Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:07445/14
Secção:CT- 2º JUÍZO
Data do Acordão:07/10/2014
Relator:BENJAMIM BARBOSA
Descritores:OPOSIÇÃO – EMBAIXADA
Sumário:(i) O juiz tributário tem o dever de, no âmbito do princípio do inquisitório previsto nos artigos 99.º, n.º 1, da LGT e 13.º, n.º 1, do CPPT, de descoberta da verdade material e de, neste contexto, fixar toda a materialidade relevante para a decisão da causa, com o fito de aproximar o mais possível a decisão à realidade dos factos em relação aos quais se vai pronunciar. Contudo apenas se pode servir dos factos que, por força da lei, lhe seja lícito conhecer.

(ii) Compete ao juiz da causa e não às partes seleccionar a matéria de facto que entenda relevante para a solução do litígio, competindo-lhe também fixar a redacção que tenha por mais apropriada para a descrição desses mesmos factos.

(iii) A ilegitimidade a que se refere a al. b) do n.º 1 do art.º 204.º do CPPT não é uma ilegitimidade substantiva tributária, enquanto elemento de definição da posição do contribuinte perante o imposto que lhe é exigido, mas uma ilegitimidade face ao título executivo, que define o âmbito e as partes da execução, nos termos do art.º 53.º, n.º 1, do CPC).

(iv) A ilegalidade abstracta da liquidação pode ser discutida na oposição, por estar abrangida pela primeira parte da al. a) do n.º 1 do art.º 204.º do CPPT.

(v) A isenção, tendo origem na lei, não impede o estabelecimento da relação tributária e consequentemente a constituição da obrigação tributária mas apenas a formação do crédito tributário.

(vi) A isenção fiscal ­de um imposto ou de uma taxa não constitui fundamento de oposição à execução fiscal, porque isso conduziria directa ou indirectamente à apreciação da legalidade concreta da dívida exequenda.

(vii) Nos termos do art.º 8.º, n.º 2, da CRP, as normas de convenção internacional, quando regularmente adoptadas pelo Estado Português e publicadas na forma legal, prevalecem sobre o direito interno infraconstitucional, interna em tudo que seja conflituante com este.

(viii) Assim, a isenção referida no art.º 23.º, n.º 1, da Convenção sobre Relações Diplomáticas, não é uma isenção segundo o conceito referido supra em (v), mas um privilégio de direito internacional que afasta a aplicação aos locais de missão da legislação interna em matéria tributária.

(ix) Os tribunais devem recusar a aplicação de lei ou norma jurídica que viole tratado internacional a que Portugal se tenha vinculado.

(x) A ilegalidade abstracta da dívida exequenda, baseada no referido art.º 23.º, n.º 1, da Convenção, constitui fundamento de oposição, nos termos do art.º 204.º, n.º 1, al. a), do CPPT.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL:

