Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0187/15
Data do Acordão:06/17/2015
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO FISCAL
ILEGALIDADE ABSTRACTA
DIREITO INTERNACIONAL CONVENCIONAL
CONVENÇÃO SOBRE RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS
MISSÃO DIPLOMÁTICA
Sumário:I – Contrariamente à ilegalidade em concreto da liquidação da dívida exequenda – cuja discussão, em regra, está vedada em sede de oposição à execução fiscal –, a ilegalidade abstracta pode ser discutida na oposição, por se enquadrar no fundamento previsto na alínea a) do n.º 1 do art. 204.º do CPPT.
II – Nos termos do art. 8.º, n.º 2, da CRP, as normas de convenção internacional, quando regularmente adoptadas pelo Estado Português e publicadas na forma legal, prevalecem sobre o direito interno infraconstitucional, em tudo que seja conflituante com este, motivo por que os tribunais devem recusar a aplicação de lei ou norma jurídica que viole tratado internacional a que Portugal se tenha vinculado.
III – A isenção referida no art. 23.º, n.º 1, da Convenção sobre Relações Diplomáticas, porque não é uma isenção segundo o conceito tradicional, mas um privilégio de direito internacional que afasta a aplicação aos locais de missão da legislação interna em matéria tributária, enquadra-se no fundamento de oposição previsto na alínea a) do art. 204.º, n.º 1, do CPPT.
IV - Não tendo a sentença recorrida fixado a factualidade pertinente a decisão, impõe-se a sua anulação, para efectuar o julgamento da matéria de facto em falta e prolação de nova sentença de acordo com o regime jurídico fixado pelo Supremo Tribunal Administrativo (actuais arts. 682.º e 683.º do CPC).
Nº Convencional:JSTA00069246
Nº do Documento:SA2201506170187
Data de Entrada:02/20/2015
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:EMBAIXADA DA A............
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TTRIB LISBOA
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - OPOSIÇÃO.
Área Temática 2:DIR INT PUBL.
Legislação Nacional:CONST05 ART8 N2.
CPPTRIB99 ART204 N1 A.
EBFISC01 ART2 N2.
CPC13 ART682 N3 ART683.
DL 48295 DE 1968/03/27.
Referências Internacionais:CONV VIENA SOBRE RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS APROVADA PARA ADESÃO PELO DL 48295 DE 1968/03/27 ART23 N1.
CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS ART2 N1.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC076/14 DE 2014/04/20.; AC TCAS PROC07445/14 DE 2014/07/10.
Referência a Doutrina:JORGE LOPES DE SOUSA - CÓDIGO DE PROCEDIMENTO E DE PROCESSO TRIBUTÁRIO COMENTADO E ANOTADO 6ED VOLIII PAG443 SEGS.
JOSÉ CALVET DE MAGALHÃES - MANUAL DIPLOMÁTICO MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS 3ED PAG68 SEGS.
ALBERTO XAVIER - MANUAL DE DIREITO FISCAL LISBOA 1974 PAG281 SEGS.
GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA - CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA ANOTADA VOLI 4ED 2007 PAG255-261.
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da sentença proferida no processo de oposição à execução fiscal com o n.º 313/12.9BELRA

1. RELATÓRIO

1.1 A Fazenda Pública (adiante Recorrente) recorre para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente a oposição à execução fiscal deduzida pela Embaixada da A……….. (adiante Executada, Oponente ou Recorrida) com o fundamento previsto na alínea a) do n.º 1 do art. 204.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

1.2 O recurso foi admitido, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e a Recorrente apresentou as alegações de recurso, que resumiu em conclusões do seguinte teor:

«1- A douta decisão de que se recorre não traduz uma correcta interpretação e aplicação da lei e do direito, em prejuízo da recorrente. Na verdade

2- A sentença recorrida, padece dos vícios de violação de lei, por infracção ao art. 204.º n.º 1 al. b) [(Salvo o devido respeito, tratar-se-á de uma gralha a referência à alínea b), pois toda a alegação da Recorrente se reporta à alínea a) do n.º 1 do art. 204.º do CPPT.)], do CPPT, e, bem assim, por infracção ao princípio da igualdade e da legalidade;

3- Entendeu o Tribunal “a quo”, por remissão para o Acórdão do TCA Sul, de 10 de Julho de 2014, processo n.º 7445/14, que “a isenção referida no art. 23.º n.º 1 da Convenção sobre Relações Diplomáticas é um privilégio de direito internacional que afasta a aplicação aos locais de missão da legislação interna em matéria tributária, sendo que se impõe aos tribunais recusar a aplicação de lei ou norma jurídica que viole tratado internacional a que Portugal se tenha vinculado, considerando que as suas normas, quando publicadas na forma legal, prevalecem sobre o direito infraconstitucional, em tudo que seja conflituante com este (art. 8.º da Constituição da República Portuguesa).
E, assim é, quando se discute esta realidade não se está a disputar sobre a ilegalidade concreta, mas sim sobre a ilegalidade abstracta do acto tributário subjacente à divida exequenda, assente no supra citado artigo 23.º, n.º 1 da Convenção sobre Relações Diplomáticas. O que constitui fundamento de oposição com previsão na alínea a) do n.º 1 do artigo 204.º do CPPT”

4- Salvo o devido respeito, que muito é, não se pode deixar de discordar, frontalmente, com tal entendimento sufragado, pois tal decisão, não faz uma correcta aplicação da lei e do direito.

