Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
147/11.8TBGVA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES
COMPENSAÇÃO
Data do Acordão: 01/29/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE GOUVEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 851º C. CIV..
Sumário: I – O requisito da reciprocidade de créditos previsto, quanto à extinção de uma obrigação por compensação, no artigo 851º do CC, refere-se à chamada compensação legal, sendo esta a que opera por declaração unilateral, como forma específica de extinção de uma obrigação à qual se refere a regulamentação da compensação no Código Civil (artigos 847º a 856º);

II – Paralelamente a esta (à compensação legal), não obstante a ausência de uma revisão expressa na nossa lei substantiva, é possível que as partes num negócio estabeleçam, ao abrigo do princípio da autonomia privada, uma compensação convencional ou voluntária faltando aos créditos envolvidos, entre outros requisitos previstos para a compensação legal, o requisito da reciprocidade dos créditos, não afectando essa incidência a validade dessa compensação e do negócio no qual se insere.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. Em 07/06/2011[1] a sociedade G…, Lda. (A. e aqui Apelada) demandou a sociedade S…, S.A. (R. e Apelante no contexto deste recurso) – demandou, sublinha-se, utilizando o procedimento especial a que se refere o artigo 1º do Decreto-Lei nº 269/98, de 1 de Setembro. Seguindo esta forma especial pretendeu a A. a condenação da R. a satisfazer-lhe o valor de €9.666,65 (mais juros que liquidou em €11.000,00, contados até à propositura da acção), valor este referente ao fornecimento, em Junho e Julho de 2000, de tambores de óleo à R. que os não pagou, concretamente na forma especial pela qual acordara dar satisfação a esse valor[2].

            1.1. A R. contestou aceitando que a forma de pagamento acordada – acordada por todos os abrangidos por ela, intui-se do que diz na contestação no respectivo artigo 7º (transcrito na nota 4, infra) – deveria ter lugar através da dita compensação envolvendo terceiros, referindo ela desconhecer se teria efectivamente ocorrido essa compensação, sublinhando que a A. emitiu o “recibo” que juntou a fls. 10, conferindo a R. a essa incidência a indução de uma proibição de prova testemunhal, nos termos do artigo 394º, nº 1 do Código Civil (CC)[3].

            1.2. Realizado o julgamento foi a acção decidida, quanto à fixação dos factos e à aplicação do Direito, no sentido da parcial procedência (improcedeu quanto à projecção temporal da obrigação de juros)[4], através da Sentença de fls. 77/86, que constitui a decisão ora recorrida.

            1.3. Inconformada apelou a R. a esta instância, concluindo o seguinte na motivação do recurso que adrede apresentou:
“[…]


II – Fundamentação


            2. Relatado o essencial do iter processual que conduziu à presente instância de recurso, cumpre apreciar os fundamentos da apelação, tendo em conta que as conclusões formuladas pela Apelante – transcrevemo-las no item 1.3. supra – operaram a delimitação temática do objecto do recurso, isto nos termos dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC)[5]. Com efeito, fora das conclusões só valem, nesta sede, questões que se configurem como de conhecimento oficioso (di-lo o trecho final do artigo 660º, nº 2 do CPC). Paralelamente, mesmo integrando as conclusões, não há que tomar posição sobre questões prejudicadas, na sua concreta incidência no processo, por outras antecedentemente apreciadas e decididas. E, enfim – esgotando o modelo de construção do objecto de um recurso –, distinguem-se os fundamentos deste (do recurso) dos argumentos esgrimidos pelo recorrente ao longo da motivação, sendo certo que a obrigação de pronúncia do Tribunal ad quem se refere àqueles (às questões fundamentos) e não aos diversos argumentos jurídicos convocados pelo recorrente nas alegações.

            2.1. Os factos que a decisão apelada fixou – portanto, os factos que considerou provados[6] – são os que aqui se transcrevem:
“[…]

2.2. No concreto, o objectivo do recurso, enquanto instrumento de obtenção nesta instância de uma decisão-outra da acção (pretende a Apelante uma decisão de improcedência da acção), acaba por se resumir à invocação do banimento legal da prova testemunhal, no sentido em que esta, atenta a fundamentação do Tribunal, contrariaria o teor de um documento. Tratar-se-ia, pois, da actuação da proibição constante do artigo 394º, nº 1 do CC, referindo a R./Apelante este desvalor à inquirição de testemunhas pelo Tribunal quanto à veracidade do recibo constante de fls. 10, no sentido de ter existido, verdadeiramente, o pagamento das facturas à A. – aqui, de não ter existido esse pagamento –, não obstante o teor do documento e independentemente da ocorrência da compensação indicada no ponto 7. dos factos. Tenha-se presente que foi através da prova testemunhal, como decorre da fundamentação de facto a fls. 80/81, que a Senhora Juíza a quo descaracterizou o recibo de fls. 10 como referido a um pagamento efectivamente ocorrido e acabou por considerar em falta esse pagamento (em falta a satisfação de uma contrapartida à A. pelo fornecimento dos tambores de óleo), contra o teor do documento aparentando a quitação referida a essa satisfação. 

