Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4856/23.0T8BRG-A.G1
Relator: JOSÉ FLORES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRA CONTRATUAL
PRESCRIÇÃO
CONHECIMENTO NO SANEADOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/14/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO DO RÉU PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
- A fim de beneficiar do prazo mais longo de prescrição, nos termos do n°3 do artigo 498.° do Código Civil, deve o autor provar que o facto ilícito constitui efetivamente crime, não bastando a sua mera alegação;
- A apreciação, no despacho saneador, dessa exceção, pressupõe que a matéria de facto pertinente não esteja controvertida, ou seja, como prescreve o art. 595º, do Código de Processo Civil, que o estado do processo já o permita, sem necessidade de mais provas.
Decisão Texto Integral:
Relator – Des. José Manuel Flores
1º - Adj. Des. Sandra Melo
2º - Adj. Des. Maria Amália Santos

ACORDAM OS JUÍZES NA 3ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

I – Relatório

Recorrente(s): FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL;

- Recorrido/a(s): AA.
*
O Réu, aqui Recorrente, invocou a prescrição do direito do autor alegando que decorreram mais de cinco anos desde a data em que ocorreu o acidente de viação que está em causa nos presentes autos e a data em que foi citado.
O Autor respondeu, em articulado anómalo.
Sem mais, o Tribunal dispensou a audiência prévia e proferiu despacho saneador, no seio do qual apreciou e julgou improcedente a mencionada exceção de prescrição.
*
Inconformado com tal decisão, dela interpôs o F.G.A. o presente recurso de apelação, em cujas alegações formula as seguintes
conclusões:

1. O Tribunal, ao invés de, desde já, ter julgado a exceção de prescrição improcedente, deveria ter relegado o conhecimento da mesma para final;
2. Estando integralmente questionada a matéria de facto atinente à forma como o acidente ocorreu, não pode, neste momento processual, afirmar-se que tenha ocorrido um facto ilícito criminal e que o autor possa beneficiar do alongamento do prazo de prescrição previsto no n.º 3 do artigo 498.º do Código Civil;
3. O tribunal, ao decidir como decidiu, violou o disposto no n.º 3 do artigo 498.º do Código Civil.

TERMOS EM QUE, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROVADO E PROCEDENTE, REVOGANDO-SE A DECISÃO RECORRIDA.

O Recorrido não apresentou contra-alegações.

II – Delimitação do objeto do recurso e questões prévias a apreciar:

Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atividade do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas[2] que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[3]
No caso, as questões enunciadas pelo recorrente reconduzem-se à alegada violação do disposto no art. 498º, nº 3, do Código Civil, e à intempestividade da apreciação do mérito da exceção por si invocada.
 
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
III – Fundamentos

1. Factos
Pelo que se percebe do discurso fundamentador da decisão, foi considerado o seguinte:
Tendo o autor sofrido lesões corporais, o acidente de viação que ocorreu configura a prática pelo responsável de um crime de ofensa à integridade física simples. O prazo de prescrição aplicável a este crime é de cinco anos, pelo que é também este o prazo a que deve atender-se nos presentes autos (art. 118º nº1 al. a) e 141º nº1 do Cód. Penal).
Tendo o acidente ocorrido no dia 2 de Maio de 2018, o prazo de cinco anos terminava no dia 2 de Maio de 2023.
Todavia, importa atender aos períodos de suspensão dos prazos de prescrição no âmbito das medidas de prevenção e combate à pandemia provocada pela doença Covid-19 que foram estabelecidos pela Lei nº1-A/2020 de 19 de Março e pela Lei nº4-B/2021 de 1 de Fevereiro, no total de 160 dias.
Atendendo a estes períodos de suspensão, a prescrição do direito do autor ocorria no dia 9 de Outubro de 2023.
Tendo o réu sido citado no dia 11 de Setembro de 2023, não se verifica a prescrição do direito do autor, uma vez que nesta interrompeu-se o prazo que estava a decorrer (art. 323º nº1 do Cód. Civil).”