1 - Relatório

a) - As partes e o objecto do recurso

A Embaixada ……………………, inconformada com a sentença proferida pelo TT de Lisboa na oposição à execução fiscal n.° …………………, instaurado por dívidas provenientes de Imposto Municipal sobre Imóveis relativo ao ano de 2010 (1.ª prestação), no montante de 3.960,82€, veio interpor recurso jurisdicional em cujas alegações concluiu deste modo:
1.ª A sentença proferida pelo Tribunal a quo encerra em primeiro lugar um erro de julgamento da matéria de facto e, em segundo lugar, um erro de aplicação do direito;
2.ª O erro de julgamento da matéria de facto decorre da desconsideração de parte dos documentos juntos com a petição inicial e de factos alegados pela Oponente, ora Recorrente, em violação dos artigos 99.°, n.° 1 da LGT e 13.°, n.° 1 do CPPT, que consagram o princípio do inquisitório pleno que vigora no contencioso tributário;
3.ª Em cumprimento daqueles preceitos normativos, o tribunal a quo, ao fixar a matéria de facto necessária à apreciação da causa estava obrigado a ter em conta a totalidade dos documentos juntos com a petição inicial e bem como a totalidade dos factos, alegados pela ora Recorrente, mas não constantes quer da matéria de facto assente, quer da controvertida, o que não fez;
4.ª Já o erro de direito decorre da violação do disposto no artigo 204.°, n.° 1 alínea a) do CPPT, conjuntamente com o artigo 8.°, n.° 2 da Constituição, ou, subsidiariamente, da alínea i) do mesmo artigo cumulativamente com a mesma norma da Lei Fundamental;
5.ª A sentença do tribunal a quo, decide pela absolvição da instância da Fazenda Pública com fundamento em erro no meio processual, por não se verificarem os pressupostos de oposição à execução, nomeadamente aquele previsto na alínea a) do n.° 1 do artigo 204.° do CPPT;
6.ª Mais concretamente, o sentido da decisão do tribunal a quo assenta na consideração de que a inexistência do imposto objecto da execução, decorre de uma ilegalidade do acto de liquidação, vício que não se subsume no conceito de ilegalidade abstracta ou absoluta da liquidação, e que encontra acolhimento na previsão do artigo 204.°, n.° 1 alínea a);
7.ª É com este erro de interpretação que a Recorrente não se conforma;
8.ª A Reclamante invocou, como fundamento da oposição à execução a inexistência do imposto em causa sobre as fracções em apreço por força do disposto no artigo 23.°, n.° 1 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, a que ambas as Repúblicas, Portuguesa e de Angola, aderiram, conjugado com o artigo 8.°, n.° 2 da Constituição;
9.ª A inexistência do imposto objecto da presente execução, pela violação dos referidos preceitos, é uma ilegalidade abstracta, por não se consubstanciar num vício próprio do acto de liquidação do imposto, incorrido por ocasião da sua prática, ao contrário do que vem sustentado na sentença da qual se recorre;
10.ª Não obstante ser unânime a jurisprudência do STA em considerar que a isenção fiscal — quer de um imposto, quer de uma taxa — não constitui fundamento de oposição à execução, porque tal conduziria directa ou indirectamente à apreciação da legalidade da dívida, a isenção em causa provém de normativo internacional, mais concretamente da Convenção sobre Relações Diplomáticas, celebrada em Viena, em 18/04/1961, à qual o Estado Português e a República de Angola aderiram, respectivamente, pelo Decreto-Lei n.° 48295, de 27/3/1968 e pela Resolução n.° 3/91 da Assembleia do Povo, de 16/03/1991;
11.ª O fundamento para a oposição à execução previsto na alínea a) do n.° 1 do artigo 204.° do CPPT, ou seja, a "inexistência do imposto, taxa ou contribuição nas leis em vigor à data dos factos a que respeita a obrigação, ou, se for o caso, não estar autorizada a sua cobrança à data em que tiver ocorrido a respectiva liquidação", abrange os casos de normas que violam regras de hierarquia superior; a ilegalidade é abstracta porque, afectando a própria lei, não depende do acto que faz a sua aplicação em concreto;
12.ª Da vigência na ordem jurídica portuguesa da Convenção de Viena, da sua adesão pela República de Angola, do valor supra legal (e infra Constitucional) que o Direito Internacional Convencional ocupa na hierarquia das fontes do direito português, deduz-se que qualquer lei ordinária, anterior ou posterior, que contrarie o disposto naquela Convenção é ineficaz. Ineficácia que se traduz na inaplicabilidade, ou seja, na recusa da sua aplicação pelos Tribunais, enquanto a Convenção em causa vincular Portugal;
13.ª Assim, o disposto no artigo 23.°, n.° 1 da Convenção de Viena, embora não prevaleça sobre a Constituição, prevalece sobre a lei ordinária interna (e por maioria de razão sobre a norma de incidência tributária de CIMI);
14.ª O caso sub judice integra-se na previsão da alínea a) do n.° 1 do artigo 204.° do CPPT porquanto, considerando-se a prevalência, por hierarquia, da Convenção sobre as normas que preveem a tributação no caso concreto, o tribunal deve desaplicá-las por violação do Direito Internacional — violação essa que se reconduz ao conceito de ilegalidade abstracta. Não foi a apreciação da legalidade da liquidação, em concreto, que constituiu o fundamento de oposição à execução, mas sim violação, em abstracto, do Direito Internacional Convencional pela norma de incidência. O vício de que padece não a liquidação, mas a norma de incidência, tem como consequência a inaplicabilidade da norma e, consequentemente, a não existência de dívida. Constitui fundamento de oposição à execução a não existência da dívida exequenda nas leis em vigor;
15.ª Ainda que assim não se entendesse, sempre se devia considerar
verificado o fundamento previsto na alínea i) do n.° 1 do artigo 204.° do CPPT. O imposto não é exigível, face ao disposto no artigo 23.°, n.° 1 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas. Pela inexigibilidade do imposto, sempre a oposição à execução deduzida pela Recorrente seria admissível por força da alínea i) do mesmo artigo 204.° do CPPT. Nesta alínea i) são enquadráveis "todas as situações não abrangidas pelas outras alíneas do mesmo número, em que existir um facto extintivo ou modificativo da dívida exequenda ou que afecta a sua exigibilidade".

