Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1192/16.2T9STR.E1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
INSOLVÊNCIA
NOTIFICAÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Data do Acordão: 11/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
1 - A notificação a efetuar, nos termos e para os efeitos previstos na al. b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT – aplicável ao crime de abuso de confiança contra a segurança social ex vi do artigo 107º, n.º 2 do mesmo diploma legal –, tendo em conta os fins a que se destina, deverá indicar, pelo menos, o valor das prestações tributárias ou contributivas, em dívida e a menção de que esse valor é acrescido de juros e, ainda, de coima, não sendo exigível a concretização do valor dos juros, nem do montante da coima, já que serão variáveis.

2 - Porém, no caso de existir incorreção na indicação desse valor e, sobretudo, quando não seja significativa a diferença entre o montante mencionado na notificação e o valor efetivamente devido, apurado em audiência, tal não afeta a validade do ato/notificação efetuada.

3 - A notificação referida, no caso de sociedades comerciais já declaradas insolventes, quando está em causa a responsabilidade criminal da sociedade, deve ser feita aos seus gerentes ou administradores, que a representam, para efeitos criminais e, concomitantemente, ao administrador da insolvência.

4 - Porém, a omissão da notificação do administrador da insolvência, não constitui irregularidade que afete a validade do ato/notificação em causa (nos termos previstos no n.º 2 do artigo 123º do CPP), quando esta tenha sido efetuada apenas ao gerente ou administrador da sociedade e, no caso de este ser também arguido, impondo-se a sua notificação, na dupla vertente, em representação da sociedade e a título individual, enquanto pessoa singular.

5 – No caso de o insolvente ser pessoa singular, a referida notificação não tem que ser efectuada também ao administrador da insolvência, uma vez que neste caso o administrador não assume a representação do insolvente nos mesmos termos e com a mesma amplitude em que o faz na insolvência das pessoas colectivas.

6 - Só quando se verifique na sentença, a omissão de pronúncia constitui causa de nulidade (al. c) do n.º 1 do artigo 379º do CPP). Quando a omissão de pronúncia se verifique nos despachos e vigorando em matéria de nulidades o principio da legalidade, não sendo cominada como tal na lei, integra uma irregularidade (cf. artigo 118º, n.ºs 1 e 2, do CPP), sujeita ao regime previsto no artigo 123º, n.º 1, do CPP.

Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Évora

1. RELATÓRIO
1.1. Nestes autos de processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, n.º 1192/16.2T9STR, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Local Criminal de Tomar, foram submetidos a julgamento os arguidos (...) e (...), Ld.ª, melhor identificados nos autos, estando acusados da prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 107º, n.ºs 1 e 2, com referência ao artigo 105º, n.ºs 1, 4 e 7, ambos do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho e artigo 30º, n.º 2, do Código Penal.
1.2. Em 17/09/2019 - véspera da data designada para a realização da audiência de julgamento -, o arguido (...) apresentou um requerimento nos autos, invocando a irregularidade da notificação que lhe foi efetuada, em 24/03/2017, nos termos e para os efeitos do disposto na al. b), do n.º 4, do artigo 105º do RGIT, por existência de erro quanto ao valor da dívida a cujo pagamento devia proceder (sendo indicado, na notificação, o valor de 46.256,57€, quando, na verdade, o valor em dívida se fixava em 43.383,47€), requerendo ao tribunal que ordenasse a repetição dessa notificação, com a indicação dos valores corretos, requerimento esse que foi indeferido, por despacho proferido em audiência de julgamento, no dia 18/09/2019, o que motivou a interposição de recurso pelo arguido, que com tal decisão não se conformou.
1.3. Nessa sessão da audiência de discussão e julgamento (em 18/09/2019), o arguido (...), invocando a situação de insolvência da sociedade arguida e do próprio, declarada por sentença, em 04/04/2013 e em 03/07/2013, respetivamente, requereu que fosse ordenada a notificação dos respetivos Administradores de Insolvência, nos termos e para os efeitos do disposto na al. b), do n.º 4, do artigo 105º do RGIT e, ainda, para virem informar nos autos, qual o valor inicial do ativo e do passivo de cada uma das Massas Insolventes, quais os bens que as integravam, à data em que foram efetuadas as notificações para pagamento e no presente, requerimento esse que foi indeferido, por despacho proferido no dia 08/10/2019, o que motivou a interposição de recurso pelo arguido, que com tal decisão não se conformou.
1.4. Realizado o julgamento, foi proferida sentença, em 27/11/2019, depositada nessa mesma data, com o seguinte dispositivo:
«(…), o Tribunal decide:
a) condenar a arguida «… Ld.ª» pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punível pelos artigos 7.º e 107.º, n.º 1 e 2, por referência ao artigo 105.º, n.º 1, 4 e 7 do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho e artigo 30.º, n.º 2 do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 5€ (cinco euros), o que perfaz o montante de 600€ (seiscentos euros);
b) condenar o arguido (...) pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punível pelo artigo 107.º, n.º 1 e 2, por referência ao artigo 105.º, n.º 1, 4 e 7 do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho e artigo 30.º, n.º 2 do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 9€ (nove euros), o que perfaz o montante de 1.080€ (mil e oitenta euros);
c) condenar os arguidos a pagar as custas criminais, a que acresce a taxa de justiça, que se fixa, ao abrigo do disposto no artigo 8.º, n.º 9 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais, em 3 (três) UC.
(…).»
1.5. Inconformado, o arguido (...) interpôs recurso da sentença.
1.6. Conclusões dos recursos interpostos pelo arguido:
1.6.1. Conclusões do recurso do despacho interlocutório referido em 1.2.:
«1. O presente recurso vem interposto do despacho proferido nos autos a 18-09-2019, no âmbito da audiência de discussão e julgamento, que indeferiu o requerimento apresentado pelo Arguido a 17-09-2019, com a referência 33420820.
2. Em tal requerimento invoca o Arguido a irregularidade da notificação para pagamento voluntário efectuada ao Arguido a 24-03-2017, ao abrigo da alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias (doravante RGIT), requerendo a sua repetição, atendendo a que o Arguido foi notificado a 24-03-2017 para efectuar o pagamento da quantia de 46.266,57€ quando, na realidade, o montante em dívida se fixava em 43.383,47€.
3. Decidiu, assim, o Tribunal A Quo indeferir o requerido pelo Arguido, “considerando o entendimento jurisprudencial maioritário de que a notificação em causa não carece de indicação do valor em dívida (…)”, conforme resulta do despacho ora recorrido, mais constando do douto despacho do qual se recorre que “(…) à data da notificação era este o valor apurado, sendo que, após vicissitudes várias, tal valor foi efectivamente alterado”.
4. Sucede que não pode o Arguido, ora Recorrente, concordar com a interpretação dada pelo Tribunal A Quo ao disposto no artigo 105º do RGIT.
5. Na verdade, o ora Recorrente encontra-se a ser julgado, nos presentes autos, pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido pelos n.ºs 1 e 2 do artigo 107º e n.ºs 1, 4 e 7 do artigo 105º do RGIT, praticando este crime as “entidades empregadores que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social”.
6. Ora, dispõe o n.º 4 do artigo 105º do RGIT, aplicável ex vi n.º 2 do artigo 107º do RGIT, que “Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se: a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação; b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.”
7. No que respeita ao pressuposto previsto na alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, sendo relativamente a este que se insurge o Arguido no requerimento que motivou o despacho recorrido, é de referir o seguinte:
8. O Arguido, ora Recorrente, foi notificado a 24-03-2017 para proceder ao pagamento do valor de 46.266,57€, no prazo de 30 dias, relativo a quotizações retidas e não entregues à Segurança Social, nos termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT.
9. A fls. 443 e 444 dos autos, veio o Digníssimo Magistrado do Ministério Público informar que “Durante o decurso da investigação, o órgão de polícia criminal apurou que o montante das contribuições legalmente devidas à Segurança Social ascende ao valor de 43.383,47€ (quarenta e três mil, trezentos e oitenta e três euros, quarenta e sete cêntimos) e não, como inicialmente se afigurava suceder, ao valor de 46.266,57€ (quarenta e seis mil, duzentos e sessenta e seis euros cinquenta e sete cêntimos).
Todavia, foi o valor de 46.266,57€ que constou expressamente indicado na notificação que, nos termos do disposto no artigo 105º/4b) do RGIT, foi efectuada ao Arguido (...) e à sociedade Arguida (cfr. fls 28-29).
Assim, até considerando as implicações jurídicas que derivam do pagamento voluntário efectuado por um arguido nos termos do mencionado artigo, importa rectificar tal situação.
Pelo exposto, devolva os autos ao ISS para que, no prazo o mais curto possível, repita as notificações pessoais efectuadas nos termos do disposto no artigo 105º/4b) do RGIT, mas agora fazendo das mesmas constar o valor de 43.383,47€.”
10. Neste seguimento, veio o Instituto de Segurança Social, a fls. 449 dos autos, esclarecer que não há necessidade de se repetir as notificações para pagamento voluntário da dívida, atendendo à jurisprudência dos Tribunais Superiores, que considera que da notificação efectuada nos termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, não tem de constar a menção expressa dos montantes em dívida.
11. Sucede que, no caso dos presentes autos, não estamos perante uma situação de omissão de indicação do valor em dívida, na notificação efectuada ao Arguido para pagamento voluntário, mas, ao invés, numa situação de erro na indicação do valor, sendo que tal valor, não obstante poder ser omitido na notificação para pagamento voluntário, não pode encontrar-se errado, sob pena de a notificação não se ter por validamente efectuada, uma vez que induz em erro o Arguido.
12. Na verdade, e ao contrário do que resulta do despacho ora recorrido, onde se refere que “à data da notificação era este o valor apurado, sendo que, após vicissitudes várias, tal valor foi efectivamente alterado”, sendo que tal informação não corresponde à verdade, o valor efectivamente em dívida à data da notificação efectuada ao Arguido- 24 de Março de 2017- era 43.383,47€, e não 46.266,57€, pelo que a notificação efectuada ao Arguido deveria vislumbrar tal valor correcto - 43.383,47€.
13. Entendemos, assim, que a notificação prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT deve ser rigorosa, inteligível e corresponder à realidade fiscal do devedor, devendo mencionar não apenas o prazo e consequências do pagamento e o montante de coima aplicável, como também o montante total das prestações em dívida, bem como os juros de mora correspondentes.
14. No mesmo sentido, pronunciou-se o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão datado de 13-05-2015, no âmbito do processo n.º 7018/11.6IDPRT.P1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/a60c41b1a2cbae4c80257e52002f196b?OpenDocument,
15. Ora, entendeu a Mmª. Juiz de Direito do Tribunal A Quo que a notificação em causa não carece de indicação de valor, atendendo a que “se trata de valor variável no decurso do processo”.
16. Sucede que, salvo melhor entendimento, o único valor variável em causa é o montante relativo aos juros de mora, o qual, à medida que o prazo decorre, vai aumentando, sendo que o valor em dívida a título de prestação tributária não é variável ao longo processo, mantendo-se no mesmo valor, excepto na eventualidade de o Arguido efectuar pagamentos parciais, devendo, por esse motivo, constar da notificação efectuada ao Arguido o montante concreto em dívida a título de prestação tributária, excluídos os juros de mora.
17. A não ser assim, estaria a pôr-se em causa o Estado de Direito, uma vez que a exigência de indicação do valor em dívida na notificação efectuada aos Arguidos para pagamento voluntário, nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, tem por base o princípio da transparência, evitando, desse modo, que a Administração Fiscal cometa excessos, consequência da falta de rigor nas cobranças de impostos, sendo certo que tais excessos lesam os direitos dos contribuintes.
18. Assim, e de forma a evitar a lesão desses direitos, deve a notificação efectuada nos termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT conter todos os elementos necessários a um cabal esclarecimento do contribuinte, não devendo, portanto, tal notificação conter informações erradas, viciadoras da vontade dos interessados,
19. Como sucede no caso dos autos, quando notificam erradamente o Arguido Recorrente para efectuar o pagamento de uma quantia que o mesmo não deve, sendo que da notificação consta um valor superior ao valor devido, que certamente condicionou o pensamento e actuação do Arguido aquando da notificação.
20. Assim sendo, ao indeferir a requerida repetição da notificação efectuada aos Arguidos, o Tribunal A Quo fez uma errada interpretação da alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, devendo esta norma, salvo melhor entendimento, ser interpretada no sentido de exigir que a notificação efectuada ao Arguido seja completa e rigorosa, mencionando o valor em dívida a título de prestação tributária, o montante em dívida a título de juros e o montante devido a título de coima aplicável.
21. Mesmo que assim não se entenda, considerando-se não ser necessária a indicação dos valores concretamente em dívida, nunca poderia a notificação vislumbrar um valor errado, uma vez que é com esta notificação que o contribuinte tem a possibilidade de pagar voluntariamente e impedir a sua responsabilização penal.
22. Por outro lado, resulta ainda do despacho recorrido que “(…) o Arguido, pessoalmente notificado e acompanhado na ocasião pelo seu Ilustre Mandatário, não arguiu a eventual nulidade/ irregularidade se entendesse na altura que a mesma existia.”
23. Sucede que, salvo melhor entendimento, a irregularidade ora em causa, não obstante dever ser arguida pelo Interessado, é de conhecimento oficioso, tanto para mais quando está em causa uma irregularidade numa notificação que constitui condição de punibilidade do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, sendo certo que a irregularidade invocada pelo Arguido afecta efectivamente o valor do acto praticado, isto é, a irregularidade em causa afecta o valor da notificação efectuada ao Arguido para pagamento voluntário do valor em dívida,
24. Atendendo a que o valor em dívida comunicado ao Arguido não se encontra correcto, fixando-se o valor em dívida em valor inferior àquele que foi notificado ao Arguido.
25. Na verdade, dispõe o n.º 1 do artigo 123º do Código de Processo Civil que “Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quanto tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.”
26. Contudo, mais refere o n.º 2 do artigo 123º do Código de Processo Civil que “pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado”.
27. Ora, resulta deste preceito que, não obstante a invalidade do acto dever ser arguida pelos interessados, a falta de arguição não obsta ao seu conhecimento, devendo o Mmº. Juiz de direito ordenar a reparação da irregularidade oficiosamente, assim que dela tiver conhecimento, pelo que, ao indeferir a requerida repetição da notificação efectuada aos Arguidos nos termos da alínea b) do n.º 4º do artigo 105º do RGIT, por entender que o Arguido já deveria ter arguido a irregularidade à data da notificação, violou o Tribunal A Quo o disposto no n.º 2 do artigo 123º do Código de Processo Civil, devendo, por esse motivo, ser revogado o despacho ora recorrido, proferido a 18-09-2019, e substituído por outro que ordene a notificação rigorosa- leia-se, com o valor correcto apurado- do Arguido, nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT.
28. Em igual sentido pronunciou-se o Tribunal da Relação de Évora, por acórdão datado de 21 de Março de 2017, no âmbito do processo n.º 228/13.3IDSTB.E1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/-/C4ECB90C75DF70AB802581220038D9FD, do qual resulta que “(…) o tribunal ao não ordenar, a repetição das notificações da pessoa singular e da pessoa colectiva, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 105º, nº 4 al. b) do CPPenal violou o disposto no art. 123º nº 2 do CPPenal.
Neste sentido, de que a omissão da notificação ou a incorrecta notificação prevista no art. 105º nº 4 do RGIT, constitui uma irregularidade, de conhecimento oficioso se pronunciaram os acórdãos da Relação do Porto de 26-02-2014 e de 13-5-2015 disponíveis em www.dgsi.pt.
E nada obsta a que tal notificação, estando já o processo na fase judicial possa ser ordenada pelo Mmo Juiz que preside ao julgamento (cfr neste sentido, o Acórdão da Relação de Coimbra de 23-10-2013, disponível em www.dgsi.pt), sem necessidade de se solicitar à administração 29. Também o Tribunal da Relação do Porto decidiu no mesmo sentido, entendendo que “a errada ou incorrecta notificação prevista no artigo 105º, n.º 4 b) RGIT constitui irregularidade de conhecimento oficioso que afecta o valor do acto praticado”, por acórdão datado de 13-05-2015, no âmbito do processo n.º 7018/11.6IDPRT.P1, disponível emhttp://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/a60c41b1a2cbae4c80257e52002f196b?OpenDocument.
30. Por último, também o Tribunal da Relação de Lisboa já se pronunciou quanto a este assunto, considerando que “a irregularidade, quanto afecte o valor do acto, poderá ser suprida a todo o tempo, pelo que, ainda que não seja arguida, pode ser reparada oficiosamente ou mandada reparar pela autoridade judiciária competente para o acto, enquanto mantiver o domínio dessa fase do processo”, cfr. acórdão datado de 11-12-2018, no âmbito do processo n.º 15/14.1IDSTBA.L1-5, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/259c9bc746b0a4c78025837c0036f6ca?OpenDocument.
31. Assim sendo, e por tudo quanto o exposto, deveria o Tribunal A Quo ter ordenado a repetição da notificação para pagamento voluntário efectuada ao Arguido Recorrente, nos termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, da qual conste o valor correcto em dívida a título de prestação tributária, de juros de mora e de coima aplicável, de forma a regularizar e corrigir o erro cometido pelo Instituto de Segurança Social I.P., na indicação do valor em dívida, aquando da notificação efectuada ao Arguido Recorrente.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o douto despacho ora recorrido, substituindo-o por outro que ordene a repetição da notificação efectuada ao Arguido Recorrente, nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA
1.6.2. Conclusões do recurso do despacho interlocutório referido em 1.3.:
«1. O presente recurso vem interposto do despacho proferido nos autos a 08-10-2019, que indeferiu o requerimento apresentado pelo Arguido a 18-09-2019, no âmbito da audiência de discussão e julgamento.
2. Em tal requerimento é invocado o seguinte, conforme resulta da acta de audiência de discussão e julgamento realizada no dia 18 de Setembro de 2019:
“(...), na qualidade de Arguido no processo acima melhor identificado,
vem informar e requerer a V. Exª. o seguinte, ao abrigo do princípio da descoberta da verdade e boa decisão da causa de acordo com o código de processo penal:
Não se entende como ao longo do presente processo os autos se reportam à Sociedade como sendo “… Ldª., em Liquidação”, sem que, até à presente data, se afira se a Sociedade tem bens suficientes para efectuar tal pagamento.
Na verdade, bem sabemos que em termos penais os responsáveis pela Sociedade são os membros dos órgãos societários.
No entanto, também não olvidamos que a notificação, no que se reporta ao pagamento, nos termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, quando a Sociedade se encontra Insolvente, tenha de ser concomitantemente feita ao Arguido (por este ser o responsável penal) e ao Administrador de Insolvência, na exacta medida em que só o mesmo pode dispor dos bens patrimoniais da Sociedade para proceder ao pagamento por esta.
Sem prescindir, verificamos que, ao longo do processo, o sentido e o alinhamento de “grelha”, no que se reporta à inquirição efectuada às testemunhas, prejudica outros elementos importantes que as mesmas pudessem trazer aos autos, nomeadamente que o Arguido, na sequência dos avais que prestou à Sociedade Arguida, se encontra insolvente desde 2013, conforme sentença de declaração de insolvência proferida a 03-07-2013, no âmbito do processo n.º 7/13.8TBFZZ-A, que corre termos no Tribunal de Ferreira do Zêzere neste processo.
Razão pela qual se requer, desde já, a V. Exª. que, atentos os fundamentos invocados que antecedem, se digne ordenar a junção aos autos de tal declaração de insolvência, que correu termos neste Tribunal.
Por outro lado, e no que se reporta ao crime em causa, mais uma vez não olvidamos que o Arguido poderá ser o responsável penal, no entanto, não tem o mesmo a livre disposição sobre os seus bens pessoais que integram a Massa Insolvente, a qual pertence ao Administrador de Insolvência, não pode o Arguido pagar, uma vez que se encontra impedido, não se verificando, desse modo, a condição de punibilidade referida na alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, faltando deste modo o elemento subjectivo, não se verificando o crime.
Razão pela qual se requer a V. Exª. que se digne ordenar a notificação do Administrador de Insolvência do processo de insolvência n.º 7/13.8TBFZZ para efectuar o pagamento da quantia em causa nos presentes autos, uma vez que este não foi notificado, aquando da notificação pessoal ao Arguido.
E sendo certo que, à data em que tal notificação ao Arguido ocorreu, só o Administrador de Insolvência podia dispor dos bens da Massa Insolvente do Arguido (...), situação que se mantém até ao presente.
Mais se requer a V. Exª. que se digne ordenar a notificação dos Administradores de Insolvência nomeados no âmbito dos processos n.º 7/13.8TBFZZ e 227/12.2TBFZZ, Drª. (…) e Dr. (…), correspondentes aos processos de insolvência em que figuram como Insolventes, respectivamente, o Arguido (...) e a Arguida (…) Ldª., no sentido de vir informar os autos qual o valor inicial do activo e do passivo de cada uma das Massas Insolventes, quais os bens que as integravam, bem como à data das notificações que foram efectuadas para pagamento no âmbito deste processo em 24-03-2017 em causa nos autos e à data de hoje.
Nestes termos e nos melhores de direito, vem requerer-se a V. Exª. se digne dar provimento ao requerido”.
3. Assim, defende o Recorrente em tal requerimento que, atendendo a que o Arguido (...) se encontra insolvente desde 03-07-2013, conforme decorre do processo n.º 7/13.8TBFZZ-A, que correu termos no Tribunal de Ferreira do Zêzere e que é o Administrador de Insolvência nomeado em tal processo que dispõe dos bens pertencentes ao Arguido, encontrando-se o mesmo impedido sobre qualquer disposição sobre os mesmos, deveria ser sempre o Administrador de Insolvência notificado para pagar a quantia em dívida, nos termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do R.G.I.T.
4. A Meritíssima Juiz “A Quo” indeferiu o requerido pelo Arguido, por entender que o Administrador de Insolvência apenas representa o devedor no que respeita aos aspectos de carácter patrimonial, sendo que, no que respeita aos aspectos de carácter criminal, a responsabilidade mantém-se do gerente da Empresa, nos termos do n.º 1 do artigo 82º do CIRE, segundo resulta do despacho ora recorrido.
5. Ora, em primeiro lugar, importa referir que o requerimento apresentado pelo Arguido ora Recorrente visava, não só a notificação do Administrador de Insolvência do processo n.º 227/12.2TBFZZ, nomeado no âmbito do processo de insolvência da Sociedade Arguida, como também, e primordialmente, a notificação do Administrador de Insolvência do processo n.º 7/13.8TBFZZ, no qual é Insolvente o Arguido Recorrente.
6. Neste sentido, refere o Arguido no requerimento que motivou o despacho ora recorrido o seguinte: “Requer a V. Exª. que se digne ordenar a notificação do Administrador de Insolvência do processo de insolvência n.º 7/13.8TBFZZ para efectuar o pagamento da quantia em causa nos presentes autos, uma vez que este não foi notificado aquando da notificação pessoal ao Arguido”.
7. Na verdade, entende a defesa que, por o Arguido se encontrar Insolvente aquando da notificação para pagamento voluntário, nos termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, deveria ter sido notificado o Administrador de Insolvência do processo de insolvência de pessoa singular, atendendo a que, desde a declaração de insolvência, e ao abrigo do n.º 1 do artigo 81º do CIRE, o Arguido ficou imediatamente privado dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência.
8. Contudo, inicia a Mmª. Juiz “A Quo” o seu despacho, referindo que o Arguido requereu “que se determine a notificação do administrador de insolvência da sociedade arguida para efectuar o pagamento da quantia em causa nos autos (…)”, sendo certo que foi requerida, igualmente, a notificação do administrador de insolvência do próprio arguido, por ser este quem dispõe dos bens do Arguido e tendo em conta que a notificação que lhe foi efectuada nos termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT pressuponha o pagamento da dívida pelo próprio, com recurso aos seus bens pessoais, os quais o Arguido não pode dispor.
9. Também não se pronuncia a Mmª. Juiz “A Quo” sobre as diligências probatórias requeridas pelo Arguido Recorrente em tal requerimento, nomeadamente sobre a requerida junção aos autos da referida declaração de insolvência, proferida no âmbito do processo n.º 7/13.8TBFZZ-A, bem como sobre a requerida notificação dos Administradores de Insolvência nomeados no âmbito dos processos n.ºs 7/13.8TBFZZ e 227/12.2TBFZZ, no sentido de virem informar os autos qual o valor inicial do activo e do passivo das Massas Insolventes, quais os bens que a integravam inicialmente, à data da notificação para pagamento voluntário efectuada ao Arguido e à data de hoje.
10. Assim, é o douto despacho recorrido nulo, por falta de fundamentação, conforme impõe os n.ºs 1 e 5 do artigo 97º do Código de Processo Penal, não se pronunciado o Tribunal “A Quo” sobre todas as questões levantadas pelo Arguido no seu requerimento que motivou o despacho ora recorrido.
11. Sem prescindir, e no que respeita ao despacho de indeferimento proferido, sempre se dirá que não pode o ora Arguido concordar com tal entendimento.
12. Na verdade, e atendendo a que a notificação prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do R.G.I.T. tem como intuito o pagamento da quantia em dívida, o qual impede a punibilidade do crime em causa, pelo que, salvo melhor entendimento, estamos perante uma questão patrimonial - o pagamento -, inserida no âmbito de um processo crime em curso.
13. O pagamento referido na alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do R.G.I.T. tem, indubitavelmente,
natureza patrimonial, não obstante tal necessidade de pagamento ocorrer no processo crime, como condição de punibilidade do crime de abuso de confiança fiscal.
14. Ora, tendo em conta que a notificação prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do R.G.I.T. foi efectuada somente ao Arguido e à Sociedade Arguida, e não aos seus representantes legais, no que respeita a questões patrimoniais- Administradores de Insolvência- é de concluir pela irregularidade da própria notificação, nos termos do artigo 123º do Código de Processo Penal, irregularidade essa que, atendendo ao disposto no n.º 2 do artigo 123º do Código de Processo Penal, é de conhecimento oficioso, devendo ser ordenada a sua reparação, nos casos em que a irregularidade em causa afecte o valor do acto, o que, salvo melhor entendimento, sucede nos presentes autos.
15. Mais acresce que, não olvidamos que a responsabilidade penal recaia sobre o Arguido e que os aspectos de carácter patrimonial recaiam sobre o Administrador de Insolvência.
16. O que não podemos ignorar é que embora a notificação ao Arguido seja relativa à responsabilidade penal, exige deste um comportamento de carácter patrimonial, que este não pode satisfazer, por força também da lei.
17. Ora, consideramos que separar as duas responsabilidades está correcto, do ponto de vista da análise jurídica, contudo, ignorar a relação que neste processo uma responsabilidade tem com a outra, é não interpretar ou vislumbrar o problema em causa.
18. Na verdade, podemos elaborar uma tese sobre ambas as responsabilidades e escrever muito sobre o tema, e ignorar completamente o tema sub judice nos presentes autos.
19. Ora, a questão em causa a ser decidida é, para além de outras, qual a responsabilidade do Arguido Recorrente pelo não pagamento de um tributo que consubstancia um crime de abuso de confiança fiscal, tendo o mesmo património do qual não pode dispor e encontrando-se, na presente data, ainda a Massa Insolvente do Arguido em liquidação.
20. Sem prescindir do supra exposto, e tendo em conta a fundamentação utilizada pela Mmª. Juiz “A Quo”, referindo que a notificação prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, dirigida à sociedade arguida insolvente, deve ser efectuada na pessoa do gerente/administrador da sociedade visada,
21. Sempre se dirá que não resulta dos autos a notificação efectuada ao outro Gerente da Sociedade Arguida- (…).
22. Na verdade, da análise do processo, verifica-se que a Sociedade Arguida dispunha, à data dos factos, de dois gerentes- o Arguido (...) e o Senhor (…) - o qual inicialmente foi constituído Arguido, tendo sido proferido despacho de arquivamento no que respeita aos factos que lhe eram imputados.
23. Contudo, e atendendo a que o mesmo era também representante da Sociedade Arguida à data dos factos, deveria a notificação nos termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT ter sido efectuada também ao mesmo.
24. Na verdade, entendemos que a exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT se estende a todos os responsáveis legais pelo pagamento da dívida, pelo que, tratando-se de uma obrigação solidária, o pagamento da dívida por um dos responsáveis legais, a todos libera, nos termos do artigo 512º e seguintes do Código Civil.
25. Assim, na falta da notificação em causa, estamos perante uma irregularidade, ao abrigo do artigo 123º do Código de Processo Penal, sendo que a reparação de tal irregularidade, nos termos do n.º 2 do artigo 123º do Código de Processo Penal, deve ser ordenada oficiosamente, quando ela puder afectar o valor do acto praticado.
26. Ora, tendo em conta que o eventual pagamento, por parte de tal Gerente, aproveitava igualmente o outro gerente, ora Recorrente, entendemos que a falta da notificação para pagamento voluntário ao Gerente (...) afecta os interesses legalmente protegidos do Arguido Recorrente, que viu o seu direito de defesa coarctado com tal omissão, razão pela qual o douto despacho recorrido viola o disposto no artigo 123º do Código de Processo Penal, devendo, em consequência, ser revogado por outro que ordene, oficiosamente, a regularização da situação, mediante a notificação do outro gerente da Sociedade- (...)- para o pagamento voluntário das quantias devidas pela Sociedade que representava.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o douto despacho ora recorrido, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA
1.6.3. Conclusões do recurso da sentença [que foram aperfeiçoadas na sequência de convite para o efeito, ao abrigo do disposto no artigo 417º, n.ºs 2 e 3, do CPP]:
«I. Da Reformulação das Conclusões
1. O presente recurso vem interposto da decisão condenatória proferida contra o ora Arguido, na qual foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punido pelos n.ºs 1 e 2 do artigo 107º, por referência aos n.ºs 1, 4 e 7 do artigo 105º do RGIT (Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho), e n.º 2 do artigo 30º do Código Penal, na pensa de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 9,00€, no montante total de 1.080,00€ (mil e oitenta euros).
2. Em primeiro lugar, entende o ora Recorrente que o procedimento criminal se encontra prescrito (sublinhado nosso), atendendo ao disposto no n.º 1 do artigo 21º da Lei n.º 15/2001, por já terem decorrido cinco anos sobre a data da sua prática.
3. Na verdade, conjugando o disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 119º do CP e n.º 2 do artigo 5º do RGIT, com os factos provados nos pontos 1, 2 e 3, e atendendo a que a última retenção em causa nos autos é referente ao mês de Maio de 2013, devendo a sua entrega à Segurança Social ter sido efectuada até ao dia 15 de Junho de 2013, o que não sucedeu, verifica-se que o dia da prática do último acto ilícito se fixou nessa data- 15 de Junho de 2013, sendo que, salvo melhor entendimento, é a partir desta data- 15 de Junho de 2013- que se iniciou o prazo de prescrição de 5 anos previsto no n.º 1 do artigo 21º do RGIT, pelo que o procedimento criminal em causa se encontra prescrito.
4. Ao condenar o Arguido Recorrente pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, violou o Tribunal A Quo o disposto no n.º 2 do artigo 5º e no n.º 1 do artigo 21º, ambos do RGIT, bem como o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 119º do CP, pelo que deverá a sentença condenatória em causa ser revogada, e substituída por outra que absolva o Arguido Recorrente da prática do crime pelo qual vem acusado.
5. Por outro lado, insurge-se igualmente o Recorrente contra os factos considerados como provados na sentença recorrida, atendendo a que somente resulta, do ponto 27 dos factos provados, que “A sociedade arguida foi declarada insolvente por sentença proferida em 08-04-2013, transitada em julgado, encontrando-se em liquidação”,
6. Não resultando, contudo, como provado que o Arguido Recorrente também se encontra Insolvente desde 03-07-2013, no âmbito do processo n.º 7/13.8TBFZZ, processo que ainda se encontra em curso, correndo os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém - Juízo de Comércio de Santarém- Juiz 2,
7. Não obstante tal informação constar do processo, conforme requerimento apresentado pelo Arguido, no âmbito da audiência de discussão e julgamento realizada no dia 18-09-2019, e ter sido solicitado ao Tribunal que ordenasse a junção aos autos da declaração de insolvência proferida em tal processo e que ordenasse a notificação da Administradora de Insolvência, no sentido de informar os autos qual o valor inicial do activo e do passivo de cada uma das Massas Insolventes, quais os bens que as integravam, bem como à data das notificações que foram efectuadas para pagamento no âmbito deste processo em 24-03-2017 em causa nos autos e à data de hoje,
8. Sendo certo que, do despacho proferido sobre tal requerimento, datado de 08-10-2019, não se vislumbra qualquer decisão sobre tais solicitações e que de tal despacho foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Évora, datado de 21-11-2019, com fundamento na nulidade do despacho, por falta de fundamentação, conforme impõe os n.ºs 1 e 5 do artigo 97º do Código de Processo Penal.