2. Direito

No entender do Apelante, em suma, estando integralmente questionada a matéria de facto atinente à forma como o acidente ocorreu, não pode, neste momento processual, afirmar-se que tenha ocorrido um ilícito criminal e que o autor possa  beneficiar do alongamento do prazo de prescrição previsto no n.º 3 do artigo 498.º do Código Civil, dado que se pode dar o caso de estar em questão uma situação de responsabilidade pelo risco, ou de responsabilidade do próprio autor na produção do acidente, aplicando-se, assim, e apenas, o prazo de 3 anos.
Por isso, defende que o tribunal, ao invés de, desde já, ter julgado a exceção de prescrição improcedente, deveria ter relegado o conhecimento da mesma para final.

Será assim?
Antes de mais, convém salientar que, em princípio, é inviável aplicar direito substantivo sem matéria de facto consolidada e, nesse âmbito, quer a decisão recorrida, quer a apelação, parecem, salvo o devido respeito, ignorar essa regra: a primeira, para além de recorrer a conclusões, não motivou a sua decisão no que diz respeito aos “factos” que aparentemente considerou; a segunda não se preocupou minimamente em discutir esse aspeto, nomeadamente à luz da previsão do art. 640º, do Código de Processo Civil.
Posto isto, por economia, iremos aqui renovar argumentos que já foram expressos por este relator em Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 21.11.2019[4], perante situação semelhante (cf. art. 8º, nº 3, do C.C.).
Com efeito, igualmente neste caso, o mérito da apelação resolve-se sabendo se a consolidação da matéria de facto, que permite a configuração da conduta do suposto responsável pelo acidente como ilícito criminal, é ou não condição para que se possa conhecer da exceção de prescrição invocada pela Ré/Recorrente e se, neste caso, essa estava satisfeita.
De acordo com a previsão do art. 498º, do Código Civil, e para o que aqui releva, (1.) O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respetivo prazo a contar do facto danoso. (3.) Se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável.
O Tribunal a quo entendeu, neste caso concreto, com base nos dados acima sublinhados que quando a Ré foi citada ainda não tinham decorrido o prazo de 5 anos, que considera aplicável ao caso por via do disposto nos arts. 498º, nº 3, do Código Civil.
O Apelante, por sua vez, defende que a decisão em crise considerou a existência de um crime com base em factos controvertidos.
E, na verdade, dita o art. 595º, que o despacho saneador proferido pelo Tribunal recorrido destina-se, além de mais, (1/b) conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.
Resulta, assim, desta norma adjetiva que o procedimento para o conhecimento de exceções perentórias, que se integra na apreciação do mérito da causa, pressupõe que, independentemente de estar em jogo matéria de direito ou de facto, o estado do processo possibilite tal decisão, sem necessidade de mais provas, e independentemente de a mesma favorecer um ou outra parte[5].
Como referia, a propósito, o Prof. Alberto dos Reis[6]: É muito conveniente que a justiça seja pronta; mas é mais conveniente que ela seja justa.
No caso, como não ignora o Tribunal a quo no silogismo que conduziu à decisão em crise, é determinante para julgar a exceção perentória invocada pela Ré, que se conclua, com a devida segurança, que o facto ilícito imputado ao condutor da viatura em causa constitui determinado ilícito criminal, maxime o de “ofensa à integridade física simples” previsto e punido no “art. 141º”, do Código Penal.
Porém, desde logo, sucede que a decisão em crise não apontou qualquer facto histórico (objetivo e/ou subjetivo) que pudesse configurar esse ilícito penal, antes optando por considerar no seu julgamento conclusões de facto ou de direito – “lesões corporais”/ “ofensa à integridade física simples” – inadmissíveis neste caso em que, precisamente, é determinante o escrutínio da existência desse tipo de ilícito, que se define legal ou tipicamente por essas expressões.
De resto, a decisão, porventura por lapso, cita normas do Código Penal que não são adequados ao discurso em que se encontram e aponta para um crime doloso (art. 143º, nº 1, do C.P.) que nem transparece da conduta culposa ou negligente que o Autor invoca no seu articulado inicial.
Acresce que, na situação em apreço, essa factualidade (toda a alegada na p.i.) foi questionada pelo Réu na sua contestação (vide o seu item 18[7]) e deve, por isso (art. 574º, do C.P.C.), ser considerada controvertida, exigindo a sua objetivação nos temas da prova e o julgamento que é fundamental para a justa composição do litígio.
Aliás, foi esse o entendimento do Tribunal a quo, que inscreveu a matéria pertinente para imputação da responsabilidade do acidente no objeto do litígio e nos temas da prova.
Diante disto, não restava outro percurso ao Tribunal recorrido além do que exigia a remissão do conhecimento da referida exceção para momento posterior ao julgamento da matéria de facto pertinente.
Em vez disso, optou-se por considerar dado adquirido um dos fatores cumulativos da solução jurídica encontrada – a prática do referido crime  - sem o devido julgamento, em face da simples alegação de tal matéria pelo Autor.
No entanto, como resulta do acima exposto, a qualificação final dos factos subjacentes a essa conduta não se basta com a sua alegação[8], exigindo-se o seu julgamento assente nas regras substantivas e processuais que, em geral, regem a sua prova, e uma decisão que respeite, na parte aplicável, a exigências de fundamentação previstas no art. 607º, do Código de Processo Civil, uma vez que estamos perante uma decisão de mérito, ainda que parcial.
Procedem, em conformidade com o exposto, as conclusões da Recorrente, havendo que revogar a decisão recorrida e remeter para final a apreciação da exceção de prescrição em apreço (cf. art. 665º, do Código de Processo Civil).

