por sua vez o art.º 6º al. e) do Cód. Proc. Civil(6), concede personalidade judiciária ao condomínio relativamente às acções em que, por ele, pode intervir o administrador, nos termos do art.º 1436º do Cód. Civil (como réu) e art.º 1437º do Cód. Civil (como autor ou como réu) __ o que já resultava desta última disposição(7). Após a reforma processual de 1995/1996, o art.º 6º al. e) do Cód. Proc. Civil ficou em consonância com o n.º 6 do art.º 1433º do Cód. Civil. Na interpretação, o elemento literal é necessário, mas não é suficiente. É apenas um ponto de partida, que raramente dispensa o recurso a outros elementos da interpretação, se com eles conflituar(8). A norma em questão (n.º 6 do art.º 1433º do Cód. Civil) integra-se na secção IV (Administração das partes comuns do edifício), do capítulo VI (Propriedade horizontal), do título II (Do direito de propriedade), portanto colocada pelo sistema, na mesma secção onde se encontra se situa o art.º 1436º, onde se enumeram as funções do administrador, e visa precisamente, possibilitar a impugnação das deliberações (decisões) da assembleia do condomínio (órgão administrativo deliberativo da propriedade horizontal), contra condóminos votantes da deliberação que estiver em questão. Com a concessão da personalidade judiciária ao condomínio, pela reforma processual de 1995/96 (DL n.º 329-A/95, de 12-12, com a redacção do DL nº 180/96, de 25-09), deixou de haver qualquer razão para demandar os condóminos votantes, como anteriormente justificadamente sucedia. E não faz qualquer sentido que, para os casos previstos no art.º 1437º do Cód. Civil, o condomínio tenha personalidade judiciária, sendo representado pelo administrador, mas já não tenha quando se trate de impugnação das deliberações da assembleia do condomínio, quando o que está em questão continua, no fundo, a ser a administração do condomínio, relativamente às decisões que toma. Está, em rigor, em causa a gestão do condomínio e não interesses de outra natureza. Por isso, tem de se concluir que, com a reforma processual de 1995/96 o legislador minus dixit quam voluit, devendo o inciso constante do n.º 6 do art.º 1433º do Cód. Civil « a representação judiciária dos condóminos contra quem as acções são propostas (...) » passar a ser interpretado extensivamente, por forma a ver nele escrito que « a representação judiciária do conjunto dos condóminos contra quem as acções são propostas (...) », já que o condomínio, a quem o legislador veio a conceder personalidade judiciária após a reforma processual de 1995/96, é o conjunto organizado dos condóminos. As deliberações da assembleia do condomínio (órgão colegial deliberativo do condomínio) exprimem, sem dúvida, a vontade do condomínio e não dos condóminos individualmente considerados, já que, por lei é órgão administrativo do condomínio que pode validamente deliberar no que respeita à administração das partes comuns do edifício em regime do propriedade horizontal, e, portanto, dentro desta área de competência, tem aptidão para exprimir a vontade do condomínio, enquanto grupo estruturalmente organizado dos titulares de direitos de propriedade horizontal(9), e não dos condóminos individualmente considerados(10). Sendo assim um acto do condomínio, a legitimidade passiva para as acções de impugnação das deliberações do condomínio cabe ao administrador e não aos condóminos votantes.

No caso sub judice, segundo a tese configurada pela autora, o condomínio tem interesse directo em contradizer (art.º 26º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil), interesse que se exprime pelo prejuízo que da procedência da acção advenha. E porque a representação processual deste compete ao administrador do condomínio, conforme se deixou exposto, logo tem este legitimidade passiva.
Procede, pois, o recurso.
***
III. Decisão:

Assim e pelo exposto, acordam em julgar procedente o agravo e, consequentemente, dando-lhe provimento, revogam a decisão recorrida, e julgam a agora a ré parte legítima.

Custas pela ré.