A Fazenda Pública não contra-alegou.

Neste TCAS o EMMP emitiu douto parecer em que sustenta que deve ser concedido provimento ao recurso.

Colhidos os vistos vem o processo à conferência.


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b) As questões a decidir:
- Erro de julgamento em matéria de facto:
- Erro de julgamento em matéria de direito (ilegitimidade e ilegalidade abstracta do acto de liquidação).

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2 – Fundamentação

a) - De facto
(1) Foi instaurado o processo de execução fiscal n.°…………. contra a Embaixada da República …………… por dívidas de Imposto Municipal sobre Imóveis no montante de 3.960,82€ (capa do PEF e certidão de dívida, fls.8 e 9);
(2) A oponente - Embaixada da República ………….. - foi citada no processo em 09/06/2011 (informação executiva a fls. 5 e doc. de citação a fls. 11);
(3) Deduziu oposição à execução em 01/07/2011, conforme carimbo de entrada aposto pelo serviço de finanças a fls. 30;
(4) Respeita a quantia exequenda a 1.ª prestação do IMI de 2010 incidente sobre treze fracções autónomas adquiridas pela República Popular ………., por compra, em 16/12/1988 (cf. títulos de cobrança e escritura de compra e venda, fls. 22, 23 e 41).
(5) Por escritura pública lavrada a 16-12-1988 no 21° Cartório Notarial de Lisboa a REPÚBLICA POPULAR ………… declarou comprar, livres de ónus e encargos, a Eduardo …… e esposa e a Frederico ……… e esposa, que declararam vender, 16 fracções autónomas identificadas pelas letras A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, L, M, N, O, P e Q, correspondentes ao rés-do-chão, 1°, e 2° a 8° andares direitos e esquerdos, perfazendo a totalidade do prédio em regime de propriedade horizontal, sito nesta cidade de Lisboa, freguesia do Lumiar, na Rua ………………., n° 6, e a que se refere o número anterior (i).


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b) - De Direito

Como é sabido, os recursos jurisdicionais são objectivamente delimitados pelas conclusões do recorrente, as quais, constituindo a síntese da fundamentação contida nas alegações, correspondem à recapitulação dos argumentos jurídicos e de facto que estas encerram, consubstanciando o seu remate lógico (art.º 684.º, n.º 3, do CPC).

Sem embargo, claro está, das questões que o tribunal de recurso pode e deve conhecer ex officio, nos termos dos artigos 660.º, n.º 2, in fine, por força do artº. 713º, nº 2, ambos do CPC, e art.º 95.º, n.º 2, do CPTA.

Contudo, o tribunal de recurso não está vinculado à discussão de todos os argumentos aduzidos nas alegações mas apenas adstrito ao conhecimento das questões suscitadas no recurso, e mesmo assim exceptuando as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 660º, nº 2, do C.P.C., ex vi do cit. art. 713º, nº 2), sem prejuízo, obviamente, da mais ampla liberdade no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, embora só possa servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do uso de factos instrumentais e de factos essenciais que resultem da instrução e discussão da causa, nos termos do art.º 264.º, n.º 2 e 3, do CPC (cfr. 713.º, n.º 2, do CPC), e da consideração oficiosa de factos que não carecem de alegação ou de prova (art.º 514.º do CPC) ou que evidenciem uso anormal do processo (art.º 665.º do CC).

Por último, não obstante as faculdades substitutivas que pode exercer (cfr. art.º 149, n.os 1, 3 e 4, do CPTA), o tribunal ad quem não pode apreciar questão nova que não tenha sido suscitada perante o tribunal a quo. De facto, os recursos de decisões judiciais visam somente reexaminar o decidido, não comportando uma definição ius novarum, que se verificaria se proferissem decisão não submetida ao escrutínio do tribunal a quo.