9. Entende o ora Recorrente que existe contradição insanável entre os factos provados, nomeadamente entre os pontos 3 e 27, não se compreendendo, como pode, por um lado, o Tribunal dar como provado que o ilícito em causa foi praticado até Maio de 2013 quando, nessa data, já teria a Empresa visada sido declarada insolvente.
10. Se com a declaração de insolvência os poderes de administração passam a competir ao Administrador de Insolvência, conforme resulta do n.º 1 do artigo 81º do CIRE, não poderá o Arguido Recorrente e a Sociedade Arguida ser responsabilizados por actos que não se encontravam na sua disposição,
11. Entende o Recorrente que o ponto 3 dos factos provados se considera incorrectamente julgado, devendo, por outro lado, considerar-se como provado que os descontos de remunerações efectuados pela Arguida, cuja entrega à Segurança Social não foi realizada, dizem respeito apenas até Abril de 2013, data em que foi declarada a insolvência da Empresa visada.
12. Ora, atendendo às declarações prestadas pelo Arguido e ao depoimento da testemunha (…), no âmbito da audiência de julgamento, bem como ao relatório social de fls…, datado de 12-08-2019, que atestaram a situação de insolvência do Arguido, impunha-se uma decisão sobre a matéria de facto diversa da que foi proferida,
13. Pelo que deveria o Tribunal A Quo ter considerado como provado o facto do Arguido se encontrar Insolvente, assim como considerou como provado, no ponto 27, que a Sociedade Arguida se encontra insolvente.
14. Nesse seguimento, e atendendo ao disposto no n.º 1 do artigo 81º do CIRE, o Arguido Recorrente ficou privado dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente desde a data da declaração de insolvência, competindo tais poderes, desde 03-07-2013, ao Administrador de Insolvência nomeado.
15. Atendendo a que o Arguido Recorrente se encontra Insolvente desde 03-07-2013, o mesmo já se encontrava Insolvente à data da notificação para pagamento efectuada nos termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, que ocorreu a 24-03-2017, conforme resulta do ponto 9 dos factos provados, não teria este a real possibilidade de efectuar o pagamento da quantia em causa, por não dispor dos seus bens, uma vez que estes, com a insolvência, estavam a cargo do Sr. Administrador de Insolvência, só podendo este realizar actos de disposição patrimonial, nomeadamente, pagamentos por conta do património do Insolvente/ Massa Insolvente, ora Recorrente.
16. Assim, entendemos que o pagamento a que alude a alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT tem natureza patrimonial, sendo que o responsável, para todos os efeitos e conforme decorre da lei, é o Administrador de Insolvência.
17. Muito embora essa responsabilidade seja no âmbito de um processo crime, ao Arguido quer-se assacar uma responsabilidade penal, por acto que lhe está vedado por lei, nomeadamente no âmbito do CIRE, que corresponde ao acto de dispor do património para efectuar o pagamento.
18. Pelo que a notificação efectuada ao Arguido para o pagamento previsto na alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT deveria ter sido efectuada simultaneamente ao Administrador de Insolvência, e não o sendo, é a mesma irregular, nos termos do artigo 123º do Código de Processo Penal.
19. Mais verifica-se que, da notificação para pagamento voluntário efectuada ao Arguido a 24-03-2017, nos termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, constava como valor em dívida a quantia de 46.266,57€, contudo, resulta do ponto 3 dos factos provados que o valor em dívida em causa se fixava em 43.383,47€.
20. Assim, verifica-se que a notificação efectuada ao Arguido, irregular nos termos acima expostos, é também irregular por vislumbrava um valor em dívida que não se encontrava correcto.
21. Tal factualidade, susceptível de fazer repetir a notificação em causa, de forma a sanar a referida irregularidade, foi remetida aos autos, por requerimento datado de 17-09-2019, com a referência 33420820, requerimento que foi indeferido por despacho datado de 18-09-2019, o qual foi objecto de recurso para o Tribunal da Relação de Évora.
22. Ora, quanto a este aspecto, verifica-se que, no durante o decurso da investigação, constatou-se existir um erro na determinação do valor em dívida a título de contribuições devidas à Segurança Social, passando de 46.266,57€ para 43.383,47€,
23. Pelo que foi o Arguido Recorrente erradamente notificado, constando da notificação em causa- que constitui condição de punibilidade do tipo de crime pelo qual o Arguido vem condenado- um valor que o Arguido não devia e que é superior àquele que se veio a apurar!
24. Sendo certo que a jurisprudência existente sobre o assunto limita-se a referir que não necessita a notificação a que alude a alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT de fazer menção expressa aos montantes em dívida, não tornando, contudo, justificável que se notifique erradamente o contribuinte.
25. Assim sendo, e por todos os motivos supra explanados, estamos em crer que a notificação efectuada ao Arguido no dia 24-03-2017 se deve ter por irregular, pelo que deveria o Arguido Recorrente, em consequência, ter sido absolvido do crime pelo qual vem condenado, por não se ter verificado a condição de punibilidade prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT.
26. Ao condenar o Arguido Recorrente nos termos explanadas na sentença recorrida, violou esta tal alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, bem como os n.ºs 1 e 2 do artigo 123º do Código de Processo Penal.
27. Quanto aos factos considerados provados sob os pontos 22, 23, 24 e 25, sempre se dirá que não é possível deduzir, da motivação da sentença, quais os meios de prova que motivaram que se considerasse tais factos como provados, conforme imposto pelo n.º 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal, pelo que é a sentença recorrida nula, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal, devendo, em consequência, ser revogada.
28. Ademais, e em sentido diverso, verifica-se do relatório social de fls.., datado de 12-08-2019, no último parágrafo 3ª página, o seguinte: “Manifesta desejo em resolver estas questões pendentes, ainda que aparentemente sem soluções ou alternativas elaboradas.,
29. Assim como resultou das declarações prestadas pelo Arguido em sede de audiência de julgamento realizada no dia 18-11-2019, que foram celebrados, entre a Empresa visada representada por este, e entre a Segurança Social, em período prévio à declaração de insolvência, diversos acordos de pagamento, os quais o Arguido Recorrente sempre cumpriu, até à data da declaração de insolvência,
30. Sendo que, após, e atendendo a que o Arguido não pode dispor do seu património pessoal, por motivos de insolvência, todo o incumprimento de entrega das cotizações devidas à Segurança Social é alheio à sua vontade.
31. Assim, tais meios probatórios constantes dos autos não permitem considerar como provados os pontos 22, 23, 24 e 25, impondo uma decisão diversa quanto à matéria de facto.
32. Por outro lado, resulta da sentença recorrida, relativamente ao depoimento da testemunha (…), o seguinte: “(…) acrescentando não ter, até ao momento, sido pago o valor em dívida nem celebrados acordos de pagamento.”
33. Sucede que, salvo melhor entendimento, não é isso que resulta do depoimento da testemunha em causa, e ficou gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, no dia 18/11/2019, contadores 00.00.01 a 00.15.31.
34. Na verdade, referiu a testemunha (…), assistente técnica da Segurança Social, que na data da audiência de julgamento, não se verificava existir qualquer acordo de pagamento, sendo que, quando questionada especificamente se tinha conhecimento da existência de algum acordo de pagamento, a testemunha referiu não saber, pelo que deverá ser corrigida a sentença recorrida, neste segmento.
35. Mais acresce que entendemos que o acto de julgar não se trata de um mero acto de decisão individual, mas sim tendo sempre em conta o princípio da equidade,
36. Sendo que a lei não pode exigir do Homem aquilo que ela própria proíbe.
37. Concluímos da seguinte maneira: A lei (penal) exige o pagamento e a lei (CIRE) proíbe que o Arguido o efectue! (sublinhado nosso).
II. Do cumprimento do n.º 5 do artigo 412º do Código de Processo Penal
38. Por último, e no decorrer dos presentes autos, o Arguido, ora Recorrente, interpôs recurso, a 18-10-2019, com a referência 6327376, do despacho proferido no âmbito da audiência de discussão e julgamento realizada no dia 18-09-2019, que indeferiu o requerimento apresentado pelo mesmo a invocar a irregularidade da notificação para pagamento voluntário efectuada ao Arguido, ao abrigo da alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias,
39. O qual foi admitido a subir a final, nos próprios autos, e com efeito meramente devolutivo, por despacho datado de 28-10-2019, com a referência 82286181.
40. Mais, o Arguido interpôs recurso, a 18-11-2019, com a referência 6425136, do despacho proferido a 08-10-2019, que indeferiu o requerimento apresentado pelo mesmo no âmbito da audiência de julgamento realizada a 18-09-2019, no qual, em suma, invocava o Arguido que se encontrava em situação de insolvência desde 03-07-2013 e que, por tal motivo, encontrava-se impedido de dispor sobre os bens que lhe pertenciam, concluindo pela necessidade de notificação do Administrador de Insolvência, para efectuar o pagamento da quantia em dívida, nos termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT,
41. Recurso que foi igualmente admitido a subir a final, nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo, por despacho datado de 02-12-2019, com a referência 82611861.
42. Nesse sentido, e em cumprimento do n.º 5 do artigo 412º do Código de Processo Penal, vem o ora Recorrente especificar que mantém interesse em ambos os recursos interpostos, a 18-102019 e a 18-11-2019.
43. Assim, e com o devido respeito pelos Venerandos Desembargadores, pedimos justiça para o caso que ora lhes é submetido.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença ora recorrida, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA
1.7. Todos os recursos foram regularmente admitidos.
1.8. O Ministério Público apresentou resposta aos recursos, pronunciando-se no sentido de deverem ser julgados improcedentes, formulando, a final, as seguintes conclusões:
1.8.1. Na resposta ao recurso do despacho interlocutório aludido 1.2.:
«- a simples divergência de valores registada não afecta a validade da notificação efectuada aos recorrentes;
- a existência da disparidade entre o valor constante na notificação efectuada ao arguido nos termos do artigo 105.º, n.º4, alínea b) do R.G.IT, e o que foi considerado como relevante para efeitos do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social em causa nos autos, não invalida que se tenha por verificada a condição objectiva de punibilidade.
- ao considerar que não deveria proceder-se a nova notificação, o douto despacho recorrido não enferma de qualquer vício e não merece qualquer reparo pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos
Deve, pois, ser negado provimento ao recurso.
Mas, V. Exas. decidindo, farão a habitual JUSTIÇA
1.8.2. Na resposta ao recurso do despacho interlocutório aludido em 1.3.:
«- a notificação prevista no art. 105º, n.º 4, alínea b) do RGIT, mesmo estando a sociedade comercial já, previamente, declarada insolvente por sentença transitada em julgado, terá/deverá fazer-se na pessoa do seu gerente, porquanto a representação legal societária pelo Administrador de insolvência restringe-se aos aspectos patrimoniais que interessem à insolvência e não a qualquer outro processo.
- embora o pagamento feito por um responsável a todos aproveite, na ausência de previsão legal, a falta de notificação de um eventual co-responsável não constitui circunstância impeditiva do prosseguimento do processo quanto aos que, notificados, não efectuaram o pagamento.
- a notificação efetuada nos autos obedeceu aos requisitos legais, não estando ferida de irregularidade.
- ao considerar que não deveria proceder-se a nova notificação, o douto despacho recorrido não enferma de qualquer vício e não merece qualquer reparo pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos
Deve, pois, ser negado provimento ao recurso.
Mas, V. Exas. decidindo, farão a habitual JUSTIÇA
1.8.3. Na resposta ao recurso da sentença:
«1. No caso dos autos, estando em causa um crime continuado (de abuso de confiança contra a segurança social), o prazo de prescrição do respetivo procedimento criminal só corre desde o dia da prática do último acto (artº 119º, nº 2, alínea b), do Código Penal),
2. Assim sendo, o último ato ocorreu a 15-6-2013, data em que terminou o prazo para o cumprimento do último dever tributário descrito na acusação,
3. Sucede, porém, que o recorrente foi constituído arguido em 24-7-2017- vide fls. 253- o que interrompeu o prazo de prescrição, por aplicação do disposto no artigo 121 n.º 1 alínea a) do Código Penal,
4. Além disso, a contagem também está suspensa desde 19 de Fevereiro de 2019, altura em que o arguido foi notificado do despacho acusatório aqui proferido, conforme resulta do artigo 120 alínea d) do Código Penal (vide fls. 471 verso).
5. Logo, é evidente que o prazo de prescrição de 5 anos ainda não se encontra ultrapassado.
6. Por outro lado, o tipo de crime de abuso de confiança imputado ao recorrente consumou-se com a não entrega e apropriação, mensal, entre Março de 2009 e Maio de 2013, dos valores devidos à Segurança Social, sendo que o recorrente não impugnou os factos dados como provados de 1.º a 19.º que fundamentam o preenchimento deste tipo de ilícito-culposo (p. ex o facto 11.º, em que se afirma que o arguido e a sociedade se apropriaram das quantias).
7. Assim, a notificação do artigo 105 n.º 4 alínea b) do RGIT não se confunde com o preenchimento do tipo de crime, é, antes, uma verdadeira condição objetiva de punibilidade, posterior ao preenchimento do tipo de crime e que visa, somente, dar uma última oportunidade, ao arguido de repor as quantias tributárias em dívida que indevidamente se apropriou
8. Ou seja, como refere a doutrina citada na nossa exposição, as condições objetivas de punibilidade não pertencem ao tipo de ilícito ou ao tipo de culpa, bastam-se com a sua simples presença (ou ausência), porque nem o dolo nem a negligência precisam de se referir a elas,
9. Assim sendo, no caso, bastava, apenas, que fosse dada a oportunidade ao arguido de proceder à respetiva regularização/reposição dos tributos, o que sucedeu, conforme resulta da notificação de fls. 270.,
10. Neste sentido, sendo uma condição objetiva - posterior ao cometimento dos factos típicos -, é irrelevante, para o seu preenchimento, qualquer circunstância de vida dos arguidos, mormente se ficaram insolventes ou deixaram de ter condições financeiras para cumprir os termos da mesma (e compreende-se que assim seja, já que a seguir-se a tese do recorrente, bastava que houvesse declaração de insolvência após a apropriação de tributos para ninguém ser responsabilizado pelo aludido crime fiscal)
11. Por outro lado, a referida condição objetiva de punibilidade não se destina a dar conhecimento ao sujeito tributário, com exatidão, das prestações ainda em dívida, uma vez que ele próprio delas terá conhecimento, mas sim conceder-lhe uma nova oportunidade para pagar, a fim de se eximir à sua responsabilidade criminal,
12. Donde não há qualquer irregularidade se, aquando da notificação, houve um erro na indicação do montante da dívida (tanto mais que o arguido nem um cêntimo devolveu)
13. No mesmo sentido, ao contrário do que defende o recorrente, não há qualquer contradição no facto do Tribunal dar como provado que “o ilícito em causa foi praticado até Maio de 2013 quando, nessa data, já teria a Empresa visada sido declarada insolvente em Abril de 2013”, na medida em tais situações são perfeitamente conciliáveis,
14. Por exemplo, decorre da prova dos autos que a gerência, liderada pelo recorrente, praticou factos em Maio de 2013, após a declaração de insolvência, emitindo o recibo de vencimento fls. 236,
15. Além disso, a insolvência não representou qualquer causa de extinção do procedimento criminal, pelo que aquela declaração não se traduz em qualquer fator de impedimento de cumprimento de obrigações legais inerentes a este processo - vide, neste sentido, Ac. do TRP de 15-5-2013, relatado por Elsa Paixão.(1) Existe, sim, com todo o respeito, que é muito, contradição nas alegações do recorrente, na medida em que contesta a comprovação dos factos do elemento subjetivo, mas não impugna os factos do elemento objetivo do qual aqueles se extraem.
16. Por fim, conforme resulta da douta sentença, mormente a fls. 652 e 653, o Tribunal indicou a prova (documental e testemunhal) que fundamentou a sua convicção, explicando de forma clara, bastante e fundamentada as razões que sustentaram a condenação do arguido nestes autos, não se vislumbrando qualquer nulidade.
Por todo o exposto, deve negar-se provimento ao recurso apresentado pelo arguido, assim se fazendo, uma vez mais, a costumada JUSTIÇA!»
1.9. Nesta Relação, o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de os recursos deverem ser julgados improcedentes e confirmadas as decisões recorridas.
1.10. Foi cumprido o disposto no art.º 417º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, tendo o recorrente oferecido resposta, reiterando o alegado nas motivações dos recursos, pugnando pela sua absolvição do crime por que vem condenado.
1.11. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Em matéria de recursos, que ora nos ocupa, importa ter presente as seguintes linhas gerais:
O Tribunal da Relação tem poderes de cognição de facto e de direito (cfr. artº. 428º do C.P.P.).
As conclusões da motivação recursiva balizam ou delimitam o respetivo objeto do recurso (cfr. artºs. 402º, 403º e 412º, todos do C.P.P.), delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
Tal não impede o conhecimento, também oficioso, dos vícios enumerados nas als. a), b) e c), do nº. 2 do artigo 410º do C.P.P., mas tão somente quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida por si só ou em sua conjugação com as regras da experiência comum (cfr. Ac. do STJ n.º 7/95 – in DR I-Série, de 28/12/1995, ainda hoje atual), bem como das nulidades principais, como tal tipificadas por lei.
2.2. No caso vertente, tendo presentes as considerações que se deixam enunciadas e atentas as conclusões extraídas pelo recorrente da motivação dos recursos que apresentou, são suscitadas as seguintes questões:
2.2.1. No recurso interlocutório aludido em 1.2., com referência às conclusões indicadas em 1.6.1.:
- Irregularidade da notificação efetuada, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 195º, n.º 4, al. b), do RGIT, por existir erro no valor da dívida a pagar.
2.2.2. No recurso do despacho interlocutório mencionado em 1.3., com referência às conclusões indicadas em 1.6.2.:
- Nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação;
- Irregularidade da notificação efetuada, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 195º, n.º 4, al. b), do RGIT, por falta de notificação dos Administradores da Insolvência da sociedade arguida e do arguido/recorrente.
2.2.3. No recurso da sentença:
- Prescrição do procedimento criminal;
- Irregularidade da notificação efetuada, nos termos e para os efeitos da al. b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, por dela não constar o valor correto;
- Nulidade da sentença por existência de contradição entre os factos dados como provados nos pontos 3 e 27;
- Nulidade da sentença por falta de fundamentação, no atinente à matéria factual dada como provada nos pontos 22, 23, 24 e 25;
- Impugnação da factualidade dada como provada nos pontos 3, 22, 23, 24 e 25;
- Não verificação da condição de punibilidade prevista na al. b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT.
*
2.3. Para que possamos apreciar as questões suscitadas nos recursos, importa ter presente o teor dos despachos interlocutórios e da sentença recorridos e que passamos a transcrever:
2.3.1. O despacho interlocutório referido em 1.2., é do seguinte teor:
«Concordando com o ora exposto pelo Ministério Público,[1] indefere-se o requerido, considerando o entendimento jurisprudencial maioritário de que a notificação em causa não carece de indicação do valor em dívida, desde logo e porque se trata de valor variável no decurso do processo.
Assim, e como foi o caso dos autos, à data da notificação era este o valor apurado, sendo que, após vicissitudes várias, tal valor foi efectivamente alterado.
De todo o modo, o arguido, pessoalmente notificado e acompanhado na ocasião pelo seu Ilustre Mandatário, não arguiu a eventual nulidade/irregularidade se entendesse na altura que a mesma existia. Assim sendo, e pelo exposto, indefere-se o requerido, devendo o julgamento ter início.
Notifique.»
2.3.2. O despacho interlocutório referido em 1.3., é do seguinte teor:
«Questão prévia:
Requereu a defesa que se determine a notificação do administrador de insolvência da sociedade arguida para efectuar o pagamento da quantia em causa nos presentes autos (artigo 105.º, n.º 4, al. b) do RGIT), uma vez que este não foi notificado aquando da notificação pessoal do arguido. Com efeito, quando a sociedade arguida está insolvente – e, no caso, também o próprio arguido (...) – a referida notificação terá que ser feita ao arguido pessoa singular e ao administrador de insolvência, na exacta medida em que só o mesmo pode dispor dos bens patrimoniais da sociedade para proceder ao pagamento por esta.
O Ministério Público pronunciou-se pela regularidade das notificações feitas nos autos.
Vejamos.
A questão que importa aferir é, no caso, se a representação, em processo penal, da sociedade arguida, que tenha sido declarada insolvente, cabe aos seus gerentes/administradores, ou ao administrador da insolvência.
Ora, efectivamente, dispõe o artigo 81.º, n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE - Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, com as actualizações até as introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 84/2019, de 28 de junho) que a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência. Concretiza o n.º 4 do mesmo artigo que o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência (n.º 4).
Por seu lado, o artigo 82.º, n.º 1 do CIRE estabelece que os órgãos sociais do devedor mantêm-se em funcionamento após a declaração de insolvência.
Daqui decorre, pois, que, estando a sociedade (e mesmo o próprio arguido pessoa singular) declarada insolvente, a notificação prevista no artigo 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT (condição de punibilidade do ilícito em causa), deve fazer-se na pessoa do seu gerente/administrador, uma vez que a representação pelo administrador da insolvência cinge-se aos aspectos patrimoniais que interessem à insolvência e não a qualquer outro processo, designadamente criminal.
Não podemos, pois, confundir responsabilidade civil/tributária com responsabilidade criminal.
Tal como já decidido no Acórdão do Tribunal da Relação Coimbra de 14.10.2015 (Proc. 47/13.7IDLRA.C1, www.dgsi), “quando assume as vestes de arguida num processo penal, a pessoa colectiva declarada insolvente de modo algum está a desenvolver actos atribuídos por lei ao seu administrador da insolvência - relacionados com a liquidação do seu património, ou com carácter patrimonial que interessem à insolvência -, mas a ocupar uma posição de cariz estritamente pessoal, relativamente à qual a declaração de insolvência não tem quaisquer efeitos. Deste modo, dado que a representação do administrador da insolvência se circunscreve aos aspectos de natureza patrimonial que interessem à insolvência, quanto aos demais aspectos, designadamente os que contendem com a responsabilidade criminal da sociedade (em liquidação, mas não extinta) a representação da sociedade continuará a pertencer aos seus gerentes – n.º 1 do artigo 82.º do CIRE. Por conseguinte, não tendo o administrador da insolvência de ser notificado para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, a notificação efectuada na pessoa do gerente da sociedade arguida, o arguido/recorrente, foi regularmente efectuada.”
Assim sendo, a notificação prevista no artigo 105.º, n.º 4, al. b) do RGIT, dirigida à sociedade arguida insolvente, deve ser efetuada na pessoa do gerente/administrador da sociedade visada, que representa a sociedade para efeitos de processo crime e não na pessoa do administrador de insolvência, que apenas representa a sociedade em aspetos de caráter meramente patrimonial relativos à insolvência. Também assim no que diz respeito ao arguido pessoa singular já declarado insolvente, sendo a notificação em causa a efectuar na sua própria pessoa e não na pessoa do administrador da insolvência, pelas mesmas razões supra expostas. Nestes termos, as notificações feitas nos autos são regulares, o que se decide.
Acresce que o argumento exposto pela defesa, de que o elemento subjectivo do crime em causa não estaria preenchido pois que o arguido e a sociedade arguida não podiam dispor dos bens por ambos terem sido declarados insolventes, não tem qualquer relevância.
Ora, de facto, o elemento subjectivo do tipo legal de crime em causa verifica-se logo que o agente actue com dolo em qualquer uma das suas modalidades (directo, necessário ou eventual), ou seja, que o arguido sabia que as quantias descontadas se destinavam a ser entregues à Segurança Social e, não obstante, não as destinou a esse efeito, sabendo que esse seu comportamento era proibido e punido por lei. Assim, é, pois, irrelevante para afastar o preenchimento do elemento subjectivo a circunstância de, em momento posterior, e após notificado, não proceder ao pagamento devido, pois que tal pagamento é apenas condição de punibilidade do crime, não tendo a virtualidade de afastar o dolo no cometimento do mesmo.
Assim, e por tudo o exposto, entende-se que não assiste razão aos arguidos, indeferindo-se o requerido
2.3.3. A sentença recorrida, nos segmentos que relevam para a apreciação das questões suscitadas no recurso, é do seguinte teor:
«(…)
3. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Factos provados
Encontram-se provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa:
1. No período compreendido entre o mês de Março do ano de 2009 e o mês de Maio do ano 2013, a sociedade arguida «…Lda.» remeteu declarações de remunerações ao Instituto da Segurança Social, no qual resultaram cotizações no valor total de €46.266,57, nos meses, taxas e valores que se discriminam no ponto 1 da tabela contante da acusação e que considera reproduzida.
2. Porém, naquele período, a sociedade arguida não pagou aos seus trabalhadores parte daquelas remunerações, no montante global de €26.210, correspondendo ao valor total de cotizações não retidas de €2.883,10, respeitantes aos períodos de tempo e trabalhadores que se discriminam na tabela constante no ponto 2 da acusação e que se considera reproduzida.
3. Donde, no aludido período compreendido entre Março de 2009 e Maio de 2013, a sociedade arguida descontou de remunerações que efetivamente pagou aos seus trabalhadores, as quantias acima discriminadas em 1.º com a subtração dos valores discriminados em 2.º, no valor global de €43.383,47 (€46.266,57-€2.883,10) – quarenta e três mil, trezentos e oitenta e três euros e quarenta e sete cêntimos.
4. Em conformidade com a imposição legal, correspondentes às taxas globais de 34,75%, 31,25 % e 29,60 %, das remunerações base dos trabalhadores por conta de outrem e dos membros dos órgãos sociais, respetivamente, conforme acima se discrimina em 1.
5. As quais os arguidos deveriam ter entregue ao Instituto de Gestão Financeira do Instituto da Solidariedade e Segurança Social até ao dia 15 do mês seguinte, a que diziam respeito.
6. Porém, não o fizeram nesse prazo, nem nos noventa dias posteriores ao seu termo,
7. Como estavam obrigados.
8. E o arguido (...) bem sabia.
9. Não o fizeram, ainda, quando, posteriormente, notificados, pessoalmente, no dia 24-03-2017, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, al. b) e 6 do R.G.I.T.
10. E nada disseram, fizeram ou requereram, no prazo de trinta dias após aquelas notificações.
11. Com a descrita conduta integraram aquelas quantias nos seus patrimónios.
12. Assim as fazendo suas, o que conseguiram.
13. A sociedade arguida está matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Ferreira do Zêzere.
14. Tem como objeto «comércio e indústria de construção civil, compra e venda de propriedades e revenda das adquiridas para esse fim».
15. E, no aludido período temporal, (...) era seu administrador.
16. Na verdade, era ele que dava ordens aos trabalhadores,
17. Contactava clientes e fornecedores, em representação da sociedade.
18. Era ele quem decidia todas as questões de natureza financeira, ordenando os pagamentos, nomeadamente de salários e impostos,
19. Contratava e despedia trabalhadores.
20. Assim, agindo sempre em nome e no interesse da sociedade Francisco e Leonel, Construções, Lda.
21. Obrigando-a mesmo pela sua assinatura.
22. O arguido (...) agiu sempre de forma livre, consciente e deliberada, 23. Aproveitando a oportunidade favorável à prática dos ilícitos descritos,
24. Quer por não terem sido alvo de qualquer fiscalização após a prática dos primeiros factos,
25. Quer por terem verificado persistirem as possibilidades de repetirem as suas condutas,
26. Não obstante saberem que as mesmas eram proibidas e punidas por lei penal.
Mais se provou que:
27. A sociedade arguida foi declarada insolvente por sentença proferida em 08.04.2013, transitada em julgado, encontrando-se em liquidação.
28. (...) completou o equivalente ao 11º ano e um curso de formação técnico profissional como agente técnico de arquitetura e engenharia, e após o cumprimento do serviço militar, em 1982, começou a trabalhar, junto do pai na empresa deste, no sector de construção civil.
29. Veio a substituir o pai na gerência da empresa, quando este adoeceu e assegurou integralmente a gerência desta, em 1992, após a morte do pai.
30. A nível pessoal constituiu família aos 23 anos, autonomizou-se do agregado de origem, mas manteve-se a trabalhar na referida empresa familiar. Este relacionamento durou cerca de 9 anos, não tendo descendentes do mesmo.
31. Em 1995 casou novamente e nasceram 2 filhos desta relação, actualmente com 20 e 16 anos.
32. Em 2012, (...), separou-se do cônjuge. Passou a viver sozinho na morada que hoje dispõe, uma habitação propriedade dos sogros e que lhe foi cedida desde então.
33. A nível laboral, conseguiu trabalho na empresa “… Lda.” de construção e remodelações de interiores, através de um amigo, da qual já é presentemente um dos gerentes.
34. Aufere uma média de 1.000 euros mensais e tem como despesa a pensão dos filhos, no valor de 420 euros mensais.
35. Contacta regularmente os filhos, com os quais passa habitualmente os fins de semana.
36. O arguido e a sociedade arguida não têm antecedentes criminais.
***
Factos não provados
Nada mais se provou, com interesse para a decisão da causa.
***
Motivação
O Tribunal firmou a sua convicção, quanto à matéria de facto, analisando o relatório preliminar de fls. 2 a 4; a participação de fls.5; os mapas de cotizações em falta de fls. 6 a 10, 54 a 58; as notificações do 105 a fls. 28 e 29; a certidão de matrícula de fls. 81 a 93; o extrato de remunerações de fls. 96 a 114; o modelo 3 de IRS e recibos de fls. 137 a 229; a declaração do 119 do CIRS, fls.237 a 239; o extrato de remunerações de fls.240 a 244; a certidão permanente de fls. 413 a 419; a certidão de fls. 424 a 432; e o print de certidão permanente atualizada.
Mais se consideraram as declarações do arguido (...), que assumiu o não pagamento dos valores à Segurança Social, explicando os motivos de tal conduta, que se prenderam com falta de liquidez da empresa.
Ponderou-se, ainda, o depoimento da testemunha (…), assistente técnica do IPSS, que explicou o teor dos mapas que se traduzem em conta corrente, da qual consta o teor das folhas de remuneração e os pagamentos efectuados pela sociedade, e a partir do qual se apurou a dívida em causa nos autos, e descreveu o modo como se obtiveram as conclusões nestes constantes, acrescentando não ter, até ao momento, sido pago o valor em dívida nem celebrados acordos de pagamento. Esta testemunha depôs de forma isenta, sem qualquer interesse na causa merecendo, pois, a credibilidade do Tribunal.
Também as testemunhas indicadas pelo arguido, (…), (...) e (…), trabalhadores da sociedade, e (…), mulher do arguido (embora separada de facto) explicaram os motivos que, em seu entender, fundaram o não pagamento das quantias em causa. Estas testemunhas depuseram de forma clara, segura e consistente, tendo, por isso, contribuindo para a formar a convicção do Tribunal.
Quanto às condições económicas e sociais do arguido, levou-se, ainda, em conta o teor das suas declarações, que se tiveram por merecedoras de crédito, e o teor do relatório elaborado pela DGRSP.
A comprovação da ausência de antecedentes criminais resulta do teor dos certificados de registo criminal juntos aos autos.

4. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL
4.1. Do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social
Nos termos do artigo 107.º, n.º 1 do RGIT, as entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações pagas aos trabalhadores o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos n.ºs 1 e 5 do artigo 105.º.
Por seu turno, estabelece o artigo 105.º, n.º 1 do RGIT a pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias como moldura pela aplicável.
Paralelamente, o artigo 7.º, n.º 1 do referido diploma estabelece a responsabilidade das pessoas colectivas pela prática deste ilícito, estatuindo que as pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo.
Porém, a efectivação da responsabilidade das pessoas colectivas não exclui a responsabilidade individual dos respectivos agentes (n.º 3 do artigo 7.º do RGIT).
Esta incriminação, que consubstancia um meio de tutela do bem jurídico que se traduz no correcto funcionamento do sistema de Segurança Social, manifesta-se, inequivocamente como um crime próprio ou específico de entidades empregadoras (Isabel Marques da Silva, Regime Geral das Infracções Tributárias, Cadernos IDEFF, n.º 5, p.187).
De facto, as entidades patronais estão obrigadas a entregar às instituições da Segurança Social as folhas de remunerações pagas, no mês anterior, aos seus trabalhadores, assim como aos gerentes.
Esta incriminação, que consubstancia um meio de tutela do bem jurídico património da Segurança Social, ou seja, a tutela do respectivo erário, assente na satisfação dos créditos contributivos de que a segurança social é titular, destinando-se à prossecução dos seus fins específicos, funda-se na necessidade de proteger a confiança da segurança social e dos próprios trabalhadores, em face de quem tem o empregador a obrigação de deduzir e entregar a prestação.
Constituem, assim, elementos objectivos do tipo legal em causa: a não entrega às instituições da segurança social das contribuições devidas pelos trabalhadores e membros dos órgãos sociais e terem as mesmas sido deduzidas às remunerações dos trabalhadores ou gerentes pelas entidades empregadoras.
O crime de abuso de confiança contra a segurança social, diferentemente do que sucedia no regime anterior (artigo 27.º-B do RJIFNA), deixou de fazer referência, de forma literal, na norma legal, ao elemento constitutivo apropriação.
Tem-se verificado, por isso, divergência jurisprudencial relativa à questão de saber se, a apropriação continua a fazer parte do tipo objectivo de ilícito, ainda que não literalmente estabelecida, discussão que se verifica, também, ao nível da incriminação do abuso de confiança fiscal, e cujos argumentos são válidos para o presente tipo de ilícito.
No sentido de que continua a exigir-se a apropriação do montante não entregue decidiu o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.01.2007 (Proc. 4099/06.3, www.dgsi.pt), o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07.10.2009 (Proc. 16/98.5IDCBR, www.dgsi.pt) e entendem Simas Santos e Lopes de Sousa (Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, 2003, p. 646), defendendo que a apropriação é um elemento implícito do tipo.
Em sentido contrário, defendendo a eliminação, com o RGIT, do elemento apropriação, pronunciaram-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18.10.2006, (Proc. 06P2935, www.dgsi.pt) e do Tribunal da Relação do Porto de 17.01.2007, (Proc. 0642766, www.dgsi.pt) – relativos ao crime de abuso de confiança fiscal, mas, como supra se disse, com argumentos igualmente aplicável ao ilícito em apreço, por estar em causa a entrega de prestações, que correspondem a deduções noutras prestações devidas, por quem tem obrigação de o fazer.
Ora, considerando o bem jurídico em causa - património e regular funcionamento do sistema de Segurança Social – pareceria, em primeira análise, ser de aderir a este último entendimento, de que o artigo 107.º do RGIT prescinde do elemento apropriação para se considerar preenchido o tipo, porque a lesão do bem jurídico se verifica com a mera não entrega da prestação devida, independentemente de ter havido apropriação, ao que acresceria o elemento literal plasmado na eliminação da menção à referida apropriação.
Todavia, entendemos, na senda do defendido por Susana Aires de Sousa (Os crimes fiscais. Análise dogmática e reflexão sobre a legitimidade do discurso criminalizador, 2006, p. 305 e ss.), que “só a conjugação da apropriação da prestação (tributária) com a violação da obrigação de entrega pode conferir dignidade à intervenção penal”, na medida em que é “axiológico-socialmente irrelevante a conduta de quem, no momento do pagamento de rendimentos (ex. salários), não retém o imposto (e não o entrega ao Estado)”. Efectivamente, o mesmo raciocínio é aplicável a quem, no momento do pagamento dos salários, procede ao desconto da contribuição devida à Segurança Social e não a entrega a esses serviços.
Assim decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 10.01.2007 (Proc. 4099/06.3, www.dgsi.pt), defendendo que “só com o entendimento de que a apropriação continua a ser um elemento essencial do tipo, tal como na anterior tipificação do RGIFNA, se reconduz aquele a uma exigência de dignidade penal, se delimita a fronteira entre o axiologicamente neutro e o relevante e carente de tutela em termos penais, e se pode afirmar, sem reservas, a constitucionalidade do preceito”.
Com efeito, parece-nos que assim o exige a Constituição da República Portuguesa, maxime, o princípio da legalidade, previsto no artigo 29.º, que traduz o direito penal como ultima ratio, isto é, com natureza de intervenção mínima, fragmentária e subsidiária, razão pela qual julgamos que a apropriação, nos termos que adiante explicitaremos, constitui elemento do tipo incriminador, o que se impõe aferir.
A estes elementos acrescem, porém, as seguintes condições objectivas de punibilidade: terem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação (artigo 105.º, n.º 4, alínea a) do RGIT, na redacção da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro) e a prestação comunicada à administração, através da correspondente folha de remuneração, não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após a notificação para o efeito (artigo 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT, introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro).
O crime em causa, no que concerne ao tipo subjectivo, apenas se verifica como doloso, não admitindo a forma negligente, como prevê o artigo 13.º do Código Penal, pelo que necessário se torna, para o preenchimento do mesmo, que o agente, tenha previsto e desejado não entregar as prestações a que sabia estar obrigado, pese embora soubesse que tal conduta é punida pela lei penal.
Analisados os elementos típicos, objectivos e subjectivos, do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social e considerando a matéria factual dada como provada, dúvidas não subsistem de que os arguidos praticaram a infracção que lhes é imputada, porquanto, com a sua conduta, preencheu os respectivos elementos constitutivos.
Com efeito, provou-se que o arguido, ao efectuar, por conta da sociedade, os pagamentos aos trabalhadores, procedia ao desconto referente à contribuição para a Segurança Social.
Todavia, pese embora tenha remetido à Segurança Social as folhas de vencimento, donde constava quer a remuneração auferida, quer o montante descontado, o arguido não entregou à Segurança Social tal valor, como lhe competia e sabia estar obrigado, sabendo que tais quantias pecuniárias não lhe pertenciam ou à sociedade arguida, não obstante ter sido notificado para o efeito.
Mais se provou que os salários dos trabalhadores foram efectivamente pagos e que o valor não pago foi utilizado para despesas correntes da sociedade arguida, como seja o pagamento de salários.
Com efeito, a “apropriação”, que constitui elemento típico do crime em causa, não tem de ser reconduzida ao gasto ou consumo em proveito próprio ou alheio, podendo traduzir-se na mera fruição ou na disposição pelo devedor (como se proprietário fosse) de cada uma das prestações retidas que estava obrigado a entregar.
Efectivamente, como apropriação deve entender-se a mera circunstância de ser dado outro destino, seja ele egoísta ou altruísta, aos valores descontados nos salários devidos, na medida em que “não compete aos arguidos decidirem do destino de um dinheiro que já não lhes pertence, e de que assim se apropriam, pois que inverteram o título da posse” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07.03.2003, Proc. nº 0111289, www.dgsi.pt).
Ora, dos factos resulta evidente que o arguido, enquanto administrador da sociedade, deixou de entregar à Segurança Social, como era devido, as importâncias retidas nos salários dos trabalhadores, importâncias que terão sido utilizadas no pagamento dos salários aos trabalhadores da empresa. Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19.04.2005 (Proc. 2686/04.1, www.dgsi.pt), que decidiu que “o facto de se ter dado como provada a situação económica difícil da empresa não afasta a consciência da ilicitude e a culpa dos arguidos na prática do crime previsto e punível pelo artigo 107.º do RGIT”.
Também não se tratará de uma situação de conflito de deveres.
Dispõe o artigo 36.º do Código Penal que “não é lícito o facto de quem, em caso de conflito de deveres jurídicos ou de ordens legítimas da autoridade, satisfizer dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que sacrificar, sendo que o dever de obediência hierárquica cessa quando conduzir à prática de um crime”.
Ora, tal como exposto no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.10.2013 (Proc. 1033/10.4TAVFR.P1, www.dgsi.pt), “esta situação desde há muito que vem sendo uniformemente decidida pela jurisprudência ao não a considerar como integrando um estado de necessidade desculpante, e como não constituindo a causa excluidora da ilicitude do artigo 36.º do Código Penal (cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 22/09/2004, Proc. 0412635, de 26/09/2007, Proc. 0712239, de 15/02/2006, de 18/02/2009, Proc. 0846954, todos em www.dgsi.pt, e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12/07/2005, CJ-2005-IV-133), pois (…) as quantias declaradas e retidas pertenciam à Segurança Social, razão pela qual àquela (sociedade) apenas era consentido que actuasse como detentora, encontrando-se-lhe vedado que das mesmas dispusesse como sendo bens próprios, e ao omitir a entrega do valor deduzido e retido, assenhorou-se das prestações que lhe estavam confiadas, integrando-as no seu património e revelando através de concludente conduta, a apropriação das mesmas”.
É que, na verdade, ao satisfazer as necessidades da empresa, o arguido satisfez necessidades próprias, de manutenção em funcionamento da empresa, e não de necessidades alheias. Tal como já foi decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 20.06.2001 (CJSTJ-II-227), “nada permite concluir que o dever de empresa a funcionar, nomeadamente através do pagamento dos salários aos seus trabalhadores, seja superior ao de cumprir as obrigações fiscais (e relativas à Segurança Social), sendo certo que esse dever é uma obrigação legal e assim superior ao interesse em manter a empresa com os pagamentos”.
De facto, o arguido não entregou à Segurança Social tal valor, como lhe competia e sabia estar obrigado, sabendo, ainda, que tais quantias pecuniárias não lhe pertenciam ou à sociedade arguida, não obstante ter sido notificado para o efeito.
Constata-se, assim, que a conduta do arguido preenche o elemento objectivo e subjectivo do tipo legal de crime em causa nestes autos, pelo que cometeu um crime de abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, previsto e punível pelos artigos 107.º, n.º 1 e 2, 105.º, n.º 1, 4 e 7 do RGIT e 30.º, n.º 2 do Código Penal, sendo a sociedade punida por força do disposto no artigo 7.º do RGIT.
(…).»

