Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0283/14
Data do Acordão:10/12/2016
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:REFORMA DE DECISÃO JUDICIAL
PEDIDO
REFORMA
ÂMBITO
FUNDAMENTO
Sumário:I - A reforma das decisões judiciais, como uma das excepções legalmente previstas aos princípios da estabilidade das decisões e do esgotamento do poder jurisdicional após a decisão, pressupõe que, por manifesto lapso, tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, a decisão tenha sido proferida com violação de lei expressa ou que dos autos constem documentos ou outro meio de prova que, só por si e inequivocamente, implique decisão em sentido diverso e que não tenha sido considerado igualmente por lapso manifesto [cf. arts. 613.º, n.º 2, e 616.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPC).
II - Essa faculdade excepcional de reformar a decisão tem como escopo corrigir um erro juridicamente insustentável e, como a jurisprudência tem vindo a afirmar, só será admissível perante erros palmares, patentes, que, pelo seu carácter manifesto, se teriam evidenciado ao autor ou autores da decisão, não fora a interposição de circunstância acidental ou uma menor ponderação tê-la levado ao desacerto.
III - Essa faculdade não se destina à correcção de eventuais erros quanto ao âmbito dos poderes de conhecimento pelo tribunal ad quem das questões consideradas prejudicadas em 1.ª instância, quando estejam em causa divergências na interpretação das normas processuais aplicáveis, pois esses erros só poderão ser corrigidos por recurso, nos casos em que a lei ainda o admita.
Nº Convencional:JSTA000P20961
Nº do Documento:SA2201610120283
Data de Entrada:03/06/2014
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A...
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Pedido de reforma do acórdão proferido no processo de oposição à execução fiscal com o n.º 679/05.7BEVIS

1. RELATÓRIO

1.1 O Ministério Público, representado pelo Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal Administrativo (adiante Requerente), invocando o disposto no art. 616.º, do Código de Processo Civil (CPC), veio requerer a reforma do acórdão proferido nos presentes autos (de fls. 140 a 155) por este Supremo Tribunal que, concedendo provimento ao recurso jurisdicional interposto pela Fazenda Pública, revogou a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu e, conhecendo em substituição, julgou improcedente a oposição deduzida por A………….. à execução fiscal que, instaurada contra uma sociedade, prosseguiu contra ele por reversão.

1.2 Considera o Requerente, em síntese e se bem interpretamos a sua alegação, que o acórdão não podia ter conhecido em substituição, como conheceu, da questão que a sentença considerou prejudicada pela solução dada à oposição.
Isto porque, a seu ver, é inquestionável que ao recurso se aplicam as regras do novo CPC e que «nos termos do estatuído no artigo 679.º do NCPC, é manifesto que o STA não pode conhecer em substituição do tribunal recorrido, uma vez que tal normativo, expressamente, refere que o artigo 665.º, que prevê a regra da substituição ao tribunal recorrido, não se aplica ao recurso de revista». Assim, entende que, ao conhecer em substituição, «apenas o pode ter feito por manifesto lapso, pois é manifesto que ao presente recurso se aplica o NCPC» e que «o STA, de facto, conheceu de questão que havia ficado prejudicada, ao abrigo do revogado regime do CPC (artigos 726.º e 715.º/2), quando é certo que nos termos do NCPC (artigo 679.º) aplicável ao presente recurso, questão que nem sequer se discute, o STA não tem, manifestamente, poderes para conhecer em substituição do tribunal recorrido de questões cujo conhecimento ficou prejudicado pela solução dada à causa».
Concluiu que «deve proceder-se à reforma do acórdão na parte em que, por evidente lapso, conheceu de questão que havia ficado prejudicada, baixando os autos à 1.ª instância para aí se conhecer dessa questão».