5- Na verdade o artigo 204.º, n.º 1, alínea a) do CPPT, preconiza que “A oposição só poderá ter algum dos seguintes fundamentos: a) Inexistência do imposto, taxa ou contribuição nas leis em vigor à data dos factos a que respeita a obrigação ou, se for o caso, não estar autorizada a sua cobrança à data em que tiver ocorrido a respectiva liquidação”

6- Assim, seguindo os ensinamentos de JORGE DE SOUSA, in Código de Procedimento e Processo Tributário, Anotado e Comentado, p. 443 e ss., “na al. a) do n.º 1 deste artigo prevê-se como fundamento de oposição à execução fiscal a inexistência do tributo nas leis em vigor à data dos factos a que respeita ou não estar autorizada a sua cobrança à data da liquidação, se se tratar de um tributo relativamente ao qual ela dependa de autorização”.

7- E ainda, seguindo o entendimento deste ilustre autor, “está-se, aqui, perante aquilo que doutrinal e jurisprudencialmente se designa por ilegalidade abstracta ou absoluta da liquidação, que se distingue da «ilegalidade em concreto» por na primeira estar em causa a ilegalidade do tributo e não mera ilegalidade do acto tributário ou da liquidação; isto é, na ilegalidade abstracta a ilegalidade não reside directamente no acto que faz aplicação da lei ao caso concreto, mas na própria lei cuja aplicação é feita, não sendo, por isso, a existência de vício dependente da situação real a que a lei foi aplicada nem do circunstancialismo em que o acto foi praticado”.

8- Pelo que face ao exposto retro, dúvidas não podem restar de que estamos perante um caso de ilegalidade em concreto e não em abstracto.

9- Na verdade, para estarmos perante ilegalidade em abstracto, teria de se discutir se a própria lei que é objecto de aplicação padece de vícios de violação de lei superior, mas já não a liquidação, ou seja, não se reporta o acto relativo da lei ao caso concreto,

10- Ora, a liquidação em causa, subjacente à presente execução fiscal, emitida que foi em conformidade e seguindo as directrizes que o Código do IMI impõe.

11- Sendo que, nem o CIMI, nem qualquer concreta norma constante do mesmo diploma, padece de ilegalidade, seja por postergação de lei fundamental, seja por violação de tratado ou Convenção Internacional.

12- Assim, não padecendo a lei em vigor, no momento da prática do acto tributário e a este subjacente, de qualquer vício, não poderá ser qualificada como legalidade abstracta.

13- Face ao antedito, o que a oponente pretendeu, ainda que de forma encapotada, sempre foi discutir a legalidade em concreto, o que, na esteira do entendimento uniforme dos nossos tribunais superiores, bem como sabemos que não se afigura possível em sede de oposição à execução fiscal

14- Na verdade, aquando da notificação da nota de liquidação deveria, a ora oponente, ter lançado mão da impugnação judicial pois nessa sede teria cobertura legal atacar o pretendido, erradamente, por esta, em sede de oposição à execução fiscal.

15- Finalmente, não pode deixar de aqui se trazer à colação o basilar principio da igualdade, que foi postergado e desrespeitado neste caso concreto da recorrente, desse modo se violando também e de forma ostensiva a Lei Fundamental.

16- De facto, a Convenção antedita postula uma verdadeira isenção, contrariamente à qualificação jurídica dada pelo tribunal “a quo” por remissão do acórdão do TCA Sul supra citado, pelo que, mal se compreende que uma isenção resultante do direito interno, maxime benefício fiscal, se o contribuinte não impugnar uma liquidação erradamente emitida, o mesmo já não possa, como não pode, em sede de oposição à execução fiscal alegar a ilegalidade em abstracto, e outrossim uma isenção resultante de convenção internacional já seja concedida toda esta panóplia de direitos de defesa.

17- Destarte, a quanto alegado se deixa reiterado, a sentença recorrida, padece do vício de violação de lei, por infracção ao artigo 204.º n.º 1 alínea a), do CPPT além de consubstanciar postergação da Lei Fundamental, maxime princípio da igualdade e da legalidade.

Termos em que, deve ser admitido o presente recurso e revogada a douta decisão da primeira instância, substituindo-a por outra que julgue improcedente a oposição à execução fiscal, com todas as consequências legais.

Todavia, em decidindo, Vossas Excelências farão a acostumada Justiça!».

1.3 A Oponente não contra-alegou, mas apresentou um parecer jurídico com conclusões do seguinte teor:

«1. Constitui um privilégio de direito internacional, que decorre da imunidade diplomática, a isenção de imposto prevista no artigo 23.º, n.º 1 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas.

2. Pelo artigo 8.º, n.º 2 da Constituição, a Convenção de Viena vigora no ordenamento jurídico português, com força supra legal e infraconstitucional.

3. A norma contida no artigo 23.º, n.º 1 da Convenção prevalece sobre a lei ordinária interna, impedindo que se aplique à A………… ou à sua Embaixada em Portugal, a lei nacional em matéria de definição e fixação de tributação, e que se estabeleça uma relação tributária. Como consequência, a A………… ou a sua Embaixada em Portugal não podem ser contribuintes do Estado Português.

4. Assim, não só a liquidação de IMI, tal como tem sido feita pela Administração Tributária é ilegal, como que essa ilegalidade decorre da inexistência do imposto em vigor em Portugal, constituindo, por isso, fundamento para oposição à execução, de acordo com o artigo 204.º, n.º 1, alínea a) do CPPT».

