Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2139/13.3TJCBR-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
HIPOTECA
GARANTIA
DESCONSIDERAÇÃO
LISTA DE CREDORES
Data do Acordão: 09/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - 5º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 47º, Nº 4, E 130º DO CIRE.
Sumário: I – A referência, por parte de um credor da insolvente na reclamação de créditos apresentada ao administrador da insolvência, a que a hipoteca que constituiu sobre um prédio da insolvente “já não garantia” esse crédito, por o imóvel em causa ter sido adjudicado a essa credora no quadro de uma execução fiscal movida contra a insolvente, significa, inequivocamente, o descartar da garantia decorrente dessa hipotética e, consequentemente, vale por não reclamar esse crédito com o estatuto de “garantido”, nos termos do artigo 47º, nº 4, alínea a) do CIRE.

II – Essa declaração quanto à inoperância da garantia hipotecária, explicitada nos termos referidos, não traduz um erro de escrita, que valha nos termos do artigo 249º do CC, por não revelar qualquer erro “no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que [tal] declaração é feita”, não gerando qualquer direito à rectificação dessa declaração.

III – Tal declaração também não corresponde a um erro em sentido lato, erro na declaração, nos termos do artigo 247º do CC, por o contexto explicativo em que é feita não implicar o conhecimento, pelos destinatário (administrador da insolvência; outros credores) da existência de qualquer erro, não se configurando, por banda destes destinatários, algum dever de não ignorarem tratar-se de declaração assente em erro.

IV – Quando uma declaração postulativa, efectuada pela parte num processo, é compreendida pela parte contrária com o sentido evidente que ostenta, no particular contexto explicativo em que tal declaração foi efectuada, vale ela com esse sentido objectivo.

V – Assim, é correcta a qualificação, realizada na lista definitiva de credores apresentada pelo administrador da insolvência, do crédito reclamado nos termos indicados em I deste sumário como “crédito comum”, por ser esse o sentido com que esse crédito foi reclamado.

VI – A lista definitiva de credores elaborada nos termos do artigo 130º, nº 1 do CIRE, quando notificada ao reclamante de um crédito sem que este lhe deduza qualquer oposição, bloqueia a ulterior pretensão dessa mesma parte de obter a alteração da sentença de verificação e graduação de créditos que se limitou a considerar as incidências emergentes dessa lista definitiva.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa

            1. Em 18/11/2013, através da Sentença que está certificada a fls. 1/15, foi decretada a insolvência da sociedade S.., Lda. (doravante designada como a Insolvente), abrindo-se a subsequente fase de verificação dos créditos (artigos 128º e segs. do CIRE). Ora, nesta fase procedeu à reclamação de um crédito a instituição bancária C… (Reclamante e Apelante no contexto do presente recurso), crédito esse no valor global de €379.985,76 (está certificada a fls. 198/204 essa reclamação) resultando tal dívida de várias operações bancárias empreendidas entre a Reclamante e a sociedade Insolvente, nas quais ocorreram inúmeros incumprimentos desta última, geradores de créditos que, somados, atingiram o indicado valor objecto de reclamação.

