Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5401/16.0T8VIS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: LIVRANÇA
TÍTULO EXECUTIVO
CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS
CRÉDITO AO CONSUMO
EXCLUSÃO DE CLÁUSULAS CONTRATUAIS
Data do Acordão: 09/28/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE VISEU – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 48º, 49º, 77º E 78º DA LULL; 703º, Nº 1, AL. C) DO NCPC; DL Nº 446/85, DE 25/10.
Sumário: I – A livrança consubstancia título de crédito que se encaixa na previsão do artº 703, nº 1, c), do NCPC (cfr. al. c) do n.º 1 do art˚. 46º do pretérito CPC).

II - Sendo o subscritor da livrança, responsável da mesma forma que o aceitante de uma letra (artº 78º da LEI UNIFORME RELATIVA A LETRAS E LIVRANÇAS) sobre aquele tem, o portador inicial, no caso de falta de pagamento, um direito de ação resultante da livrança, em relação a tudo que pode ser exigido nos termos dos artigos 48.º e 49.º (artº 77 da LULL).

III – No contrato de crédito ao consumo, porque “...o consumidor se limita a aderir ao ali estipulado sem prévia negociação, sendo, por isso, um contrato de adesão”, está também sujeito ao regime jurídico das cláusulas contratuais gerais consagrado no DL nº 446/85, de 25 de Outubro, com as posteriores alterações dos DL nº 220/95, de 31 de Agosto, e DL nº 249/99, de 7 de Julho, instituído para protecção do consumidor, contraente mais fraco e desprotegido.

IV - A lei, nos artºs 5º e 6º do referido DL 446/85, impõe um especial dever de comunicação e esclarecimento por parte do contratante proponente.

V - Assim, recai sobre o concedente do crédito, enquanto parte que se prevalece de cláusulas contratuais gerais, o dever de comunicar o conteúdo das cláusulas na íntegra aos contraentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las. Devendo esta comunicação, nos termos do art. 5.º, n.ºs 1 e 2, do Dec. Lei n.º 445/85, ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência.

VI - E, de acordo com o n.º 3 do art. 5.º do Dec. Lei n.º 445/85, o ónus da comunicação adequada e efectiva cabe ao contraente que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais.

VII - Nos termos do art. 8.º, als. a) e b), do Dec. Lei n.º 445/85, consideram-se excluídas dos contratos singulares as cláusulas que não tenham sido comunicadas nos termos do art. 5.º, ou que tenham sido comunicadas com violação do dever de informação de modo a que não seja de esperar o conhecimento efectivo.

VIII - De acordo com o artigo 8.º, alíneas c) e d), do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, consideram-se excluídas dos contratos singulares: c) As cláusulas que, pelo contexto em que surjam, pela epígrafe que as precede ou pela sua apresentação gráfica, passem despercebidas a um contratante normal, colocado na posição do contratante real; d) As cláusulas inseridas em formulários, depois da assinatura de algum dos contratantes.

IX - O legislador teve especiais cautelas nesta matéria, estabelecendo como que uma presunção de que tudo o que esteja clausulado para além da assinatura do aderente não obteve o seu acordo.

X - É nosso julgamento que as condições gerais (constantes de fls. 56 dos autos), mostrando-se incluídas no verso do contrato em apreço e após a assinatura do mesmo pelos mutuários, não obstante o seu declarado conhecimento pelos mesmos, se devem ter como excluídas do contrato de financiamento em apreço nos autos, sendo, por isso, tidas como inexistentes e, obviamente, não vinculativas para os mutuários e ora executados.

XI - As condições gerais do contrato subjacente à emissão da livrança terão, pois, de se considerar excluídas do mesmo, tal como resulta do artigo 8.º, alínea d) do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, e com elas cairá, como é bom de ver, o respetivo título executivo, dado que se trata de uma livrança em branco em relação à qual não existe acordo de preenchimento.

Decisão Texto Integral:







Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra1:
I - A) - 1) – A “S... – Instituição Financeira de Crédito, S.A.,”, com base em livrança no valor de 8.211,63 €, instaurou, em 26 de Outubro de 2016, contra C... e T..., execução sumária, para pagamento de quantia certa, execução essa a que, por apenso, os referidos demandados se vieram opor, a 13/11/2018, mediante embargos de executado.
2) – 2«[…] Para tanto, os embargantes alegam que desconheciam a existência da livrança dada à execução, sendo leigos em matérias cambiárias e que, embora a mesma contenha a sua assinatura, assinaram-na em branco, sem lerem e sem lhes terem sido explicados, informados e comunicadas as respectivas cláusulas contratuais gerais dos contratos celebrados. Acrescentam também os embargantes que celebraram um contrato de mútuo para aquisição de um veículo, do qual não têm cópia, pelo que o mesmo é nulo.
Por fim, argumentam os embargantes que a livrança foi abusivamente preenchida, dado que não corresponde à sua vontade, nem os mesmos deram o seu acordo para assim ser preenchida, que a mesma não preenche os requisitos legais, não há protesto e se verifica prescrição, quer quanto ao prazo para ser apresentada a pagamento, quer quanto ao direito de acção, quer quanto à divida, nos termos do artigo 310.º do CC.
Pedem, então, os embargantes que se julguem procedentes as excepções invocadas e seja extinta a execução em conformidade.
A exequente contestou os embargos, conforme melhor se colhe do teor do respectivo articulado que aqui se reproduz por brevidade de exposição, pugnando pela improcedência das pretensões dos executados, ora embargantes e defendendo que os mesmos actuam em abuso de direito.
*

Proferiu-se despacho saneador onde se conheceu a arguida excepção de prescrição da acção cambiária no sentido da sua improcedência, tendo sido fixado o objecto do litígio e os temas da prova. […]».
*

B) - Realizada a audiência final, veio, em 04/06/2019, a ser proferida sentença pelo Juízo de Execução de Viseu (Juiz 1), na qual, julgando-se os embargos procedentes, declarou-se extinta a execução.
II - Inconformada, a Exequente recorreu dessa decisão, tendo terminado as alegações desse recurso - que veio a ser admitido como Apelação, a subir de imediato e com efeito meramente devolutivo -, oferecendo as seguintes conclusões3:
...
*

Os Apelados, na resposta à alegação de recurso, defenderam a improcedência deste e a confirmação da decisão recorrida.
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III - As questões:

Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1, ambos do novo Código de Processo Civil - doravante NCPC4 - o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal.
Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, “questões”, para efeito do disposto no n.º 2 do artº 608º do NCPC, são apenas as que se reconduzem aos pedidos deduzidos, às causas de pedir, às excepções invocadas e às excepções de que oficiosamente cumpra conhecer, não podendo merecer tal classificação o que meramente são invocações, “considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes”5 e que o Tribunal, embora possa abordar para um maior esclarecimento das partes, não está obrigado a apreciar.
Como o recorrente pode circunscrever, expressa ou tacitamente, o âmbito de recurso, às questões que queira ver apreciadas pelo Tribunal “ad quem”, v.g. excluindo as restantes das respectivas “conclusões” (art.º s 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1, ambos do NCPC), sendo estas, como se disse, que delimitam tal âmbito, é destituída de relevância a questão que, embora haja sido suscitada nas alegações, não conste das conclusões.6
Salienta-se, pois, desde já, que, embora a Apelante verse, no corpo da sua alegação, a alteração da decisão proferida quanto à matéria de facto, na medida em que a não incluiu, depois, nas “conclusões”, deixou-a excluída do objecto do recurso e, como tal - porque não se trata de questão de conhecimento oficioso - do âmbito da apreciação desta Relação.
Assim, para além das nulidades que o Apelante imputa à sentença, importará apurar se foi acertada a decisão de julgar os embargos procedentes e, em consequência, declarar a extinção da execução.

IV - A) - O Tribunal “a quo”, no saneador-sentença, considerou o seguinte quanto à matéria de facto, sob a epígrafe “II. Fundamentação de Facto”:

«[…] Dos factos provados, com interesse para a decisão dos presentes embargos:
1. A exequente é portadora de uma livrança, no valor de €8.211,63 com data de emissão aposta de 21.05.2014, vencida em 11.06.2014, subscrita por C... e T..., por conta do contrato ...
2. A Exequente celebrou com C... e T..., em 24/04/2008, um contrato de crédito com o n.º..., o qual teve por objecto o financiamento total de €16.059,16, para aquisição do veículo automóvel de marca Mercedes- Benz, com a matrícula ..., em conformidade com o documento junto a fls. 27 e verso dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
3. Nos termos do mencionado contrato foi convencionado que os mutuários, ora embargantes, reembolsariam o montante mutuado em 60 prestações mensais, iguais e sucessivas, no montante de €264,98 cada, ocorrendo o vencimento da 1.ª prestação em 08.06.2008.
4. A aludida livrança foi subscrita aquando da celebração do contrato aludido em 2., tendo ficado com os demais espaços de preenchimento em branco.
5. Os embargantes liquidaram 28 prestações do aludido contrato.

6. Aquando da celebração do contrato aludido em 2., o mesmo foi celebrado em duas vias, sendo o original constituído por uma folha com duas páginas de verso e anverso, em que a página de rosto, que é a página 1/2, é a página onde constam as condições gerais, e o anverso é a página 2/2, onde constam as condições particulares.
7. Nas condições particulares do contrato de crédito aludido em 2, consta a seguinte declaração, colocada antes da assinatura dos clientes/mutuários “O(s) Cliente(s) declara(m) conhecer todas as condições e cláusulas do presente contrato de crédito (composto pelas presentes Condições

particulares e pelas Condições Gerais constantes do verso ou de anexo ao presente documento), sobre as quais foi/foram devidamente informado(s), tanto por lhe(s) ter sido dar a ler, como por ter lhe(s) sido fornecido um exemplar do mesmo no momento da sua assinatura”.
8. Do teor da Cláusula 10ª das Condições Gerais do Contrato resulta o seguinte: “O Cliente e, se aplicável, o (s) respectivos Avalista (s) autorizam a S... a preencher, caso exista, qualquer livrança ou outro documento ou garantia por si subscrito / avalizado e não integralmente preenchido, designadamente no que se refere à data de vencimento, ao local de pagamento e aos valores, até ao limite das responsabilidades assumidas pelo (s) Cliente / Avalista (s) perante a S... por força do presente contrato, e em dívida na data do vencimento, acrescido de todos e quaisquer encargos com a selagem de títulos. A S... apenas poderá preencher o título de crédito referido na presente cláusula desde que se verifique o incumprimento definitivo por parte do cliente.”
9. Quer antes da assinatura do contrato, quer depois, os Embargantes nunca solicitaram quaisquer esclarecimentos acerca de qualquer cláusula que fosse à embargada.
10. Os Embargantes detinham prazo para revogar o contrato após a assinatura do mesmo, prazo esse a que renunciaram, nos termos da declaração junta a fls. 28 dos autos que aqui se tem por integralmente reproduzida para todos os devidos e legais efeitos.
11. Os Embargantes autorizam o débito em conta para débito das respectivas prestações.
12. Os Embargantes foram por diversas vezes contactados pela Exequente para regularizar as prestações em atraso, apresentando sucessivas promessas de pagamento.

13. A Exequente/Embargada, através de carta registada com aviso de recepção datada de 03.03.2011 concedeu aos ora Executados/Embargantes um prazo suplementar de 15 dias úteis para liquidar os valores em dívida, à data computados em Eur.: 1.617,10€, findo o qual a mora se convertia em incumprimento definitivo, em conformidade com o teor do documento junto a fls. 29 dos autos cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
14. Tais cartas não foram recebidas conforme se constata do respectivo A/R, com a menção de “Objecto não reclamado.
15. Os Executados efectuaram os seguintes pagamentos: em 30-set-2011, 1046,88 €; em 30-ago-2011, 1050,00€; em 01-ago-2011, 1050,00€, em 30- jun-2011, 1050,00€ e em 08-abr-2011 a quantia de 669,53 €.
16. Em 21 de Maio de 2014 a embargada enviou aos embargantes, carta simples, onde lhes comunicava que considerava definitivamente incumprido o contrato e que iria completar o preenchimento da livrança pelo valor global de €8.211,63, com vencimento em 11.06.2014, tudo em conformidade com o documento junto a fls. 32 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

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Dos Factos Não Provados:

a) que a circunstância de o contrato ter a página de rosto, que é a página ½, onde constam as condições gerais e o anverso a página 2/2, com as condições particulares, levava a que os embargantes lessem todo o clausulado do contrato antes de o assinarem;
b) que o executado marido, à data da celebração do contrato, estava inscrito como empresário em nome individual;.».