1.3 Não houve resposta ao pedido de reforma.

1.4 Colheram-se os vistos dos Juízes Conselheiros adjuntos.

1.5 Cumpre apreciar e decidir.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DO PEDIDO DE REFORMA DO ACÓRDÃO

2.1.1 A questão que cumpre apreciar e decidir nos presentes autos é a de saber se a alegação aduzida pelo Requerente integra ou não motivo para a reforma do acórdão, designadamente se é subsumível à previsão do art. 616.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPC, devendo notar-se desde já que o Requerente não indicou a qual das alíneas subsume a sua alegação.
Recordemos a redacção da norma, que foi introduzida no CPC pela reforma de 1995/1996, sofreu ulterior alteração (não relevante para os efeitos de que nos ocupamos) introduzida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, que era o n.º 2 do art. 669.º no CPC anterior e que é hoje a constante do referido art. 616.º, n.º 2:
«[…]
2- Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz:
a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;
b) Constem do processo documentos ou outro meio de prova que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.
[…]».
Ou seja, o anterior art. 669.º do CPC, após a reforma de 1995/1996, continuou, como anteriormente, a permitir a reforma das decisões judiciais (Embora a norma se refira apenas à sentença, deve considerar-se aplicável a todas as decisões judiciais, designadamente aos acórdãos dos tribunais superiores, como resulta expressamente do disposto nos arts. 666.º, n.º 1, e 685.º, do CPC (anteriores 716.º, n.º 1 e 732.º), aplicável ao contencioso tributário ex vi do art. 2.º, alínea e), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).) quanto a custas e multa e, de forma inovadora, veio também permiti-la relativamente a erros de julgamento, em certos casos, numa opção legislativa que se mantém no Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho. O relatório do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, justificou tal opção, à data inovadora, nos seguintes termos:
«[…] sempre na preocupação de realização efectiva e adequada do direito material e no entendimento de que será mais útil, à paz social e ao prestígio e dignidade que a administração da Justiça coenvolve, corrigir que perpetuar um erro juridicamente insustentável, permite-se, embora em termos necessariamente circunscritos e com garantias de contraditório, o suprimento do erro de julgamento mediante a reparação da decisão de mérito pelo próprio juiz decisor, ou seja, isso acontecerá nos casos em que, por lapso manifesto de determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica, a sentença tenha sido proferida com violação de lei expressa ou naqueles em que dos autos constem elementos, designadamente de índole documental, que, só por si e inequivocamente, impliquem decisão em sentido diverso e não tenham sido considerados igualmente por lapso manifesto. Claro que, para salvaguarda da tutela dos interesses da contraparte, esta poderá sempre, mesmo que a decisão inicial o não admitisse, interpor recurso da nova decisão assim proferida.
Recurso este que, note-se, é admissível ainda que a causa esteja compreendida na alçada do tribunal, como refere expressamente o art. 670.º, n.º 4, [hoje, art. 617.º, n.º 4] do CPC».
Ou seja, numa solução que mereceu muitas críticas à doutrina, a lei passou a admitir, como uma das excepções ao esgotamento do poder jurisdicional, que, em circunstâncias muito extraordinárias, o tribunal alterasse a decisão que ele próprio proferiu.
Como resulta do que deixámos dito, a possibilidade de reforma de uma decisão judicial ao abrigo do n.º 2 do art. 616.º do CPC (anterior n.º 2 do art. 669.º) tem carácter de excepção, sendo que «quanto ao alcance do mesmo preceito legal, o STA tem construído um critério orientador para a definição do carácter manifesto do lapso cometido e que possibilita a imediata reparação do erro de julgamento que o originou. Tem sido, com efeito, sublinhada a excepcionalidade desta faculdade, que insere um desvio aos princípios da estabilidade das decisões judiciais e do esgotamento do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (art. 666.º, n.º 1, do CPC), salientando-se que a mesma só será admissível perante erros palmares, patentes, que, pelo seu carácter manifesto, se teriam evidenciado ao autor ou autores da decisão, não fora a interposição de circunstância acidental ou uma menor ponderação tê-la levado ao desacerto» (Cf. Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 25, pág. 54, também citado por JORGE LOPES DE SOUSA no Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, II volume, anotação 8 ao art. 126.º, pág. 388 e, entre muitos outros e para além dos aí referidos, os seguintes acórdãos da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 5 de Fevereiro de 2014, proferido no processo n.º 212/13, publicado no Apêndice ao Diário da República de 15 de Setembro de 2014 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2014/32210.pdf), págs. 428 a 429, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/447f062795b65ff580257c7c003f82b2;
- de 6 de Março de 2014, proferido no processo n.º 290/12, publicado no Apêndice ao Diário da República de 15 de Setembro de 2014 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2014/32210.pdf), págs. 954 a 955, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/1056f3f5408c8ac280257c9900550fb0;
- de 12 de Março de 2014, proferido no processo n.º 1108/13, publicado no Apêndice ao Diário da República de 15 de Setembro de 2014 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2014/32210.pdf), págs. 1123 a 1125, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/af3ad4e3da95dcfc80257c9f003f3958.).
A referida faculdade não se destina, manifestamente, à reapreciação dos factos apurados e sua interpretação ou à reapreciação das regras e princípios de direito aplicados. Se quanto a estas, houver divergência entre o alegado pela parte e o decidido pelo tribunal, a sua reapreciação e a correcção de eventuais erros por este cometidos só será possível em sede de recurso, desde que este seja admissível.