Postas as coisas nestes termos importa apreciar a primeira questão suscitada nas alegações da recorrente e que diz respeito a um alegado erro de julgamento em matéria de facto por o tribunal a quo não ter considerado parte dos documentos juntos com a petição inicial e factos alegados pela Recorrente, o que em seu entender viola o disposto nos artigos 99.°, n.° 1 da LGT e 13.°, n.° 1 do CPPT, “que consagram o princípio do inquisitório pleno que vigora no contencioso tributário”.

Vejamos.

É verdade que sobre o juiz tributário se abate um dever especialmente reforçado de descoberta da verdade material. Esse dever, que não é privativo da jurisdição tributária e que foi, sobretudo, consagrado na reforma processual de 1995, impõe que o juiz exerça poderes inquisitórios tendentes a fixar toda a materialidade relevante para a decisão da causa, com o fito de aproximar o mais possível a decisão à realidade dos factos em relação aos quais se vai pronunciar.

Contudo, como justamente refere António Lima Guerreiro, o “princípio do inquisitório não pode ser entendido em termos maximalistas, mas tem de ser conju­gado com o princípio do pedido e o próprio ónus de alegação dos factos, que são condições da eficácia do processo. Não tem o juiz, pois, a liberdade de investigação de todos os factos que entender, protelando injustificadamente a decisão do proces­so, mas apenas dos factos que, por força da lei, lhe seja lícito conhecer. A descober­ta da unidade material deve ser conjugada com os princípios da eficiência e racionalidade do processo tributário” (ii).

Acrescente-se que compete ao juiz da causa e não às partes seleccionar a matéria de facto que entenda relevante para a solução do litígio, bem como também compete àquele fixar a redacção que tenha por mais apropriada para a descrição desses mesmos factos.

Volvendo ao caso em apreço constata-se que o único facto elencado na sentença que pode ser objecto de crítica é o referente à aquisição das fracções em causa pela República Popular de Angola, cuja descrição, de um ponto de vista estritamente jurídico, não é correcta. Por isso se operou a adição de um 5.º facto contendo a descrição jurídica do facto aquisitivo das fracções. Tudo o mais alegado na inicial não passa de matéria conclusiva, juízos de valor e argumentação de direito, sendo que as referências a anteriores processos não cabem no conceito de fundamentação de facto. Quando muito poderiam merecer breve referência na fundamentação de direito e como muleta da decisão proferida.

Em face do exposto não se verifica qualquer erro de julgamento na selecção da matéria de facto, excepto quanto ao aspecto acima referido.

A recorrente assaca também à sentença recorrida o erro de julgamento em matéria de direito por errada interpretação e aplicação da al. a) do n.º 1 do art.º 204.º do CPPT, em conjugação com artigo 8.°, n.° 2 da Constituição, ou, subsidiariamente, da alínea i) do mesmo artigo 204.º, também em conjugação com a mesma norma da Lei Fundamental.

A sentença do tribunal a quo decidiu-se pela absolvição da instância da Fazenda Pública com fundamento em erro no meio processual, por entender que não se verificam os pressupostos de oposição à execução, uma vez que se está a discutir a legalidade da liquidação, e também por considerar que não pode ser discutida a questão da legitimidade para a oposição, porque essa questão deveria ter sido objecto de impugnação deduzida na sequência da liquidação.

Esta decisão, adianta-se desde já, não pode manter-se.

Por razões de precedência lógica principiar-se-á pela questão da legitimidade, por esta ser um pressuposto de ordem processual que condiciona a execução. E para isso importa antes de mais precisar o conceito de embaixada para efeitos de relações de direito público internacional.

A Convenção sobre Relações Diplomáticas (Convenção), celebrada em Viena em 18 de Abril de 1961 que entrou em vigor a 24 de Abril de 1964, nos termos do seu artigo 51.º, é um tratado internacional que regula os direitos e deveres dos Estados na condução das relações diplomáticas entre si e o regime das missões diplomáticas, e que foi aprovada pelo Estado Português através do Decreto-Lei n.º 48295, de 27 de Março de 1968 e pela República angolana através da resolução n.° 3/91 da Assembleia do Povo (actual Assembleia Nacional Angolana), de 16-3-1991.