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B) - A livrança consubstancia título de crédito que se encaixa na previsão do artº 703, nº 1, c), do NCPC (cfr. al. c) do n.º 1 do art˚. 46º do pretérito CPC). Sendo o subscritor da livrança, responsável da mesma forma que o aceitante de uma letra (artº 78º da LEI UNIFORME RELATIVA A LETRAS E LIVRANÇAS) sobre aquele tem, o portador inicial, no caso de falta de pagamento, um direito de acção resultante da livrança, em relação a tudo que pode ser exigido nos termos dos artigos 48.º e 49.º (artº 77 da LULL).
Como se diz no Acórdão do STJ de 13/03/2007 (Revista n.º 07A202): «[…]A livrança em branco, cuja admissibilidade resulta dos arts 10 e 77 da LULL, destina-se normalmente a ser preenchida pelo seu adquirente imediato ou posterior, sendo a sua entrega acompanhada de poderes para o seu preenchimento, de acordo com o denominado “pacto ou acordo de preenchimento […]».
O contrato de preenchimento é o acto pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, o lugar do pagamento, a estipulação de juros, etc.
Tal acordo pode ser expresso ou tácito consoante as partes estipulem certos termos em concreto, ou apenas se encontrem implícitos nas cláusulas subjacentes à emissão do título.
A oposição à acção executiva fundada em livrança apresenta-se como contra-execução com o escopo da declaração da sua extinção (parcial, ao menos), que pode ser alicerçada, não só nos fundamentos previstos no art.º 729º do NCPC, na parte em que sejam aplicáveis, como, também, em quaisquer outros que possam ser invocados no processo de declaração.
Como se entendeu no já citado Acórdão da Relação de Lisboa, de 05 de Junho de 2008, no contrato de crédito ao consumo, porque “...o consumidor se limita a aderir ao ali estipulado sem prévia negociação, sendo, por isso, um contrato de adesão, está também sujeito ao regime jurídico das cláusulas contratuais gerais consagrado no DL nº 446/85, de 25 de Outubro, com as posteriores alterações dos DL nº 220/95, de 31 de Agosto, e DL nº 249/99, de 7 de Julho, instituído para protecção do consumidor, contraente mais fraco e desprotegido.”.

Ora, a lei, nos artºs 5º e 6º do referido DL 446/85, impõe um especial dever de comunicação e esclarecimento por parte do contratante proponente.
Assim, recai sobre o concedente do crédito, enquanto parte que se prevalece de cláusulas contratuais gerais, o dever de comunicar o conteúdo das cláusulas na íntegra aos contraentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las. Devendo esta comunicação, nos termos do art. 5.º, n.ºs 1 e 2, do Dec. Lei n.º 445/85, ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência. Trata-se de assegurar o exercício efectivo e eficaz da autonomia privada, o qual pressupõe uma vontade bem formada e correctamente formulada do aderente e, assim, uma informação completa e verdadeira das cláusulas insertas nos contratos. E, de acordo com o n.º 3 do art. 5.º do Dec. Lei n.º 445/85, o ónus da comunicação adequada e efectiva cabe ao contraente que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais.
Acresce que, nos termos do art. 6.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 445/85, o proponente deve informar o aderente, de acordo com as circunstâncias, dos aspectos compreendidos nas cláusulas contratuais gerais cuja aclaração de justifique. Ou seja, impõe-se que, durante a fase pré-contratual, sejam não apenas comunicadas as cláusulas pré-elaboradas, mas também prestados todos os esclarecimentos necessários ao exercício idóneo da autonomia privada.
Sendo que, nos termos do art. 8.º, als. a) e b), do Dec. Lei n.º 445/85, se consideram excluídas dos contratos singulares as cláusulas que não tenham sido comunicadas nos termos do art. 5.º, ou que tenham sido comunicadas com violação do dever de informação de modo a que não seja de esperar o conhecimento efectivo.
É certo que, conforme se salienta no Acórdão da Relação do Porto de 13/3/20037, citando-se Teixeira de Sousa - “Acção executiva Singular”, pág. 177 - «Nos embargos de executado, a distribuição do ónus da prova observa as regras gerais sobre esta matéria, pelo que cabe ao executado embargante a prova dos fundamentos alegados (art. 342º, n.º 1, do CC), dado que estes são factos constitutivos da oposição deduzida.».
Mas, no caso particular das cláusulas gerais contratuais, porque se estabelece um regime específico quanto ao ónus da prova dos deveres de informação e de comunicação adequada e efectiva, a cargo do contratante que submeta a outrem tais cláusulas (citados Artºs 5º e 6º do DL nº 446/85, de 25/10), este ónus deve ser respeitado também em sede de oposição à execução.
Ora, na sentença recorrida escreveu-se, designadamente: «[…] os embargantes também vêm defender que não deram o seu acordo ao preenchimento da livrança e esta alegação levanta outra questão que se prende com a notória falta de assinatura dos embargantes no rosto do aludido contrato, local onde consta a cláusula 10.ª das condições gerais do contrato dada como assente em 8.
Sabemos que o clausulado geral do contrato faz parte de um documento que é composto de duas páginas, e que os embargantes só assinam no verso dessa página, onde constam as condições particulares do negócio.
De acordo com o artigo 8.º, alíneas c) e d) do Decreto-Lei n.º 446/85 de 25 de Outubro Consideram-se excluídas dos contratos singulares: c) As cláusulas que, pelo contexto em que surjam, pela epígrafe que as precede ou pela sua apresentação gráfica, passem despercebidas a um contratante normal, colocado na posição do contratante real; d) As cláusulas inseridas em formulários, depois da assinatura de algum dos contratantes.
A propósito destas alíneas c) e d) referem Mário Júlio de Almeida Costa e António Menezes Cordeiro (…) que também se afastam dos contratos singulares as cláusulas ditas de surpresa, isto é, aquelas que, em consequência do seu contexto, da sua epígrafe ou da sua apresentação gráfica, passem despercebidas a um destinatário normal e, ainda, as cláusulas inseridas em formulários após a assinatura de algum dos contratantes – alíneas c) e d). Ponderou-se que, nesses dois casos, o circunstancialismo exterior da celebração contratual é manifesto no sentido da inexistência de mútuo consenso das partes sobre o conteúdo das cláusulas».
O cerne do problema situa-se, pois, na interpretação da norma e designadamente no que respeita ao significado do advérbio «depois»: se se refere ao espaço (colocação no escrito em local abaixo ou além da assinatura) ou ao tempo (momento posterior à assinatura).
Este contrato é composto por duas folhas, uma com as condições particulares e outras com as condições gerais, mas é na folha das condições gerais que se encontra a autorização para preenchimento da livrança dada em garantia e essa folha não contém qualquer rúbrica ou assinatura dos embargantes.
Conhecer ou ter a possibilidade de conhecer determinadas cláusulas não se pode confundir e não pode postergar a exigência legal de aposição da respectiva assinatura depois do texto que contém os termos em que as partes acordaram.
O legislador teve especiais cautelas nesta matéria estabelecendo como que uma presunção de que tudo o que esteja clausulado para além da assinatura do aderente não obteve o seu acordo.
Ora, com particular relevância para a nossa execução, dado que a mesma assenta numa livrança, verificamos que o acordo de preenchimento da mesma (encerrado numa cláusula das condições gerais) não tem qualquer assinatura dos embargantes e na declaração que os mesmos emitem «O(s) Cliente(s) declara(m) conhecer todas as condições e cláusulas do presente contrato de crédito (composto pelas presentes Condições Particulares e pelas Condições Gerais constantes do verso ou de anexo ao presente documento), sobre as quais foi/foram devidamente informado(s), tanto por lhe(s) ter sido dado a ler, como por lhe(s) ter sido fornecido um exemplar do mesmo no momento da sua assinatura», não há qualquer referência expressa ou anuência ao futuro preenchimento da livrança (conhecer não é autorizar).

