Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B2102
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA BARROS
Descritores: PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
APRECIAÇÃO DA PROVA
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
PAGAMENTO
EXCEPÇÃO PEREMPTÓRIA
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ200607060021027
Data do Acordão: 07/06/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I - Dada a limitação dos seus poderes no que respeita à matéria de facto, âmbito em que, de harmonia com o disposto nos arts.26º LOFTJ (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais - Lei nº3/99, de 13/1 ) e 722º, nº2º, e 729º, nºs 1º e 2º, CPC, só lhe é lícito intervir quando em questão prova vinculada ou o desrespeito de norma reguladora do valor legal das provas, tem-se dito que o Supremo Tribunal de Justiça não é uma 3ª instância.

II - Enquanto tribunal de revista, com competência restrita à matéria de direito, e só nos limitados termos consentidos pelo nº2º dos preditos arts.722º e 729º lhe sendo consentido que intervenha em matéria de facto, a possibilidade de debater questões de facto perante esse Tribunal confina-se ao domínio da prova vinculada, isto é, da única que a lei admite para prova do facto em causa, e ao da força probatória legalmente atribuída a determinado meio de prova.

III - Em último termo, trata-se também de questões de direito, visto que não é caso, em tais hipóteses, de apreciar as provas segundo a convicção de quem julga ( art.655º, nº1º, CPC ), mas de determinar se, para a prova de certo facto, a lei exige, ou não, determinado meio de prova, insubstituível, ou de decidir sobre se determinado meio de prova tem, ou não, à face da lei, força probatória plena do facto discutido.

IV -Por isso mesmo, o Supremo Tribunal de Justiça não pode censurar o não uso de presunções judiciais pela Relação, e está-lhe igualmente vedado recorrer a presunções judiciais, ainda que invocadas no recurso, posto que ao firmar, ou recusar firmar, por esse meio um facto desconhecido, mais se não faz que julgamento da matéria de facto.

V - Enquanto facto extintivo do direito invocado pelo autor que se apresenta como credor, o pagamento integra ou constitui, consoante art.493º, nº3º, CPC, excepção peremptória ou de direito material.

VI - É, por conseguinte, sobre o devedor demandado que, consoante art.342º, nº2º, C.Civ., recai o ónus da prova de que esse modo de extinção da obrigação efectivamente ocorreu ou se verificou.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça :


Em 10/2/2004, Empresa-A, que litiga com benefício de apoio judiciário nas modalidades da dispensa total do pagamento de taxa de justiça e de pagamento de honorários a patrono escolhido, invocando como fundamento dessa pretensão o fornecimento ao requerido de bens ou serviços correspondentes a 18 facturas emitidas entre 17/5 e 17/12/2002, apresentou, ao abrigo do DL 32/2003, de 17/2, no Tribunal de Vila Nova de Gaia, requerimento de injunção contra AA, tendo em vista o pagamento, em cumprimento das obrigações emergentes das transacções comerciais nelas reflectidas, da quantia de € 17.303,11, preço global das mesmas, a que acrescem juros de mora vencidos entre 17/5/2002 e 10/2/2004, no valor de € 2.908.

Foi deduzida oposição fundada no pagamento do fio fornecido através do endosso de duas letras no valor total de € 11.864,99, na prestação de serviços ( de acabamento de peúgas ) no valor de € 4.932,55, e na venda, também à requerente, de 200 dúzias de peúgas ( tipo pescador ) por € 1. 023,40, no total não recebido de € 5.955,55. Perfazendo as preditas importâncias o montante de € 17.820,88, o requerido nada, segundo alega, deveria à requerente, que, ela, sim, lhe deveria ainda € 517,77 ( € 17.820,88 - € 17.303,11 ).

Apresentados à distribuição, estes autos foram distribuídos à 2ª Vara Mista do tribunal referido.

Para tanto notificada em cumprimento de despacho judicial, em resposta à excepção de pagamento, a requerente confirmou o endosso das letras aludidas, sustentando, porém, que se destinaram ao pagamento de dívidas anteriores, e negou o outrossim alegado fornecimento de bens e serviços.

Arguida, porque nas injunções não há lugar a resposta, a nulidade processual correspondente, essa reclamação foi indeferida, por despacho que transitou em julgado.

