Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
16289/16.0T8LSB.L1-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: PRESCRIÇÃO
CONHECIMENTO NO SANEADOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Quando os factos essenciais ao conhecimento de excepção peremptória se mostram controvertidos, no despacho saneador o tribunal deve relegar para final o conhecimento da mesma, ainda que tenha prévia e oficiosamente produzido prova por documentos particulares, tendente ao apuramento desses factos controvertidos.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os Juízes abaixo assinados.


Relatório:


A. S. intentou acção declarativa com processo comum contra G., S.A., pedindo a condenação desta no pagamento da quantia global de € 26.572,00, correspondente ao valor dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência do atropelamento causado em 2/7/2013 pelo veículo de matrícula xx-xx-xx, seguro na R., e de onde decorreu a sua queda com traumatismo craniano e perda dos sentidos, sendo que, para além do mais, alegou ter estado internada até 14/7/2013 com perda de discernimento.

Regularmente citada, a R. apresentou contestação onde, para além do mais, invoca a excepção peremptória de prescrição do (alegado) direito da A. à indemnização, alegando que à data da sua citação e desde a data do acidente já tinha decorrido o prazo de três anos a que alude o art.º 498º, nº 1, do Código Civil, sem que a A. tenha promovido a interrupção do prazo em questão.

Em exercício do contraditório a A. invoca, em síntese, que o prazo de prescrição só começou a ser contado em 14/7/2013, dado que até aí e desde a data do acidente esteve com perda de conhecimento, não estando no gozo das suas faculdades físicas e mentais e não sabendo o que tinha acontecido.

O tribunal recorrido ordenou que fosse oficiado o Centro Hospitalar de Lisboa Central para informar se a A. deu entrada no Hospital de S. José em Lisboa em 2/7/2013, na sequência do acidente em causa nos autos, e se aí foi tratada e ficou (ou não) internada e, em caso afirmativo, qual o respectivo estado de saúde, tratamento ministrado e duração do internamento, devendo ainda ser prestado esclarecimento sobre se, como consequência do acidente de viação de que foi vítima, ao dar entrada na referida unidade hospitalar a A. apresentava (ou não) perda de consciência e, caso esta tenha existido, até que data se verificou a referida situação. E mais ordenou que as informações e esclarecimentos a prestar fossem comprovados documentalmente.

Em cumprimento do ordenado o Centro Hospitalar de Lisboa Central juntou aos autos a declaração de fls. 120 e os documentos de fls. 121 a 123, tendo as partes sido notificadas da junção, após o que foi proferido despacho saneador com valor de sentença, aí se conhecendo da excepção peremptória da prescrição invocada na contestação, julgando-se procedente a mesma e absolvendo a R. do pedido formulado pela A.