Tendo em conta o sentido da decisão e a regra do art. 527º, do Código de Processo Civil, não serão imputadas custas ao Apelante.                                   
IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e remetendo para final a apreciação da prescrição invocada pelo Réu/Recorrente.

Sem custas, sem prejuízo das custas de parte.
N.
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Sumário[9]:

- A fim de beneficiar do prazo mais longo de prescrição, nos termos do n°3 do artigo 498.° do Código Civil, deve o autor provar que o facto ilícito constitui efetivamente crime, não bastando a sua mera alegação;
- A apreciação, no despacho saneador, dessa exceção, pressupõe que a matéria de facto pertinente não esteja controvertida, ou seja, como prescreve o art. 595º, do Código de Processo Civil, que o estado do processo já o permita, sem necessidade de mais provas.
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Guimarães, 14-03-2024


[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pp. 106.
[2] Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 107.
[4] In https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/621aa57c2e750a62802584c700546e1f?OpenDocument
[5] Cf. nesse sentido A. Geraldes, Paulo Pimenta, e Luís Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, p. 696
[6] In Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 4ª Ed., p. 189 
[7]Expressamente se impugna o vertido nos artigos 1.º a 177.º da douta petição inicial, nos termos do n.º 3 do artigo 574.º do Código de Processo Civil.”
[8] Cf. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 14.12.2006, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/8ba17ac7a74b07b4802572670040f4df?OpenDocument: “É face aos factos, tal como o autor os desenha que se poderá apreciar a exceção em causa. Salvo se forem contestados, hipótese em que a sua apreciação será remetida para a decisão final.”
Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 21.2.2019, in http://www.gde.mj.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/edb8170fce9a0f94802583d0004b1093?OpenDocument : I - O conhecimento de uma exceção perentória no despacho saneador exige que ocorra uma estabilidade dos factos e um estabilidade da resposta jurídica a ser dada à solução final, não sendo possível aquela e esta em virtude da factualidade revelar-se, nessa fase, controvertida.
Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 8.3.2007, in https://dre.pt/pesquisa/-/search/98130175/details/maximized : V – A decisão da exceção perentória da prescrição logo na fase do Despacho saneador é prematura, quando parte da matéria que foi quesitada revelava-se, desde logo, necessária a uma correta e rigorosa caracterização do negócio jurídico celebrado e da regime legal aplicável (nomeadamente, da Convenção C.M.R.).
Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12.10.2017, in http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/f6bcf31578960e71802581c200533ab0?OpenDocument : Quando os factos essenciais ao conhecimento de exceção perentória se mostram controvertidos, no despacho saneador o tribunal deve relegar para final o conhecimento da mesma, ainda que tenha prévia e oficiosamente produzido prova por documentos particulares, tendente ao apuramento desses factos controvertidos.   
[9] Da responsabilidade do relator – cf. art. 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.