A expressão missão diplomática designa o conjunto de pessoas nomeadas para um Estado (Estado acreditante) para exercer, sob a autoridade de um chefe de missão, funções de caráter diplomático sobre o território de um Estado estrangeiro (Estado acreditado), mas na prática significa o local onde as pessoas designadas pelo Estado acreditante trabalham.

De harmonia com o art.º 3.º, al. a), da Convenção, as funções de uma Missão diplomática consistem, entre outras, em representar o Estado acreditante perante o Estado acreditado. E nos termos do art.º 1.º, al. i), os "Locais da Missão" são “os edifícios, ou parte dos edifícios, e terrenos anexos, seja quem for o seu proprietário, utilizados para as finalidades da Missão inclusive a residência do Chefe da Missão”.

Quer o Estado acreditante que o Chefe da Missão estão isentos de todos os impostos e taxas, nacionais, regionais ou municipais, sobre os locais da Missão de que sejam proprietários ou inquilinos, exceptuados os que representem o pagamento de serviços específicos que lhes sejam prestados (art.º 23.º, n.º 1). Contudo, esta isenção fiscal não se aplica aos impostos e taxas cujo pagamento, na conformidade da legislação do Estado acreditado, incumbir as pessoas que contratem com o Estado acreditante ou com o Chefe da Missão (art.º 23.º, n.º 2).

A Missão Diplomática é usualmente designada em função da categoria de chefe da Missão, adoptando-se a expressão embaixada quando o chefe da Missão tem a categoria de embaixador. As embaixadas estão, geralmente, situadas na capital do país acreditante e dispõem frequentemente de secções consulares.

Considerando, como se disse, que a Missão Diplomática da República de Angola representa esse Estado, tendo os imóveis em causa sido adquiridos por este, o verdadeiro destinatário dos tributos em causa não é a Missão mas o proprietário dos imóveis.

Dito de outro modo o sujeito passivo da relação tributária em causa é a República de Angola e não a sua Missão Diplomática em Portugal, que apenas a representa. Tem por isso razão a recorrente quando defende a sua ilegitimidade substantiva para efeitos de liquidação dos tributos.

Contudo, a ilegitimidade a que se refere a al. b) do n.º 1 do art.º 204.º do CPPT não é uma ilegitimidade substantiva tributária, enquanto elemento de definição da posição do contribuinte perante o imposto que lhe é exigido, mas uma ilegitimidade face ao título executivo, que como é sabido define o âmbito e as partes da execução (cfr. art.º 53.º, n.º 1, do CPC).

Ora, bem ou mal a recorrente figura no título como a executada a quem estão a ser exigidos as dívidas tributárias exequendas, pelo que em relação à execução tem de ser considerada parte legítima. Questão diferente é a de saber se se deve considerar parte na relação substantiva de imposto, isto é, se é ela a legítima responsável pelo pagamento dos impostos que lhe foram liquidados. Mas aí entra-se na discussão da legalidade da dívida a qual não pode ser discutida, prima facie, na oposição à execução.

E dizemos prima facie porque, na verdade e ao contrário do decidido na sentença, a legalidade da liquidação pode ser discutida nesta oposição, já que se trata de uma ilegalidade abstracta abrangida pela primeira parte da al. a) do n.º 1 do art.º 204.º do CPPT, que consagra como um dos fundamentos (taxativos) da oposição a ilegalidade abstracta ou absoluta da liquidação. Segundo Jorge Lopes de Sousa, esta ilegalidade distingue-se da ilegalidade concreta por “estar em causa a ilegalidade do tributo e não a mera ilegalidade do acto tributário ou da liquidação; isto é, na ilegalidade abstracta a ilegalidade não reside directamente no acto que faz aplicação da lei ao caso concreto, mas na própria lei cuja aplicação é feita, não sendo, por isso, a existência de vício dependente da situação real a que a lei foi aplicada nem do circunstancialismo em que o acto foi praticado” (iii).

Ora, afigura-se-nos que a sentença, certamente impressionada com o uso do vocábulo isenção na convenção ante referida, entendeu que se tratava da discussão em concreto da legalidade do acto tributário e por isso não podia a oposição servir para tal fim. Mas errou nessa apreciação, porque não obstante o nomem iuris utilizado pela Convenção não se está perante uma isenção tal como ela é classicamente concebida pela doutrina e jurisprudência mas de uma verdadeira inexistência de imposto.

