Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
96S221
Nº Convencional: JSTJ00031756
Relator: CARVALHO PINHEIRO
Descritores: PROVA TESTEMUNHAL
ADMISSIBILIDADE
Nº do Documento: SJ199704160002214
Data do Acordão: 04/16/1997
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - TEORIA GERAL. DIR TRAB - CONTRAT INDIV TRAB.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 219 ARTIGO 393 ARTIGO 394 N1.
DL 49408 DE 1969/11/24 ARTIGO 6 ARTIGO 90.
DL 64-A/89 DE 1989/02/27 ARTIGO 42.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ PROC204/96 DE 1997/03/12.
Sumário : I - É admissível prova testemunhal tendo por objecto convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo dos documentos particulares mencionados nos artigos 373 a 379 do CCIV66, quando haja um princípio de prova escrita legitimando a admissibilidade de prova testemunhal complementar, ou quando tenha sido impossível, moral ou materialmente, ao contraente obter uma prova escrita, ou quando se tenha perdido, sem culpa do contraente, o documento que fornecia a prova.
II - Em direito laboral, a especificidade do regime que preside
à fixação da retribuição que, sendo essencial, não tem de ficar ab initio determinada, como evidencia o artigo 90 do Decreto-Lei 49408, de 24 de Novembro de 1969, não é compatível com a observância do regime probatório restritivo do artigo 394 n. 1 do CCIV66.
III - Deve, por isso, entender-se que, em processo laboral, é admissível prova testemunhal para averiguar aspectos relativos à retribuição, para além do que consta do contrato escrito de trabalho a termo certo.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I- A intentou acção declarativa de condenação com processo ordinário, emergente de contrato individual de trabalho, no Tribunal do Trabalho de Vila Franca de Xira, contra B, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia global de 4467426 escudos a título de indemnização de antiguidade, salários vencidos e vincendos, danos não patrimoniais e comissões, vencidas e vincendas, de vendas, tudo com juros de mora legais.
O Réu contestou, confessando uns factos e impugnando outros, e terminou por pedir a improcedência da acção.
Condensada e julgada a causa foi proferida sentença que, julgando a acção parcialmente procedente, condenou o Réu a pagar ao Autor as importâncias de 437500 escudos a título de comissões e 1186115 escudos a título de remunerações vencidas até ao termo do contrato, tudo com juros de mora à taxa legal desde a citação - absolvendo-o quanto ao restante pedido.
Apelou o Réu queixando-se essencialmente do uso indevido da prova testemunhal, em violação do disposto no artigo 394 n. 1 do Código Civil. Mas a Relação de
Lisboa, pelo seu Acórdão de folhas 111 e seguintes, considerando no essencial que a aplicação daquela disposição do Código Civil sofre restrições no domínio do direito laboral, negou provimento ao recurso e confirmou a sentença.
Deste Acórdão, pediu revista o Réu e formulando conclusões (em tudo idênticas às da apelação) em que desenvolve uma argumentação que não se contem na alegação. Sendo as conclusões do recurso sínteses dos fundamentos desenvolvidos na respectiva alegação (cfr.
A. Reis, "Código de Processo Civil Anotado", V, página
359), verifica-se, no caso presente uma inversão das coisas - pois é nas "conclusões" que a Parte recorrente desenvolve a fundamentação concisamente indicada na
"alegação". Daí que não possa deixar de se aludir à sua
(das conclusões) irregularidade.
Assim, considerando que, no caso presente, o Recorrente sintetizou os fundamentos do recurso (as verdadeiras conclusões) na respectiva alegação, a esta nos atemos para a indicação das "conclusões" (as ditas sínteses).
A este respeito diz o Recorrente:
- "O contrato celebrado entre o Autor e o Réu era um contrato escrito. E nele se dizia que o segundo pagaria ao primeiro "a remuneração de 53600 escudos".
- "Bem se vê que não pode este rigoroso texto do contrato compadecer-se com os factos que em resposta aos quesitos 2. (ao introduzir a expressão "pelo menos"), 6. (ao avançar com a remuneração complementar de 10 por cento sobre as vendas) e 7. (facto puramente conclusivo), foram dados como provados".