1.4 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da anulação da sentença e de que seja ordenada a ampliação da matéria de facto, a fim de se indagar do destino dado às fracções e da reciprocidade na isenção de tributação, com a seguinte fundamentação:

«O objecto do recurso é relativo à aplicação que foi efectuada do disposto no art. 2.º n.º 1 al. a) do C.P.P.T., em termos de poder integrar a referida disposição e a chamada ilegalidade abstracta a aplicação de normas de direito internacional das quais resulte a inexistência de imposto ou a falta de autorização para a cobrança do imposto, bem como se ocorre violação dos princípios da igualdade e da legalidade tributária.
Com efeito, a recorrente, após alegar também, na conclusão sob o n.º 2, a violação da al. b) da dita disposição do C.P.P.T., não sustenta quanto a tal, nem das demais conclusões, nem nas alegações, qualquer fundamento em contrário do decidido, razão pela qual se afigura não ser de conhecer também da respectiva questão que seria a ilegitimidade da oponente Embaixada.
Do probatório resulta, resumidamente, que, após ter sido liquidado I.M.I. em 2009 sobre as fracções autónomas “C” a “Q” de imóvel adquirido em 1988 pela A…………, o qual é sito na rua ………, n.º …, no ………, em Lisboa, e não tendo sido paga a 1.ª prestação do mesmo, foi instaurada execução o que deu origem a que foi apresentada a oposição constante dos autos.
E julgou-se ocorrer ilegalidade abstracta, decorrente do previsto nos artigos 1.º al. i), 3.º al. a) e 23.º n.º 2 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas aprovada pelo Dec.-Lei n.º 48295, e da existência de privilégios de membros das missões diplomática e consulares, por aplicação do previsto no art. 8.º n.º 2 da C.R.P.
As disposições legais constantes da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, bem como as semelhantes constantes da Convenção de Viena sobre Relações Consulares aprovada pelo Dec.-Lei n.º 183/72, de 30/5, integram normas do tipo convencional, que não invalidam a aplicação de outras normas e princípios do direito internacional, segundo o previsto no art. 8.º n.º 1 da C.R.P.
Assim, e ainda que naquelas convenções se encontrem fixados requisitos específicos de que depende isenções fiscais, incluindo quanto a membros do pessoal diplomático e consular, da aplicação do princípio da reciprocidade, que integra o dito direito internacional, enquanto princípio comum, pode resultar a inexequibilidade do imposto incidente sobre as fracções dos autos.
A ser assim, como parece, é de mandar ampliar a matéria de facto, a fim de que resulte apurado se ocorre reciprocidade de tratamento quanto à isenção de imposto sobre imóveis quando aqueles forem destinados à residência do dito pessoal diplomático e consular.
Aliás, a oponente juntou, a fls. 89 e ss. documentos que foram tidos por irrelevantes, ao contrário do que parece ser de entender»
Contudo, por constituírem meras fotocópias os factos constantes dos mesmos não podem ser considerados por aquelas não constituírem documentos autênticos na previsão do art. 369.º n.º 1 do C. Civil.
Admitindo que as isenções dos Estados estrangeiros, apesar de serem tratadas como normas de não sujeição, podem ainda ser tidas ainda como condições de exequibilidade, foi entendido no acórdão do T.C.A. Sul de 15-7-09 proferido no proc. 2972/09, acessível em www.dgsi.pt, de acordo com a doutrina de Maria Teresa Veiga Faria em Estatuto dos Benefícios Fiscais – Notas Explicativas.
E que a violação de normas de direito internacional integra o fundamento de ilegalidade abstracta previsto no art. 204.º n.º 1 al. a) do C.P.P.T., foi já entendido pelo S.T.A. no seu acórdão de 9-4-14 proferido no proc. 76/14, acessível em www.dgsi.pt.
Concluindo:
O fundamento de oposição previsto no art. 204. n.º 1 al. a) do C.P.P.T. ocorre quanto a imóvel destinado à residência do dito pessoal diplomático e consular de Estado estrangeiro, havendo reciprocidade na isenção de tributação.
É de anular o decidido, mas mandar ampliar a matéria de facto, nos termos do subsidiariamente previsto no art. 682.º n.º 3 do C.P.C., a fim de que resulte apurado o dito destino dado às fracções, bem como a dita reciprocidade».

1.5 Colheram-se os vistos dos Juízes Conselheiros adjuntos.

1.6 A questão que cumpre apreciar e decidir, como procuraremos demonstrar, é a de saber se a sentença fez correcto julgamento quando considerou que a invocada violação da isenção fiscal prevista no art. 23.º da Convenção sobre Relações Diplomáticas podia subsumir-se ao fundamento de oposição à execução fiscal previsto na alínea a) do n.º 1 do art. 204.º do CPPT.