2.3. Apreciação dos recursos
2.3.1. Da prescrição do procedimento criminal
Pese embora a prescrição do procedimento criminal seja invocada no recurso interposto da sentença, por se tratar de uma exceção que, em caso de procedência, prejudicaria o conhecimento das demais questões suscitadas nos recursos, passamos a apreciá-la.
Vejamos então:
Sustenta o recorrente que o procedimento criminal se encontra prescrito, por já ter decorrido o prazo de cinco anos [previsto no n.º 1 do artigo 21º, n.º 1 do RGIT], sobre a data da prática dos factos, estando em causa um crime continuado e tendo o último ato de execução ocorrido em 15/06/2013 [sendo a última retenção das prestações contributivas referente a maio de 2013 e devendo a sua entrega à Segurança Social ter sido efetuada até ao dia 15/06/2013].
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de que ainda não decorreu o prazo de prescrição, tendo em conta as causas de interrupção e de suspensão da prescrição que se verificaram, concretamente, a constituição de arguido, em 24/07/2017 (artigo 121º n.º 1 alínea a) do Código Penal) e a notificação ao arguido da acusação (artigo 120º alínea d) do Código Penal), que ocorreu em 19/02/2019, estando a contagem do prazo de prescrição suspensa desde essa data.
Apreciando:
O prazo de prescrição do procedimento criminal, do crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelo artigo 107º, n.ºs 1 e 2, por referência ao artigo 105º, n.º 1, 4 e 7, ambos do RGIT, por que o arguido, ora recorrente, se mostra acusado é de 5 anos (cf. artigo 21º, n.º 1 do RGIT).
De acordo com a jurisprudência fixada pelo STJ no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2015[2]: «No crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107.º, número 1, e 105.º, números 1 e 5, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), o prazo de prescrição do procedimento criminal começa a contar-se no dia imediato ao termo do prazo legalmente estabelecido para a entrega das prestações contributivas devidas, conforme dispõe o artigo 5.º, número 2, do mesmo diploma».
E estando em causa nos autos um crime continuado (cf. artigo 30º, n.º 2, do CP), o prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia da prática do último ato (cf. artigo 119º n.º 2 al. b) do CP).
Assim, no caso dos autos, considerando que o último mês em que se verificou a omissão de entrega, à Segurança Social, das contribuições deduzidas do valor das remunerações dos trabalhadores, foi o mês de maio de 2013 e sendo o prazo legal estabelecido para efetuar essa entrega até ao 20º dia do mês seguinte (cf. artigo 43º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16 de Setembro), a contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal iniciou-se em 21/06/2013.
De harmonia com o disposto no artigo 21º, n.º 4, do RGIT, o prazo de prescrição, interrompe-se e suspende-se nos termos estabelecidos no Código Penal.
No tocante à interrupção da prescrição, dispõe o artigo 121º do Código Penal - no que ao presente caso importa considerar - que:
«1. A prescrição do procedimento criminal interrompe-se:
a) Com a constituição de arguido;
b) Com a notificação da acusação (…);
2. Depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição.
3. (…), a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade (…)».
E relativamente à suspensão da prescrição, estatui o artigo 120º do Código Penal - no que releva para o caso vertente -, que:
«1. A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:
(…);
b) O procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação (…);
(…);
e) A sentença condenatória, após a notificação ao arguido, não transitar em julgado;
(…).
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior a suspensão não pode ultrapassar três anos.
(…).
4. No caso previsto na alínea e) do nº 1 a suspensão não pode ultrapassar 5 anos (…).»