A A. recorre desta decisão final, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1.A Douta Sentença fez um apuramento factual insuficiente, porque deveria ter tido em consideração todos os elementos fornecidos pelos autos e esse apuramento não foi feito.
2.A Douta Sentença refere que os acidentes rodoviários têm uma data concreta, mas entre a data do acidente e o conhecimento dos seus responsáveis há um grande espaço.
3.Ninguém põe em causa a data do acidente, mas a questão da presente Acção é a data em que a Autora/Apelante teve conhecimento do Acidente e dos intervenientes nele envolvidos e do seguro do veículo Sinistrante.
4.A Douta Sentença acolhe o entendimento sufragado pela Apelada de que a Apelante teve conhecimento do acidente na data do mesmo e de que nessa data poderia ter começado a exercer os direitos que tinha por força do mesmo.
5.A Apelante esteve internada no Hospital de S. José até ao dia 4/7/2013, e uma pessoa internada não pode e está impedida de exercer os seus direitos e o prazo da Prescrição só poderia começar no dia 5/7/2013, isto é, no dia seguinte ao da alta. Para tanto
6.A Prescrição só começa a correr quando o direito puder ser exercido nos termos do artigo 306º do C.C.
7.Estando internada entre o dia 2/7/2013 e apenas tendo alta em 4/7/2013, pelo menos entre 2/7/ e 4/7 inclusive, a Apelante esteve Incapacitada, Incapacidade seja desses dias e daí apenas começar o início do Prazo da Prescrição em 5/7/2013.
8.Os factos mencionados como apurados e sobre os quais se decide a Excepção da Prescrição encontram-se deficientemente apurados porque não consta assente a concreta data em que a Apelante teve conhecimento do Acidente.
9.E a Ré foi citada em 4/7/2016, antes de ter ocorrido, mesmo neste caso antes de 15/7/2016.
10.A Prescrição não ocorreu, nesta Óptica.
11.Ao estatuir-se no nº 1 do art.º 498 do Código Civil, que o direito de indemnização prescreve no prazo de três anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, a lei faz efectivo apelo para um dado intelectivo do titular do direito à indemnização - a tomada de consciência (em sentido amplo abrangendo, nessa medida, a consciência legal) do seu direito.
12.Invocou a Autora/Apelante que se encontrava em estado de inconsciência após o acidente determinado pelas lesões sofridas com o mesmo e com o tratamento - intervenção cirúrgica - a que foi submetida, e documentada nos autos, que lhe determinaram a impossibilidade de conhecer, pelo menos durante o internamento, o direito que pretende fazer valer através da presente acção, e de o poder exigir.
13.A Apelante junta documento no presente recurso da Comunicação da PSP a indicar apenas por carta expedida para a recorrente, em 16/7/2013, a indicação do Processo, a Seguradora do Veículo Sinistrante, pelo que até, pelo menos 16/7/2013, a Apelante não sabia quem era a entidade responsável pelo veículo e só após esse conhecimento é que poderia exercer os seus direitos contra a Seguradora.
14.Os factos relatados na Petição eventualmente eram susceptíveis de constituir crime, sendo o prazo de prescrição, neste caso mais longo, de cinco anos.
15.A ausência de instauração de procedimento criminal não afasta a possibilidade de ser aplicável o respectivo prazo de prescrição de acordo com o disposto no nº 3 do art.º 498º do Código Civil, impondo-se apenas para tal efeito que seja demonstrado que o facto em que assenta a responsabilidade civil constitua crime e tal prazo de prescrição é igualmente aplicável aos responsáveis meramente civis, por ser nesse sentido que aponta o espírito de unidade do sistema - cfr. art.º 9, nº 1, do C. Civil.
16.A Prescrição não ocorreu o acidente deu-se em 2/7/2013, mas a Apelante apenas saiu do Internamento Hospitalar em 4/7/2013 e só podia exercer os seus direitos a partir dessa data ou seja em 5/7/2013, mas a Apelada foi citada em 4/7/2016, por isso em tempo. Acresce que
17.Nos dias 2, 3 e 4 de Julho de 2013 por força do Internamento e em consequência dele a Apelante não soube quem era o responsável pela viatura sinistrante e nem quem era a seguradora e a morada, não tinha nem podia ter a consciência legal desses elementos.
18.Esses elementos só foram comunicados à Autora, por carta expedida pela PSP em 16/7/2013, conforme documento nº 1 junto, que indica o Processo de Inquérito, a Seguradora Responsável, a Apólice e seu número e morada da Seguradora, só podendo a apelante exercer os seus direitos a partir desta data, contra a Seguradora, a apelada foi citada em 4/7/2016 antes de 16/7/2016.
19.A actuação da Condutora era susceptível de consubstanciar crime de ofensas à integridade física e graves porque teve de sofrer cirurgia plástica e neste caso o prazo de prescrição era de cinco anos.
20.Os factos e actuação demonstrados nestas Alegações e em especial nestas Conclusões demonstram, que não ocorreu a Prescrição invocada pela Apelada e que por isso a Douta Sentença que julgou “procedente a excepção peremptória de prescrição suscitada e, consequentemente” tem de ser revogada por Douto acórdão que julgue improcedente e não provada a excepção peremptória de prescrição e determine a remessa dos autos à 1ª instância para a tramitação normal e para a feitura da Audiência Prévia, com identificação do objecto do litígio e enumeração dos temas de prova e sequente Instrução do Processo.