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2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

A sentença recorrida deu como provada a seguinte factualidade:

«A) Em 25 de Maio de 2010, o Serviço de Finanças de Lisboa 8 instaurou, contra a ora oponente, o processo de execução fiscal n.º 3107201001066285, para cobrança coerciva de dívida proveniente de IMI relativo à 1.ª prestação do ano de 2009 incidente sobre as fracções autónomas “C” a “Q” do artigo matricial n.º 110618-U 1371, da freguesia do ………, correspondente ao prédio sito na Rua ……… n.º …, em Lisboa, no montante de € 4.107,52 e acrescido (cfr. autuação e certidão de dívida, a fls. 1 a 3 do processo de execução fiscal apenso, e documento de cobrança, a fls. 39 e 40 dos autos);

B) A ora oponente foi citada da instauração da execução fiscal em 5 de Junho de 2010 (cfr. informação oficial e aviso de citação, a fls. 3, 4 e 38 dos autos);

C) Em 1 de Julho de 2010 foi apresentada, no Serviço de Finanças de Lisboa 8, a presente oposição à execução fiscal (cfr. carimbo aposto na p.i., a fls. 6 dos autos);

D) Por escritura pública lavrada, em 16 de Dezembro de 1988, no 21.º Cartório Notarial de Lisboa, a A………… declarou comprar, livres de ónus e encargos, a B………… e esposa e a C………… e esposa, que declararam vender, 16 fracções autónomas identificadas pelas letras “A”, “B”, “C”, “D”, “E”, “F”, “G”, “H”, “1”, “J”, “L”, “M”, “N”, “O”, “P” e “Q”, correspondentes ao rés-do-chão, 1.º e 2.º a 8.º andares direitos e esquerdos, perfazendo a totalidade do prédio em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ……… n.º …, freguesia do ………, em Lisboa, referido em A) que antecede (cfr. cópia da escritura de compra e venda, a fls. 17 a 28 dos autos)».


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2.2 DE DIREITO

2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

Citada para a execução fiscal contra si instaurada para cobrança de dívidas provenientes de Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) relativo ao ano de 2009 (1.ª prestação) e às fracções autónomas “C” a “Q” do prédio sujeito ao regime de propriedade horizontal, inscrito na matriz predial da freguesia do ……… sob o n.º 110618-U 1371, da freguesia do ………, veio a Embaixada de A………… deduzir oposição.
Interessa-nos agora apenas considerar o fundamento que determinou a procedência da oposição à execução fiscal: a ilegalidade prevista na alínea a) do n.º 1 do art. 204.º do CPPT.
Na verdade, a Juíza do Tribunal Tributário de Lisboa, louvando-se no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 10 de Julho de 2014, proferido no processo n.º 7445/14 (Disponível em
http://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/29143ee1e19ba6b780257d17002d6522?OpenDocument.), considerou, em síntese, que a isenção referida no art. 23.º, n.º 1, da Convenção sobre Relações Diplomáticas, na medida em que constitui um privilégio de direito internacional que afasta a aplicação da legislação interna em matéria tributária aos locais de missão diplomática (v.g., embaixadas) e que prevalece sobre o direito interno infraconstitucional, nos termos do n.º 2 do art. 8.º da CRP, impõe aos tribunais recusar a aplicação de norma que viole aquele tratado internacional, ao qual o Estado Português se vinculou.
Mais considerou que a discussão sobre «esta realidade» se situa no âmbito da ilegalidade abstracta da liquidação subjacente à dívida exequenda, e não no âmbito da legalidade concreta deste acto, motivo por que deve admitir-se como fundamento de oposição à execução fiscal, enquadrável na alínea a) do n.º 1 do art. 204.º do CPPT.
A Fazenda Pública discorda desse entendimento. Em resumo, entende que a discussão em torno da existência de uma isenção a benefício do executado se refere à legalidade em concreto da liquidação e, por isso, está vedada em sede de oposição à execução fiscal. Em abono da sua tese, invoca a doutrina exposta por JORGE LOPES DE SOUSA (No Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, III volume, anotação 4 ao art. 204.º, pág. 443 e segs.), relativamente à distinção entre ilegalidade abstracta e ilegalidade em concreto da liquidação, para concluir «estamos perante um caso de ilegalidade em concreto e não em abstracto», uma vez que esta exigiria que estivesse em discussão «se a própria lei que é objecto de aplicação padece de vícios de violação de lei superior» e «nem o CIMI, nem qualquer concreta norma constante do mesmo diploma padece de ilegalidade, seja por postergação de lei fundamental, seja por violação de tratado ou Convenção de Direito Internacional». Mais argumenta com a violação do princípio da igualdade; considerando que o art. 23.º, n.º 1, da Convenção sobre Relações Diplomáticas postula uma verdadeira isenção, entende como violador daquele princípio o entendimento que a mesma, porque resultante de convenção internacional, possa ser invocada em sede de oposição à execução fiscal, quando a jurisprudência tem vindo a recusar essa possibilidade relativamente às isenções previstas no direito interno.
Assim, como adiantámos em 1.6, a questão que cumpre apreciar e decidir é a de saber se a sentença fez correcto julgamento quando considerou que a invocada violação da isenção fiscal prevista no art. 23.º da Convenção sobre Relações Diplomáticas pode subsumir-se ao fundamento de oposição à execução fiscal previsto na alínea a) do n.º 1 do art. 204.º do CPPT.