Volvendo ao caso dos autos e compulsados estes, verifica-se que o ora recorrente foi constituído arguido em 24/03/2017 – cf. fls. 251 e 252 –, iniciando-se, a partir dessa data, novo prazo de prescrição (cf. n.º 2 do artigo 121º do CP), o qual foi de novo interrompido com a notificação ao arguido da acusação (cf. al. b) do n.º 1 do artigo 121º do CP), que ocorreu em 19/02/2019 – cf. fls. 473 e verso –, constituindo tal notificação também causa de suspensão da prescrição (cf. artigo 120º nº 1 al. b) do CP), por um período máximo de 3 anos (cf. n.º 2 do artigo 120º do CP), que não foi atingido, tendo, entretanto, ocorrido uma outra causa de suspensão do procedimento criminal, e que foi a notificação ao arguido da sentença condenatória proferida nos autos, ainda não transitada em julgado (cf. artigo 120º nº 1 al. e) do CP), que ocorreu em 27/11/2019 – cf. fls. 662 –, sendo de 5 anos a duração máxima da suspensão da prescrição fundada nessa causa (cf. n.º 4 do artigo 120º do CP).
Assim, tendo em conta as causas de interrupção e de suspensão da prescrição verificadas, nos termos sobreditos, forçoso é concluir que não decorreu ainda o prazo de prescrição do procedimento criminal, quer por não se ter completado o prazo de cinco anos sem que houvesse lugar a suspensão e/ou interrupção do mesmo, quer por não ter sido ainda atingido o prazo limite previsto no n.º 3 do artigo 121º do Código Penal, nos termos do qual a prescrição tem sempre lugar quando, desde o seu inicio e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade.
Consequentemente, julga-se improcedente a exceção de prescrição do procedimento criminal invocada pelo recorrente.

2.3.2. Recurso do despacho interlocutório proferido em 18/09/2019
Invoca o recorrente a irregularidade da notificação que lhe foi efetuada pelo ISS, I.P., nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105º, n.º 4, al. b) do RGIT, por nela existir erro na indicação do valor da dívida a cujo pagamento devia proceder, constando de tal notificação o valor de €46.256,57, quando, na realidade, o valor da dívida se fixava em €43.383,47.
Entende o recorrente que se trata de uma irregularidade, que é de conhecimento oficioso, por afetar o valor do ato/notificação (n.º 2 do artigo 123º do CPP) e, como tal, que deve ser ordenada a repetição dessa notificação, com a indicação do valor correto.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de não assistir razão ao recorrente, pugnando pela manutenção do despacho recorrido, sufragando o entendimento de que a divergência de valores assinalada pelo recorrente não afeta a validade da aludida notificação e não invalida que se tenha por verificada a condição objetiva de punibilidade prevista na al. b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT.
Apreciando:
Dispõe o artigo 105º do RGIT - na parte agora importa considerar -, que:
«(…)
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
(…)
O Supremo Tribunal de justiça, no Acórdão n.º 6/2008, fixou jurisprudência no sentido de que a exigência prevista na al. b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, na redação dada pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro, configura uma condição objetiva de punibilidade[3].
A referenciada condição objetiva de punibilidade do crime de abuso de confiança fiscal e, por força da remissão do n.º 2 do artigo 107º do RGIT, também do crime de abuso de confiança contra a segurança social consubstancia-se na falta de pagamento da prestação tributária ou contributiva, em dívida que foi declarada – à AT ou à Segurança Social – mas que não foi paga, acrescida dos juros devidos e da coima aplicável, no prazo de 30 dias, após a notificação efetuada para o efeito.
Tal notificação destina-se a proporcionar ao(s) arguido(s) – que tendo efetuado a comunicação da prestação à AT ou à Segurança Social, através da correspondente declaração, não tenha efetuado o respetivo pagamento, nem no prazo legal para o efeito, nem no prazo de 90 dias previsto na al. a) do n.º 4 do artigo 104º do RGIT – uma derradeira possibilidade de proceder(em) ao pagamento da prestação em dívida, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após ter(em) sido notificado(s) para o efeito.
A questão que tem gerado controvérsia na doutrina e na jurisprudência é a de saber se a notificação em causa, exige que dela conste a concretização das quantias a pagar pelo arguido ou se basta uma indicação genérica para que pague “as prestações, juros e coima, aplicáveis, no prazo de 30 dias”[4].
A orientação jurisprudencial maioritária perfilha o entendimento de que não tem de constar da aludida notificação a concretização dos valores a pagar, competindo ao arguido/notificado, que pretenda cumprir a condição, diligenciar junto da Administração Tributária ou da Segurança Social, consoante o caso, inteirando-se daqueles valores[5].
Aqueles que defendem a posição contrária[6], argumentam que existe um verdadeiro ónus de comunicação, informação e esclarecimento, que devem ser plasmados no teor da notificação, por forma a que o arguido/notificado fique inteirado sobre a quantia que terá de pagar, para que fique excluída a sua punibilidade.
Em nosso entender, a notificação a efetuar, nos termos e para os efeitos previstos na al. b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT – aplicável ao crime de abuso fiscal contra a segurança social ex vi do artigo 107º, n.º 2 do mesmo diploma legal –, tendo em conta os fins a que se destina, deverá indicar, pelo menos, o valor das prestações tributárias ou contributivas, em dívida e a menção de que esse valor é acrescido de juros e, ainda, de coima, não sendo exigível a concretização do valor dos juros, nem do montante da coima, já que serão variáveis.
Consideramos que não sendo feita, em tal notificação, a indicação do valor das prestações tributárias ou contributivas em dívida e cujo pagamento é reclamado pela Administração Tributária ou pela Segurança Social, o arguido/notificado não ficará na posse de uma informação essencial, para poder aferir da (des)conformidade do valor indicado com os montantes efetivamente em dívida e para poder ajuizar sobre se dispõe e, não dispondo, sobre se consegue arranjar (v.g. recorrendo a empréstimo), no referido prazo de 30 dias, meios de pagamento para liquidar o valor em causa, estando ciente de que esse valor é acrescido de juros e de terá ainda de pagar uma coima, podendo o arguido, no caso de pretender pagar, solicitar junto da AT ou da Segurança Social, conforme o caso, o cálculo dos juros e informar-se sobre o valor da coima que será aplicada.
No respeitante aos juros, o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 151/2009, de 25/03/2009[7], chamado a pronunciar-se, decidiu não julgar inconstitucional a norma extraída do artigo 105.º, n.º 4, alínea b), do Regime Geral de Infrações Tributárias, na interpretação segundo a qual pode ser criminalmente punido quem tenha sido notificado para pagar uma prestação tributária acrescida dos respetivos juros sem que seja indicado o montante concreto desses juros nem a forma de os calcular.
Porém, ainda que preconizando o entendimento de que, da notificação a efetuar ao arguido, nos termos e para os efeitos do disposto na al. b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, deve constar o valor das prestações tributárias ou contributivas em dívida, entendemos que, no caso de existir incorreção na indicação desse valor e, sobretudo, quando não seja significativa a diferença entre o montante mencionado na notificação e o valor efetivamente devido, apurado em audiência, tal não afeta a validade do ato/notificação efetuada[8].
Assim, no caso concreto, tendo o arguido, ora recorrente, sido notificado, para os efeitos previstos na al. b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, em 24/03/2017 - cf. fls. 246 - constando dessa notificação que o valor da dívida relativo a quotizações retidas e não entregues era de €46.266,57 [com a menção, de que eram “acrescidos dos respetivos juros de mora que se vencem até integral pagamento e do valor da(s) coima(s) aplicável(is)”], tendo sido dado como provado na sentença, que o valor em dívida à Segurança Social, é de €43.383,74, não se nos afigurando que diferença entre esses valores (que é de €2.882,83) assuma relevância, em termos de poder condicionar a decisão do arguido de pagar ou de não pagar, concluímos que a notificação em causa é válida e mostra-se apta a preencher a condição objetiva de punibilidade estabelecida na al. b) do n.º 4 do artigo 105º, aplicável ao crime de abuso de confiança contra a segurança social ex vi do n.º 2 do artigo 107º do RGIT, pelo que, nenhuma censura merece o despacho recorrido, que assim decidiu.
O recurso interlocutório em apreço, é, pois, julgado improcedente.