A R. contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.
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Questões a decidir:
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Novo Código de Processo Civil, a questão submetida a recurso, delimitada pelas aludidas conclusões, é a de aferir da possibilidade de ser conhecida de imediato a excepção peremptória da prescrição sem necessidade de considerar os demais elementos factuais e probatórios suscitados pelas partes e, em caso afirmativo, aferir da existência de causa interruptiva do prazo respectivo que conduza à improcedência da mesma.
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Considerando a decisão posta em crise no recurso em apreço, importa analisar a questão trazida à apreciação deste Tribunal, tendo presente que:
Está em causa a efectivação da responsabilidade civil por facto ilícito, correspondendo o mesmo ao atropelamento da A. ocorrido em 2/7/2013;
A P.I. tem data de entrada em juízo de 28/6/2016, aí tendo a A. requerido a citação urgente da R., nos termos e para os efeitos do disposto nos art.º 226º e 561º do Novo Código de Processo Civil e 323º do Código Civil;
Por despacho de 30/6/2016 foi ordenada a citação urgente da R., mostrando-se a mesma efectuada por carta registada com aviso de recepção expedida em 1/7/2016, e mostrando-se o aviso de recepção assinado em 4/7/2016;

Na P.I. vem alegado, para além do mais:
26º-A A. perdeu os sentidos no acidente e o INEM (…) chamado ao local, prestou-lhe os primeiros socorros e transportou-a, ao Hospital S. José, no qual a A. esteve internada durante doze dias, no Serviço de Cirurgia;
27º-A A. ficou incapaz de exercer os seus direitos, durante esses dozes dias, pois perdeu os sentidos e ficou com perda do seu discernimento, internada e sem sair do Hospital;
28º-Só saiu do Hospital, onde esteve internada, em catorze de Junho de 2013;

No art.º 15º da contestação a R. declarou não saber se os factos constantes, para além do mais, dos art.º 26º a 28º da P.I., são reais, mais invocando não serem factos que lhe sejam pessoais nem deles tendo obrigação legal de conhecimento.

Tal como decorre do art.º 574º, nº 3, do Novo Código de Processo Civil, quando na contestação o réu declara que não sabe se determinado facto é real, a declaração equivale a impugnação, desde que não se trate de facto pessoal ou de que o réu deva ter conhecimento.

E do disposto no art.º 595º, nº 1, al. b), do Novo Código de Processo Civil, resulta que no despacho saneador há lugar ao conhecimento imediato do mérito de alguma excepção peremptória, sempre que o estado do processo o permita, por não haver necessidade de mais provas. Sendo que, no caso contrário, a decisão da mesma é relegada para final (nº 4 do referido art.º 595º do Novo Código de Processo Civil).

Ou seja, estando em causa a aplicação do disposto no art.º 498º, nº 1, do Código Civil, onde se prevê a prescrição do direito de indemnização no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, tal excepção peremptória há-de poder ser conhecida de imediato no despacho saneador quando os factos integrantes da mesma não se mostrem controvertidos. E porque do decurso de um prazo se trata, os factos em questão reportam-se, desde logo, ao seu termo inicial e final.