            1.1. Note-se que na caracterização do crédito, nesse requerimento de reclamação[1], além da exaustiva descrição das vicissitudes da relação bancária travada entre a Insolvente e o Banco Reclamante originadora do respectivo crédito apresentado ao concurso, indicou o C… o seguinte:
“[…]
1. Em 29/06/2010, o Reclamante celebrou com a Insolvente, escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança, por força da qual concedeu um empréstimo no montante de €75.000,00 […][[2]].
2. Através da referida escritura, foi constituída a favor da ora Reclamante hipoteca voluntária sobre a fracção autónoma designada pelas letras ‘DN’, do prédio urbano sito na Rua …, como caução e garantia de pagamento dos capitais mutuados, juros e demais despesas inerentes aos capitais mutuados, sendo que as referidas hipotecas foram devidamente registadas […].
3. Sucede que o imóvel já foi adjudicado à aqui Reclamante em sede de execução fiscal, pelo que a hipoteca já não garante o mencionado contrato.
[…]
10. Em 19/10/2010, a aqui Reclamante celebrou com a Insolvente contrato de mútuo, por força do qual foi concedido pela primeira à segunda o financiamento da quantia de €20.000,00 […].
11. Como garantia do bom cumprimento das obrigações assumidas no contrato supra referenciado, foi constituída a favor da ora Reclamante uma garantia hipotecária unilateral com cláusula de efeito abrangente […] por escritura já junta […] cuja hipoteca garante o montante máximo de capital e acessórios de €114.937,50 sobre a fracção autónoma designada pelas letras ‘DN’, do prédio urbano sito na Rua ...
12. Porém, tal como já foi acima referido, o imóvel em apreço já foi adjudicado à Reclamante, pelo que a hipoteca em questão se considera sem efeito.
[…]” (sublinhado acrescentado).

            1.2. Pela Senhora Administradora da Insolvência foi junta ao processo, em 31/01/2014, a relação de créditos mencionada no artigo 129º, nº 1 do CIRE (está esta, no que respeita a créditos reconhecidos, certificada a fls. 24/29 e 285/292), indicando esta, como crédito reconhecido o do Reclamante C…, mencionando-se aí, nos respectivos campos documentais, pelo exacto valor reclamado €379.985,76, “sem garantias nem condições” (no campo Garantias/Condições) e, no campo respeitante à natureza desse crédito como “comum” (cfr. fls. 25). Ou seja, foi aí assumido o crédito do Reclamante nos exactos termos por ele reclamados.

            1.2.1. Note-se que esta lista foi notificada ao ora Reclamante através do respectivo mandatário, o Dr…, notificação realizada em 24/01/2014, às 18h54m, através do email junto a fls. 277, que contém como anexos o relatório e a “lista definitiva de credores”. E note-se, enfim, que o ora Reclamante, confrontado com essa lista (v. os artigos 129º, nº 1 e 130º, nº 1 do CIRE), nenhuma impugnação, reclamação ou objecção lhe deduziu.

            1.3. Foi, assim, proferida a Sentença de 10/04/2014, contendo a verificação e graduação dos créditos – trata-se da decisão objecto do presente recurso e está ela certificada a fls. 16/23 –, da qual, com interesse para o presente recurso (para a questão do crédito do aqui Reclamante) salientamos, transcrevendo-os, os trechos seguintes:
“[…]
[E]ncontram-se reconhecidos os seguintes créditos:
1. Banco B…, S.A. – crédito comum, no montante de €6.969,66.
2. A… – crédito comum, no montante de €238.529,85.
3. C.., S.A. – crédito comum, no montante de €379.985,76.
4. Fazenda Nacional – crédito no montante de €26.411,09, sendo €13.590,07 comum, e €12.820,39 privilegiado.
5. G… – crédito comum, no montante de €5.553,56.
6. Instituto de Segurança Social, IP – crédito no montante de €18.626,73, sendo €8.904,89 comum, € 4.697,71 privilegiado.
7. J…, S.A. – crédito comum, no montante de €15.735,52.
8. I… – crédito privilegiado, no montante de €25.923,13.
9. M… – crédito no montante de €5.451,78, sendo comum €230,14, €20,54 subordinado e €5.201,10 privilegiado.
10. M… – crédito no montante de €14.464,29, sendo comum €4.508,58 e privilegiado o remanescente.
11. N…, S.A. – crédito comum no montante de €12.965,98.
12. N… – crédito no montante de €11.313,78, sendo comum €901,09, subordinado €41,17 e €10.371,52 privilegiado.
13. O…, S.A. – crédito comum no montante de €112,64.
14. P…, S.A. – crédito comum no montante de €3.678,90.

*
Compulsados os autos, verificamos que gozam de privilégio creditório imobiliário, a ser pago pelo produto da venda do bem imóvel, os créditos laborais privilegiados, seguidos dos créditos privilegiados da Fazenda Nacional e da Segurança Social.
Posteriormente, deverá ser pago o crédito garantido por hipoteca legal, de que goza a Segurança Social, relativamente ao produto da venda do bem imóvel.
Após, haverá que proceder ao pagamento dos créditos reconhecidos de natureza comum, através de rateio se necessário (artigo 604.º, n.º 1, do Código Civil), sendo graduados em último lugar os créditos subordinados reconhecidos.

*
VI – DISPOSITIVO
Por todo o exposto, e ao abrigo das disposições legais supra mencionadas:
a) julgo verificado o crédito de M…, no valor de €4.508,58, com a natureza subordinada;
b) homologo a lista de credores reconhecidos apresentada pela senhora Administradora da Insolvência e considero, como tal, verificados os créditos dela constantes;
c) Graduo tais créditos do seguinte modo:
1) em primeiro lugar, os créditos laborais reconhecidos;
2) em segundo lugar, o crédito garantido por hipoteca legal da Segurança Social, para pagamento do montante garantido;
3) em terceiro lugar, os créditos privilegiados da fazenda nacional e do Instituto de Segurança Social, I.P., através de rateio se necessário;
4) em quarto lugar, os créditos comuns, através de rateio se necessário;
5) em quinto lugar, e rateadamente, os créditos subordinados.
[…]”.

            1.2. Desta Sentença recorre agora o Reclamante C…, formulando as conclusões que se transcrevem a rematar tal recurso:
“[…]


II – Fundamentação

2. Caracterizado o desenvolvimento do processo concursal que conduziu à presente instância de recurso, importa apreciar a impugnação do credor C…, sendo que o âmbito objectivo desta foi delimitado pelas conclusões transcritas no item antecedente [artigos 635º, nº 4 e 639º do Código de Processo Civil (CPC)[3]]. Assim, fora das conclusões só valem, em sede de recurso, questões que se configurem como de conhecimento oficioso. Paralelamente, mesmo integrando as conclusões, não há que tomar posição sobre questões prejudicadas, na sua concreta incidência no processo, por outras antecedentemente apreciadas e decididas (di-lo o artigo 608º, nº 2 do CPC). E, enfim – esgotando a enunciação do modelo de construção do objecto de um recurso –, distinguem-se os fundamentos deste (do recurso) dos argumentos esgrimidos pelo recorrente ao longo da motivação, sendo certo que a obrigação de pronúncia do Tribunal ad quem se refere àqueles (às questões-fundamento) e não aos diversos argumentos jurídicos convocados pelo recorrente nas alegações.
2.1. Neste caso trata-se de saber, em vista da pretensão do Apelante de afastar a qualificação do seu crédito na Sentença de graduação como crédito comum, conferindo-lhe natureza de garantido em função de hipoteca: (a) se a reclamação do crédito da Reclamante, apresentada à Administradora da Insolvência (aqui certificada a fls. 198/204[4] (onde esse crédito, expressamente, não foi indicado como garantido pela hipoteca) deve ser considerada, no contexto dessa reclamação, como decorrente de lapso manifesto e oficiosamente corrigida para essa pretendida natureza de crédito privilegiado em função da existência de uma hipoteca; (b) se a não impugnação pelo Reclamante Montepio da lista definitiva de credores, elaborada nos termos do artigo 130º, nº 1 do CIRE, depois de notificado dessa lista, preclude o direito deste credor vir posteriormente impugná-la.
Note-se que, para esclarecimento das questões/fundamento do recurso – das duas questões enunciadas antes neste item 2.1., que outras não suscita o Apelante –, valem aqui como incidências fácticas relevantes os elementos descritos ao longo do relatório deste Acórdão (ao longo do item 1.). Tratam-se essas incidências de elementos com expressão documental nos autos (estão nesses termos provados, aqui neste apenso por via de certificação), sendo que a eles fizemos referência circunstanciada no antecedente relato.
2.1.1. (a) Abordamos aqui a primeira questão antes enunciada (podemos identificá-la como a do suposto lapso de escrita do Apelante ao reclamar o seu crédito despido da garantia hipotecária[5]).
Lembramos aqui as referências explícitas do Apelante no requerimento consubstanciador da reclamação de créditos, inultrapassáveis na expressividade do seu significado, referências transcritas no item 1.1., supra contendo explícita afirmação da inoperância da garantia hipotecária – disse e repetiu aí o Reclamante que “[…] a hipoteca já não garant[ia] o mencionado contrato […]”. Ora, neste quadro, a pretensão de construir um erro de cálculo ou de escrita, nos termos definidos no artigo 249º do Código Civil (CC), perde qualquer sentido. Com efeito, estabelece esta norma que “[o] simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à rectificação desta”, sendo que, neste caso, é o próprio contexto da declaração e as circunstâncias em que a mesma foi feita que revelam não se ter tratado de erro, mas simplesmente da consideração, da qual o Reclamante pretende agora retratar-se, de que a garantia real que tornaria o crédito garantido, nos termos definidos no artigo 47º, nº 4 do CIRE[6], se havia tornado inoperante por o imóvel ter sido, como disse nessa reclamação, adjudicado ao C… numa execução fiscal, deixando de garantir os créditos reclamados: foi isso, com efeito, o que o Reclamante disse e, enfim, quod scripsi scripsi[7].
Tenha-se presente que o artigo 249º do CC “[…] cobre as hipóteses de lapsus calami (lapsos de pena) ou de lapsos linguae (lapso da língua). O erro é de tal modo ostensivo, que resulta do próprio contexto do documento ou das circunstâncias da declaração. Em rigor não há erro, uma vez que a declaração deve ser globalmente interpretada.[8]. Ora, aqui, o erro que resultaria ostensivo do contexto documental a considerar pressuporia que o Reclamante não tivesse descartado, como efectivamente descartou inequivocamente, a incidência da garantia real, sendo que o fez num contexto explicativo que se prefigurou enquanto opção motivada e racional.
Fora do contexto do erro evidente de escrita, o erro – em geral a avaliação falsa da realidade por falta de elementos ou por má apreciação destes, abrangendo mesmo a ignorância (em Direito o erro não se distingue da ignorância[9]) –, o erro fora do contexto do artigo 249º do CC, dizíamos, reconduz-se ao erro na declaração, previsto no artigo 247º do CC[10], cuja relevância implica o conhecimento pelo declaratário (aqui os destinatários seriam fundamentalmente a Administradora da Insolvência e os restantes credores), ou o dever deste não ignorar, o carácter essencial do elemento sobre o qual recaiu. O carácter objectivo do dever de conhecer essa essencialidade[11], conduz neste campo à rejeição como erro na declaração relevante de situações em que uma afirmação postulativa em ambiente processual, como aqui sucedeu nos termos já amplamente referidos, é racionalmente compreendida pela parte contrária com o sentido evidente que ostenta no contexto explicativo em que é efectuada pelo seu autor. Sublinha-se que aqui esse contexto foi o de afirmar expressamente a razão do descaso da hipoteca – “[…] o imóvel já foi adjudicado à aqui Reclamante em sede de execução fiscal, pelo que a hipoteca já não garante o mencionado contrato” – e que essa afirmação foi compreendida com esse exacto sentido pela Administradora da Insolvência ao tratar esse crédito com base nessa afirmada inoperância da garantia real.
Note-se que mesmo a especificidade que normalmente se atribui à interpretação de actos processuais de natureza postulativa, vendo-se quanto a estes como regra interpretativa com vocação de generalidade o nº 3 do actual artigo 186º do CPC (artigo 193º, nº 3 do anterior CPC)[12], mesmo neste caso, dizíamos, seria necessário que os outros sujeitos processuais acabassem por exteriorizar no processo o entendimento real mal exteriorizado, afirmado pelo autor como o realmente pretendido[13]. Aqui, precisamente ao contrário, os outros intervenientes, rectius a Administradora da Insolvência ao elaborar a lista definitiva de credores nos termos do artigo 130º do CIRE, tomaram a afirmação do Reclamante pelo seu exacto sentido objectivo, o sentido que este agora, tardiamente (e também algo suspeitamente) pretende alterar.
Não existe, pois, erro algum, menos ainda um erro de cálculo ou de escrita, nos termos do artigo 249º do CC.
2.1.2. (b) Como nota final, que corresponde a um fundamento do recurso explorando a afirmação do Apelante na conclusão j do recurso, interessa-nos averiguar se o artigo 58º do CIRE (é o Apelante que o cita) significa que o Juiz do processo concursal pode ultrapassar a não impugnação por um interessado da qualificação de um crédito na lista de credores, elaborada nos termos do nº 1 do artigo 130º do CIRE, quando esta lista foi notificada a este interessado.
Poderíamos ainda acrescentar, na delimitação da questão aqui colocada, quando essa lista assumiu o crédito desse interessado nos exactos termos em que este o reclamou (remetemos aqui para tudo o que dissemos no item anterior sobre a interpretação do comportamento deste Reclamante).
Ora, a este respeito, sem prejuízo do dever de serem corrigidos na sentença de verificação os erros manifestos detectados na lista[14] – erro que aqui não se verifica, como erro e, menos ainda, como manifesto –, não deixamos de ver no nº 3 do artigo 130º o estabelecimento de um efeito cominatório bloqueador da impugnação ulterior, designadamente em sede de recurso, de uma decisão que se limitou, no especial contexto aqui verificado, a assumir essa lista não impugnada pelo interessado[15].
Não existe, pois, é o que aqui se conclui, qualquer erro na consideração do crédito do ora Apelante na Sentença de verificação e graduação como crédito comum.
2.2. Sumário elaborado pelo relator (artigo 663º, nº 7 do CPC):
I – A referência, por parte de um credor da insolvente na reclamação de créditos apresentada ao administrador da insolvência, a que a hipoteca que constituiu sobre um prédio da insolvente “já não garantia” esse crédito, por o imóvel em causa ter sido adjudicado a essa credora no quadro de uma execução fiscal movida contra a insolvente, significa, inequivocamente, o descartar da garantia decorrente dessa hipotética e, consequentemente, vale por não reclamar esse crédito com o estatuto de “garantido”, nos termos do artigo 47º, nº 4, alínea a) do CIRE;
II – Essa declaração quanto à inoperância da garantia hipotecária, explicitada nos termos referidos, não traduz um erro de escrita, que valha nos termos do artigo 249º do CC, por não revelar qualquer erro “no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que [tal] declaração é feita”, não gerando qualquer direito à rectificação dessa declaração;
III – Tal declaração também não corresponde a um erro em sentido lato, erro na declaração, nos termos do artigo 247º do CC, por o contexto explicativo em que é feita não implicar o conhecimento, pelos destinatário (administrador da insolvência; outros credores) da existência de qualquer erro, não se configurando, por banda destes destinatários, algum dever de não ignorarem tratar-se de declaração assente em erro;
IV – Quando uma declaração postulativa, efectuada pela parte num processo, é compreendida pela parte contrária com o sentido evidente que ostenta, no particular contexto explicativo em que tal declaração foi efectuada, vale ela com esse sentido objectivo;
V – Assim, é correcta a qualificação, realizada na lista definitiva de credores apresentada pelo administrador da insolvência, do crédito reclamado nos termos indicados em I deste sumário como “crédito comum”, por ser esse o sentido com que esse crédito foi reclamado;
VI – A lista definitiva de credores elaborada nos termos do artigo 130º, nº 1 do CIRE, quando notificada ao reclamante de um crédito sem que este lhe deduza qualquer oposição, bloqueia a ulterior pretensão dessa mesma parte de obter a alteração da sentença de verificação e graduação de créditos que se limitou a considerar as incidências emergentes dessa lista definitiva. 
III – Decisão
            3. Face ao exposto, na improcedência da apelação, confirma-se a Sentença recorrida.
            Custas do recurso pela massa insolvente.
Tribunal da Relação de Coimbra, recurso julgado em audiência na sessão desta 3ª Secção Cível realizada no dia 09/09/2014. 
(J. A. Teles Pereira)
(Manuel Capelo)
(Jacinto Meca)


[1] A falta de cuidado que presidiu à instrução deste recurso levou à subida deste autos a esta Relação desacompanhados desse e de outros elementos fundamentais para o julgamento deste. Daí o despacho interlocutório de fls. 157 do ora relator (infelizmente as peças enviadas nunca foram acompanhadas de suporte informático que permitisse um uso mais cómodo delas na elaboração deste Acórdão).
[2] Juntou aí cópia da compra e venda, mútuo com hipoteca e fiança, aqui certificada.
[3] Vale aqui como precedente, com contínua relevância no CPC actual, o Acórdão do STJ de 03/06/2011 (Pereira da Silva), proferido no processo nº 527/05.8TBVNO.C1.S1, cujo sumário está disponível na base do ITIJ, directamente, no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f9dd7bb05e5140b1802578bf00470473:
Sumário:
“[…]
[O] que baliza o âmbito do recurso, tal sendo, afora as de conhecimento oficioso, as questões levadas às conclusões da alegação do recorrente, extraídas da respectiva motivação (artigos 684.º n.º 3 e 690.º n.º 1 do CPC), defeso é o conhecimento de questão não aflorada naquelas, ainda que versada no corpo alegatório.
[…]”.
[4] Erradamente endereçado ao Juiz (v. fls. 198) e não à Administradora da Insolvência (cfr. artigo 128º, nº 2 do CIRE).
[5] Obviamente – e foi com esse sentido que a Senhora Administradora tratou o crédito do C… – que, quando se não indica motivo de garantia, privilegiamento, subordinação de um crédito reclamado numa insolvência (v. o artigo 47º, nº 4, alíneas a) e b) do CIRE), esse crédito é tomado por comum, nos termos do artigo 47º, nº 4, alínea c) do CIRE.
[6]
Artigo 47º
Conceito de credores da insolvência e classes de créditos sobre a insolvência
------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------.
4 – Para efeitos deste Código, os créditos sobre a insolvência são:
a) ‘Garantidos’ e ‘privilegiados’ os créditos que beneficiem, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao valor dos bens objecto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta as eventuais onerações prevalecentes;
b) ‘Subordinados’ os créditos enumerados no artigo seguinte, excepto quando beneficiem de privilégios creditórios, gerais ou especiais, ou de hipotecas legais, que não se extingam por efeito da declaração de insolvência;
c) ‘Comuns’ os demais créditos.

[7] E a circunstância de o valor (preço de aquisição) pago e depositado pela Reclamante na execução fiscal, nos termos relatados na conclusão f. desta apelação, ter sido apreendido para a massa insolvente não altera o sentido da declaração consubstanciada nessa reclamação. Aliás a questão da sobrevivência da garantia colocar-se-ia, tão-somente, quanto ao valor transferido da execução para a insolvência, não quanto a todo o crédito do Reclamante.
Tenha-se presente, todavia, e trata-se de incidência que afasta a circunstância de o Apelante laborar em erro, que está na base dessa apreensão do produto da venda executiva para a massa insolvente uma questão que se tem reflectido em decisões divergentes dos Tribunais. Esta exacta formação desta Relação não a aceitou através do Acórdão de 03/03/2009, proferido pelo ora relator no processo nº 93/03.9TBFCR.C1, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/dc2193cc5c1f83be8025757b00592c4f.
Sumário:

I – Traduz a venda efectuada num processo executivo (a venda em execução) uma compra e venda na qual o executado funciona como vendedor, sendo ele o sujeito material do negócio, desempenhando o tribunal o papel de sujeito formal, actuando este no exercício do seu poder de jurisdição executiva.

II – A relação obrigacional decorrente desta compra e venda extingue-se com o cumprimento, traduzindo-se este – em sede de venda executiva – no pagamento do preço pelo comprador (no depósito deste à ordem do tribunal) e na entrega do bem (pelo tribunal, enquanto sujeito formal da venda) ao comprador.

III – O depósito do preço pelo comprador à ordem do tribunal gera, na fase pós-venda, uma relação creditícia autónoma entre o banco e o tribunal, nascida no processo executivo, em função dos fins deste.

IV – O tribunal actua nesta relação, decorrente do depósito do preço, por referência aos fins próprios do processo executivo, dando pagamento ao crédito exequendo e às custas da execução.

V – O preço respeitante à venda não pertence ao executado, excepção feita a uma eventual parte sobrante deste, após o pagamento do crédito exequendo e a satisfação das custas da execução.

VI – Assim, decretada a insolvência do executado na fase pós-venda, a “captura” do produto da venda pela execução não configura um acto de apreensão ou de detenção de um bem compreendido na massa insolvente, não determinando a remessa da execução ao processo de insolvência e não preenchendo o fundamento de remessa previsto no artigo 85º, nº 2 do CIRE.

VII – Esta mesma razão – não pertença do produto da venda ao executado na fase pós-venda – exclui a remessa da execução à insolvência, nos termos do artigo 88º do CIRE.

(sublinhado acrescentado).

Reconhece-se, todavia, que este entendimento – que o ora relator reafirma como o seu – não tem sido acolhido por outras decisões dos Tribunais Superiores, designadamente pelo Supremo Tribunal de Justiça, no recente Acórdão de 20/05/2014 (João Camilo), no processo nº 3055/11.9TBBCL-N.G1.S1, disponível em:

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/3d7ece30fa83009780257cde00525537.

Sumário:

Vendidos, em acção executiva, bens de uma sociedade executada que posteriormente à venda veio a ser declarada em insolvência, deve ser apreendido para a massa insolvente o produto da referida venda desde que aquele produto ainda não haja sido pago aos credores exequentes e/ou aos credores preferentes reconhecidos e graduados na execução, nem haja esse produto sido repartido entre eles, em obediência ao previsto no art. 149º, nº 2 do CIRE.
[8] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Vol. I, Parte Geral, tomo I, 3ª ed., Coimbra, 2005, p. 822.
[9] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, cit., p. 807.
[10] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, cit., p. 822 e nota 2262.
[11] “[O] dever de conhecer a essencialidade é objectivo: tem natureza normativa: Por princípio, não há qualquer dever de indagar, na contratação, as razões que levam a outra parte a fazê-lo. Pelo contrário: num Mundo cada vez mais invasivo, há boas razões para sustentar que os motivos justificativos de qualquer declaração negocial pertencem ao foro íntimo de cada um, não podendo ser devassados. Apenas em casos muito delimitados e perante os factores circundantes, se poderá dizer que o declaratário não deve ignorar a essencialidade de determinado elemento, para o declarante.” (António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, cit., p.817).
[12] Esta é a posição de Paula Costa e Silva, Acto e Processo. O Dogma da Irrelevância da Vontade na Interpretação e nos Vícios do Acto Postulativo, Coimbra, 2003, pp. 388/389:
“[…]
Se é verdade que o Código de Processo Civil não contém um regime geral de interpretação dos actos das partes, é também verdade que ele inclui uma disposição fundamental em matéria de interpretação, a maioria das vezes não qualificada como tal. Referimo-nos ao artigo 193º, nº 3.

[…]

Existe um paralelismo evidente entre o disposto no artigo 236º, nº 2 do CC e no artigo 193º, nº 3 do CPC.

De acordo com o artigo 236º, nº 2 do CC, a declaração emitida vale com a vontade real do declarante, se esta for conhecida do declaratário. O que significa que pode existir uma total descoincidência entre a vontade real e a vontade tal como foi ou aparece declarada. Neste caso, e porque o declaratário sabe exactamente aquilo que o declarante pretende, passa-se por cima do texto, valendo a declaração eventualmente com um sentido que aquele nem sequer comporta.

O que encontramos no artigo 193º, nº 3 é algo de semelhante. Também neste caso a petição vale de acordo com o sentido real que o autor pretendia atribuir-lhe. A interpretação (no caso da ininteligibilidade) ou a integração (no caso de falta) realizadas pelo réu mostram que ele atribuiu o sentido correcto à imprecisa ou incompleta forma de expressão do autor.

Tanto num caso, como no outro, o sentido do acto pode ser fixado contra o texto.

No entanto, há uma dissemelhança entre os dois regimes. Enquanto o artigo 236º, nº 2 vincula o declaratário a uma intenção, que ele conhece, e que não pressupõe uma interpretação da declaração, o artigo 193º, nº 3 pressupõe que seja através da interpretação que o declaratário consegue apurar a intenção do declarante. Num caso, a intenção é oponível porque é conhecida; no outro, essa intenção é oponível porque foi descoberta.
[…]”.
[13] “[…]

Se os diversos sujeitos processuais procederem a uma descodificação do acto, fixando-lhe um sentido comum, será este o sentido juridicamente relevante do acto postulativo.

O que equivale a dizer que, havendo uma coincidência entre a intenção do autor e o sentido apreendido da formalização dessa intenção, será esse o sentido com que deve valer o acto.

Pelo que, em caso de entendimento comum do acto postulativo, o sentido que a este é fixado coincide com o sentido genericamente considerado relevante quando se procede à fixação do sentido de uma declaração negocial. Nestes casos, exprimindo o acto de forma adequada a intenção do seu autor e sendo essa intenção apreendida, tanto pelo tribunal, como pela parte contrária, poderá concluir-se que o acto terá o sentido correspondente à intenção do seu autor. 
[…]” (Acto e Processo…, cit., p. 390).
[14] Interessa aqui ter presente o texto do artigo 130º do CIRE:

Artigo 130º
Impugnação da lista de credores reconhecidos
1 - Nos 10 dias seguintes ao termo do prazo fixado no n.º 1 do artigo anterior, pode qualquer interessado impugnar a lista de credores reconhecidos através de requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorrecção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos.
2 - Relativamente aos credores avisados por carta registada, o prazo de 10 dias conta-se a partir do 3.º dia útil posterior à data da respectiva expedição.
3 - Se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação dos créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista.
[15] Neste sentido o Acórdão desta Relação de Coimbra de 02/02/2010 (Carlos Moreira), no processo nº 171/07.5TBOBR-C.C1, disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/abbfc3eec2c882f7802576da0034508c.
Sumário:
I - Se o credor, notificado da lista do administrador da insolvência, que reconheceu e qualificou o seu crédito como comum, não impugna esta qualificação – artº 130º nº1 do CIRE - não pode posteriormente, após prolação da sentença que a manteve, insurgir-se contra ela, com base na existência de «erro manifesto» - nº4 - por falta de consideração de documentos dos apensos, porque anteriormente não se pronunciou e porque tal erro apenas deve ser apreciado pelo juiz com relação aquela lista.