2.2.2 DA ISENÇÃO PREVISTA NO ART. 23.º DA CONVENÇÃO SOBRE RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS COMO FUNDAMENTO DE OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO FISCAL

2.2.2.1 Antes do mais, a Convenção sobre Relações Diplomáticas (doravante, Convenção), celebrada em Viena em 18 de Abril de 1961, aprovada pelo Estado Português através do Decreto-Lei n.º 48295, de 27 de Março de 1968, e pela A………… através da resolução n.º 3/91 da Assembleia do Povo, de 16 de Março de 1991 (Cfr. Aviso n.º 20/91, publicado no Diário da República de 9 de Fevereiro de 1991, I Série-A, n.º 34, pág. 647 (https://dre.pt/application/file/478494).), é um tratado internacional que, tendo por pressupostos o reconhecimento, desde tempos remotos, pelos povos de todas as nações do estatuto dos agentes diplomáticos, o estatuto de igualdade soberana dos Estados, reconhecido na Carta das Nações Unidas (cfr. art. 2.º, n.º 1), e os propósitos de manutenção da paz e da segurança internacional e do desenvolvimento das relações de amizade entre as nações, visa estabelecer regras sobre relações, privilégios e imunidades diplomáticas, no convencimento de que estas contribuirão para o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações, independentemente da diversidade dos seus regimes constitucionais e sociais e no pressuposto de que a finalidade de tais privilégios e imunidades não é beneficiar indivíduos, mas sim a de garantir o eficaz desempenho, das funções das missões diplomáticas, na sua dimensão de representantes dos Estados.
Assim, aquela Convenção, entre outros privilégios e imunidades, estabelece no seu art. 23.º:

«1. O Estado acreditante e o chefe de missão estão isentas de todos os impostos e taxas nacionais, regionais ou municipais sobre os locais da missão de que sejam proprietários ou inquilinos, exceptuados os que representem o pagamento de serviços específicos que lhes sejam prestados.

2. A isenção fiscal a que se refere este artigo não se aplica aos impostos e taxas cujo pagamento, em conformidade com a legislação do Estado acreditador, incumba às pessoas que contratem com o Estado acreditante ou com o chefe de missão».