Registe e Notifique (art.º 157º, n.º 4 do Cód. Proc. Civil).
***
Lisboa, __28__/__3__/__2006

Arnaldo Silva
Graça Amaral
Orlando Nascimento

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(1).-Conclusões que terão de ser, logicamente, um resumo dos fundamentos porque se pede o provimento do recurso, tendo como finalidade que elas se tornem fácil e rapidamente apreensíveis pelo tribunal. As conclusões não devem ser afirmações desgarradas de qualquer premissa, e sem qualquer referência à fundamentação por que se pede o provimento do recurso. Não podem ser consideradas conclusões as indicadas como tal, mas que sejam afirmações desgarradas sem qualquer referência à fundamentação do recurso, nem se deve tomar conhecimento de outras questões que eventualmente tenham sido suscitadas nas alegações propriamente ditas, mas não levadas às conclusões. Por isso, só devem ser conhecidas, e só e apenas só, as questões suscitadas nas alegações e levadas às conclusões. Neste sentido, vd. Acs. do STJ de 21-10-1993 e de 12-01-1995: CJ (STJ), respectivamente, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19.

(2).-Cfr. supra nota 1.

(3).-Isto é, os que votaram as deliberações, e que são sujeitos da relação material controvertida.

(4).-Neste sentido, vd. Rosendo Dias José, A Propriedade Horizontal, Liv. Petrony – 1982, págs. 117-118; L. P. Moitinho de Almeida, Propriedade Horizontal, 2.ª Ed., Liv. Almedina – 1997, págs. 114-115; Aragão Seia, Propriedade Horizontal, Liv. Almedina – 2001, pág. 182 ponto 13. Todavia, na pág. 207 aponta para a tese contrária, apoiando-se no Ac. da R. de Lisboa de 14-05-1998: CJ Ano XXIII, tomo 3, págs. 97-98; e, v.g., Acs. do STJ de 02-02-2006: Agravo, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, etc., Proc. n.º 05B4296, n.º Convencional JSTJ000 – Relator Conselheiro Moitinho de Almeida – unanimidade; de 26-04-2001: Revista n.º 717/01 – 7.ª Secção – Relator Conselheiro Oliveira Barros; de 22-11-1990: Agravo, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, etc., Proc. n.º 079772, n.º Convencional JSTJ00005674 – Relator Conselheiro Joaquim de Carvalho – unanimidade; 14-02-1991: Agravo, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, etc., Proc. n.º 080355, n.º Convencional JSTJ00007796 – Relator Conselheiro Pereira da Silva – unanimidade; Acs. da R. de Lisboa de 07-02-1984: CJ Ano IX, tomo 1, pág. 184; 20-11-1984: Agravo, in http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/, etc., Proc. n.º 0017012, n.º Convencional JTRL000129271 – Relator Desembargador Valente Silva – unanimidade; de 08-02-1990: CJ Ano XV, tomo 1, pág. 161; 14-12-1991: Apelação, in http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/, etc., Proc. n.º 0033852, n.º Convencional JTRL00012862 – Relator Desembargador António Abranches Martins – unanimidade; de 30-09-1997: CJ Ano XXII, tomo 5, págs. 96 e segs.; de 25-11-1997: CJ Ano XXII, tomo 5, pág. 101; Ac. da R. de Coimbra de 09-07-1991: BMJ 409 pág. 885; Ac. da R. de Évora de 02-07-1998: BMJ 479 pág. 730.

(5).-Neste sentido, vd. Sandra Passinhas, A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, Liv. Almedina – 2000, pág. 337; Ac. da R. de Lisboa de 14-05-1998: CJ Ano XXIII, tomo 3, págs. 97-98 – Desembargador Silva Pereira - unanimidade; Ac. da R. do Porto de 05-02-2004: Agravo, in http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/, etc., Proc. n.º 0650237, n.º Convencional JTRP00038792 – Relator Desembargador Caimoto Jácome – unanimidade. Cfr. supra nota 4 a propósito da posição de Aragão Seia.

(6).-Na redacção após a reforma processual de 1995/1996

(7).-Vd. J. Lebre de Freitas e outros, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. 1º, Coimbra Editora – 1999, pág. 21 anotação 5. ao artigo 6º.

(8).-Vd. A. Santos Justo, Introdução ao Estudo do Direito, 2.ª Ed., Coimbra Editora – 2003, pág. 328.

(9).-Vd. Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Lex (Reprint 1979) - Lisboa 1979, pág. 639. Ou, como descritivamente diz Henrique Mesquita, RDES, XXIII, págs. 83-84, dos titulares das várias fracções autónomas ou unidades independentes na propriedade horizontal, sendo ainda comproprietários das partes do edifício que constituem a sua estrutura comum ou estão afectadas ao serviço daquelas fracções.

(10).-Vd. Sandra Passinhas, ibidem, pág. 337.