A final do julgamento, foi em 26/4/2005, proferida sentença em que se julgaram provados os factos que seguem :

- Mediante acordo entre a requerente e o requerido, aquela forneceu a este o material a que respeitam as facturas nºs 2939, 2951, 2958, 2963, 2971, 2978, 2988, 2995, 3002, 3014, 3021, 3024, 3030, 3036, 3043, 3045, 3060 e 3081, de 17/5, 11 e 21/6, 9 ,12 e 23/7, 9/8, 3, 9, 21 e 26/9, 1, 7, 15, 25 e 29/10, 28/11 e 17/12/2002, pelo preço total de € 17.303,11.

- Para pagamento de fornecimentos efectuados pela requerente, o requerido endossou à requerente duas letras de câmbio, no valor de € 4.642,80 e € 7.222,13, em que figura como sacado Empresa-B ( cfr. docs. a fls.64 ).

- Mediante acordo entre a requerente e o requerido, este forneceu àquela peúgas.

Estes, apenas, os factos apurados, julgou-se não provado o pagamento excepcionado, por não demonstrado que o endosso das letras se destinou a extinguir as obrigações emergentes dos fornecimentos em causa, e não verificar-se também a efectiva ocorrência de qualquer outro modo de extinção da obrigação do requerido, designadamente a compensação regulada no art.847º ss C. Civ., por não demonstrada a existência de um crédito daquele sobre a requerente.

Então entendido estar-se perante contrato de compra e venda comercial, conforme arts.874º C. Civ. e 463.º, nº 1º, C.Com., a acção foi, face ao disposto nos arts.342º, nº2º, 406º, nº1º, 798º, 799º, nº1º, 804º, nº1º, art.805º, nº1º, 806º, nºs 1º e 2º, 817º e 879º C.Civ., julgada parcialmente procedente, tendo o requerido sido condenado no pedido principal, isto é, a pagar à requerente a pedida quantia de € 17.303,11, mas com juros de mora, nos termos do art.102.º C.Com., à taxa supletiva relativa aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, tão só desde a citação até efectivo e integral pagamento. No respeitante ao pedido acessório de juros moratórios, considerou-se serem apenas devidos desde a data da citação visto não ter-se provado, nem, aliás, alegado, qualquer data legalmente relevante para operar a constituição em mora, como seria o caso de data acordada para o pagamento, ou de interpelação extrajudicial, ou da recepção das facturas, ou do fornecimento dos materiais, tudo conforme arts.805º C.Civ. e 4º do DL 32/2003, de 17/2.

Essa sentença foi confirmada por acórdão da Relação do Porto de 16/1/2006, que julgou improcedente a apelação do requerido. É dessa decisão que vem pedida revista.

Em fecho da alegação respectiva, o recorrente deduz 8 conclusões, de que resulta que as questões a resolver neste recurso - cfr. a este respeito arts.713º, nº2º, e 726º CPC-, são, novamente, primeiro, a da arguida deficiência da fundamentação da decisão de facto adiantada na 1ª instância, depois, a da não consideração de presunção assente nas regras da experiência(1) no sentido de que os endossos aludidos se destinavam ao pagamento dos fornecimentos em causa neste procedimento, a que deverá acrescer o valor do negado, mas provado, fornecimento de peúgas, e, finalmente, a do ónus da prova da imputação do pagamento efectuado mediante os falados endossos.

São dados por violados os arts.342º, nº2º, C.Civ. e 655º, nº1º, CPC.

Houve contra-alegação, e, corridos os vistos legais, cumpre decidir.

Como resulta do adiante considerado, a matéria de facto a ter em conta é, na realidade, apenas a fixada pelas instâncias, já transcrita no relatório deste acórdão, e que, por conseguinte, seria ocioso repetir. Apreciando, então, e decidindo :

1ª questão : deficiência da fundamentação da decisão de facto :

Como de imediato referido no acórdão recorrido, é questão regulada nos arts.653º, nº2º, e 712º, nº 5º, CPC, que, aliás, transcreve. Basta, agora, recordar, ainda, o nº6º, deste último, e fazer, por fim, notar nada ter que ver com a reclamada deficiência da fundamentação da decisão de facto o erro de julgamento que, afinal, na realidade se assaca a essa decisão. Com efeito, o que nela se censura é o facto de não ter acolhido a presunção natural, judicial, simples ou hominis, admitida pelos arts.349º e 351º C.Civ., que o recorrente sustenta impor-se, nas concretas circunstâncias do caso dos autos, face às denominadas regras da experiência, no sentido de que os endossos aludidos se destinavam ao pagamento dos fornecimentos em causa neste procedimento. Pois bem :