- "Tais factos, porque vão além do texto escrito do contrato, só por documento ou por confissão de parte podiam ser provados".
- "Aceites que foram com base nas testemunhas, violou-se o referido preceito e têm de ser dados como não escritos".
O Autor contra-alegou, sustentando o Acórdão recorrido.
O Ilustre Procurador-Geral Adjunto neste Supremo
Tribunal (Secção Social) emitiu douto parecer no sentido da negação da revista.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II- A questão fulcral levantada no recurso consiste em saber se, dado o disposto no artigo 394 n. 1 do Código
Civil, se podia recorrer à prova testemunhal para averiguar, no caso presente, aspectos relativos à retribuição do Autor recorrido, para além do que constava no seu contrato escrito de trabalho a termo certo.
III- Como matéria de facto provada fixou-se no Acórdão recorrido o seguinte:
1. O Réu é proprietário de um estabelecimento comercial em Lisboa no qual se dedica à venda de máquinas de diversão e seus acessórios.
2. No dia 1 de Julho de 1991 o Autor foi admitido ao serviço do Réu mediante contrato de trabalho a termo certo pelo prazo de um ano.
3. Tal contrato de trabalho renovou-se em 1 de Julho de
1992 e em 1 de Julho de 1993.
4. Por esse contrato obrigou-se o Autor a trabalhar, sob as ordens, direcção e fiscalização do Réu, com a categoria profissional de encarregado especializado no estabelecimento comercial do Réu acima referido.
5. O Autor, além de responsável por esse estabelecimento, era também vendedor de produtos que o
Réu tinha para comercializar.
6. O Réu obrigou-se ao pagamento de uma remuneração de base, mensal, de pelo menos 53600 escudos, paga 14 meses por ano.
7. O Réu fazia constar essa quantia no recibo de remunerações.
8. Essa quantia era, por força das suas diversas actualizações, relativamente de 64000 escudos.
9. O Réu obrigou-se ainda ao pagamento duma comissão no valor de 10 por cento sobre o montante das vendas realizadas pelo Autor.
10. Pelas referidas comissões de vendas o Autor recebia mensalmente, em média, 62500 escudos.
11. Em 10 de Novembro de 1993 o Réu abordou o Autor e comunicou-lhe que não necessitava da continuação dele a trabalhar no seu estabelecimento comercial.
12. E, por esse facto, deveria o Autor ficar em casa a partir desse dia.
13. O Autor fez entrega da chave da loja.
14. No dia seguinte - 11 de Novembro de 1993 - o Autor apresentou-se no seu local de trabalho.
15. Mas a loja estava fechada.
16. O mesmo sucedeu no dia 12 do mesmo mês e ano.
17. Alguns dias depois, o Réu reabriu a loja onde o
Autor trabalhava.
18. No dia 6 de Dezembro de 1993 o Autor remeteu ao Réu a carta documentada a folha 9 - à qual o Réu não respondeu - dizendo ter ficado surpreendido com a carta do Réu de 29 de Novembro anterior que lhe enviava um cheque no montante de 49885 escudos e recibo correspondente.
Segundo a referida carta do Autor, tal recibo conteria o seu salário de Novembro, com os respectivos descontos por duas faltas injustificadas; mas haveria lapso pois em 10 de Novembro de 1993 o Réu dispensara, verbalmente, os seus serviços por não mais necessitar do Autor - pelo que se dera assim uma rescisão unilateral do contrato de trabalho e sem justa causa.
Por isso - acrescentava o Autor na dita carta, continuara ele a comparecer no local de trabalho em virtude de tal facto não lhe ser comunicado por escrito.
E por outro lado - continuava o Autor nessa carta - pelo contrato de trabalho celebrado entre ambos, obrigou-se o Réu a pagar-lhe 64000 escudos + 4840 escudos de subsídio de alimentação, a que acrescia a quantia de 78867 escudos que não era mencionada nos recibos, o que perfazia 142867 escudos, aguardando o pagamento das comissões de vendas já realizadas no valor de 500000 escudos, referentes aos meses de Março a Outubro, inclusive.