Como se fez constar na fundamentação do recente Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 04.02.2016 (…), com o qual, com a devida vénia, concordamos integralmente, “A assinatura que valida um contrato, uma vontade contratual, é a assinatura por baixo da expressão escrita dessa mesma vontade.
Daí que a lei - que quer proteger a genuinidade da vontade contratual de alguém a quem, sem possibilidade de discussão, se apresenta um enumerado [...] de condições contratuais que não pôde negociar mas a que se sujeita porque quer contratar – tenha o cuidado de validar apenas as cláusulas que estão antes da assinatura, considerando excluídas todas aquelas que aparecem depois. […] Desta forma e sufragando nós a doutrina e jurisprudência a que antes se fez referência, é nosso julgamento que as condições gerais (constantes de fls. 56 dos autos), mostrando-se incluídas no verso do contrato em apreço e após a assinatura do mesmo pelos mutuários, não obstante o seu declarado conhecimento pelos mesmos, se devem ter como excluídas do contrato de financiamento em apreço nos autos, sendo, por isso, tidas como inexistentes e, obviamente, não vinculativas para os mutuários e ora executados.
As condições gerais do contrato subjacente à emissão da livrança terão, pois, de se considerar excluídas do mesmo, tal como resulta do artigo 8.º, alínea d) do Decreto-Lei n.º 446/85 de 25 de Outubro e com elas cairá, como é bom de ver, o respectivo título executivo dado que se trata de uma livrança em branco em relação à qual não existe acordo de preenchimento.
A cláusula 10.ª - de onde resultava que o cliente autorizava a S... a preencher, caso exista, qualquer livrança ou outro documento ou garantia por si subscrito/ avalizado e não integralmente preenchido, designadamente no que se refere à data de vencimento, ao local de pagamento e aos valores, até ao limite das responsabilidades assumidas pelo(s) Cliente/ Avalista(s) perante a S... por força do presente contrato, e em dívida na data do vencimento, acrescido de todos e quaisquer encargos com a selagem dos títulos – ao ser excluída do contrato, deixa a embargada sem suporte para definir a obrigação cambiária.
Como se concluiu no mencionado aresto, a causa de emissão da livrança exequenda foi, como se deixou já dito, o contrato de financiamento para aquisição a crédito outorgado entre as partes. Destarte, tendo-se como excluídas do dito contrato de financiamento (relação subjacente à emissão da livrança exequenda) todas as condições gerais do mesmo (e constantes de fls. 56 dos autos), nelas se incluindo as cláusulas 9ª e 10ª (e que autorizavam o preenchimento da livrança exequenda), por via desta [...] exclusão, carece de suporte o preenchimento do título levado a cabo pela exequente, e, logicamente, este último título deixa de revestir validade para dispor de força executiva, não podendo, por isso, prosseguir a execução (sem prejuízo de se manter a relação de financiamento/mútuo a ela subjacente - a discutir em outra sede). […]».
Ora, merece a nossa concordância este entendimento, sendo mister salientar os seguintes trechos do citado Acórdão da Relação de Guimarães, de 04.02.2016 (Apelação nº 8732/12.4TBBRG-A.G1), cuja doutrina foi acolhida na sentença “sub judice”:
«[…] além de considerar excluídas do contrato as cláusulas contratuais relativamente às quais a proponente não venha a lograr demonstrar o cumprimento dos aludidos deveres de comunicação e informação sobre o clausulado (art. 8º, als. a)- e b)- do citado DL n.º 446/85), o legislador nacional foi mais longe, numa perspectiva de protecção do consumidor, ao consagrar sob a alínea d)- do mesmo art. 8º que se consideram excluídas do contrato «as cláusulas inseridas em formulários, depois da assinatura de algum dos contraentes.»
(…)

