Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B2380
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BETTENCOURT DE FARIA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
MOTOCICLO
CULPA CONCORRENTE DE TERCEIRO
CULPA DO LESADO
PRESCRIÇÃO
PRESCRIÇÃO EXTINTIVA
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ200612140023802
Data do Acordão: 12/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - Se o condutor de um motociclo pretende mudar de direcção e, depois de fazer a necessária sinalização luminosa e se aproximar do eixo da via, ocupa a faixa de sentido contrário, no momento em que aí passa um veículo automóvel que circula junto de tal eixo, apesar da via estar toda desimpedida, o embate entre ambos resulta de culpa de ambos os condutores.
II - Sendo que é de atribuir essa culpa em proporções idênticas- 50% .
III - Quando o artº 498º nº 3 do C. Civil prevê que o facto ilícito constituía crime, para efeitos dum prazo prescricional mais longo, não se reporta à efectiva responsabilidade criminal do agente, mas, objectivamente, à qualificação jurídico-criminal dos factos.
IV - A indemnização não pode ser moderada atendendo à culpa do lesado, se já foi reduzida pela percentagem de culpa a ele atribuída. *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I
"AA" e Outros moveram a presente acção ordinária contra Empresa-A - entretanto incorporada na Empresa-B - , pedindo que a ré fosse condenada a pagar, à 1ª ré, a quantia de € 76.629,50 e a cada um dos demais demandantes a quantia de € 11250,00, em ambos os casos com juros desde a citação.
A ré contestou.
O processo seguiu os seus trâmites e, feito o julgamento, foi proferida sentença que absolveu a ré do pedido.
Apelaram os autores, tendo o Tribunal da Relação condenado a ré a pagar aos autores a quantia global de € 107.500,00.
Recorrem, agora, ambas as partes, as quais, nas suas alegações de recurso, apresentam, em síntese, as seguintes conclusões:

recurso dos autores

1. O veículo ligeiro circulava a uma velocidade de 60/70 km/h, quando no local o máximo permitido é de 50 km/h e só se conseguiu deter a cerca de 68 metros.
2. A largura da estrada no local é de 3,40 metros e o veículo ligeiro não tem mais de 1,60 metros, pelo que não se justificava que circulasse a 50 centímetros do eixo da via, tanto mais que avistara, acerca de 20 metros, o ciclomotor a circular em sentido contrário.
3. O condutor do ciclomotor, ao realizar a manobra de virar à esquerda para entrar num entroncamento da via por onde seguia, fez o sinal luminoso de mudança de direcção e aproximou o seu veículo do eixo da via.
4. Não lhe pode ser assacada qualquer responsabilidade na produção do embate, que é toda do condutor do veículo ligeiro.
5. E, de qualquer modo, nunca poderia essa responsabilidade ser superior a 25%.

recurso da ré

1. O Tribunal recorrido não podia conhecer da excepção peremptória da prescrição alegada pela ré, sem previamente apurar se a conduta do seu segurado preenchia efectivamente qualquer tipo de crime.

2. Não basta a mera eventualidade da conduta daquele constituir crime, nomeadamente, o previsto no artº 137º do C. Penal, devendo os autores provar que assim é, para poderem beneficiar do prazo mais longo de prescrição do artº 498º nº 3.
3. Ora, os factos provados não demonstram que tenha ele praticado qualquer ilícito, devendo a responsabilidade pelo acidente ser integralmente imputada ao outro condutor.
4. Não revelando os autos a largura do veículo ligeiro - de mercadorias - o facto do embate se ter dado a cerca de 50 centímetros do eixo da via, até pela incerteza da medição (cerca de), não significa que circulasse o mesmo afastado em demasia da sua berma direita.
5. Mas ainda que assim fosse, esse facto não foi causal, uma vez que foi a invasão da faixa de rodagem pelo ciclomotor a causa do embate e este sempre se daria, ainda que um pouco mais para o meio do veículo
6. E, a haver responsabilidade do condutor do ligeiro, nunca será ela superior a 10%.
7. A indemnização fixada para a reparação do dano morte, deve-se situar no montante de 20.000 euros, enquanto que as quantias fixadas a título de danos morais da mulher e de cada um dos filhos deverão ser as de 12.500 e 7.500 euros, respectivamente.

II
Nos termos do artº 713º nº 6 do C. P. Civil consignam-se os factos dados por assentes pelas instâncias remetendo para o que consta de fls. 387 a 389.

III
Apreciando

recurso dos autores

1. Os recorrentes colocam como única questão a de que à vítima, o condutor do ciclomotor, não pode assacada qualquer quota parte na produção do acidente, nomeadamente de 50 %, como entendeu o Tribunal da Relação.
Essencial para a apreciação da questão é o que consta da matéria provada nos pontos 10, 12, 13 e 20 dos factos assentes - fls. 353 - :
"E dirigiu o seu veículo para a dita rua, em orientação oblíqua, enquanto ultrapassou a linha contínua existente no pavimento, passando a circular na semi-faixa contrária, ainda a menos de 50 cm da marca do centro da estrada."
"Ora a dita invasão ocorreu no preciso momento em que AQ se cruzava com 2BRG."
"BB, isto é, o condutor do ligeiro, embateu com a parte lateral da frente esquerda, de AQ na parte lateral esquerda (pisca frontal e protector) de 2BRG.".
"Cada semi-faixa tem ali 3,40 m de largura e a da direita no sentido Braga-Famalicão (sentido do veículo ligeiro) estava completamente livre e desimpedida."
Por outro lado, há que assinalar que o nexo de causalidade na sua vertente factual escapa à apreciação do STJ.