Quanto ao seu termo inicial, dispõe o art.º 306º, nº 1, do Código Civil, que o prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido.
Vale por dizer que a partir do momento em que o titular do direito lesado ou merecedor de tutela jurisdicional, v.g. incumprimento de uma obrigação pecuniária ou lesão de um direito real de gozo, tiver conhecimento do facto jurídico donde emerge o direito à sua reintegração ou ressarcimento, se inicia o prazo a partir do qual deve ser exercitado, sob a cominação de o seu não exercício ocasionar o decesso do poder de o reclamar em juízo ou de accionar os meios jurisdicionais tendentes a fazê-lo valer” (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/7/2011, relatado por Gabriel Catarino e disponível em www.dgsi.pt).
Mas como ensina Vaz Serra (Prescrição e Caducidade, BMJ nº 105, pág. 190 e seguintes), “o tempo legal de prescrição deve ser um tempo útil, não podendo censurar-se o credor pelo facto de não ter agido numa altura em que não podia fazê-lo. Se assim não fosse, poderia acontecer que a prescrição se consumasse antes de poder ser exercido o direito prescrito”. E assim concluindo não ser de aceitar que o prazo de prescrição possa correr “antes de o credor poder praticamente exercer o seu direito”.
O que significa que releva para o conhecimento da prescrição invocada pela R. a factualidade alegada de onde se possa concluir qual o momento em que a A. estava em condições de poder exercer o seu direito à indemnização.
Ora, a A. alegou que só o podia exercer a partir do momento em que deixou de estar privada do discernimento (14/7/2013). Já a R. alegou que que desde o momento do acidente (2/7/2013) a A. estava em condições de exercer o seu direito, para efeitos do início da contagem do prazo de prescrição a que alude o nº 1 do art.º 498º do Código Civil.
O que equivale a afirmar a existência de uma controvérsia factual que exigia a aplicação do disposto no art.º 595º, nº 4, do Novo Código de Processo Civil.
É que, apesar do disposto no art.º 411º do Novo Código de Processo Civil, que impunha ao tribunal recorrido o dever de proceder probatoriamente como procedeu, a prova documental assim constituída não faz prova plena dos referidos factos controvertidos, como decorre da conjugação dos art.º 369º a 371º do Código Civil. E desde logo porque não se está perante documentos com os requisitos a que alude o art.º 363º, nº 2, do Código Civil.
Pelo que, havendo a força probatória dos mesmos de ser livremente apreciada pelo tribunal recorrido, devendo ser tomada em consideração a globalidade das provas produzidas, independentemente da parte de onde emanam (art.º 413º do Novo Código de Processo Civil), e havendo prova ainda a constituir, como é o caso da prova testemunhal, só no circunstancialismo do art.º 607º, nº 4 e 5, do Novo Código de Processo Civil, será possível resolver a controvérsia factual em questão, que torna possível a tomada de decisão sobre a verificação da excepção peremptória da prescrição invocada pela R.
Sendo desta conclusão que decorre a afirmação da necessidade de respeitar o disposto no art.º 595º, nº 4, do Novo Código de Processo Civil, por não estar preenchido o condicionalismo a que alude a al. b) do nº 1 do mesmo art.º 595º.
Em situações com recorte processual semelhante e em sentido idêntico decidiu já este Tribunal da Relação de Lisboa, como decorre dos acórdãos de 29/10/2015, relatado por Jorge Leal, e de 19/11/2015, relatado por Teresa Prazeres Pais (ambos disponíveis em www.dgsi.pt). E bem ainda o Tribunal da Relação do Porto, como decorre do acórdão de 20/2/2017, relatado por Augusto de Carvalho (igualmente disponível em www.dgsi.pt).

Ou seja, tem razão a A. nas primeiras três conclusões da sua alegação, o que conduz à procedência do recurso, com a revogação da decisão recorrida, e ficando prejudicado o conhecimento da questão suscitada pelas restantes conclusões apresentadas, relativa à imediata improcedência da excepção peremptória da prescrição, tendo presente o já acima referido quanto à necessidade de relegar para final esse conhecimento, em ordem à produção da prova constituenda e sua livre valoração pelo tribunal recorrido.

DECISÃO.
Em face do exposto julga-se procedente o recurso, revogando-se a parte do despacho saneador que julgou procedente a excepção peremptória da prescrição invocada na contestação e absolveu a R. do pedido formulado pela A., mais se determinando o prosseguimento da acção, sendo a final conhecida tal excepção peremptória em conjunto com o mérito da causa, se nada a tal vier a obstar.
Custas pela recorrida.
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Lisboa, 12 de Outubro de 2017



António Moreira
Lúcia Sousa
Magda Geraldes