Com efeito, é de notar que o contrato de financiamento (tal como consta dos autos) é composto por uma primeira folha (a fls. 55 dos autos), que contém as condições particulares do contrato de financiamento para aquisição a crédito, e por uma segunda folha (a fls. 56 dos autos), que contém as condições gerais do mesmo [...] financiamento e onde, nomeadamente, se prevêm a autorização para preenchimento da livrança dada em garantia e as condições do preenchimento do dito título de crédito dado à presente execução.
Todavia, é de notar que apenas o conteúdo do contrato a fls. 55, contendo as condições particulares, se mostra assinado pelos mutuários, ao passo que no documento seguinte, a fls. 56 - que será o verso do contrato, sendo a primeira folha o respectivo rosto -, contendo as condições gerais do financiamento, não figura uma qualquer assinatura dos mutuários.
Em suma, como bem se alcança do exposto, as condições gerais do contrato de financiamento encontram-se inseridas/colocadas após a assinatura pelos mutuários.
É certo, todavia, que os mesmos mutuários declararam no rosto do contrato (ou seja a fls. 55, que contém a sua assinatura) «conhecerem todas as condições e cláusulas do presente contrato de crédito (composto pelas presentes condições particulares e pelas condições gerais constantes no verso ou de anexo ao presente documento), sobre as quais foram devidamente informados, tanto por lhes ter sido dado a ler, como por lhes ter sido fornecido um exemplar do mesmo no momento da assinatura.»
Mas a questão, com todo o respeito por opinião adversa, mantem-se, e consiste em saber se, independentemente do conhecimento que o consumidor possa ou não ter sobre as condições gerais (colocadas após a sua assinatura), tais clausulas não devem, à luz do comando legal consagrado no art. 8º, al. d), da LCCG , ter-se como excluídas do contrato, como decorre do dito normativo.
De facto, realce-se que a questão apenas se coloca quanto às condições gerais do contrato em apreço nos presentes autos, sendo certo que, quanto às condições particulares do mesmo contrato (constantes de fls. 55 dos autos), nenhumas dúvidas se nos suscitam de que, tendo os mutuários assinado abaixo do texto das mesmas e tendo declarado que delas têm conhecimento, funciona, nesta parte, a prova plena que contra eles decorre do preceituado nos arts. 374º, n.º 1 e 376º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Civil.
Nesta parte (mas só nela), a posição sustentada pelo Sr. Juiz a quo não nos oferece qualquer reserva.
Todavia, quanto à questão acima exposta (atinente às condições gerais que constam após a assinatura do contrato pelos mutuários e no seu verso), como já antes se avançou, a doutrina e a jurisprudência maioritária (em particular do Supremo), apontam em sentido inverso ao sustentado na decisão recorrida e nos já citados AC RG de 12.11.2013 e da RP de 11.11.2014.
Neste sentido, ao nível da doutrina, refere ANA PRATA, “ Contratos de Adesão... ”, cit., pág. 279, que «por determinação da alínea d) [ do citado art. 8º ], o mesmo regime se aplica às cláusulas inseridas em formulários, depois da assinatura de qualquer das partes, pois há como que uma presunção inilidível de que tais pretensas convenções foram aditadas ao contrato sem conhecimento do aderente.»
E prossegue, ainda, a mesma ANA PRATA, op. cit., pág. 279, que «assim sucede, vulgarmente, com a parte do clausulado que se encontre no verso da folha que as partes assinam.» (…)
Em sentido concordante alinha também L. MENEZES LEITÃO, “ Direito das Obrigações ”, I volume, Almedina, 7ª edição, pág. 35, ao referir que a lei considera [...]«não terem sido adequada e efectivamente comunicadas (...) as cláusulas inseridas em formulários, depois da assinatura de uma das partes.» Aliás, no problema concreto de que tratam os autos (condições gerais feitas constar do verso e após a assinatura dos mutuários), este Autor, dá conta (pág. cit., nota 43.) do AC da RL de 8.5.2003 (SOUSA GRANDÃO), na CJ, tomo 3, pág. 73-75, que interpretou restritivamente esta disposição (art. 8º, al. d)- da LCCG), considerando-se não aplicável a exclusão se o texto do acordo remeter para o formulário colocado depois da assinatura (como é o caso dos autos), do mesmo passo que dá nota de um outro AC RL de 13.05.2003 (RIBEIRO COELHO), CJ, tomo 3, pág. 75-78, que considerou já, nas mesmas condições, excluídas as cláusulas constantes de formulário colocado no verso do contrato, o que, segundo o dito Professor, «nos (a ele) parece ser a interpretação mais correcta.»
(…)

Esta mesma posição, que aqui sufragamos, mostra-se acolhida, além do mais, no AC STJ de 7.07.2009, processo n.º 369/09.01YFLSB, relator OLIVEIRA ROCHA, in www.dgsi.pt, quando ali se escreve que «encontrando-se as assinaturas dos outorgantes apostas na face do documento, que constitui a proposta contratual impressa e, no verso, as cláusulas gerais, teriam estas, como vem sendo maioritariamente decidido por este Tribunal, de ter-se por excluídas do contrato singular, tudo se passando como se não existissem, a menos que o aderente queira prevalecer-se das mesmas.»
Ainda neste sentido refere-se, em caso com particulares semelhanças com o dos autos, no AC STJ de 7.01.2010, processo n.º 08B3798, relator MARIA dos PRAZERES BELEZA, que têm-se por «não escritas as cláusulas contratuais que fisicamente se encontram no verso do documento, após as assinaturas dos contraentes, ainda que, antes dessas assinaturas, haja uma cláusula no sentido de que o mutuário declara ter conhecimento e dado o seu acordo às que constam do verso.»
(…)

Desta forma e sufragando nós a doutrina e jurisprudência a que antes se fez referência, é nosso julgamento que as condições gerais (constantes de fls. 56 dos autos), mostrando-se incluídas no verso do contrato em apreço e após a assinatura do mesmo pelo mutuários, não obstante o seu declarado conhecimento pelos mesmos, se devem ter como excluídas do contrato de financiamento em apreço nos autos, sendo, por isso, tidas como inexistentes e, obviamente, não vinculativas para os mutuários e ora executados.