2ª questão : presunção assente nas regras da experiência :

Dada a limitação dos seus poderes no que respeita à matéria de facto, âmbito em que, de harmonia com o disposto nos arts.26º LOFTJ ( Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais - Lei nº3/99, de 13/1 ) e 722º, nº2º, e 729º, nºs 1º e 2º, CPC, só lhe é lícito intervir quando em questão prova vinculada ou o desrespeito de norma reguladora do valor legal das provas, tem-se dito que este Tribunal não é uma 3ª instância (2) . Na verdade :

Enquanto tribunal de revista, com competência restrita à matéria de direito, e só nos limitados termos consentidos pelo nº2º dos preditos arts.722º e 729º lhe sendo consentido que intervenha em matéria de facto, a possibilidade de debater questões de facto perante este Tribunal confina-se ao domínio da prova vinculada, isto é, da única que a lei admite para prova do facto em causa, e ao da força probatória legalmente atribuída a determinado meio de prova.

Em último termo, trata-se também de questões de direito, visto que não é caso, em tais hipóteses, de apreciar as provas segundo a convicção de quem julga ( art.655º, nº1º, CPC), mas de determinar se, para a prova de certo facto, a lei exige, ou não, determinado meio de prova, insubstituível, ou de decidir sobre se determinado meio de prova tem, ou não, à face da lei, força probatória plena do facto discutido (3).

Por isso mesmo, este Tribunal não pode, censurar o não uso de presunções judiciais pela Relação (4); e está-lhe igualmente vedado recorrer a presunções judiciais, ainda que invocadas no recurso, posto que ao firmar, ou recusar firmar, por esse meio um facto desconhecido, mais se não faz que julgamento da matéria de facto (5).

3ª questão : ónus da prova do pagamento :

Como de imediato resulta da epígrafe - " Causas de extinção das obrigações além do cumprimento " - do Capítulo VIII do Título I do Livro II do Código Civil, o cumprimento é um modo de extinção das obrigações.

Enquanto facto extintivo do direito invocado pelo autor que se apresenta como credor, integra ou constitui, consoante art.493º, nº3º, CPC, excepção peremptória ou de direito material.

É, por conseguinte, sobre o devedor demandado que, consoante art.342º, nº2º, C.Civ., recai o ónus da prova de que esse modo de extinção da obrigação efectivamente ocorreu ou se verificou.

É, por outro lado, corrente a afirmação de que o pagamento, - modo de dizer cumprimento quando em causa obrigações pecuniárias -, em direito, não se presume. Com efeito, na lição de Galvão Telles, " Direito das Obrigações ", 6ª ed. (1989), 327, " o cumprimento não é, em regra, objecto de presunção legal. Como se costuma dizer, " o pagamento em direito não se presume ". Daí a necessidade de o devedor o provar, como facto extintivo que é da obrigação. "(6).

Cabia, pois, ao ora recorrente provar que os endossos excepcionados se destinaram realmente a pagar os fornecimentos em questão - o que as instâncias julgaram não ter-se provado (7).

Breve, deste modo, se alcança a decisão que segue :

Nega-se a revista.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 6 de Julho de 2006
Oliveira Barros - relator
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
-----------------------------------------------------
(1) Designadamente relativas aos hábitos comerciais, que, atentas as necessidades do comércio, não consentem grandes dilações no pagamento.
(2) Tal sendo, enfim, o que já punha a claro Alberto dos Reis, " Anotado ", VI, 28.

(3) V., v.g., Ac. STJ de 11/10/2001 no Proc.nº2492/01 desta Secção, com sumário na pág.308 ( 1ª col.-1º- II e III ) da Edição Anual de 2001 dos Sumários de Acórdãos Cíveis deste Tribunal organizada pelo Gabinete dos Juízes Assessores do mesmo.

(4) V., v.g., Ac.STJ de 9/3/95, BMJ 445/424-VI

(5) V., neste sentido, acórdãos desta Secção, de 19/3/2002, no Proc.nº656/02, e da 2ª Secção, de 26/1/2006, no Proc.nº 4252/05.
(6) Que o ónus da prova do pagamento compete ao devedor é o igualmente esclarecido em Ac.STJ de 15/11/95, BMJ 451/378-IV.

(7) Segundo a Relação, numa relação comercial continuada, como é o caso, em que, na (con)sequência de sucessivos fornecimentos e pagamentos, se geram saldos, devedores ou credores, os pagamentos efectuados visam normalmente os saldos devedores assim gerados.