19. Em 29 de Abril de 1994 o Autor dirigiu ao Réu a carta junta a folhas 12 e 13, e à Inspecção do Trabalho a carta junta a folha 15, comunicando a estas duas entidades que se despedia com justa causa, por falta de pagamento pontual das retribuições por período superior a 30 dias, uma vez que tais comportamentos do Réu tornavam imediata e praticamente impossível a relação de trabalho.
20. O Réu pagou ao Autor a quantia de 49885 escudos a título de remuneração do mês de Novembro de 1993 e a de
54093 escudos a título de subsídio de Natal desse ano de 1993.
IV
1. Insurge-se o Réu recorrente com a admissão e produção de prova testemunhal para se ultrapassar a matéria provada documentalmente pelo contrato escrito, pois - conforme escreve na sua alegação - "bem se vê que não pode este rigoroso texto do contrato compadecer-se com os factos que em resposta aos quesitos 2. (ao introduzir a expressão "pelo menos"),
6. (ao avançar com a remuneração complementar de 10 por cento sobre as vendas) e 7. (facto puramente conclusivo), foram dados como provados".
Em seu entender, "tais factos, porque vão além do texto escrito do contrato, só por documento ou por confissão de parte podiam ser provados".
E assim, "aceites que foram com base nas testemunhas, violou-se o artigo 394 do Código Civil e têm de ser dados como não escritos".
Vejamos.
Diz o artigo 394 n. 1 do Código Civil (é esta disposição que sobretudo nos interessa) que "é inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373 a 379, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores".
Resultando a inadmissibilidade da prova testemunhal contra o conteúdo de documentos autênticos, na parte em que estes têm força probatória plena, dos artigos 371 e
372 do Código Civil; e dos artigos 376 e 393, também do mesmo Código, quanto aos documentos particulares na parte em que fazem igualmente prova plena - segue-se que o referido artigo 394 se aplica aos documentos na parte em que estes não gozam de força probatória plena.
O regime consagrado nesta última disposição funda-se nos perigos da prova testemunhal e na circunstância das partes poderem reduzir a escrito as convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo do documento.
Pressupõe, pois, um sistema de igualdade tendencial entre as partes respectivas (muito diferentemente, desde já se adianta, se passam as coisas no mundo laboral, entre trabalhadores e empregadores).
Todavia a aplicação irrestrita da regra do n. 1 (tal como do n. 2) do artigo 394 pode suscitar graves iniquidades, mesmo no domínio puro do direito civil.
Por isso, conforme dá conta Vaz Serra (R.L.J. n. 107 páginas 311 e seguintes) os Códigos francês e italiano
- que consagram regra semelhante - lhe formulam várias excepções. Não obstante a formulação irrestrita da regra do n. 1 (e do n. 2) do artigo 394, Vaz Serra (e também, no seu seguimento, Mota Pinto, cfr. Colectânea
X - 1985, T 3 páginas 11 e seguintes) propugna a admissibilidade da prova testemunhal nas situações excepcionais admitidas naqueles Códigos - a) quando haja um começo ou princípio de prova por escrito; b) quando tenha sido impossível, moral ou materialmente, ao contraente obter uma prova escrita; e c) quando se tenha perdido sem culpa do contraente, o documento que fornecia a prova.
Adere-se sem hesitação a esta doutrina defendida por
Vaz Serra. Trata-se de princípios de inteira razoabilidade, conformes à ideia subjacente ao artigo
394 em causa e nomeadamente, o perigo da prova testemunhal é afastado quando haja um princípio de prova escrita, legitimando a admissibilidade duma prova testemunhal complementar.
Ora em relação às matérias dos quesitos 2, 6 e 7 - cujas respostas foram postas em causa no recurso - juntou o Autor recibos de vencimentos (na ordem dos
64000 escudos mensais - vide folhas 49 a 50 e 55 e 56) que não foram verdadeiramente impugnados pelo Réu, e ainda o documento de folha 51, subscrito por este
último, referente a comissões recebidas pelo Autor em
Janeiro e Fevereiro de 1993 (nos montantes respectivamente de 62915 escudos e 110688 escudos).
Nesta conformidade, perante tais começos de prova por escrito, tem-se como admissível a prova testemunhal complementar relativamente às matérias, de natureza retributiva, versadas nos aludidos quesitos 2, 6 e 7.