2.1.2 Dito isto, e sendo certo que a lei admite em abstracto a reforma do acórdão, cumpre verificar se a alegação do Requerente integra algum dos casos em que a mesma é autorizada ao abrigo das alíneas a) e b) do n.º 2 do art. 616.º CPC.
Como deixámos já referido, o Requerente não indicou qual o fundamento em que alicerça o seu pedido de reforma: (i) erro na determinação da norma aplicável, (ii) erro na qualificação jurídica dos factos ou (iii) existência no processo de documentos ou outro meio de prova que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida?
Visto o requerimento de reforma, verificamos que a discordância do Requerente com o acórdão cuja reforma ora peticiona assenta, exclusivamente, na circunstância de naquele, na sequência da revogação da sentença recorrida, se ter conhecido da questão que a sentença considerou prejudicada pela solução que deu à oposição à execução fiscal. No entendimento do requerente, o Supremo Tribunal Administrativo conheceu da questão que havia ficado prejudicada «ao abrigo do revogado regime do CPC (artigos 726.º e 715.º/2)». Ou seja, teria existido lapso na determinação da norma aplicável ao julgamento do recurso.
Mas não foi assim, como resulta claramente do teor do acórdão reclamado: neste não se decidiu com base nos arts. 715.º, n.º 2, e 726.º do CPC na redacção anterior à que foi aprovada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 36/2013, de 12 de Agosto. A propósito, no acórdão ficou dito:
«Quer a Recorrente quer o Procurador-Geral adjunto, representante do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal Administrativo, sustentam que, revogada que seja (como foi) a sentença na parte recorrida, deve ordenar-se ao tribunal de 1.ª instância que conheça das demais questões invocadas pelo Oponente. O Procurador-Geral adjunto afirma inclusive que este Supremo Tribunal está impedido pelos arts. 665.º, n.º 2, e 679.º do CPC de conhecer das questões que o tribunal de 1.ª instância tenha considerado prejudicadas pela solução dada à causa. Vejamos:
Como dissemos já, o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, para além da nulidade da citação e previamente a esta, apreciou também a ilegitimidade do Oponente, enquanto fundamento de oposição à execução fiscal subsumível à alínea b) do n.º 1 do art. 204.º do CPPT, sob a dupla vertente assumida pela alegação aduzida na petição inicial: não exercício da gerência de facto, como requisito da responsabilidade subsidiária pela dívida exequenda (cf. art. 24.º da LGT) e não verificação da excussão do património da sociedade originária devedora, como condição para a efectivação daquela responsabilidade (cf. art. 23.º, n.º 2, da LGT e art. 153.º, n.º 2, do CPPT). Relativamente a ambas as questões, considerou o Juiz improcedente aquela alegação.
Nessa parte a sentença transitou em julgado.
Assim, compulsada a petição inicial, verificamos que resta para apreciar a invocada «ilegalidade» das certidões de dívida por nelas ter ficado por preencher o campo respeitante à fundamentação da reversão, que o Oponente considera que deveria ter sido preenchido. Será essa a questão a que se refere o Juiz do Tribunal a quo como tendo ficado prejudicada.
Antes do mais, cumpre referir que não só podemos, como devemos conhecer dessa questão. Na verdade, de acordo com as normas legais invocadas pelo Procurador-Geral adjunto, este Supremo Tribunal Administrativo apenas está impedido de conhecer em substituição de questões que o tribunal de 1.ª instância tenha deixado de conhecer no caso de ocorrer nulidade da decisão recorrida que não seja por oposição entre os fundamentos e a decisão, condenação em quantidade superior ou objecto diverso do pedido» (sublinhado aposto agora).
Ou seja, resulta claramente do texto do aresto que na decisão de conhecer em substituição foram aplicadas «as normas legais invocadas pelo Procurador-Geral adjunto»: foi «de acordo com» essas normas que o Supremo Tribunal Administrativo decidiu que «apenas está impedido de conhecer em substituição de questões que o tribunal de 1.ª instância tenha deixado de conhecer no caso de ocorrer nulidade da decisão recorrida que não seja por oposição entre os fundamentos e a decisão, condenação em quantidade superior ou objecto diverso do pedido». Ora, as normas legais invocadas pelo Procurador-Geral Adjunto, que foram aquelas sobre as quais o Supremo Tribunal Administrativo expendeu o seu entendimento de que se lhe impunha o conhecimento em substituição, não são senão os arts. 665.º, n.º 2 e 679.º do CPC na sua actual redacção.