4.2.3. Dirimida esta questão, coloca-se-nos então a questão de saber se, não obstante a exclusão de tais cláusulas (condições gerais do contrato de financiamento em apreço, pode, ainda, a presente execução subsistir, sendo certo que, como resulta do art. 9º, n.º 1 ad LCCG, à partida, em razão de tal exclusão não decorre, automaticamente, a nulidade do contrato de financiamento.
Com efeito, por princípio, o contrato é de manter, substituíndo-se a(s) parte(s) afectada(s) do mesmo pelas «normas supletivas aplicáveis, com recurso, se necessário, às regras de integração do negócio jurídico.» - art. 9º, n.º 1 da LCCG. Com efeito, atento o interesse na conservação do negócio jurídico que subjaz à dita norma (art. 9º), a nulidade total do contrato só se imporá se, não obstante o recurso ao regime supletivo aplicável ao mesmo ou às regras de integração do negócio jurídico, ainda assim se mantenha «uma indeterminação insuprível de aspectos essenciais ou um desequilíbrio nas prestações gravemente atentatório da boa-fé.» - art. 9º, n.º 2 da citada LCCG. Vide sobre a matéria, ANA PRATA, “ Cláusulas ... ”, cit., pág. 282-284, A. MENEZES CORDEIRO, “ Tratado ... ”, cit., pág. 623-624 e AC RL de 28.06.2012, antes citado.
A resposta, no caso concreto dos autos, não pode, no entanto, deixar de ser no sentido de a exclusão das condições gerais do contrato (antes justificada), ter de conduzir à extinção da execução.
Com efeito, sendo certo que é legalmente admissível a livrança incompleta (em branco) – vide art. 10º ex vi do art. 77º, ambos da LULL - , e sendo certo, ainda, que a livrança não entrou em circulação, mantendo-se, portanto, no domínio das relações imediatas, como é consabido, são livremente oponíveis pelos subscritores da mesma perante portadora e ora exequente (ambos partes na relação ou obrigação causal – in casu o aludido contrato de financiamento para aquisição a crédito), as excepções causais fundadas no dito contrato.
Assim, ensina FERRER CORREIA, “ Lições de Direito Comercial ”, Reprint, Lex, 1994, pág. 449-450, que «nas relações imediatas, isto é nas relações entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato (relações sacador-sacado; sacador-tomador; tomador-1º endosado, etc.), nas quais os sujeitos cambiários o são concomitantemente de convenções extra-cartulares, tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta. Fica sujeita às excepções que nessas relações pessoais se fundamentem.» (…)
Ora, se assim é, no caso dos autos, a causa de emissão da livrança exequenda foi, como se deixou já dito, o contrato de financiamento para aquisição a crédito outorgado entre as partes.
Destarte, tendo-se como excluídas do dito contrato de financiamento (relação subjacente à emissão da livrança exequenda) todas as condições gerais do mesmo (e constantes de fls. 56 dos autos), nelas se incluindo as cláusulas 9ª e 10ª (e que autorizavam o preenchimento da livrança exequenda), por via desta [...]exclusão, carece de suporte o preenchimento do título levado a cabo pela exequente, e, logicamente, este último título deixa de revestir validade para dispor de força executiva, não podendo, por isso, prosseguir a execução (sem prejuízo de se manter a relação de financiamento/mútuo a ela subjacente - a discutir em outra sede). Vide, em sentido similar, ao ora sustentado, AC RP de 21.09.2006, relator ANA PAULA LOBO, já citado.
Desta forma, em conclusão, deve a oposição proceder, com a consequente extinção da execução, o que se julga. […]».
Julgamos que, não tendo o Recorrente impugnado a decisão proferida quanto à matéria de facto (v.g., a al. b) dos factos não provados), aquilo que “supra” foi explanado do Acórdão da Relação de Guimarães, que merece a nossa concordância, explica o porquê da aplicabilidade do regime das cláusulas contratuais gerais, bem assim como as soluções dadas às questões que o Apelante suscita nas conclusões de recurso, exceptuando as atinentes ao abuso do direito e às nulidades que se imputam à sentença (questões estas que, adianta-se já, não procederão, como se explicitará mais abaixo).
Parece-nos evidente que, tendo os embargantes posto em causa o acordo do preenchimento da livrança e tendo-se que entender como inexistente (por via da aplicabilidade da al. d) do artigo 8º do Decreto-Lei nº 446/85), a cláusula (10ª) que consagrava tal acordo, a consequência lógica é a de desconsiderar-se a dita livrança, enquanto título válido para alicerçar a execução (daí que não tenha aqui expressão o disposto no art. 9º, n.º 1, desse Decreto-Lei), (prejudicando a questão da correcção do cálculo da quantia aposta na livrança), o que não obsta a que o Exequente discuta, noutra sede, os direitos que julgue ter advindos do contrato subjacente a essa livrança.
No que concerne ao abuso do direito, sustenta o Exequente: “(…) A actuação dos Recorridos constitui, verdadeiro Abuso de Direito na modalidade de venire contra factum proprium. Afinal, na qualidade titulares celebraram um contrato de crédito, receberam a viatura mutuada, pagaram várias rendas contratadas sem nunca questionar o valor e validade das Cláusulas Contratuais quer particulares quer gerais, e continuam, até hoje, na posse do veículo. De notar que os Recorridos encontram-se actualmente emigrados, e levaram a viatura com eles.
Porém, só na fase judicial, e como meio de se eximir às responsabilidades assumidas por meio dos contratos celebrados, vem alegar o desconhecimento das Cláusulas e exclusão pacto de preenchimento que legitima o preenchimento do título executivo. Ora, este sim é um comportamento abusivo e contrário à boa-fé! (…).
Ora, a estas considerações, aplica-se, “mutatis mutandis” o seguinte entendimento expresso no citado Acórdão da Relação de Guimarães: “(…) o recurso à figura do abuso de direito só deve ocorrer em situações excepcionais ou, como se refere no art. 334º do Cód. Civil, quando, à luz da factualidade alegada e provada, exista um excesso clamoroso, gritante, inaceitável, no exercício de um direito.
Por outro lado, sem prejuízo do antes exposto, certo é que, como se adverte no AC STJ de 28.04.2009, processo n.º 2/09.YFLSB, relator FONSECA RAMOS, in www.dgsi.pt, em situação semelhante à dos presentes autos, «Na ponderação de saber se houve abuso do direito – art. 334º do Código Civil – excepção material de conhecimento oficioso – o Tribunal deve actuar com prudência quando se está perante uma relação de consumo, onde é patente a desigualdade de meios entre o fornecedor dos bens ou serviços e o consumidor, sendo de equacionar se, ao actuar como actuou, a Autora, prevalecendo-se de superioridade negocial em relação a quem recorreu ao seu crédito, não infringiu ela mesmo, em termos censuráveis, os deveres cooperação, de lealdade, e informação, em suma os princípios da boa fé.(…) Entendemos que, sopesada a gravidade do comportamento da Autora, profissional no mercado de crédito com o arsenal de meios logísticos, marketing, publicidade, de que dispõe, o quadro factual em que o Réu (a parte mais fraca no contexto negocial, repetimos) invocou a nulidade, não exprime abuso do direito, por não ser clamorosa e chocantemente violadora das regras da boa-fé».
Por sua vez, ainda com relevo para o caso dos autos, refere-se no AC STJ de 7.01.2010, processo n.º 08B3798, relator MARIA dos PRAZERES BELEZA, in www.dgsi.pt, que: «Também não é significativo, por si só, o tempo que decorreu entre a celebração dos contratos e a propositura da presente acção (ou da citação da recorrente); a nulidade pode ser invocada a todo o tempo (naturalmente com o limite, genérico, da prescrição), nos termos do disposto no artigo 286º do Código Civil. Se o legislador [...] pretendesse a sanação do vício pelo decurso do tempo tê-lo-ia provavelmente sancionado com a anulabilidade, como fez para os casos previstos no nº 2 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 359/91.
Assim sendo, haveria de ter sido alegada e provada matéria de facto que permitisse concluir que o não exercício anterior do direito de invocar a nulidade (...) tinha sido acompanhado de uma actuação dos consumidores apta a, objectiva e justificadamente, criar na recorrente a confiança de que a nulidade não seria suscitada, tornado claramente inaceitável que, ao arrepio dessa sua atitude, a viessem invocar, em violação da confiança que eles próprios (objectivamente, repete-se) criaram (cfr., por exemplo, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 14 de Novembro de 2006, 3 de Julho de 2008, 18 de Dezembro de 2008 ou de 31de Março de 2009, disponíveis em www.dgsi.pt como procs. nºs 06A3441, 08B2002, 08B3154 e 09A0537). Com efeito, para ocorrer abuso de direito é imperioso que o modo concreto do seu exercício, objectivamente considerado, se apresente ostensivamente contrário “ à boa fé, (a)os bons costumes ou (a)o fim social ou económico” do direito em causa (artigo 334º do Código Civil).» Vide, ainda, no mesmo sentido, AC RL de 13.09.2012, processo n.º 1098/07.6TBLSB.L1-2, relator JORGE VILAÇA, AC RL de 6.02.2014,
processo n.º 574/11.0TJLSB.L1-2, relator TERESA ALBUQUERQUE, e AC RL de 22.10.2015, processo n.º 1129/13.0TJLSB.L1-2, relator FARINHA ALVES, todos in www.dgsi.pt . (…)
Ora, no caso dos autos, se é certo que os ora executados (e Recorrentes) terão pago, de um total de 96 prestações, 42 (o que equivale a cerca de metade das prestações previstas) e que o contrato de financiamento em apreço data de Dezembro de 2007, estes factos, de per si e sem mais, não são os bastantes para que possa a exequente ter criado uma convicção ou confiança (legítima e justificada) no sentido de que os [...]executados teriam renunciado ao direito a uma plena e efectiva informação sobre o clausulado e que se abster-se-iam de invocar a nulidade ou exclusão das cláusulas do contrato por violação do regime aplicável em sede de cláusulas contratuais gerais, «maxime» quando o preenchimento do título apenas teve lugar já em 2012 (vide documento oferecido pela própria exequente a fls. 57 dos autos) e, portanto, só recentemente os executados se viram confrontados com a exigência dos valores em apreço, com o preenchimento do título e subsequente execução.
Em consequência, para concluir, não ocorrem os pressupostos do instituto do abuso de direito, que assim, e ao contrário do decidido em 1ª instância, se julga não ocorrer, no caso concreto dos autos e face ao circunstancialismo antes exposto. […]».