Tenha-se presente que missão diplomática,é o grupo de funcionários de um Estado (Estado acreditante) presente no território de outro Estado (Estado acreditado ou Estado acreditador) com o objectivo, designadamente, de representar o Estado acreditante perante o Estado acreditado (cfr. art. 3.º, alínea a), da Convenção). No caso que ora nos ocupa, a missão diplomática é a Embaixada (A Missão Diplomática é usualmente designada em função da categoria do chefe da Missão, adoptando-se a expressão embaixada quando o chefe da Missão tem a categoria de embaixador.) de A………… em Portugal.
Nos termos das alíneas a) e i) do art. 1.º da Convenção, respectivamente, ««Chefe de missão» é a pessoa encarregada pelo Estado acreditante de agir nessa qualidade» e ««Locais de missão» são os edifícios, ou parte dos edifícios e terrenos anexos, seja quem for o seu proprietário, utilizados para as finalidades da missão, inclusive a residência do chefe da missão».
As prerrogativas diplomáticas – privilégios e imunidades – que a Convenção estabelece podem ser classificados em inviolabilidade (A inviolabilidade abrange a sede da Missão e as residências particulares dos diplomatas, bem como os bens ali situados e os meios de locomoção. Aplica-se também à correspondência e as comunicações diplomáticas.), imunidade de jurisdição civil e penal (Da imunidade de jurisdição decorre que os actos da Missão e os de seus diplomatas não podem ser apreciados em juízo pelos tribunais do Estado acreditado. Além de imunidade de jurisdição civil e administrativa, os agentes diplomáticos também gozam de imunidade de jurisdição penal. A imunidade de execução é absoluta: eventuais decisões judiciais ou administrativas desfavoráveis à Missão ou aos diplomatas não podem ser cumpridas à força pelas autoridades do Estado acreditado.) e isenção fiscal, além de outros direitos (Cfr. JOSÉ CALVET DE MAGALHÃES, Manuel Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 3.ª edição, pág. 68 e segs.).
Interessa-nos agora a isenção fiscal, que abrange o Estado acreditante, o chefe da Missão, a própria Missão e os agentes diplomáticos. Esta isenção inclui os impostos nacionais, regionais e municipais, bem como os direitos aduaneiros, ficando fora do seu âmbito apenas os tributos (taxas) que «representem o pagamento de serviços específicos que lhes sejam prestados» e, bem assim, aqueles «impostos e taxas cujo pagamento, em conformidade com a legislação do Estado acreditador, incumba às pessoas que contratem com o Estado acreditante ou com o chefe de missão».
A sentença, por remissão para o já referido acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, teceu pertinentes considerandos em torno da isenção prevista no art. 23.º da Convenção, procurando distingui-la da isenção tributária em sentido estrito, que aqui reproduzimos e reiteramos, por com eles concordarmos integralmente: «[…] não obstante o nomen iuris utilizado pela Convenção não se está perante uma isenção tal como ela é classicamente concebida pela doutrina e jurisprudência mas de uma verdadeira inexistência de imposto. Com efeito a isenção fiscal ou tributária, tal como a incidência, têm origem na lei. O que sucede é que o Estado ou a entidade pública competente para lançar e liquidar o tributo e exigir o seu pagamento procede à exclusão deste através da norma de isenção. Isto é, a isenção não impede o estabelecimento da relação tributária e consequentemente a constituição da obrigação tributária mas apenas a formação do crédito tributário. […] Diferentes são as coisas quando se aplica uma norma convencional internacional, como é o caso do art. 23.º, n.º 1, da referida Convenção. Esta norma prevalece sobre o direito ordinário português nos termos do art. 8.º da CRP, cujo n.º 2 confere vigência ao Direito Internacional Convencional não abrangido pelo n.º 1 (normas e princípios de Direito Internacional Geral ou comum), através da cláusula geral de recepção plena, sujeita à conditio da publicação do direito convencional recepcionado, nos quais se incluem os tratados solenes e os acordos formalmente simplificados. Tendo ocorrido a publicação da Convenção e sendo regular o processo da sua adopção por parte de Portugal, as respectivas disposições impõem-se sobre a legislação ordinária interna em tudo o que seja conflituante com esta. A Convenção consagra privilégios, inviolabilidades e imunidades. Sendo irrelevante para o caso vertente a noção de inviolabilidade, importa, porém, precisar os conceitos de privilégio e imunidade. A imunidade diplomática traduz o conjunto de prerrogativas reconhecidas pelo Direito Internacional costumeiro e pela comitas gentium [cortesia internacional], concedidas aos agentes diplomáticos, na base da reciprocidade e no interesse mútuo dos Estados, que permitem o exercício completo e cabal das suas missões. O privilégio significa atribuir aos diplomatas e aos locais de missão um regime jurídico de excepção, isentando-os da aplicabilidade de normas ou regimes jurídicos ou concedendo-lhes vantagens que por regra não são concedidas aos nacionais. Quer as imunidades, quer os privilégios, subtraem os diplomatas e os locais de missão à autoridade e à competência jurisdicional do Estado acreditado. Por isso nem sempre é fácil estabelecer a linha de fronteira entre uns e outros, considerando-se por regra que a imunidade impede a sujeição a uma norma de direito interno enquanto o privilégio determina a substituição da lei geral por uma regra especial de Direito interno. A Convenção manteve esta distinção, consagrando imunidades baseadas em normas de direito internacional, bem como privilégios, fundadas também no direito internacional, como é o caso das isenções fiscais. E em matéria de impostos consagrou simples medidas de cortesia, em relação às quais o Direito internacional não reconhece qualquer carácter imperativo, como sucede em matéria de isenções aduaneiras. […] Do exposto concluiu-se que a isenção referida no n.º 1 do art. 23.º, não é uma isenção segundo o conceito acima explanado mas antes um privilégio de direito internacional que impede que se estabeleça qualquer relação tributária em tudo o que diga respeito às missões diplomáticas, o mesmo é dizer, impede a aplicação a estas entidades da lei nacional em matéria de definição e fixação da tributação. Isto é, trata-se de um privilégio em que a norma especial consubstanciada no referido art. 23.º, n.º 1, da Convenção e recepcionada no Direito interno por força do art.º 8.º, n.º 2, da CRP, afasta a norma geral tributária que seria aplicável, determinando que o Estado acreditante ou agente diplomático não possam ser contribuintes no Estado português, uma vez que, no plano dos princípios, o pagamento de impostos é um ato de sujeição incompatível com a soberania dos Estados».
Subscrevemos integralmente estes considerandos: na verdade, o art. 23.º, n.º 1, da Convenção, ao isentar os locais das missões diplomáticas de todo e qualquer imposto, nem sequer pode considerar-se uma isenção no sentido estrito do termo; é, isso, sim, um privilégio de direito internacional que, com a excepção nele prevista (quando os tributos respeitem ao «pagamento de serviços específicos que lhes sejam prestados»), impede o estabelecimento da relação tributária relativamente às missões diplomáticas, encontrando o seu fundamento último na não sujeição de um Estado à soberania de outro.
O que nos leva à conclusão de que, na inexistência de imposto, não faz sentido o recurso à figura da isenção tributária na sua formulação tradicional que, como é sabido, tem sido vista dominantemente, na nossa doutrina, como um facto impeditivo da constituição da obrigação tributária. Como salienta ALBERTO XAVIER, o facto em que a isenção se traduz não esgota a sua eficácia no plano da relação jurídica do imposto. Configura-se como um facto impeditivo quanto à constituição da relação tributária, mas assume valor constitutivo de uma situação jurídica complexa – a de contribuinte isento – que é inteiramente distinta da do não contribuinte (Cfr. Manual de Direito Fiscal,Lisboa, 1974, pág. 281 e segs.). Segundo o mesmo Autor, «a norma tributária material não se limita sempre, na sua hipótese, à previsão do facto tributário […]. Muitas vezes, na verdade, faz paralisar a eficácia desse facto pela previsão de um outro cuja verificação impede a produção dos efeitos típicos do primeiro: esse outro facto é a isenção do imposto»; e prossegue: «A isenção tem a natureza jurídica de um facto impeditivo autónomo e originário e não de uma simples delimitação negativa do facto constitutivo (incidência) […]. A não incidência decorre da não verificação de um elemento positivo do tipo legal do facto tributário ou da verificação de um seu elemento negativo […]. A isenção dá-se quando, não obstante se ter verificado o facto tributário em todos os seus elementos, a eficácia constitutiva deste é paralisada originariamente pela ocorrência de um outro facto a que a lei atribui assim eficácia impeditiva» (Ibidem.).
Ou seja, podemos concluir, com a sentença recorrida, que a isenção prevista no art. 23.º, n.º 1, da Convenção não é uma isenção em sentido estrito, enquanto benefício fiscal (Ver art. 2.º, n.º 2, do Estatuto dos Benefícios Fiscais ), mas antes um privilégio de direito internacional, equiparável a uma situação de não tributação.