É certo que, como salienta o Requerente, sobre a questão do conhecimento em substituição, em nota de rodapé se deixou escrito «Sobre a questão, desenvolvidamente, JORGE LOPES DE SOUSA, ob. cit., volume IV, anotação 23 e) e f) ao art. 279.º, págs. 366 a 368» (cfr. nota de rodapé com o n.º 11, a fls. 152), sendo a obra citada o Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição. Mas, da mera indicação de um elemento doutrinal não pode, sem mais, concluir-se que no acórdão cuja reforma ora é pedida se aplicaram normas legais do antigo CPC, designadamente os arts. 715.º, n.º 2 e 726.º do CPC, disposições legais estas às quais se não encontra referência alguma no texto do acórdão. A expressão «Sobre a questão» não tem implícito juízo algum relativamente às normas legais aplicáveis, as quais são, como expressamente referido no acórdão, as que «foram invocadas pelo Procurador-Geral Adjunto».
Temos, pois, como seguro que o acórdão não aplicou as regras do antigo CPC, mas as do actualmente em vigor, motivo porque o pedido de reforma não pode proceder com fundamento em erro na determinação da norma aplicável ao julgamento do recurso.
Questão diferente é a de saber se o acórdão fez ou não correcto julgamento ao considerar que o Supremo Tribunal Administrativo pode conhecer em substituição de questão que o tribunal de 1.ª instância tenha considerado prejudicada pela solução dada à causa.
A questão não é incontroversa, contrariamente ao que parece supor o Procurador-Geral Adjunto. Na verdade, apesar da alteração introduzida no CPC aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, aos artigos que regulam a questão – que eram os arts. 726.º e 715.º, n.º 2 e, hoje, são os arts. 679.º e 665.º, n.º 2 – não é pacífico que o conhecimento em substituição tenha deixado de ser possível. Vejamos:
O art. 726.º do CPC anterior estabelecia: «São aplicáveis ao recurso de revista as disposições relativas ao julgamento da apelação interposta para a Relação, com excepção do que se estabelece no artigo 712.º e no n.º 1 do artigo 715.º e salvo ainda o que vai disposto nos artigos seguintes”. O correspondente art. 679.º do novo CPC estabelece: «São aplicáveis ao recurso da revista as disposições relativas ao julgamento da apelação, com excepção do que se estabelece nos artigos 662.º e 665.º e do disposto nos artigos seguintes».
Ou seja, enquanto o art. 726.º do anterior CPC ressalvava a aplicação apenas do art. 715.º, n.º 1, do mesmo Código, o que implicava que era aplicável ao recurso de revista o disposto no n.º 2 desse art. 715.º, quanto à possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça conhecer das questões que o tribunal recorrido tinha deixado de conhecer por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, o art. 679.º do actual CPC ressalva a aplicação de todo o art. 665.º.
Apesar dessa alteração do art. 679.º do CPC novo em face do anterior art. 726.º, há quem defenda, com bons argumentos, que «o STJ não julga sempre uma questão prejudicada nem no sistema de cassação, nem no sistema de substituição: tudo depende da suficiência da matéria de facto adquirida no processo para o julgamento dessa questão». Assim, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, que passamos a transcrever, depois de realçar a diferença na redacção do anterior 726.º quando comparado com o actual art. 679.º, sustenta o seguinte (Cfr. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Recurso de revista: cassação ou substituição?, artigo publicado no blog do Instituto Português de Processo Civil, disponível em https://blogippc.blogspot.pt/2014/11/recurso-de-revista-cassacao-ou.html.):
«Desta diferença textual já se extraiu a seguinte conclusão: “No sistema anterior, quando a Relação deixasse de conhecer de certas questões, por considerá-las prejudicadas pela solução dada ao litígio, se o STJ dispusesse de todos os elementos, deveria substituir-se à Relação e proferir a decisão sobre o mérito do recurso em toda a sua extensão […]. [/] Agora, porém, tendo sido expressamente excluída a aplicação remissiva de todo o preceituado no art. 665.º, incluindo o n.º 2 que trata das aludidas situações, tal impede que o Supremo Tribunal de Justiça aja como tribunal de substituição, devendo, em tais circunstâncias, determinar a remessa dos autos” (Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2.ª ed. (2014), 374).
Seguindo-se esta orientação, há que concluir que se, por exemplo, a Relação tiver deixado de apreciar os danos, por entender que não se verifica o nexo de causalidade entre o facto ilícito e esses danos, o STJ, se considerar que se verifica esse nexo causal, não pode pronunciar-se sobre aqueles danos, devendo mandar baixar o processo à Relação, para que esta se pronuncie sobre os referidos prejuízos. Algo de semelhante há que concluir quanto ao conhecimento de um pedido subsidiário que não chegou a ser apreciado pela circunstância de o pedido principal ter sido julgado procedente pelas instâncias: se o STJ entender que o pedido principal não pode ser julgado procedente, ainda assim o STJ não pode conhecer do pedido subsidiário.