2.3.3. Recurso do despacho interlocutório proferido em 08/10/2019
2.3.3.1. Da nulidade do despacho recorrido, por falta de fundamentação
Invoca o recorrente a nulidade do despacho recorrido, por falta de fundamentação nos termos exigidos pelo artigo 97º, n.ºs 1 e 5, do CPP, por o tribunal não se ter pronunciado sobre as diligências probatórias requeridas pelo arguido, ora recorrente, concretamente, que os Administradores da Insolvência da sociedade arguida e do arguido fossem notificados para esclarecer qual o valor inicial do ativo e do passivo de cada uma das Massas Insolventes, quais os bens que as integravam, à data em que foi efetuada ao arguido (a título pessoal e na qualidade de gerente da sociedade arguida Francisco & Leonel – Construções, Ld.ª), nos termos e para os efeitos do disposto na al. b) do n.º 4 do artigo 105º, ex vi do n.º 2, do artigo 107º, ambos do RGIT.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de o despacho recorrido não enfermar do apontado vício.
Apreciando:
Alega o recorrente ter existido omissão de pronúncia do Tribunal a quo no despacho recorrido, sobre diligências de prova que requereu, assacando a tal despacho o vício da nulidade por falta de fundamentação.
Lido o despacho recorrido verifica-se que, pese embora, dele não conste a expressa referência ao segmento do requerimento a que o recorrente agora vem aludir – qual seja, para que fossem notificados os Administradores de Insolvência da sociedade arguida e do arguido, para esclarecer qual o valor inicial do ativo e do passivo de cada uma das Massas Insolventes, quais os bens que as integravam, à data em que o arguido foi notificado nos termos e para efeitos do disposto na al. b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT e no presente – extrai-se dos fundamentos aduzidos para sustentar a decisão de indeferimento da notificação dos Administradores de Insolvência, para os efeitos estabelecidos na al. b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, que o Tribunal a quo considerou que, em face do assim decidido, ficava prejudicada a notificação dos mesmos para prestarem os esclarecimentos requeridos pelo arguido, ora recorrente.
E, mesmo que assim não fosse entendido e que se considerasse que, sendo esse o caso, deveria fazer-se constar do despacho que estava prejudicada a requerida notificação dos Administradores de Insolvência, para prestarem os ditos esclarecimentos, tal omissão não configuraria uma nulidade, mas uma mera irregularidade.
Só quando se verifique na sentença, a omissão de pronúncia, constituiu causa de nulidade (al. c) do n.º 1 do artigo 379º do CPP).
Quando a omissão de pronúncia se verifique nos despachos e vigorando em matéria de nulidades o principio da legalidade, não sendo cominada como tal na lei, integra uma irregularidade (cf. artigo 118º, n.ºs 1 e 2, do CPP), sujeita ao regime previsto no artigo 123º, n.º 1, do CPP.
Assim, teria a aludida irregularidade de ser arguida pelo ora recorrente, na audiência de julgamento que teve lugar no dia 18/11/2019 (cf. ata de fls. 619 a 623) e não o sendo, como não foi, a irregularidade estaria sanada[9].
Improcede, assim, este fundamento do recurso.

2.3.3.2. Da irregularidade da notificação prevista na al. b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT
Invoca o recorrente a existência de irregularidade - que entende ser de conhecimento oficioso, por afetar a validade do ato, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 123º do CPP -, da notificação que lhe foi efetuada (a título pessoal e na qualidade de gerente da sociedade arguida Francisco & Leonel – Construções, Ld.ª), nos termos e para os efeitos do disposto na al. b) do n.º 4 do artigo 105º, ex vi do n.º 2, do artigo 107º, ambos do RGIT, por duas ordens de razões, quais sejam:
- Por não ter sido notificado, nos mesmos termos e para os mesmos efeitos, o outro gerente da sociedade arguida, (...) (que foi constituído como arguido nos autos e tendo o Ministério Público vindo a proferir despacho de arquivamento do inquérito relativamente ao mesmo). No entender do recorrente essa notificação deve estender-se a todos os responsáveis legais pelo pagamento da dívida, por se tratar de uma obrigação solidária e o pagamento da dívida por um dos responsáveis legais, a todos liberar, nos termos do disposto no artigo 512º e ss. do C. Civil.
- Tendo sido declarada a insolvência do arguido/recorrente e da sociedade arguida, em momento anterior ao da efetivação da notificação em apreço, impunha-se que esta fosse feita também aos Administradores de Insolvência, da sociedade arguida e do arguido/recorrente, na medida em que só eles podiam dispor dos bens da massa insolvente, estando o arguido, desde a declaração da insolvência, privado dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes que integram a massa insolvente (artigo 81º, n.º 1, do CIRE), pelo que, não podia pagar a dívida em causa.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de não assistir razão ao recorrente, preconizando o entendimento de que a notificação, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105º, n.º 4, al. b) do RGIT, não tem de ser feita ao administrador de insolvência, na medida em que a representação por este assegurada cinge-se aos efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência, o que não é o caso.
Apreciando:
No tocante à alegada omissão de notificação do outro gerente da sociedade arguida, (...), não assiste qualquer razão ao recorrente, porquanto, contrariamente ao que refere, aquele gerente, que foi constituído arguido nos autos, foi notificado pelo ISS, I.P., nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105º, n.º 4, al. b), do RGIT, em 02/05/2017 - cf. fls. 370.
Acresce que, em nosso entender, mesmo que se desse o caso de a notificação em apreço não ter sido efetuada, tendo o arguido/recorrente, sido regularmente notificado, nunca a falta de notificação ao outro gerente da sociedade afetaria a validade da notificação efetuada ao arguido. Neste ponto, concordamos inteiramente com o que se decidiu no Ac. da RC de 11/10/2017[10], onde se escreve:
«Com a nova condição objectiva de punibilidade a lei colocou na disponibilidade de cada agente do crime, através de um facere – o pagamento da prestação em falta e juros, dentro do prazo assinalado – a desnecessidade da punição. Assim, para que a condição se verifique em relação a cada arguido é apenas necessária que o mesmo tenha sido regularmente notificado e não tenha, dentro do prazo referido, satisfeito o pagamento devido.
É certo que o pagamento feito por um dos arguidos aproveita aos restantes, ficando excluída a punibilidade das condutas relativamente a todos eles. Todavia, se no campo exclusivo da responsabilidade meramente tributária, é admissível falar-se de responsabilidade solidária, o conceito não é transponível para o campo penal e, portanto, para o regime estabelecido na alínea b) do nº 4 do art. 105º do RGIT. Com efeito, embora o pagamento feito por um responsável a todos aproveite, na ausência de previsão legal, a falta de notificação de um co-responsável não constitui circunstância impeditiva do prosseguimento do processo quanto aos que, já notificados, não efectuaram o pagamento.»
De igual modo, entendemos não assistir razão ao recorrente ao defender que se impunha que a notificação nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105º, n.º 4, al. b), do RGIT, fosse também efetuada aos Administradores de Insolvência, da sociedade arguida e do próprio arguido/recorrente, por estar vedado aos insolventes a prática de atos de disposição do património (artigo 81º, n.º 1, do CIRE) e o pagamento das quantias referenciadas naquela notificação respeitar a um ato com efeitos patrimoniais.
É consensual o entendimento de que a representação do administrador de insolvência se cinge aos efeitos de caráter patrimonial que interessem à insolvência, como resulta do disposto no artigo 81º, n.º 4, do CIRE.
Para efeitos penais, estando em causa a responsabilidade criminal (e a responsabilidade civil com esta conexa), a representação da sociedade declarada insolvente, enquanto não houver registo do encerramento da liquidação (só, então, ocorrendo a extinção da sociedade – artigo 146º, n.º 2, do CSC), continuará a pertencer aos seus gerentes ou administradores, mantendo-se os órgãos sociais em funcionamento (n.º 2 do artigo 82º do CIRE e n.º 1 do artigo 252º do CSC)[11].
A questão que se coloca é a de saber se a notificação em apreço, prevista na al. b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, tendo em conta a sua finalidade e considerando que a situação de insolvência implica, no caso de se tratar de uma sociedade comercial, que os seus gerentes ou administradores, deixem de ter poderes de disposição dos bens integrantes da massa insolvente (cf. n.º 1 do artigo 81º do CIRE), tem de ser feita não só aos arguidos, como também ao administrador de insolvência.
A jurisprudência, que se crê ser maioritária, tem acolhido o entendimento de que a notificação em causa, por que se prende apenas com matéria criminal e circunscrevendo-se a representação do administrador de insolvência apenas a questões patrimoniais relativas à insolvência, estando excluídas, portanto, questões de natureza criminal, não tem de ser efetuada ao administrador de insolvência[12].
No sentido de que, no caso de sociedades comerciais já declaradas insolventes, quando está em causa a sua responsabilidade criminal, a aludida notificação pode ser efetuada ao administrador da insolvência, decidiu a Relação de Coimbra de 11/10/2017[13], acompanhando de perto os argumentos expendidos por Tiago Milheiro[14], que defende que essa notificação tem de ser feita ao administrador da insolvência.
Em sustentação de tal entendimento é aduzida a argumentação de que ainda que a notificação em causa surja no âmbito de um processo criminal já instaurado ou a, eventualmente, instaurar, caso não seja feito o pagamento da dívida no prazo legal, essa dívida – por prestações tributárias ou para-tributárias –, têm natureza patrimonial e, como tal, não pode deixar de interessar à insolvência e havendo que ponderar que «se a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente (cfr. art. 81º, nº 1 do CIRE), que sentido útil terá a notificação feita ao gerente ou administrador da sociedade declarada insolvente, nesta qualidade [e não, como vimos, na qualidade de pessoa singular ou seja, na qualidade de autor do crime], para que a própria sociedade, enquanto arguida, proceda ao pagamento da quantia em dívida, assim impedindo a verificação da condição objectiva de punibilidade, quando já não detém poderes de disposição de bens pertencentes ao ente colectivo e portanto, não pode já fazer actuar a vontade colectiva no sentido do pagamento da dívida.»
Propendemos para acolher a posição de que a notificação em apreço, no caso de sociedades comerciais já declaradas insolventes, quando está em causa a responsabilidade criminal da sociedade, deve ser feita aos seus gerentes ou administradores, que a representam, para efeitos criminais e, concomitantemente ao administrador da insolvência.
Porém, consideramos que a omissão da notificação do administrador da insolvência, não constitui irregularidade que afete a validade do ato/notificação em causa (nos termos previstos no n.º 2 do artigo 123º do CPP), quando esta tenha sido efetuada apenas ao gerente ou administrador da sociedade e, sendo, no caso de este ser também arguido, impondo-se a sua notificação, na dupla vertente, em representação da sociedade e a título individual, enquanto pessoa singular.
No caso sub judice, a questão não se coloca relativamente à notificação da sociedade arguida, declarada insolvente - por sentença proferida em 08/04/2013 e transitada em julgado em 24/04/2013 -, na medida em que tal notificação foi efetuada aos gerentes e também ao Administrador da Insolvência, sendo a este último em 19/06/2015 – cfr. fls. 78 a 80.
Conclui-se, assim, que a notificação da sociedade arguida, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105º, n.º 4, al. b), do RGIT, não enferma de qualquer irregularidade.
No respeitante ao arguido, ora recorrente, estando insolvente – tendo, segundo alega, a insolvência declarada por sentença proferida em julho de 2013 –, entendemos que a notificação prevista no artigo 104º, al. b), do RGIT, enquanto pessoa singular, individualmente considerada, não tinha de ser efetuada ao Administrador da Insolvência, devendo sê-lo, como o foi, apenas ao arguido.
É que na insolvência das pessoas singulares, o administrador da insolvência não assume a representação do insolvente nos mesmos termos e com a mesma amplitude em que o faz na insolvência das pessoas coletivas.
A circunstância do arguido não dispor de meios económicos para pagar os valores referenciados na notificação em causa, não afasta a verificação da condição objetiva de punibilidade de que se trata, tratando-se de uma condição objetiva, que é alheia à culpa[15], portanto.
Acresce que a impossibilidade de o arguido satisfazer aquele pagamento, através do seu património, por estar, em virtude da insolvência, impedido de onerar/vender os bens de que, eventualmente, pusesse ser proprietário, não excluía, em termos absolutos, que o arguido pudesse liquidar o valor em causa. Basta pensar, na hipótese de existir alguém (v.g. um familiar), que se dispusesse a entregar ao arguido meios para efeito.
Por todo o exposto e em conformidade, concluímos, assim, que quer a sociedade arguida, quer o arguido, ora recorrente, foram válida e regularmente notificados, nos termos e para os efeitos previstos na alínea b) do nº 4 do artigo 105º, aplicável por remissão do artigo 107º, n.º 2, do RGIT, pelo que, nenhuma censura merece o despacho recorrido que assim decidiu.
Consequentemente, improcede também este recurso interlocutório.

2.3.4. Recurso da sentença
Tendo-se conhecido já das questões da prescrição e da irregularidade da notificação efetuada nos termos e para os efeitos da al. b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT, importa apreciar e decidir das demais questões suscitadas no recurso de que agora se trata.
Assim:
2.3.4.1. Da nulidade da sentença por contradição entre os factos dados como provados nos pontos 3 e 27
Alega o recorrente existir contradição insanável entre os factos dados como provados nos pontos 3 e 27, por, na sua ótica, não poder dar-se como provado que o ilícito foi praticado até maio de 2013, quando, nessa data, a sociedade arguida já tinha sido declarada insolvente e cabendo os poderes de administração, ao administrador da insolvência (artigo 81º, n.º 1, do CIRE), o arguido/recorrente e a sociedade arguida não podiam ser responsabilizados por atos que não se encontravam na sua disposição.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido da inexistência do apontado vício decisório.
Vejamos:
Há contradição insanável da fundamentação (cf. al. b), do n.º 2, do artigo 410º do CPP) quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou de forma a excluírem-se mutuamente[16].
Conforme se escreve no Acórdão da RC de 03/02/2016[17]
«A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão consiste, basicamente, numa oposição na matéria de facto provada [v.g., dão-se como provados dois ou mais que dois factos que estão entre si, em oposição sendo, por isso, logicamente incompatíveis], numa oposição entre a matéria de facto provada e a matéria de facto não provada [v.g., dá-se como provado e como não provado o mesmo facto], numa incoerência da fundamentação probatória da matéria de facto [v.g., quando se dá como provado um determinado facto e da motivação da convicção resulta, face à valoração probatória e ao raciocínio dedutivo exposto, que seria outra a decisão de facto correcta], ou ainda quando existe oposição entre a fundamentação e a decisão [v.g., quando a fundamentação de facto e de direito apontam para uma determinada decisão final, e no dispositivo da sentença consta decisão de sentido inverso].»
Existe contradição entre factos dados como provados quando eles se mostrem absolutamente incompatíveis, de tal modo que não possam coexistir entre si.
No caso vertente, entendemos não existir contradição, muito menos insanável, entre os factos dados como provados no ponto 3 e no ponto 27.
Com efeito, pese embora a sociedade arguida tenha sido declarada insolvente por sentença proferida em 08/04/2013, tal não afasta que no mês de maio seguinte, continuando a ter trabalhadores ao seu serviço e sem que tenha havido deliberação de encerramento de atividade, prevista no n.º 2 do artigo 156º do CIRE, tivesse sido o arguido/recorrente a deduzir nas remunerações dos trabalhadores, as contribuições em causa, sendo, nessa situação, responsável pelo incumprimento da respetiva obrigação entrega à Segurança Social. Acresce que tendo-se dado como provado, no ponto 11, que os arguidos, “com a sua descrita conduta integraram aquelas quantias nos seus patrimónios”, factualidade esta que não foi impugnada no recurso, nunca podia recair sobre o administrador da insolvência o dever de cumprimento da obrigação de entrega à Segurança Social dos valores em causa, reportados ao mês de maio de 2013.
Assim, ainda que a partir da declaração de insolvência e até à deliberação do encerramento da atividade, prevista no n.º 2 do artigo 156º do CIRE, as obrigações fiscais passem a ser da responsabilidade do administrador da insolvência (cf. n.º 3 do artigo 65º do CIRE), a existir um facto ilícito praticado pelo gerente, em nome da sociedade insolvente, não pode o gerente deixar de ser responsabilizado por esse facto, não recaindo, nessa situação, a responsabilidade sobre o administrador da insolvência.
Concluímos, assim, pela inexistência do invocado vício de contradição insanável, pelo que, improcede este fundamento do recurso.

2.3.4.2. Da nulidade da sentença por falta de fundamentação, no atinente à matéria factual dada como provada nos pontos 22, 23, 24 e 25
Sustenta o arguido/recorrente, em ordem a fundamentar a existência da invocada nulidade, que não é possível deduzir, da motivação da sentença, quais os meios de prova que motivaram que se considerassem como provados os factos constantes dos pontos 22, 23, 24 e 25, existindo, por isso, falta de fundamentação da sentença, o que determina a sua nulidade, nos termos do artigo 379º, n.º 1, al. a), com referência ao artigo 374º, n.º 2, ambos do CPP.
O Ministério Público pronuncia-se no sentido de não se verificar o invocado fundamento de nulidade da sentença.
Vejamos:
Lida a motivação da decisão de facto exarada na sentença recorrida, entendemos assistir razão ao recorrente quando sustenta que é completamente omissa, em relação aos elementos de prova em que o tribunal a quo se baseou para sedimentar a convicção que o levou a dar como provados os factos vertidos nos pontos 22, 23, 24 e 25.
Está em causa factualidade atinente aos elementos subjetivos.
É sabido que, na ausência de confissão, em que o agente admite ter agido com conhecimento e querendo praticar os factos que preenchem o tipo objetivo de um determinado crime, a prova do dolo, estando em causa elementos de índole subjetiva, que pertencem ao foro íntimo do sujeito, terá de fazer-se, mediante ilações, a extrair da conduta desenvolvida pelo agente, em conjugação com as regras da experiência comum e da normalidade da vida.
Sucede que, na motivação da decisão de facto consignada na sentença recorrida, não se faz qualquer menção aos elementos que levaram o Tribunal a quo a alicerçar a convicção no sentido de dar como provados os factos respeitantes ao dolo do arguido/recorrente, nem sequer se fazendo expressa referência às regras da experiência comum e da normalidade da vida, a que o Tribunal a quo tivesse atendido e de onde tivesse extraído ilações que o levasse a dar aqueles factos como provados.
É através da fundamentação da matéria de facto, que ainda que concisa e sem que se exija que se proceda à indicação individualizada dos meios de prova relativamente a cada facto, tem de ser completa, tornando possível apreender como é que, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, se formou a convicção do tribunal.
A circunstância de assim não se proceder obsta a que o tribunal de recurso e os sujeitos processuais percebam como se formou a convicção do julgador e a que a possam sindicar, convenientemente, sendo certo que, no presente caso, o recorrente impugnou a matéria de facto em questão, pelo que este Tribunal da Relação teria de apreciar essa impugnação.
Deste modo, tem razão o recorrente quando arguí, pelos motivos expostos, a nulidade da sentença, nessa parte, por falta de fundamentação, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374º, nº 2 e 379º, nº 1, alínea a), do CPP.
Por outro lado, verifica-se que na sentença recorrida, concretamente nos pontos 1 e 2 da matéria factual provada é feita a remissão para os valores, períodos e outros elementos descriminados nas tabelas que constam dos pontos 1 e 2 da acusação, as quais se dão por reproduzidas. Trata-se de matéria com relevância para a decisão da causa.
A sentença tem ser autossuficiente, no sentido de conter todos os elementos indispensáveis à sua compreensão, sem necessidade de consulta de quaisquer peças, documentos ou outros elementos que constem do processo[18].
Em nosso entender, a sentença recorrida, ao dar por reproduzidos nos pontos 1 e 2 da matéria factual provada, factos que constam da acusação, fazendo a remissão para essa peça processual, não respeita, também nessa parte, a exigência de fundamentação prevista no artigo 372º, n.º 2, do CPP.
Assim sendo, uma vez que a decisão de facto, não se mostra motivada no respeitante aos factos constantes dos pontos 22, 23, 24 e 25 e que a descrição dos factos dados como provados nos pontos 1 e 2, nos termos em que é feita, não cumpre a exigência de fundamentação que teria de ser observada, forçoso é concluir que a sentença recorrida enferma de nulidade, nos termos previstos na al. a) do n.º 1 do artigo 379º, com referência ao n.º 2 do artigo 374º, ambos do CPP.
Consequentemente, declara-se a nulidade da sentença recorrida, com referência aos dois segmentos acima indicados e, em consequência, determina-se a baixa do processo à primeira instância, para que seja suprida a referida nulidade, devendo ser proferida nova sentença, em conformidade.
Fica, deste modo, prejudica a apreciação das demais questões suscitadas no recurso.
O recurso interposto da sentença é, pois, parcialmente, procedente.

3 - DECISÃO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem esta Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em:

a) Negar provimento aos dois recursos de despachos interlocutórios e, em consequência, confirmar as decisões recorridas;

b) Conceder parcial provimento ao recurso interposto da sentença e, em consequência:

b).1 - Julgar improcedente a exceção da prescrição do procedimento criminal;

b).2 - Declarar a nulidade da sentença recorrida, por falta de fundamentação, determinando-se que seja substituída por outra que supra a apontada nulidade, nos termos sobreditos.



Custas dos recursos interlocutórios pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC´s, em cada um dos recursos (cf. artigos 513º, n.ºs 1 e 3 e 514º, n.º, ambos do Código de Processo Penal e artigo 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma), sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.

Sem tributação o recurso da sentença.
Notifique.

Évora, 24 de novembro de 2020
Fátima Bernardes
Fernando Pina
__________________________________________________
[1] Promoção essa que é do seguinte teor:
«Vem o arguido arguir a irregularidade da notificação que lhe foi feita oportunamente, requerendo que se proceda à repetição da mesma.
Compulsados os autos, considera-se que deve ser indeferido o requerido por se considerar validamente efectuada a notificação pelos seguintes motivos: à data dessa notificação, o valor efectivamente apurado foi o que dela se fez constar, sendo que, tendo sido pessoalmente notificado, e considerando que a mesma não estava correcta, tinha o arguido a possibilidade de imediato ou no prazo legal, por isso, requerer ou arguir a sua irregularidade, o que não fez.
A tudo acresce, não obstante entendimentos ligeiramente diferentes, que se considera que o teor da notificação, e para que não ocorra a sua nulidade, não se mostra imprescindível que aí seja determinado o valor.
Por esses motivos, se requer que a notificação a que se alude seja considerada validamente feita, indeferindo-se a requerida repetição de notificação.»
[2] Publicado no Diário da República n.º 35/2015, Série I de 19/02/2015.
[3] Publicado no D.R. n.º 94/2008, Série I de 15/05/2008.
[4] Sobre a problemática vide Tiago Milheiro, “Crime de abuso de confiança fiscal”, in Revista Julgar, n.º 11, 2010, pág. 76 e 77.
[5] Cfr., entre outros, Ac. da RP de 24/09/2008, proc. 0811683, Ac.s da RE de 03/11/2015, proc. 546/12.8IDFAR.E1 e de 27/09/2016, proc. 393/11.4IDFAR.E1 e Ac. da RG de 11/11/2019, proc. 103/17.2T9CBT.G1, acessíveis em www.dgsi.pt.
[6] Cf. Ac. da RP de 11/03/2009, proc. 0847944, disponível em www.dgsi.pt. e na doutrina Tiago Milheiro, in ob. e loc. cit. e também em “Navegando pelos mares (atribulados) da criminalidade tributária”, disponível em http://julgar.pt., pág. 12.
[7] Publicado no Diário da República n.º 95/2009, Série II de 18/05/2009.
[8] Neste sentido, cf., entre outros, Ac. da RP de 28/10/2015, proc. 7748/08.0TDPRT.P1, acessível em www.dgsi.pt.
[9] Neste sentido, cf., entre outros, Ac. do STJ de 09/02/2012, proc. n.º 131/11.1YFLSB, Ac. da RL de 05/04/2016, proc. 181/13.3GCALM.L1-5, acessíveis in www.dgsi.pt.
[10] Proferido no proc. 2500/15.9T9CBR.C1, acessível in www.dgsi.pt.
[11] Neste sentido, vide, entre muitos outros, Ac. da RE de 15/10/2013, proc. 33/10.9IDEVR.E1 e Ac. RP de 15/05/2013, proc. 15312/09.0IDPRT.P1, disponíveis em www.dgsi.pt.
[12] Neste sentido, cf., entre outros, Ac. da RE de 15/10/2013, proc. 33/10.9IDEVR.E1, Ac.s da RC de 28/09/2011, proc. 123/09.0IDSTR.C1 e de 14/10/2015, proc. 47/13.7IDLRA.C1, Acs. da RP de 22/06/2011, proc. 17716/09.9TDPRT.P1 e de 04/06/2013, proc. 16285/09.4IDPRT.P2, acessíveis em www.dgsi.pt
[13] Proferido no proc. 2500/15.9T9CBR.C1, acessível in www.dgsi.pt.
[14] In ob. cit., pág. 81.
[15] Como se faz notar no já citado AUJ n.º 6/2008.
[16] Cf. Cons. Simas Santos, in Recursos em Processo Penal, 5ª edição, Rei dos Livros, págs. 63 e 64 e Ac. do STJ de 24/02/2016, proferido no proc. 502/08.0GEALR.E1.S1, acessível no endereço www.dgsi.pt.
[17] Proferido no proc. 213/07.4TAPBL.C1, disponível em www.dgsi.pt.
[18] Cfr. Ac. do STJ de 30/04/2013, proc. n.º11/09.0GASTS.S1, acessível em www.dgsi.pt.