Atento o que ora ficou exposto e por identidade de razões, também no caso “sub judice” improcede a excepção do abuso do direito, invocada pelo Apelante.
Nulidades de sentença:

Diz o Apelante: “A sentença, padece de ambiguidades, das quais não pode a recorrente relevar. A mesma começa por aferir de determinados comportamentos por parte dos embargantes, censuráveis, que justificariam a prossecução da execução.
Contudo, os mesmos comportamentos censuráveis, e, a dada altura do texto, censurados, são aqueles que servem de motivação à decisão final de considerar por procedentes os embargos. Não pode a Recorrente conformar-se com tal, considerando que a sentença reveste características de nulidade, nomeadamente as elencadas no artigo 615.º n.º 1 c).”.
Na alínea c) do nº 1 do artº 615º, prevê-se, como causa de nulidade da sentença, a verificação de “...alguma ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível”. Consagrou-se assim, no NCPC, como causa de nulidade da sentença, na condição de tornarem a decisão ininteligível, a verificação de alguma ambiguidade ou obscuridade, sendo que, no âmbito do pretérito CPC, qualquer uma destas patologias habilitava a requerer o esclarecimento da sentença (artº 669º, nº 1, a) do CPC).
Discorrendo no âmbito do CPC de 1939 sobre o que se deveria entender como “ambiguidade” ou “obscuridade” da sentença, para efeitos de aclaração da mesma, escreveu o Prof. Alberto dos Reis: «… a sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso, não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro, hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos. É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade; se determinado passo da sentença é susceptível de duas interpretações diversas, não se sabe ao certo qual o pensamento do juiz.

(…) Em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é susceptível de duas interpretações diversas, não se sabe ao certo qual o pensamento do juiz.».
E como se salienta no Acórdão do STJ de 13/11/2002 (Incidente n.º 02B2381)

«Só existe, com efeito, obscuridade quando o tribunal proferiu decisão cujo sentido um tal destinatário não possa alcançar. A ambiguidade só relevará se vier a redundar em obscuridade, ou seja, se for tal que do respectivo texto ou contexto não se torne possível alcançar o sentido a atribuir ao passo da decisão que se reclama de ambíguo. Se dessa reclamação ressaltar à evidência que o reclamante compreendeu bem os fundamentos da decisão e apenas com os mesmos não concordou, bem como com o sentido decisório final, não ocorre a reclamada obscuridade/ambiguidade […]».
Ora, depois de arredar determinados argumentos que, de acordo com os embargantes, colocariam em causa a execução “sub judice” (v.g., a nulidade desse negócio por não lhes ter sido entregue um exemplar do contrato na data da respectiva assinatura; a violação do dever de comunicação e de informação), o Tribunal, salientando que os embargantes também tinham protestado não haver dado o seu acordo ao preenchimento da livrança, acaba por concluir: “As condições gerais do contrato subjacente à emissão da livrança terão, pois, de se considerar excluídas do mesmo, tal como resulta do artigo 8.º, alínea d) do Decreto-Lei n.º 446/85 de 25 de Outubro e com elas cairá, como é bom de ver, o respectivo título executivo dado que se trata de uma livrança em branco em relação à qual não existe acordo de preenchimento.
A cláusula 10.ª - de onde resultava que o cliente autorizava a S... a preencher, caso exista, qualquer livrança ou outro documento ou garantia por si subscrito/ avalizado e não integralmente preenchido, designadamente no que se refere à data de vencimento, ao local de pagamento e aos valores, até ao limite das responsabilidades assumidas pelo(s) Cliente/ Avalista(s) perante a S... por força do presente contrato, e em dívida na data do vencimento,