2. A alteração legislativa tem de ser vista no seu enquadramento sistemático. Se a não aplicação do disposto no art. 665.º pelo STJ se traduzisse na impossibilidade de o STJ julgar uma questão que não foi apreciada pelo tribunal recorrido por a mesma ter ficado prejudicada pela solução dada por este tribunal a uma outra questão, criar-se-ia uma dualidade de regimes para o STJ e para a Relação: o STJ não poderia substituir-se ao tribunal recorrido na apreciação dessa questão; em contrapartida, a Relação poderia substituir-se, com base no disposto no art. 665.º, n.º 2, nCPC, à 1.ª instância.
Poder-se-ia argumentar que esta dualidade de regimes seria justificada pela circunstância de, através da devolução para a Relação, se pretender assegurar o segundo grau de jurisdição quanto à apreciação da questão prejudicada, ou seja, se procurar garantir que haja dois tribunais – a Relação e o STJ – a apreciar essa questão. No entanto, contra isto pode invocar-se o seguinte:
– É muito discutível que a garantia do duplo de jurisdição sirva de justificação para que o tribunal que julga em última instância fique impedido de apreciar uma qualquer questão; a garantia do duplo grau de jurisdição destina-se a assegurar que é possível recorrer para um tribunal superior, não a impedir um tribunal supremo de se pronunciar sobre uma questão; considere-se o seguinte exemplo: numa acção de cumprimento de uma obrigação contratual, apenas o STJ suscita, ex officio, o problema da validade do contrato; parece ser evidente que a garantia do duplo grau de jurisdição não pode servir de argumento para impedir que o STJ (naturalmente após se precaver contra uma “decisão-supresa”: art. 3.º, n.º 3, nCPC) possa conhecer dessa nulidade (ou para que o STJ deva solicitar à Relação que "confirme" essa nulidade);
– Além disso, se o STJ não pode conhecer da questão prejudicada porque há que garantir o duplo grau de jurisdição, então também a Relação nunca deveria poder substituir-se à 1.ª instância na apreciação da questão prejudicada, pelo menos quando não houvesse a possibilidade de recurso para o STJ.
Note-se que não haveria nenhum inconveniente (excepto em matéria de celeridade) em que, sempre que num tribunal de recurso (Relação ou STJ) se colocasse o problema de conhecer de uma questão prejudicada pela solução dada a outras questões, esse tribunal tivesse de devolver o recurso à instância inferior. O que não parece coerente é impor que o STJ devolva o processo à Relação com o argumento de que há que assegurar um duplo grau de jurisdição e, ao mesmo tempo, aceitar que a Relação, nos termos do art. 665.º, n.º 2, nCPC, possa conhecer, também eventualmente sem possibilidade de recurso, de uma questão prejudicada. É por isso que uma interpretação sistemática da ressalva realizada no art. 679.º nCPC quanto ao art. 665.º nCPC não permite concluir que o STJ não possa conhecer de uma questão prejudicada.
A solução para o problema de saber em que condições o STJ pode substituir-se à Relação na apreciação de uma questão prejudicada deve retirar-se do disposto no art. 682.º, n.º 3, nCPC (cuja aplicação é expressamente determinada pela parte final do art. 679.º nCPC): a remessa para a Relação só se justifica quando o STJ entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão da questão prejudicada, isto é, quando o STJ não disponha de matéria de facto suficiente para conhecer dessa questão. Sendo assim, havendo no processo todos os elementos suficientes, nada impede que o STJ se possa pronunciar sobre a questão prejudicada: é isso que resulta do estabelecido no n.º 1 do art. 682.º nCPC.
Se é certo que, nos termos do art. 679.º nCPC, às questões prejudicadas não se pode aplicar o disposto no art. 665.º, n.º 2, nCPC, é igualmente certo que a essas questões se aplica, precisamente por imposição do mesmo art. 679.º nCPC, o estabelecido no art. 682.º, n.º 3, nCPC. Pode assim concluir-se que o STJ não julga sempre uma questão prejudicada nem no sistema de cassação, nem no sistema de substituição: tudo depende da suficiência da matéria de facto adquirida no processo para o julgamento dessa questão».