2. Se no puro âmbito do direito civil, em que se pressupõe uma igualdade, ao menos tendencial, entre as partes da relação jurídica, a solução deste caso aponta já para a admissibilidade da prova testemunhal - visto o começo da prova por escrito conseguido pelo Autor - tal solução torna-se ainda mais flagrante no domínio do direito do trabalho, dadas as suas especificidades, nomeadamente no que respeita à protecção do trabalhador. Com efeito, nas situações laborais o trabalhador não se apresenta, por princípio, numa situação de igualdade - nem sequer tendencial - face ao empregador.
Daí se entender o direito do trabalho como um sistema de normas de protecção mínima do trabalhador.
Para facilitar e incrementar a contratação laboral a lei do trabalho mantém vivo o princípio do consensualismo. O contrato de trabalho, segundo o artigo 6 da L.C.T. (regime jurídico aprovado pelo
Decreto-Lei 49408 de 24 de Novembro de 1969), "não está sujeito a qualquer formalidade, salvo quando a lei a determinar". Pode dizer-se que a forma escrita irrompe no direito do trabalho sempre que se adoptem regimes que, embora legais, enfraquecem a posição dos trabalhadores.
Um desses casos é precisamente o que respeita ao contrato de trabalho a termo (artigo 42 da L.C.C.T. - regime jurídico aprovado pelo Decreto-Lei 64-A/89 de 27 de Fevereiro).
Mas a observação da forma legal só é exigida para o núcleo do negócio (cfr. Menezes Cordeiro, "Manual de
Direito do Trabalho", 1994, página 588) e nele não se inclui o "quantum" retributivo. A sua eventual inclusão no contrato escrito já não obedece às razões subjacentes à imposição legal da forma escrita - pelo que deve ver-se pelo prisma de um mínimo garantido ao trabalhador, não impedindo os naturais desenvolvimentos do contratado a este respeito sem o espartilho da forma escrita. Na verdade, a sua eventual inclusão no contrato escrito já não obedece às razões subjacentes à imposição legal dessa forma. Não deve ser abrangido pelas regras formais estritamente aplicáveis (como excepções à regra geral do consensualismo), pois estas só se impõem nos precisos termos em que sejam prescritas, sem possibilidades de aplicação analógica ou de interpretação extensiva ou redução teleológica
(cfr. Menezes Cordeiro, obra citada, página 487).
Rege, portanto, quanto à retribuição o princípio do consensualismo (diga-se, aliás, num parêntesis, que nem sequer a falta de alguns ou de todos os requisitos exigidos pelos ns. 2 e 3 do artigo 42 da L.C.C.T. assenta a nulidade do negócio, num claro desvio à regra do artigo 219 do Código Civil. O que sucede, na hipótese mais gravosa para o empregador, é considerar-se o contrato como contrato sem termo).
Assim, se a retribuição não ficou a constar, na sua totalidade, no escrito relativo ao contrato, não se vislumbram razões para limitar os meios de prova susceptíveis de conduzir à demonstração do que, nesse
âmbito, é devido ao trabalhador contratado a termo
(neste sentido, o recente Acórdão do S.T.J. de 12 de
Março de 1997 in processo n. 204/96). O que, de certo modo, encontra apoio no artigo 90 da L.C.T. ao determinar que compete ao julgador fixar a retribuição quando as partes o não fizeram e ela não resulte das normas aplicáveis ao contrato.
Consideramos pois, tal como se escreveu no citado
Acórdão do S.T.J. de 12 de Março de 1997, que "a especificidade do regime que preside à fixação da retribuição que, sendo essencial, não tem de ficar "ab initio" determinada, como bem evidencia o transcrito artigo 90 da L.C.T., não é compatível com a observância do regime probatório restritivo do n. 1 do artigo 394 do Código Civil".
Afigura-se, assim, também, agora sob um prisma estritamente de direito laboral, ser legal a admissibilidade de prova testemunhal no caso "sub judice", nomeadamente para suporte das respostas dadas aos quesitos 2, 6 e 7.
V- Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o
Acórdão recorrido.
Custas pelo Réu recorrente.
Lisboa, 16 de Abril de 1997.
Carvalho Pinheiro,
Matos Canas,
Loureiro Pipa.