acrescido de todos e quaisquer encargos com a selagem dos títulos – ao ser excluída do contrato, deixa a embargada sem suporte para definir a obrigação cambiária.
Como se concluiu no mencionado aresto, a causa de emissão da livrança exequenda foi, como se deixou já dito, o contrato de financiamento para aquisição a crédito outorgado entre as partes. Destarte, tendo-se como excluídas do dito contrato de financiamento (relação subjacente à emissão da livrança exequenda) todas as condições gerais do mesmo (e constantes de fls. 56 dos autos), nelas se incluindo as cláusulas 9ª e 10ª (e que autorizavam o preenchimento da livrança exequenda), por via desta [...] exclusão, carece de suporte o preenchimento do título levado a cabo pela exequente, e, logicamente, este último título deixa de revestir validade para dispor de força executiva, não podendo, por isso, prosseguir a execução (sem prejuízo de se manter a relação de financiamento/mútuo a ela subjacente - a discutir em outra sede). […]».
Ora, não existe, no percurso do raciocínio argumentativo da sentença qualquer trecho que não seja perceptível, ou que leve a ter como ininteligível a conclusão que se veio a tirar, a final, quanto à impossibilidade da execução prosseguir.
Assim, no caso “sub judice”, não existe contradição alguma entre a decisão proferida na sentença e os fundamentos em que esta se alicerçou, não constando, do texto respectivo, trechos que não se compreendam ou que sejam capazes de comportar interpretações diversas e que, assim, sejam susceptíveis de tornar a tal decisão ininteligível.
Do exposto resulta, pois, não se verificar a nulidade de sentença prevista na alínea c) do nº 1 do artº 615º do NCPC.

Sustenta o Apelante, ainda: “…os Recorridos não invocam em sede de Embargos qual a cláusula que lhes não foi explicada…”, pelo que “…a sentença enferma do vício elencado no artigo 615.º, n.º 1, e), posto que parece substituir-se aos embargantes, condenando em quantidade superior do que é pedido.”.

Ora, uma vez que, como se disse, os embargantes sustentaram não ter assentido no preenchimento da livrança, ao tribunal era lícito conhecer, nos termos do artº 8º, al. d), considerar excluída, nos termos do artº 8º, al. d), do DL n.º 446/85, a cláusula do contrato de onde constava tal acordo, sendo que, na jurisprudência do STJ, já se tem sustentado, que a citada disposição legal é de aplicação oficiosa.8
Assim, pretendendo-se, com a Oposição, por embargos de executado, extinguir a execução, v.g., atacando a validade da livrança invocada para alicerçar esta última, o Tribunal “a quo” ao proceder conforme o referido, nem incorreu em excesso de pronúncia, nem proferiu condenação “extra vel ultra petitum” (artº 615º, nº 1, e), do NCPC).
Em suma: A sentença não enferma de qualquer das nulidades que lhe imputa o Apelante.
Concluindo, dir-se-á, pois, que, na sentença impugnada, com fundamentação adequada e sem infracção das normas cuja violação o Apelante lhe imputa, o Tribunal “a quo” decidiu acertadamente ao julgar os embargos procedentes, o que merece, pois, a nossa inteira concordância.

V – Decisão: Em face de tudo o exposto decide-se julgar improcedente a Apelação e confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo Recorrente (artºs 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6, 663º, nº 2, todos do NCPC).
Coimbra, 28/9/2020


(Luiz José Falcão de Magalhães)

(António Domingos Pires Robalo)

(Sílvia Maria Pereira Pires)



1 Segue-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2 Transcrição de extracto do relatório da sentença recorrida.
3 As que ora se transcrevem são já as oferecidas a convite do Relator.
4 Código este aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26/06, sendo o código que o antecedeu referenciado aqui com a sigla “CPC”.
5 Cfr. Acórdão do STJ, de 06 de Julho de 2004, Revista nº 04A2070, embora versando a norma correspondente da legislação processual civil pretérita, à semelhança do que se pode constatar, entre outros, no Ac. do STJ de 13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e no Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586, todos estes arestos consultáveis em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase, tal como aqueles que, desse Tribunal e sem referência de publicação, ou com uma outra, vierem a ser citados adiante.
6 Cfr. o Acórdão do STJ de 25/03/2004, Revista n.º 02B4702.
7 Consultável em “http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf?OpenDatabase”.
8 “(…) II - O art. 8, al. d), do DL n.º 446/85, de 25-10, é aplicável a cláusula inserida no contrato depois da assinatura do contraente que a ele adere, mesmo quando, na introdução desse contrato tenha sido inserida uma cláusula segundo a qual ao contrato são aplicáveis as condições específicas e gerais que se seguem, figurando entre estas
últimas a cláusula controvertida.
III - Esta última disposição é aplicável oficiosamente.” – excerto do sumário do Acórdão do STJ, de 15-03-2005, Revista n.º 282/05 - 2.ª Secção, consultável em https://www.stj.pt/?page_id=4471.;
“I - Nos termos do art. 8.º, al. d), do DL n.º 446/85, de 25-10 (com as alterações introduzidas pelos DL n.º 220/95, de 31-08, e DL n.º 249/99, de 07-07), norma aplicável oficiosamente, devem considerar-se excluídas as cláusulas contratuais gerais constantes da segunda página do documento formalizador de um contrato de crédito ao consumo (na modalidade de mútuo), assinado pelos contratantes só na primeira página do mesmo documento, ainda que no intróito deste tenha sido inserida uma cláusula segundo a qual são aplicáveis ao contrato as condições específicas e gerais que se seguem.” – excerto do sumário do Acórdão do STJ, de 06-07-2005, Revista n.º 272/05 - 2.ª Secção, consultável em https://www.stj.pt/?page_id=4471.