Para além desta posição quanto à natureza e âmbito dos poderes de substituição do Supremo Tribunal de Justiça relativamente às questões prejudicadas, temos ainda que ter presente que nem sequer é inequívoco que possam transpor-se – rectius aplicar-se subsidiariamente ex vi da alínea e) do art. 2.º do CPPT – para o recurso interposto para o Supremo Tribunal Administrativo de uma sentença proferida por um tribunal tributário de 1.ª instância as regras do recurso de revista previsto no novo CPC; bem pelo contrário.
Na verdade, nos termos do art. 281.º do CPC, «[o]s recursos serão interpostos, processados e julgados como os agravos em processo civil».
Porque o agravo foi eliminado pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, a remissão prevista no n.º 1 do art. 280.º do CPPT, quanto aos recursos interpostos de decisões da 1.ª instância, como é o caso dos autos, deve hoje considerar-se feita para a apelação, de acordo com o disposto no art. 4.º, n.ºs 1 e 2 do referido Decreto-Lei n.º 303/2007 (Diz o referido art. 4.º do Decreto-Lei n.º 303/2007:
«1- Para efeitos do disposto em legislação avulsa, entende-se o seguinte:
a) As referências ao agravo interposto na primeira instância consideram-se feitas ao recurso de apelação;
b) As referências ao agravo interposto na 2.ª instância consideram-se feitas ao recurso de revista;
c) As referências à oposição de terceiro consideram-se feitas ao recurso de revisão.
2- Os recursos previstos nos números anteriores seguem, em cada caso, o regime instituído pelo Código de Processo Civil, sem prejuízo das adaptações necessárias».).
Nesse sentido, JORGE LOPES DE SOUSA, diz:
«Relativamente aos processos iniciados a partir de 1-1-2008 (data da entrada em vigor do DL n.º 303/2007, de 24 de Agosto, indicada no seu art. 12.º, n.º 1), a remissão para o regime dos recursos de agravo, que foram eliminados por aquele diploma, deve considerar-se efectuada para o regime do recurso de apelação previsto no CPC, no que concerne aos recursos de decisões da 1.ª instância, e para o regime do recurso de revista, previstos no mesmo Código, quanto aos recursos interpostos de decisões proferidas em 2.ª instância (art. 4.º, n.ºs 1 e 2, daquele Decreto-Lei)» (Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, IV volume, anotação 2 ao art. 281.º, pág. 428.).
Assim, afigura-se-nos que o regime de recursos a aplicar ao caso concreto será o da apelação e já não o da revista.
Seja como for, ou seja, independentemente da aceitação que merecerem as teses anteriormente expendidas, a verdade é que não pode afirmar-se que este Supremo Tribunal, na interpretação que fez dos preceitos legais em causa, tenha incorrido em qualquer erro manifesto, palmar ou evidente quanto ao decidido, seja ele referido à determinação da norma aplicável ou à qualificação jurídica dos factos.
Assim, a pretensão do Requerente assenta, tão-só, numa discordância relativamente ao julgamento efectuado por este Supremo Tribunal quanto aos poderes e conhecimento em substituição que lhe cabem relativamente às questões que a 1.ª instância deu como prejudicadas em face da decisão que encontrou para a oposição à execução fiscal.
Sucede, porém, como resulta do que deixámos já dito, que a alínea a) do n.º 2 do art. 616.º do CPC contempla o manifesto ou patente erro de julgamento sobre questões de direito, erro esse resultante de lapso grosseiro, por ignorância ou flagrante má compreensão do regime legal e na alínea b) desse inciso compreendem-se os casos de preterição de elementos probatórios, determinante de notório erro na apreciação das provas, ou de patente desconsideração de outros elementos que, a terem sido considerados, imporiam, inexoravelmente, decisão diversa da proferida.
Estão, pois, excluídos da previsão das referidas alíneas, os erros de julgamento não devidos a lapsos manifestos ou gritantes. Daí que a faculdade ali consignada não comporta a impugnação da sentença ou do acórdão com base na discordância quanto à interpretação ou aplicação das pertinentes normas jurídicas.
O pedido de reforma, nos termos sobreditos, não integra qualquer expressão de directa imputação a este Supremo Tribunal de erro de julgamento grosseiro decorrente de lapso manifesto, assentando antes em considerações que traduzem, apenas, uma divergência interpretativa relativamente a um mesmo quadro legal, uma tese jurídica diferente.
Estas divergências quanto à interpretação e aplicação das regras de direito (tal como as que se refiram ao apuramento, interpretação e qualificação dos factos relevantes), se encerrarem erros de julgamento, só poderão ser corrigidos por recurso, nos casos em que a lei ainda o admita; mas já não serão susceptíveis de serem corrigidos em sede de reforma da decisão judicial, reservada que está às referidas situações excepcionais.
Assim, de acordo com o que vimos de dizer, o pedido de reforma do acórdão improcede, como decidiremos a final.

2.2 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - A reforma das decisões judiciais, como uma das excepções legalmente previstas aos princípios da estabilidade das decisões e do esgotamento do poder jurisdicional após a decisão, pressupõe que, por manifesto lapso, tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, a decisão tenha sido proferida com violação de lei expressa ou que dos autos constem documentos ou outro meio de prova que, só por si e inequivocamente, implique decisão em sentido diverso e que não tenha sido considerado igualmente por lapso manifesto [cf. arts. 613.º, n.º 2, e 616.º, n.º 2, alíneas a) e b), do CPC).

II - Essa faculdade excepcional de reformar a decisão tem como escopo corrigir um erro juridicamente insustentável e, como a jurisprudência tem vindo a afirmar, só será admissível perante erros palmares, patentes, que, pelo seu carácter manifesto, se teriam evidenciado ao autor ou autores da decisão, não fora a interposição de circunstância acidental ou uma menor ponderação tê-la levado ao desacerto.

III - Essa faculdade não se destina à correcção de eventuais erros quanto ao âmbito dos poderes de conhecimento pelo tribunal ad quem das questões consideradas prejudicadas em 1.ª instância, quando estejam em causa divergências na interpretação das normas processuais aplicáveis, pois esses erros só poderão ser corrigidos por recurso, nos casos em que a lei ainda o admita.


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3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência (como o impõe o art. 666.º, n.º 2, do CPC), em indeferir o pedido de reforma do acórdão.
Sem custas, por delas estar isento o Requerente.

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Lisboa 12 de Outubro de 2016. – Francisco Rothes (relator) – Casimiro Gonçalves – Pedro Delgado.