Esta questão, aparentemente simples – resumir-se-ia ela à (in)admissibilidade de prova testemunhal contra o teor de um documento –, encerra, no confronto com as restantes incidências emergentes da acção, alguma complexidade à qual a apreciação deste recurso não se pode furtar.

2.2.1. Interessam-nos aqui alguns argumentos do iter expositivo do Tribunal a quo até à decisão de procedência da acção, no sentido em que vemos alguns desses argumentos, tal qual a Senhora Juíza os caracterizou, como controversos (como controversa a abordagem deles efectuada na Sentença), exigindo que a decisão apelada de procedência parcial da acção seja aqui testada, desde logo por referência aos pressupostos argumentativos em que assentou. Claro que neste domínio, como em todos os que envolvem a procura de soluções jurídicas racionalmente argumentadas e conformes a determinados cânones interpretativos genericamente aceites, existindo diversos caminhos para um determinado resultado, este resultado – sublinha-se, o resultado – só ficará verdadeiramente em causa se, discordando-se do caminho seguido na instância precedente – e estamos a equacionar a divisão de tarefas entre as duas instâncias aqui envolvidas –, o caminho diverso aqui construído como correcto excluir esse resultado fixado na instância precedente. É que, como observaremos na subsequente exposição, com base em argumentos e num percurso interpretativo do qual discordamos em alguns pontos, a Sentença apelada acabou por formular uma decisão que é correcta – correcta no resultado prático final – ao condenar a R. a satisfazer à A. o valor dos tambores de óleo por esta fornecidos, no sentido em que não se apurou que esse valor tivesse sido satisfeito à A., pela forma acordada (a prevista no ponto 7. dos factos) ou por qualquer outra[7].

            2.2.1.1. Desde logo – no que constitui a primeira incidência a considerar na decisão apelada – temos a questão da compensação, nos termos em que esta foi indicada pela A. no requerimento inicial (no artigo 11º desse requerimento transcrito na nota 3, supra) e acabou por ser reconhecida, ou aceite ter existido, pela R. na respectiva contestação (artigo 7º da contestação transcrito na nota 4, supra).

            A Sentença apelada considerou que a possibilidade de existência de compensação – da forma de extinção de uma obrigação diversa do cumprimento, prevista nos artigos 847º e ss. do CC – estaria aqui excluída por respeitar (por envolver) a dívida de um terceiro, ofendendo o disposto no artigo 851º do CC[8]. Existe um erro conceptual básico nesta asserção, no sentido em que referir a inaplicabilidade de uma forma de extinguir uma obrigação que, por definição decorrente da sua inserção sistemática é designada como diversa do cumprimento (referimo-nos aqui à sistematização temática do Código Civil expressa no título do Capítulo VIII do Título I do Livro das Obrigações), esta asserção de inaplicabilidade da compensação, dizíamos, esquece que o que aqui se alegou – e o que aqui ficou expresso no facto 7. do elenco acima transcrito – foi, precisamente, que a forma de cumprimento aqui convencionada (convencionalmente estabelecida entre os envolvidos) correspondia a uma compensação entre créditos.

            Com efeito, existe na asserção interpretativa adoptada pelo Tribunal a quo, quanto à exclusão da compensação por falta de reciprocidade dos créditos, uma confusão entre formas distintas de compensação: a compensação legal e a compensação convencional. A primeira destas (a compensação legal) é a forma de desencadear a compensação directamente prevista e regulada no Código Civil, nos artigos 847º a 856º, sendo que esta exclui, efectivamente, por falta do requisito da reciprocidade dos créditos, que o compensante invoque créditos de terceiro[9]. Todavia, na outra situação de compensação (a compensação convencional), existindo acordo de todos os envolvidos na compensação – como aqui sucede nos termos em que o ponto 7. dos factos provados expressou esse elemento no quadro argumentativo desta acção –, nesta hipótese, dizíamos, já a compensação não é afastada, operando-se, não obstante a falta de reciprocidade dos créditos envolvidos, a extinção da obrigação visada. Configura-se nestes casos um acordo de compensação entre os titulares dos créditos envolvidos, acordo este que, não estando expressamente previsto no nosso Código Civil[10], é admissível, conforme reconhece una vocce a Doutrina, com base no princípio geral da autonomia privada previsto no artigo 405º do CC[11].

            Tenha-se presente que, neste caso, ficou estabelecido neste processo, por admissão expressa da R. no seu articulado de contestação que, “[p]or acordo entre a A., a R. e F…, o preço dos fornecimentos em causa nos presentes autos era para ser compensado com o preço dos fornecimentos de inertes feitos pela R. a F… e à B..., Lda.”. Tratou-se, com efeito – e é essa a verdadeira origem do item 7. dos factos – de uma admissão relevante para o estabelecimento desse facto como provado no estrito quadro desta acção (fundamentalmente refere-se ao conteúdo do contrato entre a A. e a R.), admissão essa que não tem aqui o estatuto de confissão, nos termos do artigo 356º, nº 1 do CC[12]. Não tem esse estatuto, desde logo, por não envolver o F… (personagem ausente desta acção como parte), circunstância que sempre colocaria a questão da legitimação para confessar da R. (v. artigo 353º, nº 1 do CC), não sendo sequer claro o natureza de facto desfavorável (desfavorável a quem?) dessa particular forma de pagamento aqui invocada pela A. e reconhecida pela R.(v. o artigo 352º do CC[13]).

            2.2.2 Valem estas asserções – a saber: o que a A. alegou foi uma compensação voluntária plurisubjectiva, acordada entre vários sujeitos como forma de satisfação do valor dos tambores de óleo (de pagamento destes, se preferirmos) por ela fornecidos à R., e esta aceitou existir esse acordo –, valem estas asserções, dizíamos, no quadro da aferição da possibilidade de produção de prova testemunhal quanto à circunstância de ter ocorrido, em concreto, essa forma de cumprimento da obrigação (v. o artigo 394º, nº 1 do CC[14]). Esta incidência apresenta interesse face ao teor do documento de fls. 10. Este, com efeito, constituindo um recibo reportado ao valor das facturas de fls. 7, 8 e 9 (declara ter esse valor sido recebido pela A.), conferiria nesse seu conteúdo significante quitação reportada ao negócio subjacente a essas facturas, bloqueando a produção de prova testemunhal em sentido contrário.

            Note-se que esta questão não foi incorrectamente equacionada pelo Tribunal a quo, ao afirmar, num trecho da fundamentação fáctica a fls. 81/82 (referido, precisamente, à admissão de prova testemunhal contra o recibo), a existência, através dos documentos que reflectem as contas-correntes entre os envolvidos no acordo de compensação (os documentos de fls. 11/17[15]), de um expressivo princípio de prova documental infirmando, colocando em causa, o significado aparente do documento como efectiva quitação por extinção da correspondente obrigação. Isso sucede aqui, porque o documento em causa é indicado (cfr. os artigos 12º e 13º do articulado inicial transcrito na nota 3, supra) – numa explicação plausível do seu real significado, como forma de desencadear a ulterior compensação e esta, com base em prova documental apresentada pela A. (pela emitente do documento), não se mostra minimamente reflectida no corresponde – tudo indica corresponder – ao registo que deveria reflectir esses movimentos compensatórios.

Com efeito, este entendimento – a existência de um princípio de prova documental em sentido contrário ao documento ter apetência para afastar a incidência da regra do nº 1 do artigo 394 do CC –, o entendimento assim enunciado, dizíamos, é comummente aceite na nossa Jurisprudência[16] e Doutrina[17] e tem aqui, em face das vicissitudes de facto já antes caracterizadas, um claro espaço de aplicação. Podia a Senhora Juíza a quo, com efeito, face à ponderação do significado envolvido nos documentos de fls. 11/17, considerar sob suspeita o recibo de fls. 10 – digamo-lo assim, pois cremos que é do que verdadeiramente se trata –, no sentido em que este aparenta a concessão de quitação, quando essa aparência (esse significado que qualificamos de primeira aparência) é aqui contraditada (contraditada como representação documental de um efectivo pagamento dos bens fornecidos pela A. à R.) por outros documentos que, num quadro de coerência com o modo de extinção da obrigação estabelecido (a tal compensação convencional envolvendo terceiros), deveriam reflectir – e não reflectem – essa incidência extintiva da obrigação.

Vale o que ora se referiu, como aceitação da produção de prova testemunhal reportada à correspondência à realidade do recibo de fls. 10, sublinhando-se, todavia, que a valoração desse tipo de prova neste caso (o qual foi feito em conjugação com a prova documental) não conduziu o Tribunal de primeira instância à prova da afirmação da A. de que o valor dos fornecimentos não lhe fora efectivamente satisfeito no quadro compensatório estabelecido (v. item 2.1.1., supra e fundamentação no texto da Sentença no segundo parágrafo de fls. 82).

2.2.3. Assim, a condenação da R., não provado o pagamento nem o não pagamento – expressemos nestes termos o resultado probatório da acção –, assentou no funcionamento, na prática, da regra de decisão indicada na nota 9, supra, que o Tribunal aqui fez actuar por referência à presunção de culpa do devedor quanto à falta de cumprimento da obrigação, nos termos do artigo 799º do CC.

A questão da exigência do pagamento à R. dos bens fornecidos pela A. colocar-se-ia aqui, no entanto, por referência a uma incidência anterior à apreciação da culpa no incumprimento. Trata-se, com efeito, de caracterizar, previamente à culpa (onde actua a presunção do artigo 799º do CC) a não satisfação à A. do valor dos tambores de óleo, pela forma acordada (a tal compensação), ou por outra qualquer, que envolvesse esse mesmo efeito. Corresponde isto à prova de um facto extintivo (a efectiva satisfação do valor dos bens fornecidos) do direito invocado pela A. (o direito a receber esse valor), cuja prova compete à R. – aquela contra quem a invocação desse direito é feita –, nos termos do artigo 342º, nº 2 do CC. Constitui esta uma asserção indiscutível, invariavelmente afirmada pela Jurisprudência[18], e que configura neste caso concreto a alocação do ónus da invocação desse pagamento à R. (esta, sendo ambígua a esse respeito[19], parece ter apontado para essa alegação implicitamente), tal como do ónus da prova dessa incidência, resultando deste último que a indemonstração da versão da R., o non liquet a esse respeito, gerará a decisão contrária aos interesses do mesmo: a decisão de que o valor dos tambores não foi pago – rectius, não se demonstrou ter sido pago – e, consequentemente, a condenação da R. a satisfazer esse valor à A.

Funciona aqui, como antes se disse, a regra de decisão extraída da alocação do ónus da prova à R., no quadro que referimos (v. nota 9) como ónus objectivo da prova.

É com este sentido que a decisão de condenar a R. na satisfação desse valor à A. (operada a entrega dos bens sem a contrapartida da efectiva satisfação do seu valor) é correcta, rectius expressa um resultado correcto, mesmo que o percurso interpretativo seguido para o alcançar não seja inteiramente coincidente nas duas instâncias.

2.2.3.1. Aliás, ao mesmo resultado prático chegaríamos (condenação da R. a entregar à A. os €9.666,65 correspondentes ao valor dos tambores de óleo entregues), equacionando os factos apurados na perspectiva residual do enriquecimento sem causa, aqui referido ao nº 2 do artigo 473º do CC, dizendo-se que o fornecimento dos tambores de óleo à R. teria ocorrido, como foi o caso, em vista de um efeito (a referida compensação plurisubjectiva) que acabou por não se verificar, ficando sem sentido justo o apossamento pela R. dos bens fornecidos pela A.

Esta seria, todavia, uma perspectiva residual e é aqui convocada como argumento alternativo de confirmação do resultado expresso na Sentença apelada. Não se sobrepõe esta perspectiva, todavia, à consideração de que a não prova do pagamento do valor dos tambores de óleo fornecidos pela A. conduz, no quadro da relação contratual aqui estabelecida entre as partes, à obrigação da R., como destinatária desses bens, a efectuar esse pagamento em falta, estabelecido que está que a R. recebeu efectivamente esses bens.

2.3. Sendo este o resultado do recurso, resta-nos, antes da formulação da correspondente decisão, deixar aqui sumariados os elementos fundamentais do antecedente percurso:
I – O requisito da reciprocidade de créditos previsto, quanto à extinção de uma obrigação por compensação, no artigo 851º do CC, refere-se à chamada compensação legal, sendo esta a que opera por declaração unilateral, como forma específica de extinção de uma obrigação à qual se refere a regulamentação da compensação no Código Civil (artigos 847º a 856º);
II – Paralelamente a esta (à compensação legal), não obstante a ausência de uma previsão expressa na nossa lei substantiva, é possível que as partes num negócio estabeleçam, ao abrigo do princípio da autonomia privada, uma compensação convencional ou voluntária faltando aos créditos envolvidos, entre outros requisitos previstos para a compensação legal, o requisito da reciprocidade dos créditos, não afectando essa incidência a validade dessa compensação e do negócio no qual se insere.


III – Decisão

            3. Pelo exposto, na improcedência da apelação, mantém-se a decisão recorrida de condenar a R. a satisfazer à A. o valor de €9.666,65 acrescido de juros contados desde a data de citação daquela.

            Custas da apelação a cargo da R.


J. A. Teles Pereira (Relator)
Manuel Capelo
Jacinto Meca


[1] Esta data – a data da propositura da presente acção – marca a aplicação a esta instância de recurso do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Pela mesma razão, qualquer disposição do Código de Processo Civil adiante referida e cujo texto tenha sido alterado pelo indicado DL 303/2007, sê-lo-á na versão resultante deste Diploma.
[2] Essa forma especial – e trata-se este de um elemento central na economia decisória desta acção e deste recurso –, essa especial forma, dizíamos, corresponderia a uma “compensação” envolvendo os terceiros, F… e a sociedade B…, Lda. (o primeiro sócio-gerente desta e, ao tempo, também sócio-gerente da A.).
Esta incidência é caracterizada pela A. no requerimento inicial nos termos que aqui transcrevemos:
“[…]

8º- À data dos apontados fornecimentos de óleos, o sócio-gerente da autora, F…, exercia a actividade de construção civil e obras públicas como empresário em nome individual,

9º- Bem como através de uma outra sociedade de que era igualmente sócio-gerente, a B…, Lda,

10º- Sendo o F… e a B..., Lda clientes da ré, que lhes fornecia inertes para as suas obras.

11º- Por acordo entre a autora, a ré e o F…, o preço dos fornecimentos em causa nestes autos era para ser compensado com o preço de fornecimentos de inertes feitos pela ré ao F… e à B…,Lda.

12º- Neste quadro, aquando do último dos três fornecimentos de óleo em apreço, a autora emitiu e enviou à ré o seu recibo n.º 081, datado de 31.07.2000, respeitante às três facturas identificadas no precedente artigo 2º (vd. o documento n.º 4 que se junta e se dá por integralmente reproduzido).

13º- Não obstante, a ré nunca fez a compensação entre o preço dos seus fornecimentos com os fornecimentos ora em causa,

14º- Nunca tendo feito reflectir as facturas atrás identificadas nas suas contas correntes com a autora, o F… e a B…, Lda. (vd. os documentos nºs 5, 6 e 7 que se juntam e se dão por integralmente reproduzidos e que a própria ré juntou em outros processos judiciais),

15º- Pelo que o preço de tais facturas, no montante, repete-se, de €9.666,65, continua por pagar.

16º- A tal preço acrescem, claro está, os juros de mora vencidos desde a data do vencimento das facturas,

17º- Até porque foi por motivos apenas imputáveis à ré que o preço dos fornecimentos em referência não foi compensado com o preço de fornecimentos de inertes feitos pela ré ao F… e à B..., Lda.

18º- Tais juros montam, nesta data, a €11.000,00.

19º- A autora e o F… ainda chegaram a questionar a ré a propósito da não realização por parte desta da citada compensação de créditos,

20º- Nunca tendo, porém, obtido qualquer explicação satisfatória daquela a propósito de tal situação.
[…]” (transcrição de fls. 4/5).
[3] Vale aqui o seguinte trecho da contestação:
“[…]


7.º

Impugna-se no artigo 11.º da PI as palavras ‘(...) nestes autos (...)’, aceitando e clarificando os seus termos na sequência dos factos vertidos nos artigos 8.º,9.º e 10.º que ‘por acordo entre a A., F… e B… Lda., por um lado, e a Ré, por outro, o fornecimento de inertes feitos pela ré ao F… e à B…, Lda. era para ser compensado com o fornecimento de óleos por parte da A. e F… à ora Ré.

8.º

Mais se impugna no artigo 12.º da PI o seguinte texto: ‘Neste quadro, aquando do ultimo dos três fornecimentos de óleo em apreço (...)’, aceitando-se a confissão expressa e irretratável de ‘A A. emitiu e enviou à ré o seu recibo n.º81, datado de 31.07.2000, respeitante às três facturas identificadas no precedente artigo2º (vd. o documento n.º 4 que se junta e se dá integralmente reproduzido).
[…]

10.º

Com efeito nos presentes autos, a A. emitiu o competente recibo de quitação n.º 81 de 31/08/2000 respeitante às facturas n.º124, n.º126 e n.º134, por se considerar paga desse valor.

11.º

Documento que entregou à Ré, que o aceitou e integrou na sua contabilidade.

12.º

E não o fez com outro intuito, não se admitindo que o tenha simplesmente emitido pela A. por erro, pois reporta especificamente a três facturas também por si emitidas.

13.º

Vale com este sentido a determinação da A., documentalmente expressa, onde emite uma declaração de quitação.

14.º

Não existindo qualquer outro elemento adicional nesse documento que possa inferir essa credibilidade ou contextualizar esse documento num acordo compensação, ilegal, e nesse medida impugnam-se os documentos n.º 5, 6 e 7 da PI, por serem incompletos e inconsequentes para os presentes autos.

15.º

Não existindo qualquer outro elemento de prova na PI que sustente a tese da A., fica condicionada a admissão de prova testemunhal para contrariar a declaração de extinção da obrigação, nos termos dos artigos 394.º e 395.º do C.C., devendo a R. ser liminarmente absolvida do pedido com todas as consequências legais, já em sede de saneador.
[…]” (transcrição de fls. 27/28, com o sublinhado no artigo 7º aqui acrescentado com o fim de destacar aquilo que a R. confessa ou admite neste articulado).
[4] Aqui se transcreve o pronunciamento decisório:
“[…]

Em face do exposto, julga-se a presente acção parcialmente procedente, e, em consequência, condena-se a ré S…, S.A. a pagar à autora G…, Lda. a importância de €9.666,65, acrescida de juros de mora, à taxa legal para os créditos de que sejam titulares empresas comerciais, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
[…]” (transcrição de fls. 85).
[5] V. o Acórdão do STJ de 03/06/2011 (Pereira da Silva), proferido no processo nº 527/05.8TBVNO.C1.S1, cujo sumário está disponível na base do ITIJ, directamente, no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f9dd7bb05e5140b1802578bf00470473:
Sumário:
“[…]
[O] que baliza o âmbito do recurso, tal sendo, afora as de conhecimento oficioso, as questões levadas às conclusões da alegação do recorrente, extraídas da respectiva motivação (artigos 684.º n.º 3 e 690.º n.º 1 do CPC), defeso é o conhecimento de questão não aflorada naquelas, ainda que versada no corpo alegatório.
[…]”.
[6] Note-se que o controlo desses factos nesta instância, no sentido do artigo 712º, nº 1, alínea a) do CPC, quanto à alternativa que pressupõe ter existido gravação da prova pessoal, dependia de ter ocorrido a essa gravação da audiência. Ora, isso aqui não sucedeu [v. o artigo 3º, nº 3 do Regime anexo ao Decreto-Lei nº 269/98, de 1 de Setembro, com as alterações subsequentes, a última das quais resulta, salvo erro (nos tempos que correm é sempre prudente ressalvar erros de sucessão de leis…) do Decreto-Lei nº 226/2008, de 20 de Novembro].
[7] Para sermos rigorosos na caracterização do resultado da acção face aos factos apurados, o resultado aqui alcançado expressou um non liquet (não se provou nada da asserção relevante: se quisermos, não se provou a satisfação do crédito nem a não satisfação desse crédito). Este aspecto, que adiante será ponderado, convocará no final, no julgamento da acção, uma regra cuja especial natureza é a de induzir uma decisão. Referimo-nos aqui às chamadas “regras de decisão” no quadro da “teoria das normas”, enquanto regras de organização de um procedimento decisório face a um resultado de incerteza, através da alocação do ónus da prova (do ónus da prova em sentido objectivo) a uma das partes em litígio, deduzindo-se o sentido da decisão, face à não prova, dessa alocação: decide-se contra aquele a quem o ónus estava atribuído, afirmando, com base numa ficção, o facto contrário. É o chamado argumentum ad ignorantiam, que, constituindo uma falácia na argumentação lógica em termos gerais – v. a entrada “Argument from ignorance”, na Wikipedia inglesa, no endereço:
http://en.wikipedia.org/wiki/Argument_from_ignorance  –, traduz, quanto ao acto de aplicação concreta do direito a factos, em ambiente de processo judicial, a saída para situações de resultado probatório indeterminado, face à obrigação constitucional de julgar.
Constitui a “teoria das normas” a base das “regras de decisão” que subjazem aos artigos 342º do CC e 516º do CPC. Tal teorização – a teoria das normas – tem origem nos trabalhos do processualista alemão Leo Rosenberg (1879-1963), no início do Século XX, assentando na consideração “[…] de que nenhuma norma pode ser aplicada sem que o juiz se convença da verificação de todos os seus pressupostos [, extraindo-se] daí que a recusa de aplicação sucederá tanto quando o juiz se convença da não verificação de um ou mais dos elementos da facti species (Tatbestand) da norma a aplicar, quanto quando o juiz não se convença quanto à sua não verificação. Quer isso dizer, então, que «a parte cuja pretensão processual não pode ter sucesso sem a aplicação de determinada norma jurídica suporta o ónus da alegação e da prova de que os elementos da facti species dessa norma se verificaram de facto na situação» […]” (Pedro Ferreira Múrias, Por Uma Distribuição Fundamentada do Ónus da Prova, Lisboa, 2000, pp. 18 e 43/44).
[8] Estabelece este:

Artigo 851º
Reciprocidade dos créditos
1 – A compensação apenas pode abranger a dívida do declarante, e não a de terceiro, ainda que aquele possa efectuar a prestação deste, salvo se o declarante estiver em risco de perder o que é seu em consequência de execução por dívida de terceiro.
2 – O declarante só pode utilizar para a compensação créditos que sejam seus, e não créditos alheios, ainda que o titular respectivo dê o seu consentimento; e só procedem para o efeito créditos seus contra o seu credor.
[9] V. sobre o requisito da compensação (legal) indicado como reciprocidade dos créditos a compensar, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, 3ª ed., Coimbra, 2005, pp. 10 92/193, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II, Direito das Obrigações, tomo IV, Coimbra, 2010, pp. 447/450 e Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11ª ed., Coimbra, 2008, pp. 1101/1102.

[10] Contrariamente ao que sucede no Direito italiano, cujo Código Civil, estabelecendo a “compenzazione legale”, nos artigos requisito da reciprocidade nos respectivos artigo 1241º a 1251º (diz-se no artigo 1241º: “[q]uando due persone sono obbligate l'una verso l'altra, i due debiti si estinguono per le quantità corrispondenti […]”), admite a “compenzazione voluntaria” no artigo 1252º: “[p]er volontà delle parti può avere luogo compensazione anche se non ricorrono le condizioni previste dagli articoli precedenti […] [l]e parti possono anche stabilire preventivamente le condizioni di tale compensazione”.
[11] V. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, cit., pp.489/491:
“[…]
Na compensação convencional, as partes ficam livres para dispensar os requisitos da compensação legal ou para acrescentar novos requisitos que lei não preveja: se pode haver renúncia à compensação – artigo 853º, nº 2 – também poderá a fortiori, haver dificultação.
Entre os requisitos que poderão ser dispensados, encontramos:
- a reciprocidade: desde que, naturalmente, todas as entidades envolvidas dêem o seu assentimento; temos aqui um esquema que fortalece certos créditos, dotando-os de especiais garantias;
[…]” (p. 490).
V., igualmente, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, cit. pp. 199/201:
“[…]
Ao lado da compensação legal, tem vindo a ser admitida, com base no princípio da liberdade contratual, quer pela doutrina, quer pela própria lei, a denominada compensação convencional ou contratual. Consiste esta na compensação que, em lugar de ocorrer através de uma declaração unilateral, resulta de um acordo celebrado entre as partes (o denominado contrato de compensação). Sendo este celebrado ao abrigo da autonomia privada, naturalmente que as partes já não estarão sujeitas à maior parte das dos pressupostos e limites estabelecidos para a compensação legal. Efectivamente, parece que para esta compensação se exigirá apenas que ambas as partes disponham de créditos que pretendam extinguir através do contrato, não sendo necessário que se trate de créditos recíprocos […].
[…]” (pp. 199/200).
V., enfim, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, cit., p. 1110:
“[D]entro do princípio da autonomia privada, pode estipular-se uma compensação independentemente de se verificarem os requisitos que antes se indicaram.
Esses requisitos, na verdade, tornam-se apenas necessários para que a compensação possa ser imposta por uma das partes à outra. Mas ao lado da compensação por declaração unilateral, deve admitir-se uma compensação convencional ou voluntária, baseada no acordo dos interessados e em que se prescinde de alguma ou algumas das exigências fixadas para a primeira.
[…]”.
[12] V., sobre a verdadeira natureza de confissão da declaração expressa nos articulados, José Lebre de Freitas, A Confissão no Direito Probatório, Coimbra, 1991, pp. 472/474.
[13] A desfavorabilidade do facto confessado constitui requisito da confissão e exprime, nesse sentido, a relação de legitimidade para confessar, ou seja, para produzir o efeito substantivo que a confissão envolve (v. José Lebre de Freitas, A Confissão no Direito Probatório, cit., pp. 103/109). Ora, neste caso, tendo presente o efeito pretendido pela acção (a condenação da R. no pagamento dos tambores de óleo fornecidos a esta), fica sem sentido prático – fica sem sentido prático relativamente à R. – como facto desfavorável – como facto desfavorável à R. – dizer que o pagamento ocorreria nos termos recolhidos no item 7. dos factos.
[14]                                                                          Artigo 394º

Convenções contra o conteúdo de documentos ou além deles
1 – É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373.º a 379.º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores.
2 – A proibição do número anterior aplica-se ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores.
3 – O disposto nos números anteriores não é aplicável a terceiros.
Artigo 395º
Factos extintivos da obrigação
As disposições dos artigos precedentes são aplicáveis ao cumprimento, remissão, novação, compensação e, de um modo geral, aos contratos extintivos da relação obrigacional, mas não aos factos extintivos da obrigação, quando invocados por terceiro.
[15] Estes, com efeito, não reflectem os movimentos reportados à compensação aqui acordada.
[16] V., embora se refira a recibos de salários, o Acórdão do STJ de 22/03/2007 (Mário Pereira), proferido no processo nº 06S3782, disponível na base do ITIJ, directamente, no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f37bd8a2207ebd518.
Também apresenta relevância o Acórdão do STJ de 16/04/1997 (Carvalho Pinheiro), proferido no processo nº 96S221, disponível na base do ITIJ, directamente, no endereço seguinte:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e942409a567af2b9802568fc003b442c.
Refere-se no sumário deste:
“[…]
I – É admissível prova testemunhal tendo por objecto convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo dos documentos particulares mencionados nos artigos 373 a 379 do CCIV66, quando haja um princípio de prova escrita legitimando a admissibilidade de prova testemunhal complementar, ou quando tenha sido impossível, moral ou materialmente, ao contraente obter uma prova escrita, ou quando se tenha perdido, sem culpa do contraente, o documento que fornecia a prova.
[…]”.
[17] Esta limitação à admissibilidade da prova testemunhal respeitante ao conteúdo de um documento e relativamente a um facto extintivo da obrigação envolvido nesse documento, positiva ou negativamente afirmado contra o teor desse documento, tem entre nós uma base doutrinária que é comummente aceite (v. os Acórdãos indicados na nota antecedente), decalcada do regime do artigo 2724º do Código Civil italiano (refere-se esta a “[e]xcepções à proibição de prova testemunhal”; v. o sentido desta excepção no Direito italiano, em Salvattore Patti, “Prova testimoniale. Presunzioni”, in Commentario del Codice Civile Scialoja-Branca, Bolonha, Roma, 2001, pp. 57/61).
Com efeito, entre nós, na sequência da publicação do Código Civil de 1967, Adriano Vaz Serra, sempre sublinhou a impossibilidade de um “alcance absoluto” da proibição de prova emergente dos artigos 394º e 395º do CC, por referência a uma reconstrução racional interpretativa destas disposições nos casos elencados no Direito italiano no artigo 2724º. Citando esta disposição, referia o Prof. Vaz Serra:
“[…]
 Os artigos 394º e 395º não formulam expressamente excepções às regras neles consignadas.
Mas não quer isso dizer que tais regras sejam sempre aplicáveis, pois da razão de ser destas conclui-se que não têm alcance absoluto, havendo que ressalvar algumas hipóteses em que a prova testemunhal será admissível apesar de ter por objecto uma convenção contrária ou adicional ao conteúdo do documento.
[…]” (anotação na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 103º/1970, p. 13).
[18] Apenas a título de exemplo, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/07/2006 (Oliveira Barros), proferido no processo nº 06B2102, disponível no sítio do ITIJ, directamente, no endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f95ed15902afdce680257234004d07b0.
Sumário:
“[…]
V – Enquanto facto extintivo do direito invocado pelo autor que se apresenta como credor, o pagamento integra ou constitui, consoante artigo 493º, nº3º, CPC, excepção peremptória ou de direito material.
VI – É, por conseguinte, sobre o devedor demandado que, consoante o artigo 342º, nº2º, CC, recai o ónus da prova de que esse modo de extinção da obrigação efectivamente ocorreu ou se verificou.

[…]”.
[19] Em rigor ela nunca diz na contestação que pagou ou que foi efectuada a compensação estabelecida convencionalmente.