Ora, a este respeito o Tribunal da Relação assinalou que "Ao ter colocado o automóvel que dirigia, pelo contrário, junto ao eixo central, quando deveria seguir, como vimos, junto à berma e, se o fizesse, preveniria o embate..." O que significa que entendeu como causal do acidente o modo como se fazia a condução do ligeiro. Esta conclusão não pode ser alterada.
Agora, cabe, apenas ver se essa condução pode ser considerada negligente.
E é-o efectivamente.
Os veículos para prevenir ou reduzir os riscos de colisão com outros veículos que circulem em sentido contrário ou que pretendam realizar qualquer manobra que possa limitar o seu espaço de circulação devem circular, não só pelo seu lado direito, ou pela sua faixa direita da via, como também o mais próximo da sua berma direita que, em segurança, lhes for possível, a 50cm dela.
Temos assim, uma condução causal do acidente e que deve ser qualificada de negligente.
Quanto ao condutor do motociclo manifesto é que igualmente teve uma conduta causal e pouco cuidadosa.
Com efeito, passou a divisória central da via, em que condições em que o não devia fazer, pois a passagem do ligeiro, nesse momento, que não podia ignorar, criava um perigo de embate das viaturas, como na realidade aconteceu. O facto de ter assinalado devidamente a mudança de direcção, como referem os autores nas suas conclusões de recurso, não lhe conferia o direito absoluto de atravessar a faixa contrária, ou seja, sem atender ao risco que em concreto a sua manobra iria gerar.
Concorreram, portanto, ambos os condutores para a produção do evento danoso, sendo que pela gravidade das respectivas actuações não é possível discernir qual delas criou um risco maior. Assim, a concorrência de culpas é igual.
Termos em que nada há a censurar ao que a este respeito foi decidido no acórdão impugnado.

recurso da ré

1. Refere a recorrente que, para que se possa aquilatar de qual o prazo de prescrição a ter em conta, é necessário saber qual foi o crime que efectivamente foi praticado. Não bastaria, por isso, a mera eventualidade de a conduta em apreço poder a vir integrar determinado tipo criminal.
No entanto, não é isso que a lei prescreve.
O artº 498º nº 3 do C. Civil, ao referir que "Se o facto ilícito constituir crime..." não está a apontar para a responsabilidade criminal, mas sim, de forma objectiva, para a qualificação criminal que deriva directamente do facto ilícito. Portanto, o facto articulado pelo demandante na petição inicial, demandante este a quem compete definir a relação jurídica controvertida. É face aos factos, tal como o autor os desenha que se poderá apreciar a excepção em causa. Salvo se forem contestados, hipótese em que a sua apreciação será remetida para a decisão final. De qualquer modo, nesta decisão, para decidir a prescrição, o que o julgador verá é se os factos que comprovadamente são imputados ao responsável civil integram determinado tipo criminal e não se praticou ele esse mesmo crime.
No caso, é manifesto que nenhuma dúvida decorre dos factos assentes.

Ninguém impugna a realidade da morte de um dos condutores. Portanto, o tipo criminal em questão só pode ser o de homicídio involuntário a que corresponde prazo de prescrição mais longo do que aquele que respeita às ofensas corporais. Donde que o prazo de prescrição tenha de ser o mais longo. Isto independentemente, repete-se, de tal ilícito criminal, poder ser assacado a alguém, nomeadamente ao condutor do veículo seguro na recorrente.

2. Quanto às considerações feitas pela recorrente sobre o modo como ocorreu o acidente, remete-se para as considerações feitas no recurso dos autores.

3. Pugna a recorrente pela moderação da verbas indemnizatórias fixadas pela Relação, alegando, em suma, que é preciso atender à concorrência da culpa do lesado.
Salvo o devido respeito, a proceder tal argumento, estar-se-ia a fazer uma indevida duplicação. Essa concorrência não deve ser tida em conta ao fazer-se o cálculo dos montantes das indemnizações, uma vez que estes, posteriormente, são reduzidos por via das percentagens da culpa.
Os valores arbitrados em 2ª instância situam-se dentro do que são as correntes jurisprudenciais nesta matéria.
E o argumento ético de que a indemnização civil visa também censurar a conduta do agente, é aqui, quando tal agente faleceu, excessivo e, de qualquer maneira, só seria de aplicar à indemnização pelo direito à vida e nunca às indemnizações de que são directamente titulares os autores, que nunca poderiam ser herdeiros morais da sua culpa.

Termos em que improcedem os recursos.

Pelo exposto, acordam em negar as revistas e confirmam o acórdão recorrido.

Custas de cada recurso pelos respectivos recorrentes.

Lisboa, 14 de Dezembro de 2006
Bettencourt de Faria
Pereira da Silva
Rodrigues dos Santos