Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01898/14.0BELRS
Data do Acordão:12/04/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:JOSÉ GOMES CORREIA
Descritores:INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA HIERARQUIA
Sumário:I - O presente litígio é relativo a uma “questão fiscal”, na tese ampliativa defendida pela jurisprudência, segunda a qual questões fiscais são as que exigem a interpretação e aplicação de quaisquer normas de Direito Fiscal substantivo ou adjectivo para a resolução de questões sobre matérias respeitantes ao exercício da função tributária da Administração Pública.
II - Envolvendo a presente acção directamente a interpretação e aplicação de disposições de direito fiscal, ou que se situem no campo da actividade tributária, a acção tem por objecto um ato tributário ou o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido em matéria fiscal.
III - Donde que estamos perante uma decorrência de relação jurídica fiscal visto estar em discussão a legalidade da interpretação e aplicação de disposições de direito fiscal, ou que se situa no campo da actividade tributária, impondo-se neste âmbito a revogação do julgado aqui sindicado que declarou serem competentes os tribunais administrativos.
IV - Em regra, a competência em razão da hierarquia para conhecer recurso jurisdicional de decisão de tribunal tributário de 1.ª instância cabe aos tribunais centrais administrativos, dado que o Supremo Tribunal Administrativo apenas frui dessa competência quando o recurso tiver por exclusivo fundamento matéria de direito [arts. 26.º, alínea b), e 38.º, alínea a), do ETAF, e art. 280.º, n.º 1, do CPPT].
V - Quando no recurso se invocam factos sobre os quais a sentença não efectuou julgamento e deles se pretende extrair relevante consequência jurídica, é de considerar que o recurso não tem por fundamento exclusivo matéria de direito.
Nº Convencional:JSTA000P25271
Nº do Documento:SA22019120401898/14
Data de Entrada:10/03/2018
Recorrente:A.............., SA - B......., SA
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo

I – Relatório

Vem interposto recurso jurisdicional por B……….., S.A., visando a revogação da sentença de 30-05-2018, do Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou improcedente a impugnação intentada, na qual peticionava a anulação do despacho de 26-06-2014 do Diretor da Unidade dos Grandes Contribuintes, no âmbito da reclamação graciosa nº 3247201404000935 relativo ao acto de liquidação de IVA de 2011.

Inconformado, nas suas alegações, formulou o recorrente B…………., SA. as seguintes conclusões, já devidamente aperfeiçoadas, após convite para o efeito:

“1ª O presente recurso vem deduzido contra a sentença que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida contra o despacho de indeferimento proferido pelo Senhor Diretor da Unidade dos Grandes Contribuintes, datado de 26.06.2014, no âmbito da reclamação graciosa n.° 3247201404000935 relativo ao ato de autoliquidação de IVA de 2011;
2.ª O Tribunal recorrido considerou que a inclusão da componente de capital das rendas faturadas no âmbito dos contratos de locação financeira no valor das operações para efeitos de cálculo do pro-rata de dedução em sede de IVA encerra uma distorção na tributação atenta a circunstância de apenas a variante dos juros e outros encargos constituir contrapartida dos custos de financiamento e de gestão de contratos;
3.ª Tal consideração decorre dos entendimentos vertidos no acórdão do TJUE, proferido no processo C-183/13, em 10.07.2014 e nos acórdãos do STA proferidos no âmbito dos processos n.° 01075/13, datado de 29.10.2014, n.° 081/13, datado de 17.06.2015, n.° 0956/13, datado de 03.06.2015, entre outros;
4.ª No caso sub judice, o Tribunal a quo considerou que é legalmente inadmissível a inclusão do montante do capital das rendas faturadas no âmbito dos contratos de locação financeira no valor das operações para efeitos de cálculo do pro rata de dedução em sede de IVA, embora não seja possível extrair esta conclusão do aludido acórdão do TJUE de 10.07.2014;
5.ª Do acórdão do TJUE — e, por conseguinte, dos mencionados acórdãos do STA proferidos no âmbito processo n.° 01075/13, datado de 29.10.2014, n.° 081/13, datado de 17.06.2015, n.° 0956/13, datado de 03.06.2015, entre outros —, não é possível extrair a conclusão de que o artigo 23.° do Código do IVA e artigo 173.° da Diretiva 2006/112/CE (anterior artigo 17.°, n.° 5, da Sexta Diretiva do IVA) devem ser interpretados no sentido de se encontrar excluída do cálculo do pro-rata de dedução a componente de capital das rendas faturadas no âmbito dos contratos de locação financeira;
6.ª Dúvidas não subsistem de que o alcance da decisão do TJUE — e, por conseguinte, dos acórdãos do STA — se circunscreve à aferição da possibilidade de, à luz do artigo 17.º, n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva, a administração tributária poder obrigar um sujeito passivo à exclusão da componente de capital das rendas faturadas no âmbito dos contratos de locação financeira para efeitos de cálculo do pro-rata de dedução;
7.ª É entendimento do TJUE que os Estados-Membros poderão afastar o método do pro rata geral de dedução e determinar a aplicação da afetação real dos bens e serviços a montante às operações a jusante, prevista no artigo 17.°, n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Diretiva do IVA, com recurso a critérios objetivos com vista a determinar o grau de utilização dos inputs;
8.ª É certo que o TJUE julgou admissível a exclusão da componente de capital das rendas dos contratos de locação financeira do pro-rata de dedução, mas não é menos certo que este fez depender essa exclusão da ligação dos bens e serviços de utilização mista ao financiamento e à gestão dos contratos de locação financeira, e não à atividade de disponibilização dos veículos, o que caberia ao órgão jurisdicional de reenvio verificar, recaindo essa obrigação sobre qualquer órgão jurisdicional que pretenda aplicar o entendimento daquele acórdão do TJUE (cf. decorre dos considerandos 33 a 35 do acórdão do TJUE);
9.ª No entendimento do TJUE é necessária a evidência de que há distorção na tributação o que se faz através da demonstração da ligação dos bens e serviços de utilização mista ao financiamento e à gestão dos contratos de locação financeira, o que, no caso em apreço e como demonstrado, não sucedeu;
10.ª Resulta evidente que sobre o Tribunal a quo recaía a obrigação de pronúncia sobre a verificação da ligação dos bens e serviços de utilização mista ao financiamento e à gestão dos contratos de locação financeira, como, aliás, parece de resto ter entendido o STA, no acórdão proferido no processo n.° 1075/13, em que decidiu baixar os autos ao tribunal de 1.ª instância para a pronúncia sobre as questões que ficaram prejudicadas pela decisão;
11.ª No caso sub judice, a verificação da ligação dos bens e serviços de utilização mista ao financiamento ou à gestão dos contratos de locação financeira não é concretamente aferida pelo Tribunal recorrido como o deveria ter sido;
12.ª No que respeita aos montantes das operações incluídas no cálculo do pro-rata, nem a Diretiva, nem o Código do IVA estabeleceram qualquer restrição, exceção ou segregação dos mesmos, não podendo concluir-se senão pela inclusão da integralidade montantes que constituem o volume de negócios;
13.ª Não compete ao intérprete abalar a natureza unitária da contraprestação e distinguir o capital do juro e considerar, para efeitos do cálculo do pro-rata, que somente o valor dos juros e dos encargos referentes às rendas dos contratos de locação financeira devem ser relevados (neste sentido vai a supra citada doutrina de JOSÉ MARIA MONTENEGRO);
14.ª Resulta evidente que se impõe a verificação da ligação dos bens e serviços de utilização mista ao financiamento ou à gestão dos contratos de locação financeira (neste sentido que vai o acórdão do STA, proferido em 27.01.2016, no processo n.° 0331/14);
15.ª Tanto o legislador europeu, como o legislador nacional, cientes das alegadas distorções que o pro rata poderia gerar, poderiam ter determinado expressamente que, não obstante a sujeição da totalidade da renda a IVA, só o respetivo juro seria considerado no pro rata — o que não o fizeram;
16.ª Nesta medida, se o TJUE julgou por necessária verificação casuística, é porque a mesma não decorre da natureza dos contratos, mas das circunstâncias concretas de cada caso;
17.ª Se não fosse necessária essa verificação em concreto, bastaria ao TJUE afirmar como princípio que a componente de capital nunca poderia estar incluída para efeitos de cálculo do pro rata de dedução, pelo que, não o tendo feito, foi porque se impunha sempre a verificação em concreto da ligação dos bens e serviços de utilização mista ao financiamento ou à gestão dos contratos de locação financeira;
18.ª A verificação da ligação dos bens e serviços de utilização mista ao financiamento ou à gestão dos contratos de locação financeira não é concretamente aferida pelo Tribunal recorrido no caso sub judice;
19.ª A interpretação que o Tribunal a quo concede ao artigo 174°, n.° 1, da Diretiva 2006/112/CE (Diretiva do IVA), viola quer o princípio da tutela jurisdicional efetiva (cf. artigo 20.°, n.° 5, da CRP), quer os princípios da atribuição da subsidiariedade e da proporcionalidade e da cooperação leal entre a União Europeia e os Estados;
20.ª Demonstra-se a violação do princípio do inquisitório pelo Tribunal a quo, porquanto inexistem quaisquer elementos nos autos que permitam ao Tribunal a quo a concluir que essa ligação existe, pelo que, estando em causa um contencioso de mera anulação, tal só pode conduzir, no caso sub judice e à luz dos elementos de prova constantes dos autos, à declaração de ilegalidade do ato tributário sub judice por falta de prova da ligação dos bens e serviços de utilização mista ao financiamento e à gestão dos contratos de locação financeira;
21.ª Ainda que se entenda que se impõe a produção da prova da ligação dos bens e serviços de utilização mista ao financiamento e à gestão dos contratos de locação financeira nos presentes autos, sempre se impunha ao Tribunal, ao invés do decidido na sentença recorrida, à luz do princípio do inquisitório, que promovesse pela realização das diligências necessárias e disponíveis para obter essa prova, designadamente notificando a parte para a junção dos elementos que reputasse necessários;
22.ª Sendo certo que sobre as partes recai o ónus da prova quanto aos factos necessários para fazer valer a sua pretensão, é igualmente certo que o Tribunal a quo detém um papel ativo na descoberta da verdade material, sendo-lhe imputável a não realização de diligências necessárias e disponíveis para alcançar esse objetivo;
23.ª Estando na disponibilidade do Tribunal a requisição de documentos, só lhe é lícito concluir pela falta de prova de um determinado facto se da aludida requisição dos documentos não decorrer a prova desse facto;
24.ª A esta conclusão não obsta as regras do ónus da prova estatuídas no artigo 74.° da LGT, na medida em que o princípio do inquisitório funciona a montante das regras do ónus da prova;
25.ª Admitindo-se que de acordo com o entendimento do Tribunal ad quem não constam do processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão proferida e que permitam a esse Ilustre Tribunal a prolação de decisão sobre esta questão, sempre se impõe no caso sub judice que os autos baixem à 1.ª instância para a ampliação da matéria de facto, face aos já mencionado artigo 662.° do CPC (anterior artigo 711° do CPC), aplicável ex vi artigo 2.° do CPPT;
26.ª Demonstra-se a existência de erro de julgamento na interpretação e aplicação do artigo 23°, n.° 3 do Código do IVA, porquanto ficou demonstrado que não estão verificados os requisitos legais de que depende a aplicação do método da afetação real;
27.ª Sendo certo que o acórdão do TJUE autoriza os Estados-Membros a aplicar o método de afetação real em casos como o presente, mais certo é o facto de esta aplicação deste método dever estar concordante com as disposições normativas que os Estados aprovarem para esse efeito (cf. considerandos 29 e 30 do acórdão do TJUE e ainda decisão arbitral n.° 309/2017-T), pelo que é aos Estados-Membros que se impõe a fixação das condições para a aplicação do método da afetação real, dentro dos princípios orientadores acima indicados designados pelo TJUE;
28.ª Nos termos do disposto no artigo 23.° do Código do IVA, para que a administração tributária possa obrigar o sujeito passivo a aplicar o método da afetação real, é necessário que se esteja perante o exercício de atividades distintas, o que não se verifica no caso sub judice;
29.ª O Recorrente só exerce a atividade financeira, não se estando perante atividades económicas distintas, pelo que não surgem evidenciadas nos autos as efetivas distorções significativas de tributação;
30.ª Se houvesse de facto uma distorção significativa de tributação decorrente da inclusão da componente de amortização de capital no cálculo da percentagem de dedução, tal componente seria unanimemente excluída em todas as jurisdições europeias, o que não sucede;
31.ª Com efeito, se o que levou quer o Tribunal recorrido, quer o TJUE, a aceitar a exclusão da componente de capital das rendas dos contratos de locação financeira, foi a eventual influência alegadamente pouco rigorosa daquela componente no cálculo do pro rata atenta a natureza dos contratos em causa, é evidente que tal não se verifica no caso dos contratos de locação financeira;
32.ª Efetivamente, as viaturas usadas no exercício da atividade de locação financeira são parte integrante do ativo imobilizado da locadora, devendo ser contabilizadas pelo seu valor de aquisição e, durante o período em que a locadora detém a viatura, refletidas as respetivas reintegrações;
33.ª Deste modo, no que se refere à componente de capital das rendas faturadas no âmbito dos contratos de Locação financeira, é ilegítima a exclusão da componente de capital;
34.ª “A solução proposta pela Administração Fiscal de tributar toda a renda, como manda a alínea h) do n.° 2 do artigo 16.°, sobre o valor tributável, e de expurgar, para efeitos de apuramento da percentagem de dedução, do numerador e do denominador da fração a parte da renda correspondente à amortização financeira não tem apoio direto nos textos legais.” Já não assim é, porém, para efeitos de IVA, na medida em que a base tributável encara as duas componentes da renda como uma só, fundindo-as no conceito geral de contrapartida [a renda tout court] previsto no citado artigo 16°, do CIVA, cuja epígrafe é “valor tributável”.” (cf. decisão arbitral n.° 311/2017-T de 09.01.2018);
35.ª Dúvidas não restam do erro em que incorreu o Tribunal recorrido na interpretação e aplicação do artigo 23.° do Código do IVA, sendo que as condições que o próprio Estado português estabeleceu para aquela faculdade não estão verificadas no caso sub judice;
36.ª Acresce que o Ofício-Circulado n.° 30108, dc 30.01.2009, não é aplicável no caso vertente;
37.ª O aludido Ofício-Circulado não constitui fonte de direito fiscal, configurando direito circulatório administrativo, composto por orientações genéricas dirigidas aos órgãos da administração tributária e aduaneira relativas à interpretação e aplicação das normas tributárias (neste sentido, veja-se a decisão arbitral de 20.11.2017 proferida no processo n.° 309/2017-T);
38.ª Verifica-se, no caso em apreço, que o Tribunal recorrido erroneamente avaliza o método de cálculo do pro-rata criado pela administração tributária, específico para as instituições de crédito que pratiquem operações de locação financeira, e que derroga, por sua iniciativa, o método de cálculo do pro-rata geral que se baseia no volume de negócios previsto no n.ºs 3 e 4 do artigo 23.° do Código do IVA (neste sentido vai a decisão arbitral n.° 309-T/2017);
39.ª Acresce que, para que operasse uma válida imposição do método da afetação real (artigo 23.°, alínea b) do Código do IVA), impunha-se à administração tributária a demonstração no referido ato das alegadas distorções significativas na tributação — as quais configuram uma condição sine qua non para a imposição do método da afetação real —, só assim se considera fundamentado (sobre esta matéria, veja-se o acórdão do STA proferido em 26.06.1991, no processo n.° 13.435);
40.ª Contrariamente ao exposto na sentença recorrida, a imposição de uma alteração de método de apuramento do imposto não se basta com uma instrução administrativa geral, devendo proceder-se à aplicação e ajuste do exposto na lei ao caso concreto;
41.ª A sentença recorrida padece de erro de interpretação do princípio geral de direito comunitário da igualdade de tratamento entre sujeitos passivos de diferentes Estados- Membros uma vez que nenhuma razão objetiva ou de direito impõe ou permite uma diferenciação na aplicação do método de cálculo da percentagem da dedução que implique a manutenção de critérios distintos entre a base de incidência do imposto e a base de cálculo daquela percentagem por referência à atividade exercida pelo contribuinte;
42.ª Não se impõe aos demais operadores europeus que desenvolvem a atividade de locação financeira a exclusão de valores que compõem a base de incidência do imposto da componente das operações tributáveis que relevam para efeitos do cálculo da respetiva percentagem de dedução;
43.ª Razão pela qual, a interpretação dos artigos 23.° do Código do IVA e 173.º e 174.º da Diretiva 2006/112/CE, nos termos preconizados pelo Tribunal a quo, incorre em violação do princípio geral da igualdade de tratamento, porquanto gera diferenciações de tributação entre as instituições de crédito nacionais que praticam atividades de locação financeira e aquelas que exerçam a mesma atividade noutros Estados- Membros, assim como diferencia o tratamento das primeiras face a outros operadores económicos nacionais que pratiquem atividades que conferem direito à dedução e atividades que não conferem esse direito (conclusão sustentada pela supra citada doutrina de CONCEIÇÃO SOARES FATELA);
44.ª Por isso, deve o imposto respeitante aos inputs comuns ser deduzido na proporção das receitas geradas que conferem o direito à dedução, em concreto as geradas pelo exercício de atividades de locação financeira, devendo revogar-se a sentença recorrida e anular-se o ato em apreço;
45.ª Caso assim não se entenda e estando em causa uma questão de interpretação de Direito da União Europeia que suscita dúvidas e assume relevância para a questão decidenda, deverá submeter-se a respetiva interpretação ao Tribunal de Justiça da União Europeia competente para decidir a título prejudicial sobre a interpretação do Direito da União Europeia, ao abrigo do disposto no artigo 267.° do TJUE, sendo esse reenvio obrigatório quando o órgão jurisdicional nacional decide em última instância (cf. artigo 267.° do TJUE), sendo a questão a interpretar pelo Tribunal de Justiça da União Europeia a seguinte: “Tendo em conta que, pelo menos 13 Estados- Membros incluem o valor total das rendas de locação no cômputo do pro rata geral aplicável à dedução dos gastos comuns, não desagregando a componente de capital e a componente de juro, não incorre a interpretação do artigo 23.º do Código do IVA, que transpõe para o ordenamento jurídico português, no que ora releva, os artigos 173.° e 174.º da Diretiva 2006/112/CE, no sentido de que apenas a componente de juro concorre para o cálculo do pro rata geral, em violação do princípio da igualdade de tratamento entre os Bancos nacionais e os dos Estados-Membros onde a totalidade das rendas se inclua no apuramento do pro rata, assim como entre os Bancos e os outros operadores económicos nacionais que praticam atividades que conferem direito à dedução e, em simultâneo, atividades que não conferem esse direito?”;
46.ª Por fim, tendo em conta que foi autoliquidada uma taxa de justiça com base no artigo 7.° e Tabela II do RCP e que o mesmo não contempla qualquer regra relativa ao pagamento e correspondente dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, não caberia ao Tribunal a quo conceder tal dispensa no caso em apreço nos presentes autos;
47.ª De facto, sendo aplicável a Tabela II do RCP, não há lugar a remanescente da taxa de justiça;
48.ª Todavia, caso assim não se entenda, sempre se dirá que in casu estão verificados os pressupostos de depende a dispensa total daquele remanescente, pelo que se impõe a reforma da sentença nesta parte.”

Não foram aduzidas contra-alegações.

Neste Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de se declarar a incompetência do STA para conhecer do recurso interposto e competente o TCA Sul, ao qual os autos são de remeter caso tal seja requerido, nos termos do artº18º, nº2 do CPPT.

Notificadas as partes, nada disseram.
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Os autos vêm à conferência corridos os vistos legais.
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2. FUNDAMENTAÇÃO:

2.1. - Dos Factos:

Na decisão recorrida foi fixado o seguinte probatório reputado relevante para a decisão:

A) O Impugnante é uma instituição financeira que exerce normal e habitualmente, entre outras, as atividades de locação financeira (leasing) e de cessão financeira (factoring) — cf. artigo 1° da pi e artigos 2°, 3° e 5° da contestação;
B) Em 2012.02.10, o A……………, SA, preencheu e entregou a declaração periódica de IVA, do período de 2011/12, constante de fls. 24 a 27 do PA, que aqui se dá como integralmente reproduzida, em que declarou como total da base tributária € 327 161 753,28, total de imposto a favor do sujeito passivo € 9 565 904,93 e total de imposto a favor do Estado € 14 398 113,51;
C) No exercício de 2011, o Impugnante apurou o pro-rata de dedução de 8 de acordo com os seguintes quadros (cf. artigo 12° da pi e artigo 10° da contestação):












D) Em 2014.02.10, foi enviado ao Serviço de Finanças de Lisboa-2, a reclamação graciosa do ato de autoliquidação de IVA do ano de 2012, constante de fls. 6 a 22 do PA e que aqui se dá como integramente reproduzida, na qual termina pedindo a revisão da autoliquidação de IVA (...) de modo a ser relevado no apuramento do pro-rata de dedução a componente capital que integra as rendas faturadas no âmbito da locação financeira (cr. fls. 186 do PA);
a. O Impugnante solicitou assim, a relevação da componente de capital das rendas faturadas no ano de 2011 no âmbito dos contratos de locação financeira o que implicaria apurar um pro-rata de 19%, de acordo com os seguintes quadros (artigo 17° da pi e artigos 11° a 14° da contestação):





E) Por despacho de 2014.05.08, da Chefe de Divisão, por delegação de competências (DR 2 Série, nº 246, de 2013.12.19), exarado no projeto elaborado pela Divisão de Gestão e Assistência Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, foi aprovado o projeto de decisão de indeferimento da reclamação graciosa apresentada pelo Impugnante;
F) Por carta registada em 2014.05.09, foi comunicado ao Impugnante o projeto de despacho de indeferimento da reclamação graciosa apresentada e para exercer o direito de participação, na modalidade de audição prévia, por escrito (cf. fls. 192, 193, 217 e 218 do PA);
G) Por despacho de 2014.06.26 do Diretor de Serviços, exarado na informação n° 88-APD/2014, de 10 de Abril, da Divisão de Gestão e Assistência Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, a reclamação graciosa foi indeferida; deste despacho transcreve-se:
a. Concordo, pelo que indefiro a reclamação graciosa;
b. Notifique-se o contribuinte;
c. (...);
H) Da informação n° 88-APD/2014, de 10 de Abril, da Divisão de Gestão e Assistência Tributária da Unidade dos Grandes Contribuintes, constante de f 219 a 240 do PA e que aqui se dá como integralmente reproduzida, transcreve-se:
a. (...);
b. 44. A pretensão controvertida na Reclamação Graciosa em apreço, consubstancia-se na anulação parcial da autoliquidação de IVA, subjacente à declaração periódica n.° 102019785780, referente ao período de dezembro de 2011 (1112), decorrente da alegada entrega em excesso da importância de € 5.561.282,00, considerando, a Reclamante, tratar-se de um erro na autoliquidação consubstanciado num erro no apuramento do pro rata relativo ao exercício de 2011.
c. 45. Analisado o requerimento apresentado pela Reclamante, bem como os fundamentos invocados, verifica-se que a questão aqui em análise prende-se com a consideração do valor referente ao capital das rendas faturadas no âmbito dos contratos de locação financeira para determinação do pro rata do respetivo período de tributação.
d. 46. No caso concreto, estamos perante operações de locação financeira mobiliária, e pretende aferir-se a legalidade, face às normas de direito comunitário ou de direito interno, da exclusão do cálculo da percentagem de dedução, da parte do valor da renda da locação que corresponde à amortização financeira, apenas considerando o montante de furos e outros encargos faturados.
e. 47. Antes de procedermos à apreciação do mérito da presente reclamação graciosa, importa aludir ao facto da Reclamante se enquadrar, em sede de IVA, no regime normal, com periodicidade mensal, assumindo a natureza de sujeito passivo “misto”.
f. 48. Isto porque, realiza operações financeiras que não conferem o direito à dedução de IVA, por se encontrarem isentas ao abrigo do n.° 27 do artigo 9º do CIVA e operações com liquidação de IVA, como acontece, por exemplo, com as rendas de leasing e AW, que conferem direito à dedução do IVA suportado.
g. 49. A Reclamante realiza ainda outras operações financeiras ou acessórias que conferem, igualmente, o direito à dedução de IVA, em conformidade com o disposto no artigo 20.º do CIVA.
h. 50. No conjunto das operações que conferem direito à dedução de IVA, integram-se os contratos de locação, os quais a Reclamante assume a posição de locadora e, nessa qualidade, adquire bens (ou o financiamento para a sua aquisição) que são objeto desses contratos, acrescidos de IVA, sendo os mesmos entregues aos respetivos locatários para seu uso e fruição.
i. 51. Em contrapartida, a Reclamante fatura rendas aos locatários, às quais acresce o IVA.
j. 52. No que concerne às aquisições de bens e serviços de utilização mista, em razão de terem sido indistintamente afetas às diversas operações desenvolvidas pela Reclamante, para efeitos do exercício do direito à dedução, entende dever aplicar-se o método geral e supletivo da percentagem de dedução — também designado por pro rata — nos termos estatuídos na alínea b) do n.° 1 e do n.° 4, ambos do artigo 23.º do CIVA.
k. 53. No exercício de 2011, o total de IVA incorrido com a aquisição de recursos utilizados nas operações sujeitas, com e sem direito à dedução (utilização mista), ascendeu a C 50.557.109,13, conforme decorre do Documento 4 junto pela Reclamante com o requerimento de reclamação graciosa (...).
l. 54. Sucede que, por lapso, cuja ocorrência constatou após uma revisão interna de procedimentos, a Reclamante, não considerou que no numerador, quer no denominador da fórmula de cálculo do pro rata o valor do capital das rendas de locação financeira, apurando uma percentagem de dedução definitiva de 8% a que correspondeu uma dedução de € 4.044.563,73 (8% x € 50.557.109,13).
m. 55. De facto a inclusão da componente de amortização de capital conduziria ao apuramento de uma percentagem de dedução de 19%, contra os 8% refletidos na declaração periódica de IVA relativa ao período de dezembro de 2011, a qual foi submetida em 10 de fevereiro de 2012.
n. (...);
o. 57. Face à questão em análise nos presentes autos, importa ressaltar que não se considera existir qualquer erro no preenchimento da declaração, consubstanciado em erro no apuramento do pro rata de dedução.
p. 58. Com efeito, o apuramento da percentagem de dedução efetuado pelo sujeito passivo está em perfeita concordância com as normas de direito comunitário e interno, pelo que, não se afigura assistir razão à Reclamante quanto à pretensão formulada no seu requerimento inicial.
q. 59. Trata-se de uma matéria relativamente à qual a AT já se pronunciou através do Ofício-Circulado n.° 30108, de 30 de janeiro de 2009, do Gabinete do Subdiretor Geral — Área de Gestão Tributária do IVA.
r. 60. Esta instrução administrativa veio contemplar a doutrina defendida pela então DGCI (atual AT) que visou “(...) divulgar a correta interpretação a dar ao artigo 23.° do Código do IVA no que respeita à sua aplicação pelas instituições de crédito que exercem, entre outras, a atividade de Leasing ou de ALD (...)“
s. 61. Da leitura do Ofício n.° 30108, conclui-se que o apuramento da percentagem de dedução definitiva antes referida (8%) foi efetuado, pela Reclamante, em perfeita concordância com os termos aí previstos, que se transcrevem:
t. 62. “7. Face à atual redação do artigo 23.º, a afetação real é o método que, tendo por base critérios objetivos de imposição, mais se ajusta ao apuramento do IVA dedutível nos bens e serviços de utilização mista.”
u. 63. “8. Neste sentido, considerando que o apuramento do IVA dedutível segundo a aplicação do pro rata geral estabelecido no n.° 4 do artigo 23.º do CIVA é suscetível de provocar desvantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas, ou seja, pode conduzir a “distorções significativas na tributação”, os sujeitos passivos que no âmbito de atividades financeiras pratiquem operações de Leasing ou de ALD, devem utilizar, nos termos do n.° 2 do artigo 23.° do CIVA, a afetação real com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços, de modo a determinar o montante de IVA a deduzir relativamente ao conjunto das atividades.”
v. 64. “9. Na aplicação do método da afetação real, nos termos do número anterior e sempre que não seja possível a aplicação de critérios objetivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à atividade de Leasing ou de ALD. Neste caso, a percentagem atrás referida não resulta da aplicação do n.° 4 do artigo 23.° do CIVA.
w. 65. Isto é, a percentagem de dedução inicialmente apurada não resulta da aplicação do n.° 4 do artigo 23.º do CIVA, mas antes assenta na aplicação do método de afetação real, através da utilização de um critério de imputação subjetivo, tendo em conta os valores envolvidos nas operações desenvolvidas no âmbito das atividades de Leasing ou de ALD.
x. 66. A título prévio importa efetuar o enquadramento jurídico- tributário do contrato aqui em análise, que está subjacente à prestação de serviços de leasing: contrato de locação financeira.
y. 67. A base jurídica de qualquer modalidade de contrato de locação encontra-se plasmada, em termos gerais, nos artigos 10220 a 1114° do Código Civil. Não obstante, e porque se trata de um tipo particular de locação, importa atender ao previsto no regime jurídico especialmente criado para este tipo de contratos, e que vem consagrado no Decreto-Lei n.° 149/95 de 24 de junho, com as subsequentes alterações.
z. 68. De acordo com o artigo 1.0 do Decreto-Lei n.° 149/95, de 24 de junho, a locação financeira é o “(...) contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder a outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados.”
aa. 69. Nesse sentido, António Menezes Cordeiro afirma que, “a locação financeira é o contrato pelo qual uma entidade — o locador financeiro — concede a outra — o locatário financeiro — o gozo temporário de uma coisa corpórea, adquirida, para o efeito, pelo próprio locador, a um terceiro por indicação do locatário.
bb. 70. Trata-se, portanto, de um contrato comummente utilizado como forma de proporcionar crédito bancário, pelo qual, a instituição financeira, perante solicitação do interessado, adquire o bem em causa e cede-o a este em locação, ficando o mesmo, obrigado a pagar uma “(...) retribuição que traduza a amortização do bem e os juros; no final, o locatário poderá adquirir o bem pelo valor residual ou celebrar novo contrato; poderá, ainda nada fazer.”
cc. 71. Daqui decorre que, o objeto deste tipo de contrato não é a transferência da propriedade, mas sim a cedência, pela locadora do uso do bem, isto é, a locadora obriga-se a prestar um serviço, traduzido na disponibilidade do bem em causa, recebendo em contrapartida, uma prestação, sem prejuízo, de nele se poder prever a opção de compra, no final do contrato, a favor do locatário, por um valor residual fixado por acordo das partes.
dd. 72. Atenta esta qualificação jurídica, e transpondo-a para a perspetiva tributária, conclui-se que a locação financeira constitui uma prestação de serviços sujeita a imposto, nos termos do disposto no n.° 1 do artigo 4.° do CIVA, e é efetuada pelo sujeito passivo no âmbito duma atividade económica (cf. A própria Reclamante refere no ponto 280 do requerimento de Reclamação Graciosa).
ee. 73. Efetivamente, no caso das operações de locação, dúvidas não restam de que a respetiva contrapartida se concretiza nas rendas auferidas pela entidade que assume a posição contratual de locadora.
ff. 74. No entanto, não podemos abstrair-nos do facto dessas operações de locação (leasing e ALD) consubstanciarem uma modalidade de crédito (entre outras), pelo que a atividade da entidade locadora é, em substância, a concessão de financiamento, cuja contrapartida remuneratória é constituída, essencialmente, por juros e outros encargos incluídos nas rendas.
gg. 75. Refere a Reclamante, invocando que o disposto na alínea h) do n.° 2 do artigo 16.° do CIVA, que a contraprestação decorrente neste tipo de contratos (renda) goza de uma natureza unitária na medida em que “(...) o valor tributável em sede de IVA corresponde ao valor da renda recebida ou a receber (cf. pontos 30° a 32º do requerimento de Reclamação Graciosa).
hh. 76. Razão pela qual as rendas decorrentes de contratos de locação financeira (desde que não seja aplicável uma isenção) são, de facto, integralmente sujeitas a IVA.
ii. 77. A esse propósito, deve ter-se presente que, um dos objetivos do legislador nesta matéria, foi assegurar o cumprimento do princípio da neutralidade fiscal, na vertente de princípio da igualdade que, no caso concreto, se consubstancia no facto de ser assegurado um tratamento fiscal equivalente, no sentido de igual onerosidade, em relação aquele que adquire um bem através de um contrato de locação financeira, face a outra pessoa que o adquire diretamente.
jj. 78. Ora, o facto do valor integral da renda, pago pelo locatário ao locador, constituir o valor tributável sobre o qual incidirá o IVA tal não significa que a parte integrante da renda correspondente à amortização financeira ou do capital tenha de ser incluída no cômputo do apuramento da percentagem de dedução, conjuntamente com a parte correspondente aos juros e outros encargos.
kk. 79. Desde logo porque, a renda constitui o pagamento do serviço de concessão de financiamento ao locador, sendo composta por duas partes: capital ou amortização financeira, que mais não é que o reembolso da quantia “emprestada” e juros, acrescido de eventuais encargos, que constituem a remuneração do locador.
ll. 80. Note-se que, na perspetiva da operação de locação enquanto operação de concessão de financiamento, o valor de aquisição do bem objeto de contrato de locação corresponde ao capital financiado que constitui a componente amortização financeira na renda liquidada pelo locador ao locatário.
mm. 81. Sendo que, no momento da aquisição desse mesmo input, o sujeito passivo (locador) exerceu o direito à dedução integral do montante do IVA liquidado pelo fornecedor do bem objeto do contrato de locação, por via do método da imputação direta.
nn. 82. Razão pela qual, não pode deixar de ser excluída do cálculo da percentagem de dedução, sendo-lhe aplicável o método de afetação real com recurso a um critério de imputação objetivo, a parte da amortização financeira incluída na renda, uma vez que esta mais não é do que a restituição do capital financiado/investido para a aquisição do bem.
oo. 83. Logo, à luz do princípio da neutralidade em que assenta o sistema deste imposto, fácil se torna perceber que a incidência do IVA sobre a totalidade da renda é a única forma de garantir que o Estado recupera o valor do imposto que foi já deduzido pelo sujeito passivo.
pp. 84. Por outro lado, a inclusão no rácio entre operações com e sem direito à dedução da componente relativa à restituição do capital (amortização financeira), enquanto parte integrante a que será significativa e positivamente influenciada, por via de uma mera restituição de um financiamento, cujo bem subjacente foi já objeto de liquidação e dedução de IVA no momento da aquisição.
qq. 85. Este facto gerará deduções acrescidas para o sujeito passivo, relativamente à generalidade dos inputs de utilização mista, por via da utilização de um coeficiente, que nessa medida, se apresenta como exagerado, face à realidade das operações tributáveis.
rr. 86. A atividade principal do locador não consiste na compra e venda de bens, mas tão só na concessão de créditos a terceiros para aquisição desses bens, ainda que se substitua aos destinatários dos bens na aquisição, reservando para si o direito de propriedade. E dessa atividade obtém, fundamentalmente, juros.
ss. 87. Deste modo, torna-se compreensível que no cálculo do mencionado coeficiente de imputação específica, aplicável ao caso objeto de análise, e em harmonia com o entendimento da AT, deve considerar-se, apenas, o montante que excede o valor dos custos utilizados nas operações tributadas, uma vez que, através do método de imputação direta o IVA da parte relativa ao capital é integralmente deduzido.
tt. 88. E é apenas aquele valor diferencial (que, genericamente, corresponde a juros) que se encontra conexo com os custos de aquisição de recursos utilizados indistintamente em operações com e sem direito à dedução.
uu. 89. Se assim não fosse, permitia-se um aumento artificial da percentagem de dedução do IVA incorrido com a generalidade dos bens e serviços com utilização mista adquiridos pelo sujeito passivo.
vv. 90. Do entendimento propugnado pela AT, não decorre, assim, qualquer restrição do direito legítimo à dedução, como alega a Reclamante. Antes pelo contrário, pugna pela inadmissibilidade do exercício do direito à dedução ilegítimo, na medida em que, a eventual execução do procedimento defendido pela Reclamante colocaria em causa a neutralidade fiscal inerente à mecânica do IVA.
ww. 91. Acresce, ainda, que o método do pro rata previsto no n.° 4 do artigo 23.° do CIVA, que a Reclamante pretende ver aplicado, não tem mérito para medir o grau de utilização que as duas categorias de operações, com e sem direito à dedução, fazem dos bens e serviços que lhe são indistintamente alocados (utilização mista) e, consequentemente, não pode ser utilizado para determinar a parcela dedutível, cuja liquidação foi efetuada a montante por outros operadores económicos que se situam na fase imediatamente anterior do circuito económico.
xx. 92. Conforme a Reclamante refere, são dois os métodos de dedução previstos no CIVA (artigo 23.º).
yy. 93. Por um lado, o denominado método da afetação real, que “(...) consiste na aplicação de critérios objetivos, reais, sobre o grau ou intensidade de utilização dos bens e serviços em operações que conferem direito à dedução e em operações que não conferem esse direito. É de acordo com esse grau ou intensidade de utilização dos bens, medidos por critérios objetivos, que o sujeito passivo determinará a parte de imposto suportado que poderá ser deduzida. Os critérios estão sujeitos (...) ao escrutínio da Direção-Geral dos Impostos que pode vir a impor condições especiais ou mesmo a fazer cessar o procedimento de afetação real, no caso de se verificar que assim se provocam ou podem provocar distorções significativas da tributação (..).“
zz. 94. E por outro, o método da percentagem de dedução ou pro rata, definido na alínea b) do n.° 1 e n.° 2 do artigo 23.º, e desenvolvido nos n.°s 4 a 8 do mesmo preceito legal. No fundo, trata-se de uma dedução parcial, que se traduz no facto do imposto suportado nas aquisições de bens e serviços utilizados num e noutro tipo de operações, apenas ser dedutível na percentagem correspondente ao montante anual de operações que dão lugar a dedução.
aaa. 95. Neste caso, a percentagem de dedução a aplicar é calculada provisoriamente com base no montante de operações realizadas no ano anterior (pro rata provisório), sendo corrigida na declaração do último período do ano a que respeita, de acordo com os valores definidos de volume de negócios referente ao ano a que reportam, determinando a correspondente regularização por aplicação do pro rata definitivo.
bbb. 96. Ora, com a alteração introduzida ao artigo 23.° pela Lei n.° 67-A/2007, de 31 de dezembro, tais procedimentos foram “estendidos” ao método da afetação real, nomeadamente, aos casos em que o mesmo é imposto pela Administração Tributária, quer para as situações em que o sujeito passivo exerça atividades económicas distintas, quer para os casos em que se apure que a utilização dos demais métodos poderá originar distorções significativas na tributação, conforme dispõe o n.° 3 do artigo em análise.
ccc. 97. O que se mostra perfeitamente justificável, e em nada contraria o sistema comum de IVA. De facto, de um ano para outro pode mudar o grau de utilização dos bens no regime da afetação real e os critérios objetivos de apuramento do mesmo.
ddd. 98. É precisamente no âmbito dos poderes conferidos à Administração Tributária pela alínea b) do n.° 3 do artigo 23.º CIVA, que se enquadra o Ofício-Circulado n.° 30.108, aqui em discussão prevendo uma solução que permite afastar a possibilidade de ocorrência de distorções significativas, quando estamos perante sujeitos passivos que realizem operações de locação financeira e ALD.
eee. 99. Assim, no seu ponto 9 prescreve que “na aplicação do método da afetação real, nos termos do número anterior e sempre que seja possível a aplicação de critérios objetivos de imputação dos custos comuns, deve ser utilizado um coeficiente de imputação específico, tendo em conta os valores envolvidos, devendo ser considerado no cálculo da percentagem de dedução apenas o montante anual correspondente aos juros e outros encargos relativos à atividade de Leasing ou de ALD. Neste caso, a percentagem atrás referida não resulta da aplicação do n.° 4 do artigo 23.° do CIVA”.
fff. 100. Posto isto, a questão que se coloca é saber se o procedimento adotado pela Administração Tributária, está conforme com as normas internas e comunitárias, em especial, o artigo 16.º e 23.º CIVA, já referidos, e bem assim, os artigos 174.º e 175. ° da Diretiva IVA.
ggg. 101. O Ofício-Circulado n.º 30.108 foi publicado na sequência das alterações introduzidas pela mencionada Lei n.° 67-A/2007, de 31 de dezembro, procurando afastar algumas dificuldades interpretativas suscitadas pela anterior redação do artigo 23.º CIVA, harmonizando-o com a doutrina e jurisprudência comunitárias.
hhh. 102. Não obstante, grande parte da doutrina nele preconizada, já vinha sendo aplicada pela Administração Tributária antes mesmo da sua publicação.
iii. 103. Neste sentido, atendemos ao Parecer de 0610612005, elaborado pelo Gabinete do Diretor Geral dos Impostos, sobre a questão controvertida, que dada a clareza com que aborda o tema, se transcreve:
i. «a) A prática conjunta de operações de concessão de crédito e de locação financeira tributada (mobiliária sempre e atualmente a imobiliária em caso de renuncia à isenção do artigo 9°, n° 30) significará que, quando houver bens e serviços adquiridos (inputs) que sejam conjuntamente utilizados em ambas, se haja de recorrer às disposições do artigo 23.º do CIVA para apuramento da parcela do imposto suportado a qual/ficar como passível de direito a dedução;
ii. b) Os métodos previstos são dois — afetação real e a percentagem de dedução ou pro rata, este com a natureza de percentagem geral ou genérica, apelando aos montantes das transmissões de bens e prestações de serviços, montantes esses que, porque se está perante operações sujeitas ao imposto, serão os que resultam das disposições estabelecidas como base ou valor tributável pelo artigo 16° do CIVA. Admissível como método supletivo, a utilização do método pro rata pode ser afastada pela Administração Fiscal, exigindo a utilização do método de afetação real, quando entenda estarem reunidas e verificadas as condições previstas no n° 3 do artigo 23.°;
iii. c) Na situação em apreço, a mistura de “montantes anuais, imposto excluído” de prestações de serviços, que apenas refletem a componente juros das operações de normal concessão de crédito, com “montantes anuais, imposto excluído” de prestações de serviços que refletem a soma do capital financiado e dos juros, em relação a operações que sendo ainda de financiamento assumem a veste jurídica de locação financeira, retira à utilização do pro rata geral idoneidade para o apuramento a que é chamado, sendo a falta de coerência das variáveis nele utilizadas, suscetível de provocar vantagens ou prejuízos injustificados, o mesmo é dizer, suscetíveis de conduzir a “distorções significativas na tributação”
iv. d) Termos em que se reputa aconselhável impor, doravante, nestas situações a obrigatoriedade de uso do método de afetação real para apurar o IVA dedutível relativamente a bens e serviços adquiridos e de utilização conjunta nos dois tipos de operações ou atividades;
v. e) Neste contexto, devem os sujeitos passivos operar “com base em critérios objetivos que permitam determinar o grau de utilização desses bens e serviços e operações que conferem direito a dedução e em operações que não conferem esse direito”, sem prejuízo de a Direção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou fazer cessas esse procedimento no caso de se verificar que provocam ou que podem provocar distorções significativas na tributação, cabendo-lhes, então, escolher os critérios objetivos que se mostrem mais adequados aos fins visados pela disciplina e pela fundamentação que lhe subjaz”
vi. f) No caso de não se mostrar viável um índice objetivo específico, poderá, recorrer-se para o efeito a uma percentagem ou coeficiente, desde que ela faça apelo, nos seus dois membros - numerador e denominador — a variáveis que se mostrem coerentes entre si, homogeneizadas para o efeito, e com a mesma natureza, ressalvadas as devidas adaptações, obviamente.
vii. Teríamos assim o uso de uma percentagem (tal como aquela outra percentagem que é a percentagem genérica de dedução ou pro rata geral), mas aqui não geral mas sim específico à realidade a que vai ser aplicada. E não entendido como método de apuramento de direito a dedução mas sim e apenas como coeficiente de imputação dentro do método de afetação real;
viii. g) Como quer que seja, sempre com exigência de que os sujeitos passivos possuam elementos capazes de demonstrar, sempre que a DGCI o solicite, o bem fundado dos critérios, coeficientes ou índices utilizados e com a faculdade da administração fiscal, desde que adequadamente o justifique, poder discordar e impor as correspondentes e necessárias retificações.”
jjj. 104. A questão principal que se dirime, nesta sede, já foi objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Administrativo (STA) 2ª Secção, no âmbito do Processo n.° 01017/12, tendo sido proferido Acórdão de 16 de janeiro de 2013, onde de forma exemplar se faz todo o enquadramento doutrinal relativo à questão em análise, do qual se extraem as seguintes citações:
i. - “(...) a questão a conhecer no presente recurso consiste em saber se, num contrato de locação financeira, em que o cliente paga a renda, sendo esta composta pela amortização financeira, juros e outros encargos, essa renda paga deve ou não entrar, na sua aceção plena para o denominador do pro rata, ou se, ao invés, devem ser considerados unicamente os juros, pois estes, são a remuneração, o lucro que a atividade da banca obtém pelo contrato de locação.
ii. - “Porém, o IVA constitui um imposto de raiz comunitária tendo na sua génese a Diretiva n° 77/388 do Conselho de 17 de maio (...“
iii. - “Daqui resulta então que interpretar as normas do CIVA, implica também interpretar as normas da Diretiva Comunitária acima referida.”
iv. - “Tal interpretação cabe, em primeira linha ao Tribunal de Justiça da União Europeia, podendo os tribunais nacionais dispensar tal interpretação, nomeadamente em caso de a norma se revelar clara ou de o Tribunal de Justiça já se ter pronunciado sobre situação similar.”
v. - “No caso dos autos, entende-se que a norma comunitária carece, efetivamente, de interpretação do TJUE, pois se desconhece decisão em que a questão suscitada nos autos tenha sido afrontada diretamente e a mesma revela-se complexa.”
vi. - “Pelo que ficou dito, formula-se ao Tribunal de Justiça da União Europeia, a título prejudicial, a seguinte questão:
vii. - “Num contrato de locação financeira, em que o cliente paga a renda, sendo composta pela amortização financeira, juros e outros encargos, essa renda deve ou não entrar, na sua aceção plena, para o denominador do pro rata, ou ao invés, devem ser considerados unicamente os juros, pois estes, são a remuneração, o lucro que a atividade da banca obtém pelo contrato de locação?”
kkk. 105. No mencionado Acórdão, os juízes do STA ordenaram o reenvio prejudicial ao Tribunal de Justiça da União Europeia, decidindo pela suspensão do processo até À prolação de decisão pelo TJUE.
lll. 106. Consequentemente, se os juízes da mais alta instância dos Tribunais Administrativos e Fiscais nacionais, solicitaram no âmbito da cooperação judiciária comunitária uma contribuição para a decisão, tal significa que o entendimento da AT, plasmado no Ofício-Circulado n.° 30.108, não é desprovido de sentido, face Às normas legais em vigor e ao caso aplicáveis
mmm. 107. Face a tudo o que ficou dito, não subsistem dúvidas que o procedimento adotado pela Administração Fiscal está de acordo com as normas internas e comunitárias e nenhuma ilegalidade se lhe pode assacar.
nnn. 108. De facto, o n.° 5 do artigo 17° da Sexta Diretiva (que corresponde ao atual artigo 1740 da Diretiva IVA) consente aos Estados-Membros opções em relação ao apuramento do IVA dos “inputs promíscuos”, autorizando ou impondo que utilizem determinados métodos específicos de dedução do IVA quando as circunstâncias o justifiquem. Aliás a própria Reclamante admite-o no ponto 58.º do requerimento de Reclamação Graciosa [bem como no artigo 74.° da petição inicial].
ooo. 109. Em consonância com essa permissão está o disposto no n.° 2 e na alínea b) do n.° 3, ambos do artigo 23.° do CIVA.
ppp. 110. Estas regras que regem o direito à dedução constam das diretivas que disciplinam o sistema comum de IVA, estando, também em consonância com as normas constantes do CIVA.
qqq. 111. A posição da AT encontra perfeito acolhimento quer nos princípios constitucionais, quer no espírito e princípios disciplinadores do mecanismo do exercício do direito de dedução, constante quer da jurisdição comunitária, quer do quadro normativo nacional, que não é mais do que uma transposição das normas jurídicas comunitárias.
rrr. 112. A este respeito, cumpre esclarecer que as orientações constantes do ponto 9 do Ofício-Circulado 30 108, mais não fazem do que contribuir para a praticabilidade dos desígnios constitucionais plasmado nos artigos 103.º e 104.º da Constituição da República Portuguesa, sendo um fator decisivo para garantir e tutelar a confiança dos contribuintes.
sss. 113. A posição da AT, em momento algum, põe em causa, quer as normas internas, quer comunitárias relativas ao direito à dedução, conforme já ficou amplamente elucidado, jamais procurando alterar ou violar as regras jurídicas que lhe deram origem.
ttt. 114. Neste termos, tendo em consideração que a Reclamante, ainda que não referindo no seu requerimento de Reclamação Graciosa, apurou o montante da percentagem de dedução seguindo o entendimento preconizado pela AT no mencionado Ofício-Circulado, não se vislumbra que tenha incorrido em qualquer erro no respetivo apuramento, por desconsideração do valor correspondente à componente do capital das rendas dos contratos de locação financeira.
uuu. (...);
I) O indeferimento da reclamação graciosa foi comunicado ao Contribuinte por carta registada em 2014.07.02 (cf. fls. 247 a 244 do PA);
J) Em 2014.09.01, a presente impugnação deu entrada neste Tribunal Tributário de Lisboa;

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2.2.- Motivação de Direito

Os recursos, que devem ser dirigidos contra a decisão do tribunal a quo e seus fundamentos, têm o seu âmbito objectivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso, alegação que apenas pode incidir sobre as questões que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido (ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas) - v.g. artigos 635º e 639º do NCPC, «ex vi» do artigo 2º do CPPT.
Todavia, importa primariamente decidir da questão prévia suscitada pelo Magistrado do Ministério Público nos presentes autos, relativa à alegada incompetência, em razão da matéria e da hierarquia, deste Supremo Tribunal Administrativo, para conhecimento do objecto do recurso.
Improcedendo esta excepção de incompetência, haverá então que conhecer do mérito do recurso, analisando se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento.
Conforme se alcança do Parecer emitido pelo EPGA, é suscitada a excepção de incompetência em razão da matéria e da hierarquia, para conhecer do presente recurso, uma vez que não resulta que o recurso seja restrito às várias questões de direito suscitadas quer quanto à aplicação efetuada do art. 23.º do Código do I.V.A., quer quanto ao ofício-circulado n.º 30108, de 30.01.2009, aos artigos 173.º (anterior art. 17.º n.º 5 da Sexta Diretiva do IVA) e 174.º da Diretiva 2006/112/CE, em violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, e dos comunitários da atribuição, subsidiariedade, da proporcionalidade e cooperação leal, quer quanto ao ónus de prova aplicável, bem como ainda à sujeição da questão referida na conclusão 45ª a reenvio para o Tribunal de Justiça da U.E., ao abrigo do art. 267.º do T.J.U.E..
Mais aduz o EPGA junto desta instância que das conclusões apresentadas, após convite, é possível inferir haver matéria de facto não só não contida que o deveria ter sido de acordo com o decidido já pelo T.J.U.E., como, nomeadamente, a constante da conclusão 32.ª, se invoca que as viaturas usadas no exercício da atividade de locação financeira são parte integrante do ativo imobilizado da locadora e que, durante o período em que a locadora detém a viatura, foram refletidas na mesma as respetivas reintegrações.
De tal resulta, alegadamente, ser legítima a exclusão, por parte da ora recorrente, da componente de capital das rendas faturadas no âmbito dos contratos de locação financeira, conforme a seguir se defende nas conclusões 33.ª e 34.ª.
Apreciando.
Uma vez que vez suscitada a incompetência material, haverá que tecer algumas considerações no sentido de demonstrar que a mesma não ocorre.
Assim, começamos por constatar que a mesma não vem substanciada pois se limita o arguente a sustentar ao longo do seu parecer, no essencial, que o recurso seja restrito às várias questões de direito suscitadas.
Como na própria sentença e no Parecer em análise se enuncia, a matéria em discussão diz respeito à aplicação efectuada do art. 23.º do Código do I.V.A., quer quanto ao ofício-circulado n.º 30108, de 30.01.2009, aos artigos 173.º (anterior art. 17.º n.º 5 da Sexta Diretiva do IVA) e 174.º da Diretiva 2006/112/CE, em violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva, e dos comunitários da atribuição, subsidiariedade, da proporcionalidade e cooperação leal, quer quanto ao ónus de prova aplicável, bem como ainda à sujeição da questão referida na conclusão 45ª a reenvio para o Tribunal de Justiça da U.E., ao abrigo do art. 267.º do T.J.U.E.. Estando ainda em causa a situação de viaturas usadas no exercício da actividade de locação financeira e saber se são parte integrante do activo imobilizado da locadora e se, durante o período em que a locadora detém a viatura, foram reflectidas no mesmo as respectivas reintegrações. Isso em vista de determinar se é legítima a exclusão, por parte da ora recorrente, da componente de capital das rendas facturadas no âmbito dos contratos de locação financeira.
Neste conspecto, determinemos então, pois é essa a questão fundamental a decidir, se ocorre ou não a incompetência material deste Tribunal Supremo para conhecer do recurso, o que passa necessariamente por aferir se nos autos estamos perante uma “questão fiscal”.
Preliminarmente, diga-se que, em geral, o conceito de competência é definido como o complexo de poderes funcionais conferidos por lei a cada órgão ou cargo para o desempenho das atribuições da pessoa colectiva em que esteja integrado.
O artº 20º, nº 1 da Constituição determina que «a todos é assegurado o acesso ao direito aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos».
Consagra este preceito, além do mais, o direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional que implica naturalmente a garantia de uma protecção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efectiva.
Tendo isso presente, o certo é que, a política conformadora do Estado social levou a Administração a invadir os campos mais insuspeitados da actividade individual, tornando os cidadãos cada vez mais dependentes das suas prestações.
Falida a concepção liberal em que se defendia a abstenção do Estado como forma de protecção do cidadão, hoje, adversamente, reclama-se a sua intervenção na vida económica, social e cultural, de forma a criar as condições indispensáveis à realização do homem.
O Estado social implica, pois, a existência de uma Administração «constitutiva» ou «conformadora» em ordem à realização de uma ideia de justiça social, extirpando os resquícios de uma Administração eminentemente abstencionista e «agressiva» típica do Estado anterior, o que acarreta, incontornavelmente, a omnipresença da Administração na vida social e a proliferação de situações em que esta pode colidir com os direitos e interesses do cidadão, com o consequente aumento da conflitualidade.
No reverso, cresce um sentimento generalizado da necessidade de reforço das garantias dos administrados e, na esfera do político, nota-se uma pulverização e democratização do poder com alterações na estrutura organizativa da Administração Pública.
Assim se justificam os movimentos de descentralização e desconcentração das competências administrativas, com a inevitável multiplicação dos órgãos capazes de praticarem actos definitivos os quais deixaram, assim, de ser atributo dos poucos órgãos supremos que mereciam um maior crédito quanto à responsabilidade e ao cuidado na observância da legalidade nas suas decisões.
Todavia, se é certo que a fragmentação do poder implicou que a Administração deixasse de ter o monopólio da titularidade e gestão dos interesses gerais, dando origem a que dentro do próprio Estado surgissem novos entes públicos que configuram outros tantos centros autónomos de decisão e de poder que concorrem para a realização do interesse público, também o é que no exterior do aparelho estadual se assiste à gestão de interesses colectivos por entes que não fazem parte do complexo orgânico da Administração.
Daí que a Administração e os entes, que não fazem parte do complexo orgânico da Administração mas procedem à gestão de interesses colectivos, esteja agora mais vinculada ao direito, já que não só tem de cumprir as condições e os limites expressamente fixados na lei, mas também tem de respeitar princípios jurídicos fundamentais, nomeadamente os princípios da imparcialidade, da igualdade, da justiça e da proporcionalidade, ou seja, a Administração, no seu todo, está submetida ao princípio da juridicidade, concepção que traduz com mais rigor a sua vinculação ao direito do que o tradicional princípio da legalidade.
Ora, no Estado social e democrático, os textos constitucionais, reagindo contra uma concepção puramente retórica dos direitos fundamentais, consagraram direitos liberdades e garantias eficazes por si mesmos e vinculativos para todos os poderes públicos e privados e privados.
Todavia, a efectividade do seu reconhecimento exige uma protecção jurisdicional imediata sem a qual as declarações constitucionais não passam de figuras retóricas, de textos declamatórios que formulam ideários, mas não atribuem nem protegem direitos.
Nesse sentido, há que reconhecer e impor mudanças nas relações entre a Administração e os administrados de modo a que se reduza a superioridade da Administração perante o cidadão que deixa de ser mero destinatário da acção administrativa, transmutando-se em sujeito de direitos que a Administração, como qualquer outro poder do Estado, ou privado actuando no âmbito do interesse público, tem de respeitar.
A Administração apresenta-se, segundo esta visão, como um poder autónomo, mas em paridade institucional com os outros poderes, direccionado à realização em concreto do interesse público mediante a prática de actos dotados de poder de imperium, de força de autoridade em que, todavia, as exigências de celeridade e eficiência da sua actuação perdem a natureza de valor absoluto, para, casuisticamente, serem conciliadas com os limites postos pelos direitos fundamentais do cidadão e os princípios constitucionais.
Em vista do caso concreto, entre os direitos fundamentais recolhidos na lei fundamental, há a destacar a consagração do direito à tutela judicial efectiva que visa alcançar um controlo integral e pleno da actividade administrativa como o principal instrumento de defesa dos particulares face à Administração.
Mas isso não é compatível com um contencioso de tipo puramente impugnatório face à multiplicação e complexificação de modos de conduta da Administração que atrás já se assinalaram, quando é certo que tradicionalmente o processo contencioso foi perspectivado e estruturado à luz da configuração bilateral da relação jurídico - administrativa, e a complexidade das tarefas do estado social atestam um aumento crescente das relações jurídicas poligonais.
Este estado de coisas impôs o aperfeiçoamento e adaptação dos meios processuais do Contencioso no sentido de uma plena jurisdição e abertura para as mais variadas formas de acção administrativa com a inevitável desvalorização do acto administrativo como figura nuclear do contencioso administrativo e a relativização da importância que esse acto desempenha na dogmática clássica do direito administrativo, quer no plano do direito adjectivo, quer no do direito substantivo. Realidade que, no entanto, não foi ainda ultrapassada no âmbito do contencioso tributário que continua a ser como de mera anulação.
Respiga-se, a tal propósito, Gomes Canotilho in «Procedimento Administrativo e defesa do ambiente», RLJ, 123 (1990/91), p. 136 ss: «é tempo de se perguntar se o 'eixo' do direito administrativo deve continuar a ser o acto administrativo ou se é metódica e cientificamente mais frutuoso deslocar esse 'eixo' para as relações jurídico - administrativas e para a fenomenologia procedimental do desenvolvimento da acção administrativa».
Tendo em conta os precedentes considerandos diga-se que, no âmbito da pessoa colectiva Estado e no quadro da clássica divisão de poderes ou funções - legislativas, administrativas e jurisdicional -, a questão da competência em apreço recorta-se, entre nós, na área jurisdicional, isto é, face às diversas ordens de tribunais.
A questão da competência jurisdicional para o efeito de saber se a relação do recorrente e recorrida tem uma natureza originariamente na totalidade, e parcialmente na actualidade, de direito público coloca-se perante o ramo da alternativa de uma de duas ordens de tribunais - judiciais e administrativos.
Aos referidos tribunais - órgãos de soberania - compete administrar justiça em nome do povo (artigo 205°, n° 1, da CRP).
Os conceitos de jurisdição e de competência traduzem realidades conexas mas distintas, significando o primeiro o poder de julgar genericamente atribuído, na organização do Estado, ao conjunto de tribunais, e o último a medida de jurisdição legalmente atribuída a cada um deles.
A medida de jurisdição de cada um dos tribunais, ou seja, a sua competência é susceptível de variar em razão da matéria, do valor, da hierarquia e do território.
No caso em apreço só releva a divisão interna do poder jurisdicional pelas diferentes categorias de tribunais segundo o critério da natureza da matéria dos litígios, isto é, a vertente da competência material.
A competência em razão da matéria fragmenta-se pelas diversas categorias de tribunais à luz do chamado princípio da especialização inspirado na ideia de vantagem de atribuir a determinados órgãos jurisdicionais o conhecimento de questões reguladas por específicas áreas de direito em razão da sua vastidão ou especificidade.
Compete-lhes, segundo a referida matriz constitucional, o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenha por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (artigo 214°, n° 3, da CRP).
Em desenvolvimento do estatuído nos artigos 211°, n° 1, alínea b), e 214°, n° 3, da CRP foram publicados o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - ETAF -, aprovado pelo Decreto-Lei n° 129/84, de 27 de Abril, e a Lei de Processo nos Tribunais Administrativos - LPTA -, aprovada pelo Decreto-Lei n° 267/85, de 16 de Julho e, depois, o CPTA.
A jurisdição administrativa e fiscal é exercida por tribunais administrativos e fiscais, com o estatuto de órgãos de soberania com competência para administrar justiça em nome do povo (artigo 1° do ETAF).
Incumbe-lhes, em sede de administração da justiça, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas (artigo 4° do ETAF).
A expressão "contencioso administrativo "é utilizada pelas leis em pelo menos cinco sentidos distintos - orgânico, funcional, material, instrumental e normativo - a maioria deles sem grande rigor.
No presente caso releva o sentido material da expressão contencioso administrativo isto é, o conjunto de litígios entre a Administração Pública e os particulares, que hajam de ser solucionados pelos tribunais administrativos com aplicação do Direito Administrativo.
No quadro da competência material dos tribunais administrativos distingue-se entre o contencioso por natureza ou essencial e o contencioso por atribuição ou acidental, abrangendo o primeiro os actos e regulamentos administrativos e o último os contratos administrativos, a responsabilidade da administração, os direitos e interesses legítimos e as questões eleitorais (cfr. artigo 4º do ETAF).
O contencioso administrativo por natureza ou essencial constitui a garantia dos particulares contra o exercício ilegal por via unilateral do poder administrativo.
Os tribunais comuns não dispõem de competência em razão da matéria para conhecerem dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativa e fiscais, a qual se radica na ordem de tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.
É que, por força de norma constitucional, a competência para julgar as acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, radica-se nos tribunais administrativos e fiscais – art.º 212.º n.º3 da CRP – que não nos tribunais comuns, exercendo estes a sua jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais – art.º 211.º n.º1 da mesma CRP.
Na respectiva pirâmide legislativa, no degrau imediatamente inferior, as leis orgânicas das respectivas ordens de tribunais, vêm secundar aquelas normas constitucionais, desenvolvendo-as, no sentido programado por aquelas.
Assim, a competência em razão da matéria dos tribunais comuns ou judiciais é para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional – art.º 18.º da LOTJ na redacção introduzida pela Lei n.º 105/2003, de 10 de Dezembro – enquanto que aos tribunais administrativos e fiscais é atribuída a competência para dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais – art.º 1.º do ETAF, na redacção da Lei n.º 107-D/2003, de 31 de Dezembro.
A jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo n.º 3 do art. 212.º da C.R.P., em que se estabelece que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais», norma esta que adoptou, no essencial, a regra que já constava dos arts. 1.º e 4º do ETAF.
Sendo a jurisdição dos tribunais judiciais constitucionalmente definida por exclusão, conforme preceitua o art. 211.º, n.º 1, da CRP (disposição esta que é reproduzida, na sua essência, na Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais).
E, pela voz da doutrina, não se olvida o pensamento de Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, 1979, página 91, que nos ensina ser a competência dos tribunais aferida em função dos termos em que a acção é proposta, «seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). A competência do tribunal – ensina Redenti – “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)”, é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor. E o que está certo para os elementos objectivos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes.»
«A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão».
Este entendimento está, aliás, em sintonia com o direito que a todos os cidadãos é garantido de acederem aos tribunais com o escopo de verem apreciados os direitos de que se arrogam (n.º1 do artigo 20º da Lex Fundamentalis) e tem vindo a ser aceite, no essencial, pelo STJ, STA e Tribunal de Conflitos (vejam-se, entre outros, os Acs. do T. Conflitos, de 31.01.91, AD 361 e de 6-7-93 (Conflito nº 253); do STJ, de 03.02.87, in BM 364º-591, de 202-90. BMJ 394º-453, de 12.01.94 e do STA, de 09.03.89, Rec. 25084, de 13.05.93, Rec. 31478, de 27.01.94, Rec. 32278, de 28.05.96, