Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7018/11.6IDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AUGUSTO LOURENÇO
Descritores: NOTIFICAÇÃO PARA PAGAMENTO DO IMPOSTO
IRREGULARIDADE
Nº do Documento: RP201505137018/11.6IDPRT.P1
Data do Acordão: 05/13/2015
Votação: UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A errada ou incorrecta notificação prevista no artº 105º nº4 b) RGIT constitui irregularidade de conhecimento oficioso que afecta o valor do acto praticado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 7018/11.6IDPRT.P1

Acordam, em conferência, os Juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

RELATÓRIO
No âmbito do processo nº 7018/11.6IDPRT que correu termos no Tribunal Criminal do Porto, foram as arguidas B…, Ldª e C…, julgadas pela prática de crime de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artº 105º nº 1 da Lei 15/01, de 05.06 e realizado o julgamento, foi proferida a seguinte decisão:
- «Por todo o exposto:
- Julgo improcedente por não provada a acusação deduzida contra C… e B…, Ldª pela prática de crime de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artº 105º nº 1 da Lei 15/01, de 05.06, pelo que as absolvo do mesmo.
Sem custas criminais».
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Inconformado com a decisão absolutória, recorreu o Ministério Público, nos termos constantes de fls. 399 a 418, tendo terminado a sua motivação de recurso com as seguintes conclusões:
«1. Com o devido respeito pelo entendimento explanado na douta fundamentação da decisão a quo permitimo-nos discordar da solução do caso concreto por se nos afigurar que a factualidade apurada não deveria conduzir à absolvição das arguidas.
2. Pelo contrário, porque se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos e os demais pressupostos legais do crime, e, independentemente da qualificação da exigência constante da nova redacção do artº 105º, nº 4 do R.G.I.T., deveriam as arguidas ter sido condenadas na pena adequada.
3. No decurso da audiência de discussão e julgamento provaram-se, entre outros, os seguintes factos:
a) A segunda arguida actuou sempre em representação e no interesse da primeira arguida, sabedora que, nos termos do artigo 27º, nº 1 do CIVA, estava obrigada a entregar nos cofres do Estado a quantia que a primeira arguida apurasse como sendo devida ao Estado a título de IVA no mês de Maio de 2011 mas, mesmo assim, agiu do modo descrito, não entregando à Fazenda Pública a quantia € 33.920,40 que recebeu, dentro do prazo legal que dispunha, e que terminou no dia 10 de Julho de 2011, nem nos noventa dias que se lhe seguiram, o que quis e fez.
b) Sabedora que tal quantia não era de sua pertença, nem da sociedade em nome da qual agia e que, assim, causava ao Estado Português um prejuízo equivalente, pelo menos, à referida quantia de € 33.920,40, o que igualmente quis.
c) Agiu de modo livre, voluntário e consciente, sabedora da censurabilidade e punibilidade da sua actuação.
d) No dia 11 de Setembro de 2012, momento em que foi efectuada a notificação da arguida, descrita em j) para, querendo, pagar, no prazo de 30 dias, o montante em dívida a título de IVA relativo a 05/2011, a administração tributária tinha conhecimento de que em 18 de Janeiro de 2012, a primeira arguida, por via da actuação da segunda, procedeu ao pagamento da quantia de € 28,417,48, por conta do IVA apurado a favor do Estado no mês de Maio de 2011, conforme descrito em i), tendo contabilizado o pagamento aí descrito;
e) Em 11 de Janeiro de 2013, e para imputação na dívida supra descrita, foi efectuado pagamento de 4.830,52 €.
4. Entendeu a Mmª Juiz a quo que aquela notificação, não tendo em conta o montante efectivamente devido a título de IVA, nem os pagamentos efectuados por conta da dívida e não comunicando ao contribuinte o montante dos juros e coima não teve méritos para desempenhar a função de dar ao arguido a oportunidade de extinguir a sua responsabilidade criminal, por não lhe transmitir a informação do montante que teria de dispor para aquele efeito.
5. Consequentemente, julgou não verificada a condição de punibilidade e absolveu as arguidas.
6. É inquestionável que a notificação prevista na alínea b) do nº 4 do artº 105º do R.G.I.T., reportando-se ao montante inicial, feito constar pela arguida da Declaração Periódica oportunamente enviada à Administração Fiscal (36.336.76 €), indica uma quantia diferente da quantia em dívida, desde logo por não ter sido considerado o valor de IVA efectivamente recebido pela arguida e não entregue (33.920,40 €).
7. Quanto aos pagamentos, anteriores e subsequentes, sem prejuízo dos procedimentos previstos nos códigos tributários relativamente à imputação de quantias entregues pelo contribuinte devedor, não resultou apurado que os mesmos fossem suficientes para a regularização da dívida.
8. A questão a decidir reconduz-se, assim, a saber de que modo a inexactidão constante da notificação afecta a regularidade da mesma e se repercute no preenchimento do crime.
9. São conhecidos os diferentes entendimentos doutrinários e jurisprudenciais suscitados ainda no âmbito da aplicação da lei no tempo, em face da entrada em vigor, no dia 1 de Janeiro de 2007, da Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro da nova redacção atribuída ao nº 4 do artº 105º do RGIT pelo artº 95º da citada Lei nº 53 -A/2006 (Lei do Orçamento), destacando-se, a favor da caracterização da L. N. como lei despenalizadora, a posição de A. Taipa de Carvalho[1] e a crítica ali expendida no que se refere ao tratamento maioritário da questão da consumação do crime de abuso de confiança fiscal bem como ao não estabelecimento de prazo para a administração fiscal efectuar tal notificação.
10. Tal controvérsia esteve na génese do pedido de fixação de jurisprudência que culminou com o douto Acórdão do STJ nº 6/2008 de 15.05.2008 no sentido da corrente jurisprudencial e doutrinária que considerava que aquele artigo 95º, ao alterar a redacção do nº 4 do artigo 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias, manteve a anterior condição de punibilidade agora plasmada na alínea a) e estabeleceu uma nova condição com a manutenção do recorte do tipo legal de crime.
11. Entendem os defensores desta posição que, não obstante a alteração do regime punitivo, o crime de abuso de confiança fiscal se consuma com a omissão de entrega, no vencimento do prazo legal, da prestação tributária e que, em sede de tipicidade, aquela Lei Orçamental nada alterou. Todavia, ressalvam a aplicabilidade do disposto no artigo 2º, nº 4, do Código Penal (…)
12. Tal posição reivindica apoio na intenção publicitada do legislador, de conceder uma última possibilidade de o agente evitar a punição da sua conduta omissiva.
13. Na verdade, preconiza o relatório do OE/2007, que “… não deve ser criminalizada a conduta dos sujeitos passivos que, tendo cumprido as suas obrigações declarativas, regularizem a situação tributária em prazo a conceder, …”
14. Por sua vez, o Tribunal Constitucional no douto Acórdão nº 409/2008, de 31 de Julho de 2008, decidiu que “não é inconstitucional a norma constante do artigo 105º, nº 4, alínea b), do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, na redacção dada pelo artigo 95º da Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro, interpretado no sentido de que pode o tribunal de julgamento determinar a notificação aí prevista.”
15. Ainda nos termos do citado acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14.01.2009, de que foi relator o Exmo. Senhor Desembargador Luís Ramos, in www.dgsi.pt “resulta claro do aludido Acórdão (do Tribunal Constitucional) que a entidade competente para determinar a notificação prevista na alínea b) do nº 4 do artigo 105º do Regime Geral da Infracções Tributárias é a entidade titular do procedimento ou do processo.(…)
16. Por último, na caracterização desta “oportunidade legislativa de afastamento da sanção” cita-se o douto Acórdão da R. E. de 06 de Novembro de 2007 mencionado por Paulo Marques[2] fazendo relevar como bem jurídico tutelado pelo legislador penal fiscal não tanto o interesse patrimonial do Estado nem apenas a confiança entre o contribuinte e a Administração Fiscal, mas a autoridade pública: “A condição de punibilidade não é a notificação que deve ser feita para pagamento, mas sim a atitude que o contribuinte toma perante esse procedimento (de notificação) que agora se exige”. Parece-nos ser excessivamente formalista colocar a tónica na notificação; o que releva é a regularização, no todo, da situação tributária em prazo expressamente concedido para o efeito”.
17. Ora, no caso concreto, resultou apurado que as arguidas, notificadas pela Administração Fiscal nos termos e para os efeitos da citada alínea b) do nº 4 do artº 105º do R.G.I.T. não efectuaram o pagamento da quantia recebida a título de IVA reportada a Maio de 2011, declarada pelo próprio sujeito fiscal, e não entregue com a respectiva declaração e nada requereram, nos prazos legais, para efeitos de regularização da dívida e extinção do procedimento criminal nos exactos termos daquela nova alínea.
18. Por outro lado, não obstante os pagamentos efectuados no âmbito do processo executivo, a verdade é que, na data do julgamento em 1ª instância, se encontrava ainda em dívida uma parte daquele imposto, conforme consta dos factos provados em consonância com as informações solicitadas à Administração Fiscal, ao longo do processo.
19. Consequentemente verifica-se que a dívida fiscal não foi regularizada nos termos e prazos legais exigidos para o afastamento da sanção.
20. Assim, porque se mostram preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do crime, e demais pressupostos legais, deveriam as arguidas ter sido condenadas na pena adequada.
21. Ainda que assim se não entenda, sempre a irregularidade da notificação efectuada pela Administração Fiscal, por errada indicação da quantia em dívida, haveria de ser sanada através da realização da notificação, corrigida, por determinação do tribunal, à semelhança do que tem sido prática nos casos de omissão total de notificação, em processos pendentes, após a entrada em vigor da alteração ao nº 4 do artº 105º do RGIT e no âmbito da sucessão de leis no tempo (Acórdão do STJ, de 20.12.2007, in dgsi.pt.stj e Acórdão T.R.P. de 13 de Março de 2014 in CJ nº 253 Ano XXXIX T. II/2014, pág. 335).
22. Ao absolver as arguidas fez a douta sentença recorrida errada interpretação do artigo 105º, nº 4, alínea b) do RGIT e violou ainda o disposto no artº 40º, do Código Penal.
Termos em que deverá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e condenando-se ambas as arguidas, por se mostrarem preenchidos os elementos objectivos e subjectivos e os demais pressupostos legais de um crime de abuso de confiança fiscal, ou, se assim não for entendido, revogando-se a decisão recorrida na parte em que declarou a invalidade da notificação efectuada pela Administração Fiscal nos termos e para os efeitos da alínea b) do nº 4 do artº 105º do R.G.I.T. ordenando-se a sua repetição de acordo com os valores da dívida corrigidos.
Porém, Vas Exas farão a melhor Justiça».
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A arguida, C…, respondeu ao recorrente nos termos de fls. 425 a 438, pugnando pela improcedência do recurso e sem articular conclusões terminou nos seguintes termos:
«1. Não merece censura a decisão judicial recorrida que declarou a invalidade e ineficácia da notificação efectuada para verificação do preenchimento da condição objectiva de punibilidade consagrada no artigo 105º, nº 4, al. b) do RGIT, absolvendo a arguida.
2. A sanação de irregularidades da notificação efectuada em fase de inquérito não pode ser ordenada em fase de recurso, após o encerramento da audiência de discussão e julgamento em primeira instância com absolvição do arguido, e para reforço do acusatório, sob pena de violação do princípio da igualdade de armas e de todas as garantias de defesa.
3. Na improcedência das conclusões do recurso deve ser confirmada a douta sentença recorrida».
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Neste Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, emitiu o Douto Parecer de fls. 446 a 449, no qual subscreveu a posição do recorrente e defendeu a procedência do recurso.
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Foi dado cumprimento ao disposto no artº 417º nº 2 do CPP.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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FUNDAMENTOS
Conforme jurisprudência pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso[3]. No caso concreto, a questão fundamental a decidir, reconduz-se a uma mera questão de direito, que se reporta à validade da notificação efectuada nos termos do artº 105º, nº 4, al. b) do RGIT.
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FACTOS PROVADOS
Foram dados como provados os seguintes os factos:
a) A arguida "B…, Ldª", contribuinte e pessoa colectiva nº ………, foi constituída por escritura pública com registo de 02 de Maio de 2001 e apresenta a sua sede na Rua …, nº …., .º esqº nesta cidade do Porto.
b) A actividade desenvolvida por esta sociedade consiste na prestação de serviços de cabeleireiro e estética, a que corresponde a CAE (Classificação de Actividades Económicas) …...
c) Na sua qualidade de sujeito passivo de obrigações fiscais, está enquadrada, em sede de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), no regime normal de tributação, com periodicidade mensal.
d) A segunda arguida, C…, foi sempre sua sócia e gerente desde a data da sua constituição, sendo ela quem tomava todas as decisões respeitantes à gestão diária da primeira arguida, tendo, entre outras tarefas, a incumbência de determinar os pagamentos a nível de Imposto Sobre o Valor Acrescentado e disponibilizar, nos serviços da Administração Fiscal, os respectivos meios de pagamento de tal imposto.
e) No mês de Maio de 2011, a primeira arguida, através da segunda arguida, nas transacções que realizou, liquidou IVA aos seus clientes, no montante global de € 40.904,22, embora, deste valor só tenha recebido a quantia de € 37.513,24.
f) Neste mês, por sua vez, suportou IVA que tinha direito a deduzir, no montante de €3.592,84, pelo que, o montante de IVA apurado a favor do Estado, resultante da diferença entre o IVA por si liquidado, efectivamente recebido (€ 37.513,24), e o que por sua vez suportou e tinha direito a deduzir (€ 3.592,84), totaliza €33.920,40 (trinta e três mil novecentos e vinte euros e quarenta cêntimos).
g) No dia 08 de Agosto de 2011, a segunda arguida, por alguém a seu mando, enviou, em representação da sociedade arguida, a declaração periódica de IVA referente ao mês de Maio de 2011, tendo nela declarado, sempre em representação e no interesse da primeira arguida, como IVA a entregar ao Estado a quantia de € 36.336,76.
h) Porém, não fez acompanhar tal declaração periódica de IVA da referida quantia e não fez esse pagamento, nem até ao dia 10 de Julho de 2011, data em que terminou o prazo legalmente previsto para esse pagamento, nem nos noventa dias que se lhe seguiram.
i) Em 18 de Janeiro de 2012, a primeira arguida, por via da actuação da segunda arguida, procedeu ao pagamento da quantia de € 28.417,48 por conta do IVA apurado a favor do Estado no mês de Maio de 2011, o que significa que, a considerar o montante de IVA apurado nos termos referidos em f), permaneceu em dívida a quantia de € 5.502,92.
j) A segunda arguida foi pessoalmente notificada no dia 11 de Setembro de 2012, individualmente e em representação da primeira arguida para, querendo, pagar, no prazo de 30 dias, o montante em dívida a título de IVA no mês em apreço, no valor de 36.336,76€, assim como os juros legais e coima, nada tendo pago, tudo conforme consta de fls. 204 dos autos cujo teor se dá por reproduzido.
k) A segunda arguida actuou sempre em representação e no interesse da primeira arguida, sabedora que, nos termos do artigo 27º, nº 1 do CIVA, estava obrigada a entregar nos cofres do Estado a quantia que a primeira arguida apurasse como sendo devida ao Estado a título de IVA no mês de Maio de 2011 mas, mesmo assim, agiu do modo descrito, não entregando à Fazenda Pública a quantia € 33.920,40 que recebeu, dentro do prazo legal que dispunha, e que terminou no dia 10 de Julho de 2011, nem nos noventa dias que se lhe seguiram, o que quis e fez.