Com efeito a isenção fiscal ou tributária, tal como a incidência, têm origem na lei. O que sucede é que o Estado ou a entidade pública competente para lançar e liquidar o tributo e exigir o seu pagamento procede à exclusão deste através da norma de isenção. Isto é, a isenção não impede o estabelecimento da relação tributária e consequentemente a constituição da obrigação tributária mas apenas a formação do crédito tributário.

Por isso a jurisprudência tem unanimemente considerado que a isenção fiscal ­de um imposto ou de uma taxa não constitui fundamento de oposição à execução fiscal, porque isso conduziria directa ou indirectamente à apreciação da legalidade da dívida exequenda.

Diferentes são as coisas quando se aplica uma norma convencional internacional, como é o caso do art.º 23.º, n.º 1, da referida Convenção. Esta norma prevalece sobre o direito ordinário português nos termos do art.º 8.º da CRP, cujo n.º 2 confere vigência ao Direito Internacional Convencional não abrangido pelo n.º 1 (normas e princípios de Direito Internacional Geral ou comum), através da cláusula geral de recepção plena, sujeita à conditio da publicação do direito convencional recepcionado, nos quais se incluem os tratados solenes e os acordos formalmente simplificados.

Tendo ocorrido a publicação da Convenção e sendo regular o processo da sua adopção por parte de Portugal, as respectivas disposições impõem-se sobre a legislação ordinária interna em tudo o que seja conflituante com esta.

A Convenção consagra privilégios, inviolabilidades e imunidades. Sendo irrelevante para o caso vertente a noção de inviolabilidade, importa, porém, precisar os conceitos de privilégio e imunidade. A imunidade diplomática traduz o conjunto de prerrogativas reconhecidas pelo Direito Internacional costumeiro e pela comitas gentium [cortesia internacional], concedidas aos agentes diplomáticos, na base da reciprocidade e no interesse mútuo dos Estados, que permitem o exercício completo e cabal das suas missões.

O privilégio significa atribuir aos diplomatas e aos locais de missão um regime jurídico de excepção, isentando-os da aplicabilidade de normas ou regimes jurídicos ou concedendo-lhes vantagens que por regra não são concedidos aos nacionais.

Quer as imunidades, quer os privilégios, subtraem os diplomatas e os locais de missão à autoridade e à competência jurisdicional do Estado acreditado. Por isso nem sempre é fácil estabelecer a linha de fronteira entre uns e outros, considerando-se por regra que a imunidade impede a sujeição a uma norma de direito interno enquanto o privilégio determina a substituição da lei geral por uma regra especial de Direito interno.

A Convenção manteve esta distinção, consagrando imunidades baseadas em normas de direito internacional, bem como privilégios, fundadas também no direito internacional, como é o caso das isenções fiscais. E em matéria de impostos consagrou simples medidas de cortesia, em relação às quais o Direito internacional não reconhece qualquer carácter imperativo, como sucede em matéria de isenções aduaneiras.

Estes traços distintivos entre privilégio fiscal e cortesia fiscal estão patentes no art.º 23.º, n.º 1, que estabelece que “O Estado acreditante e o chefe de missão estão isentas de todos os impostos e taxas nacionais, regionais ou municipais sobre os locais da missão de que sejam proprietários ou inquilinos, exceptuados os que representem o pagamento de serviços específicos que lhes sejam prestados.” e no art.º 36.º, n.º 1, que dispõe: “De acordo com as leis e regulamentos que adopte, o Estado acreditador permitirá a entrada livre de pagamento de direitos aduaneiros, taxas e outros encargos conexos que não constituam despesas de armazenagem, transporte e outras relativas a serviços análogos:

(…)”.

Do exposto concluiu-se que a isenção referida no n.º 1 do art.º 23.º, não é uma isenção segundo o conceito acima explanado mas antes um privilégio de direito internacional que impede que se estabeleça qualquer relação tributária em tudo o que diga respeito às missões diplomáticas, o mesmo é dizer, impede a aplicação a estas entidades da lei nacional em matéria de definição e fixação da tributação. Isto é, trata-se de um privilégio em que a norma especial consubstanciada no referido art.º 23.º, n.º 1, da Convenção e recepcionada no Direito interno por força do art.º 8.º, n.º 2, da CRP, afasta a norma geral tributária que seria aplicável, determinando que o Estado acreditante ou agente diplomático não possam ser contribuintes no Estado português, uma vez que, no plano dos princípios, o pagamento de impostos é um ato de sujeição incompatível com a soberania dos Estados.

Por isso, quando se discute esta realidade não se está a disputar sobre a ilegalidade concreta mas sim sobre a ilegalidade abstracta do acto tributário.

De resto, como entende a generalidade da doutrina, os tribunais devem recusar a aplicação da legislação interna que contrarie norma ou princípio de Direito Convencional Internacional a que Portugal se tenha validamente vinculado.

Procedem, assim, as razões alinhadas pela recorrente contra a sentença, que não podendo manter-se na ordem jurídica determina a sua substituição por segmento decisório que julgue a oposição procedente.

Sumariando, para concluir:

(i) O juiz tributário tem o dever de, no âmbito do princípio do inquisitório previsto nos artigos 99.º, n.º 1, da LGT e 13.º, n.º 1, do CPPT, de descoberta da verdade material e de, neste contexto, fixar toda a materialidade relevante para a decisão da causa, com o fito de aproximar o mais possível a decisão à realidade dos factos em relação aos quais se vai pronunciar. Contudo apenas se pode servir dos factos que, por força da lei, lhe seja lícito conhecer.

(ii) Compete ao juiz da causa e não às partes seleccionar a matéria de facto que entenda relevante para a solução do litígio, competindo-lhe também fixar a redacção que tenha por mais apropriada para a descrição desses mesmos factos.

(iii) A ilegitimidade a que se refere a al. b) do n.º 1 do art.º 204.º do CPPT não é uma ilegitimidade substantiva tributária, enquanto elemento de definição da posição do contribuinte perante o imposto que lhe é exigido, mas uma ilegitimidade face ao título executivo, que define o âmbito e as partes da execução, nos termos do art.º 53.º, n.º 1, do CPC).

(iv) A ilegalidade abstracta da liquidação pode ser discutida na oposição, por estar abrangida pela primeira parte da al. a) do n.º 1 do art.º 204.º do CPPT.

(v) A isenção, tendo origem na lei, não impede o estabelecimento da relação tributária e consequentemente a constituição da obrigação tributária mas apenas a formação do crédito tributário.

(vi) A isenção fiscal ­de um imposto ou de uma taxa não constitui fundamento de oposição à execução fiscal, porque isso conduziria directa ou indirectamente à apreciação da legalidade concreta da dívida exequenda.

(vii) Nos termos do art.º 8.º, n.º 2, da CRP, as normas de convenção internacional, quando regularmente adoptadas pelo Estado Português e publicadas na forma legal, prevalecem sobre o direito interno infraconstitucional, interna em tudo que seja conflituante com este.

(viii) Assim, a isenção referida no art.º 23.º, n.º 1, da Convenção sobre Relações Diplomáticas, não é uma isenção segundo o conceito referido supra em (v), mas um privilégio de direito internacional que afasta a aplicação aos locais de missão da legislação interna em matéria tributária.

(ix) Os tribunais devem recusar a aplicação de lei ou norma jurídica que viole tratado internacional a que Portugal se tenha vinculado.

(x) A ilegalidade abstracta da dívida exequenda, baseada no referido art.º 23.º, n.º 1, da Convenção, constitui fundamento de oposição, nos termos do art.º 204.º, n.º 1, al. a), do CPPT.

Concluindo, o recurso merece provimento, devendo a sentença ser revogada e julgada a oposição procedente.


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3 - Dispositivo:

Em face de todo o exposto acordam em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar a oposição totalmente procedente e consequentemente, decretar a extinção da execução fiscal.

Custas pela recorrida, mas apenas em 1.ª instância.

D.n.

Lisboa, 2014-07-10

______________________________________________________ (Benjamim Barbosa)

_________________________________________________________ (Anabela Russo)

______________________________________________________ (Joaquim Condesso)
(i) Aditado nos termos do art.º 662., n.º 1, do CPC
(ii) Lei Geral Tributária Anotada, Lisboa, Rei dos Livros, 2001, p. 313.
(iii) Código de Procedimento e Processo Tributário Anotado, vol. III, 6.ª Ed., Lisboa, Áreas Ed.ª, 2011, 443.