2.2.2.2 Dito isto, podemos agora avançar para, também com a sentença, afirmarmos que o direito internacional convencional vigora na ordem jurídica portuguesa, por efeito da vinculação internacional do Estado português, sem que para tanto seja requerida outra formalidade para além da mera publicação. Isto, porque o Direito português consagra uma cláusula geral de recepção automática do direito internacional convencional, que adquire relevância na ordem interna independentemente de outra formalidade que não seja a mera publicação, como decorre do n.º 2 do art. 8.º da Constituição da República Portuguesa («O n.º 2 estabelece igualmente um regime de recepção automática, mas condicionada, das normas de DIP convencional internacionalmente vinculativas do Estado Português, ou seja, dos tratados e acordos internacionais que abranjam Portugal, quer por o país ser parte nele, quer por ter sido convencionado por uma organização internacional de que Portugal faça parte (por exemplo, um tratado acordado pela UE com terceiros estados). A Constituição exige que a convenção tenha sido «regularmente aprovada ou ratificada» (i. é, aprovada e/ou ratificada de acordo com as regras constitucionais) e tenha sido oficialmente publicada (i. é, publicada no DR - cfr. art. 119.º-1/b)» (cfr. VITAL MOREIRA e GOMES CANOTILHO, Constituição da República Portuguesa, volume I, 4.ª edição, Coimbra Editora, 2007, anotação IV, pág. 255).).
Por outro lado, ainda que a questão não seja pacífica, a posição maioritária sustenta que os tratados internacionais têm valor hierárquico superior ao das leis ordinárias, pelo que devem prevalecer sobre elas em caso de conflito (Sobre a questão, desenvolvidamente, VITAL MOREIRA e GOMES CANOTILHO, ob. e vol cit.,anotação IX, pág. 259 e segs.).

2.2.2.3 Dito isto, resta-nos verificar, em abstracto, se, tendo sido efectuada liquidação de IMI sobre prédio que possa ser considerado local de missão (que, vimos já, «são os edifícios, ou parte dos edifícios e terrenos anexos, seja quem for o seu proprietário, utilizados para as finalidades da missão, inclusive a residência do chefe da missão») e tendo sido instaurada execução fiscal para cobrança da dívida respectiva, pode ser deduzida oposição a essa execução fiscal com o fundamento previsto na alínea a) do n.º 1 do art. 204.º do CPPT.
O n.º 1 do art. 204.º do CPPT, que elenca os fundamentos de oposição à execução fiscal, prevê na sua alínea a): «Inexistência do imposto, taxa ou contribuição nas leis em vigor à data dos factos a que respeita a obrigação ou, se for o caso, não estar autorizada a sua cobrança à data em que tiver ocorrido a respectiva liquidação».
Como diz JORGE LOPES DE SOUSA, «Está-se, aqui, perante aquilo que doutrinal e jurisprudencialmente se designa por ilegalidade abstracta da liquidação, que se distingue da «ilegalidade em concreto» por na primeira estar em causa a ilegalidade do tributo e não a mera ilegalidade do acto tributário ou da liquidação; isto é, na ilegalidade abstracta a ilegalidade não reside directamente no acto que faz aplicação da lei ao caso concreto, mas na própria lei cuja aplicação é feita, não sendo, por isso, a existência de vício dependente da situação real a que a lei foi aplicada nem do circunstancialismo em que o acto foi praticado» e «Cabem neste conceito de ilegalidade abstracta todos os casos de normas que violam regras de hierarquia superior, designadamente, além das normas constitucionais, as de direito comunitário ou internacional vigentes em Portugal ou mesmo normas legislativas de direito ordinário quando é feita aplicação de normas regulamentares. Inserem-se ainda neste conceito de ilegalidade abstracta os casos em que a norma que foi aplicada no acto de liquidação não podia sê-lo por qualquer outra razão, como é o caso de existir lei especial que estabeleça a ineficácia de quaisquer normas» (Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, III volume, anotação 4 ao art. 204.º, pág. 443 e segs.).
A Recorrente, louvando-se na doutrina expendida por JORGE LOPES DE SOUSA, sustenta que a situação não é de ilegalidade abstracta, como decidiu a sentença, mas de ilegalidade em concreto. Mas, salvo o devido respeito, não faz a mais correcta interpretação dessa doutrina.
É certo que, como afirma, «nem o CIMI, nem qualquer concreta norma constante do mesmo diploma, padece de ilegalidade, seja por postergação de lei fundamental, seja por violação de tratado ou Convenção Internacional». Mas isso não significa, sem mais, que a ilegalidade decorrente da tributação em IMI de um local de missão não possa qualificar-se como ilegalidade abstracta. É que, atento o que ficou dito, a tributação dos locais de missão diplomática não é permitida por lei, sendo que o referido art. 23.º, n.º 1, da Convenção sobre Relações Diplomáticas, celebrada em Viena em 18 de Abril de 1961, obsta a essa tributação. E as normas do CIMI que conflituem com essa norma convencional internacional devem ter-se por derrogadas, nos termos que deixámos referidos.
Sendo seguro o princípio da primazia do direito internacional sobre o direito ordinário interno – não obstante se manter em aberto a discussão sobre qual o tipo de vício que atinge uma norma de direito interno que venha dispor contra uma norma de direito internacional vigente na ordem jurídica portuguesa que deva prevalecer sobre aquela (Cfr. VITAL MOREIRA e GOMES CANOTILHO, ob. e vol cit.,anotação XI ao art. 8.º, pág. 261 e segs.) –, no fundo, e para o efeito que nos interessa considerar, tudo se passa como se não houvesse norma a permitir a tributação dos prédios que constituam locais de missão.
Em conclusão, consideramos que bem andou a sentença ao considerar que o fundamento em causa é subsumível à alínea a) do n.º 1 do art. 204.º do CPPT.
Aliás, este Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a considerar que «[c]abem neste conceito de ilegalidade abstracta todos os casos de actos que aplicam normas que violam regras de hierarquia superior, designadamente, além das normas constitucionais, as de direito comunitário ou internacional vigente em Portugal» (Cfr. acórdão de 20 de Abril de 2014, proferido no processo n.º 76/14, publicado no Apêndice ao Diário da República de 20 de Novembro de 2014 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2014/32220.pdf), págs. 1387 a 1390, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/eb4053d25c037b8f80257cc4003a1802?OpenDocument.).