1) Sabedora que tal quantia não era de sua pertença, nem da sociedade em nome da qual agia e que, assim, causava ao Estado Português um prejuízo equivalente, pelo menos, à referida quantia de € 33.920,40, o que igualmente quis.
m) Agiu de modo livre, voluntário e consciente, sabedora da censurabilidade e punibilidade da sua actuação.
n) No momento em que foi efectuada a notificação descrita em j) a administração tributária tinha conhecimento do descrito em i), tendo contabilizado o pagamento ai descrito.
o) Em 11 de Janeiro de 2013, e para imputação na dívida supra descrita, foi efectuado pagamento de 4.830,52 €.
p) A arguida sempre se preocupou em entregar ao Estado o que lhe era devido, sendo que em Maio de 2011 a sociedade arguida teve falta de liquidez acompanhado por problema contabilístico grave pelo que a arguida, em representação da sociedade arguida, canalizou o dinheiro disponível para pagamento aos fornecedores e funcionários, em 1º lugar.
q) A arguida é cabeleireira e trabalha actualmente por conta de outrem, auferindo mensalmente 750 €.
r) Está divorciada, tem dois filhos adultos, com quem vive em casa própria.
s) Foi condenada anteriormente por crime de abuso de confiança fiscal, cometido em Maio de 2011, em pena de multa.
t) A sociedade arguida não tem antecedentes criminais.
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Factos não provados:
Com pertinência ao objecto de processo não se provaram quaisquer outros factos para além ou em contrário dos constantes no ponto anterior.
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A convicção do Tribunal “a quo”
“O Tribunal fundou a sua convicção nas declarações da arguida, que admitiu os factos supra descritos, e nos elementos documentais que constam dos autos, designadamente a fls. 204 a 207.
Tomou ainda em conta o depoimento de D…, Técnica Superior das Finanças, que confirmou ter verificado, por documentos, que o IVA efectivamente recebido e o IVA que subsequentemente, após acerto de contas, devia ter sido entregue ao Estado era de € 33.920,40.
A testemunha confirmou o descrito em o) e não encontrou explicação para o valor aposto na notificação constante de fls. 204 dos autos (ao abrigo do artº 105º nº 2 b) RGIT), uma vez que o anterior pagamento de mais de 28.000 € já era conhecido das Finanças e estava imputado naquele IVA (não havia outras dívidas).
Valorou-se depois o declarado pela arguida quanto às suas condições de vida e circunstâncias que motivaram a sua conduta, assim como os CRCs juntos aos autos quanto ao passado criminal.
Os descritos meios de prova, analisados à luz das regras de experiência, serviram para formar a convicção supra expressa”.
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DO DIREITO
O Ministério Público, na qualidade de recorrente e enquanto garante da legalidade, veio por em causa a sentença recorrida na parte em que decidiu absolver as arguidas com fundamento na irregularidade da notificação feita ao abrigo do disposto no artº 105º, nº 4, al. b) do RGIT, defendendo a condenação das mesmas, mesmo nas condições apuradas e descritas na matéria de facto.
Vejamos os aspectos relevantes.
- A arguida B…, Ldª devia ao Estado a título de IVA no mês de Maio de 2011 a quantia € 33.920,40, cujo prazo de entrega terminara a 10 de Julho de 2011.
- Em 18 de Janeiro de 2012, a arguida, C…, por via da actuação da segunda arguida, procedeu ao pagamento da quantia de € 28.417,48 por conta do IVA apurado a favor do Estado no mês de Maio de 2011, o que significa que, a considerar o montante de IVA apurado nos termos referidos em f), permaneceu em dívida a quantia de € 5.502,92.
Não obstante este pagamento,
- A arguida C… foi pessoalmente notificada no dia 11 de Setembro de 2012, individualmente e em representação da segunda arguida para, querendo, pagar, no prazo de 30 dias, o montante em dívida a título de IVA no mês em apreço, no valor de 36.336,76 €, assim como os juros legais e coima, nada tendo pago, tudo conforme consta de fls. 204 dos autos cujo teor se dá por reproduzido.
Esta notificação foi efectuada o abrigo do artº 105º nº 4 b) do RGIT.
Com efeito, nos termos do artº 105º nº 1 da Lei 15/2001, prevê-se expressamente que:
- “Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 360 dias".
Sobre este tipo de crime, é manifesto que atenta a sua natureza omissiva, o mesmo se concretiza no momento da não entrega da prestação tributária.
Porém, o nº 4 do referido artº 105º prevê duas condições objectivas de punibilidade da conduta descrita no nº 1:
a) Os factos apenas são puníveis, se tiverem decorrido mais de 90 dias sobe o termo do prazo legal para de entrega da prestação (artº 105º nº 4 al. a);
b) Os factos descritos apenas constituem crime se a prestação comunicada à Autoridade Tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito (artº 105º nº 4 al. b).
Esta segunda notificação, destina-se a dar ao arguido uma faculdade excepcional em face da regra geral do direito e do processo penal de extinção da responsabilidade criminal.
Contudo quanto a nós entendemos que essa notificação terá de ser rigorosa, inteligível e corresponder à realidade fiscal do devedor, ou seja, a notificação deverá conter:
- O prazo e consequências do pagamento;
- O montante total das prestações em dívida e juros correspondentes devidamente individualizados;
- E o montante da coima aplicável[4].
É do conhecimento geral que a jurisprudência não é unânime neste ponto, e neste mesmo Tribunal existem posições diferentes. No recente Ac. de 07.01.2015, do Trib. Relação do Porto, relatado por Eduarda Lobo, defendeu-se que: “na notificação realizada ao abrigo do disposto no art. 105º, nº 4, alínea b), do RGIT, não têm que ser indicadas as concretas importâncias em dívida”.
Por sua vez no Ac. 06.06.2012, relatado por Pedro Vaz Pato que no “acto de notificação, devem ser indicados, além do prazo e consequências do pagamento, o montante total das prestações não entregues, os juros respectivos e o montante da coima aplicável".
Como se alcança dos factos provados, a notificação efectuada nos termos da al. b), nº 4 do artº 105º do RGIT foi feita de forma irregular (se não mesmo abusiva), pois a arguida foi notificada para pagar 36.336,76 €, montante que nunca deveu, dado que a dívida era de 33.920,40 €. Mais grave, é que, na data de tal notificação, (11.09.2012) a arguida já tinha pago por conta deste montante 28.417,48 € (em 18.01.2012), o que reconduzia a dívida existente a apenas 5.502,92 €.
A arguida não pagou na data concedida naquela notificação, o pequeno remanescente ainda em falta e por consequência, defende o recorrente, que deverá ser condenada por não ter usado a faculdade de fazer extinguir o procedimento criminal, pagando o que ainda restava.
O tribunal “a quo” entendeu que, estando perante uma notificação irregular, que considerou sanada, por não ter sido arguida tempestivamente, a única via era a absolvição.
Discordamos deste entendimento no tocante à natureza da irregularidade e da sua sanação.
É verdade que nos termos do artº 123º nº 1 do cód. proc. penal a irregularidade só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar, quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos 3 dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.
O que não foi o caso nos presentes autos.
No entanto, não podemos esquecer o que se consagra no nº 2 do mesmo artigo, “pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado”.[5]
Assim, a irregularidade, quando afecte o valor do acto, poderá ser suprida a todo o tempo, pelo que, ainda que não seja arguida, pode ser reparada oficiosamente ou mandada reparar pela autoridade judiciária competente para tal acto, enquanto mantiver o domínio dessa fase do processo.
Quanto a nós, o Tribunal “a quo” poderia e deveria ter mandado reparar essa irregularidade com base no disposto no nº 2 do artº 123º do cód. proc. penal, ordenando uma nova notificação. E, seguindo a tese do Ac. deste Tribunal da Relação do Porto datado de 26.02.2014 e relatado por Vítor Morgado, que seguiu o entendimento de outro datado de 13.05.2009 deste mesmo Tribunal, em situação similar (não inteiramente coincidente com este caso), o mesmo poderá fazer o tribunal de recurso, fazendo baixar os autos à 1ª instância, afim de aí ser ordenada nova notificação, quando a sua ausência ou irregularidade afectem a validade de um acto relevante.
Naquele acórdão se decidiu julgar procedente a questão prévia suscitada pelo Ministério Público na 2ª instância e “ordenar a devolução dos autos ao tribunal do julgamento, onde se solicitará à administração fiscal que proceda à notificação do arguido, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do nº 4 do artigo 105° do RGIT, seguindo-se a realização dos demais atos que se mostrem afetados pela irregularidade em causa”.
A omissão dessa notificação constitui uma irregularidade de conhecimento oficioso, por afectar o valor do acto praticado (e por isso, não se pode ter como sanada), susceptível de constituir fundamento para recurso da sentença – Cfr. Ac. TRP de 26.02.2014, disponível em www.dgsi.pt.
No caso concreto, não estamos perante uma omissão total da notificação, mas antes perante uma irregularidade muito peculiar, que manda pagar o que nunca se deveu e que englobava uma quantia substancial já paga 8 meses antes, (a quase totalidade da dívida), facto que era do conhecimento da Autoridade Tributária. Houve um claro erro grosseiro por parte da Administração fiscal.
É de admitir, à luz das regras de experiência comum que o destinatário que recebe uma notificação daquele teor, depois de ter pago quase tudo o que devia, não a levasse a sério e admitisse estar perante um erro. A nosso ver, impunha-se uma nova notificação, mais rigorosa, explícita e sem equívocos de modo a que o cidadão não tivesse dúvidas do que ainda restava pagar, o que deveria tempestivamente ser ordenado pelo tribunal “a quo” com recurso ao nº 2 do artº 123º do cód. proc. penal.
Neste momento, o caminho a seguir seria este tribunal ordenar a remessa dos autos à 1ª instância a fim de ordenar o suprimento da aludida irregularidade, caso tivesse havido condenação com base no não pagamento da dívida no prazo concedido, todavia não foi o caso, dado ter havido absolvição justamente por causa da aludida irregularidade. Ainda que se entendesse que poderia ser feita ainda, (o que seria um excesso de formalismo desproporcionado) neste momento seria provavelmente um acto inútil, dado que resulta dos autos que por conta da dívida ainda existente, “em 11 de Janeiro de 2013, e para imputação na dívida supra descrita, foi efectuado o pagamento de 4.830,52 €” (al. o), o que nos leva a presumir que toda a dívida se encontrava já liquidada à data da elaboração da sentença.
“Todas as ilegalidades cometidas no processo penal podem ser irregularidades (princípio da atipicidade da irregularidade). Mas nem todas as ilegalidades cometidas no processo penal são irregularidades: só são relevantes as irregularidades que possam afectar o valor do acto praticado (princípio da relevância material da irregularidade). […] Portanto, se for cometida uma irregularidade que não possa afectar o valor do acto praticado, não se verifica o vício previsto no artº 123º, isto é, a ilegalidade do ato é inócua e juridicamente irrelevante” - cfr. Prof. P. Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edª. atualizada, anotação ao artº 123º, págs. 310 e segs.
A posição mais correcta parece-nos ser a defendida no acórdão supra citado, devendo o Tribunal em situações como a dos autos ordenar nova notificação a efectuar pela Administração Fiscal. Todavia, atendendo à particularidade do caso, que demonstra estar a dívida já liquidada, tal seria um acto inútil, pelo que absolvição não nos repugna dentro do contexto verificado.
No sentido da absolvição, se pronunciou o acórdão deste Tribunal, relatado pelo Sr. Desembargador Moreira Ramos no processo nº 1534/08.4 TDPRT.P1, em 01.06.2011 onde se concluiu pela absolvição de ambos os arguidos, por falta de verificação de uma condição de punibilidade, “entendeu-se que o arguido, bem como a sociedade arguida, não foram devidamente notificados, nos termos e para os efeitos da apontada al. b), do nº 4, do artigo 105º, do RGIT, e, ao não o serem, não lhes foi dada a possibilidade de poderem vir a optar, de forma esclarecida, livre e consciente, pelo cumprimento, ou não, daquela notificação, podendo na primeira situação, qualquer um deles eximir a responsabilidade de ambos através do eventual pagamento, e, assim sendo, não se mostrava preenchida aquela condição de punibilidade relativamente a ambos os arguidos, o que se traduzia na não punibilidade das apuradas condutas”.
Isto não exclui o entendimento de que a nova redação do artigo 105º, nº 4, al. b), do RGIT, estabelece um pressuposto adicional de punibilidade, segundo o qual, a não punição resultará de uma atitude positiva do agente que obsta a essa consequência penal, pagando a dívida.
“A condição de punibilidade não é a notificação para pagamento, mas sim a atitude que o contribuinte toma perante ela, liquidando (ou não) as quantias em causa [condição de não punibilidade]”- cfr. Ac. TRP de 07.01.2015, disponível em www.dgsi.pt.
Pelo que acabámos de expor, é manifesto que a posição do recorrente não poderá proceder, pois seria contrária aos princípios que defendemos. Nestes casos, a condenação só deverá existir caso a notificação a que alude a al. b) nº 4 do artº 105º do RGIT, tenha sido efectuada em conformidade com todos os requisitos que acima enumerámos – o que não foi o caso. Improcede o recurso.
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DECISÃO
● Nestes termos, acordam os Juízes da 2ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação, em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público.
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● Sem custas.
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Porto 13 de Maio de 2015
Augusto Lourenço[6]
Moreira Ramos[7]
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[1] “O crime de abuso de confiança fiscal –as consequências jurídico-penais da alteração introduzida pela Lei n.º 53-A/2006 de 29 de Dezembro”, ed. C.E. pág. 15.
[2] - Crime de Abuso de Confiança Fiscal - Problemas do Actual Direito Penal Tributário, Ed. C.E. pág. 139.
[3] - Cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) todos do cód. procº penal; acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
[4] - Considerando os excessos que têm vindo a ser cometidos pela Administração Fiscal em termos de falta de rigor nas cobranças de impostos e a indesejável forma de actuação que, por norma, cobra em excesso e devolve depois mas sem juros, o que nada abona o Estado de Direito que todos almejamos ter, é de acolher a tese dos que defendem uma conduta e modus operandi rigorosos de modo a evitar que os contribuintes sejam lesados pela máquina fiscal, extensiva neste caso ao tipo de notificação em causa, que deve conter todos os elementos necessários a um cabal esclarecimento do destinatário.
[5] - Germano Marques da Silva, em Curso de Processo Penal, volume II, 5ª edição, página 131, refere: “Parece que há que distinguir entre a validade do acto e o seu valor; o acto será válido se a irregularidade não for declarada, mas pode não ter valor, designadamente por não poder produzir os efeitos a que se destinava”.
[6] - Elaborado e revisto pelo relator, sendo da sua responsabilidade a não aplicação do acordo ortográfico.
[7] - Voto a decisão, anotando, contudo, que entendo que a irregularidade a que alude o artigo 123º nº 2, do cód. procº penal só poder ser apreciada se ainda não estiver sanada, sob pena de a equipararmos às nulidades insanáveis, o que, modestamente, entendo não ser compatível com a desejável harmonia do sistema que está subjacente ao que estipula o artº 9º do cód. civil.