2.2.2.4 Isto não significa, sem mais, que possamos confirmar a sentença recorrida.
É que, como bem salientou o Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal Administrativo, a sentença não fixou toda a factualidade necessária à decisão da causa, designadamente a relativa ao destino dado às fracções que estiveram na origem da liquidação que deu origem à dívida exequenda (O Procurador-Geral Adjunto refere também a falta de factualidade que permita estabelecer a verificação do requisito da reciprocidade de tratamento, mas, salvo o devido respeito, apenas se imporia o conhecimento desse requisito caso a isenção em causa fosse a prevista no art. 44.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais e – bem ou mal, aqui não cumpre apreciar – o imposto está a ser exigido, não ao Estado A………, mas à Embaixada da A………….).
Dando de barato que as fracções em causa permaneçam como propriedade do Estado A…………, a sentença não fixou factualidade que permita conclusão alguma quanto ao destino que lhes foi dado no ano em causa, sendo que, nos termos que deixámos referidos, o art. 23.º, n.º 1, da Convenção apenas lhes será aplicável se puderem considerar-se como local de missão (que, vimos já, «são os edifícios, ou parte dos edifícios e terrenos anexos, seja quem for o seu proprietário, utilizados para as finalidades da missão, inclusive a residência do chefe da missão»).
Apesar de os autos fornecerem elementos quanto à destinação que lhes é dada (cfr. n.º 4 da informação prestada pelo serviço de finanças ao abrigo do disposto no n.º 1 do art. 208.º do CPPT, a fls. 3 e 4), este Supremo Tribunal Administrativo carece de poderes em matéria de facto que lhe permitam suprir a omissão do julgamento da matéria de facto.
Deste modo, impõe-se diligenciar no sentido de que o Tribunal a quo efectue o julgamento desse facto e profira nova sentença em conformidade com o regime jurídico exposto.
Há, pois, necessidade de ampliar a matéria de facto com vista a obter todos os elementos que suportem a decisão de direito, designadamente no que respeita ao destino dado às fracções autónomas em causa no período sob análise, o que importa a anulação da decisão recorrida em conformidade com o disposto nos arts. 729.º n.º 3 e 730.º do CPC, na redacção anterior à que lhe foi dada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 36/2013, de 12 de Agosto (nesta nova redacção, correspondem-lhe os arts. 682.º e 683.º).
Em conclusão, anular-se-á a sentença e ordenar-se-á a devolução dos autos à 1.ª instância, para ampliação da matéria de facto e prolação de nova sentença de acordo com o regime jurídico fixado (que, aliás, é o que foi adoptado na sentença ora anulada por insuficiência da matéria de facto).

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - Contrariamente à ilegalidade em concreto da liquidação da dívida exequenda – cuja discussão, em regra, está vedada em sede de oposição à execução fiscal –, a ilegalidade abstracta pode ser discutida na oposição, por se enquadrar no fundamento previsto na alínea a) do n.º 1 do art. 204.º do CPPT.
II - Nos termos do art. 8.º, n.º 2, da CRP, as normas de convenção internacional, quando regularmente adoptadas pelo Estado Português e publicadas na forma legal, prevalecem sobre o direito interno infraconstitucional, em tudo que seja conflituante com este, motivo por que os tribunais devem recusar a aplicação de lei ou norma jurídica que viole tratado internacional a que Portugal se tenha vinculado.
III - A isenção referida no art. 23.º, n.º 1, da Convenção sobre Relações Diplomáticas, porque não é uma isenção segundo o conceito tradicional, mas um privilégio de direito internacional que afasta a aplicação aos locais de missão da legislação interna em matéria tributária, enquadra-se no fundamento de oposição previsto na alínea a) do art. 204.º, n.º 1, do CPPT.
IV - Não tendo a sentença recorrida fixado a factualidade pertinente a decisão, impõe-se a sua anulação, para efectuar o julgamento da matéria de facto em falta e prolação de nova sentença de acordo com o regime jurídico fixado pelo Supremo Tribunal Administrativo (actuais arts. 682.º e 683.º do CPC).

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3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em anular a decisão recorrida e ordenar que os autos regressem ao tribunal recorrido, para ampliação da matéria de facto e aplicação do direito nos termos acima enunciados.

Sem custas.

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Lisboa, 17 de Junho de 2015. – Francisco Rothes (relator) – Aragão SeiaCasimiro Gonçalves.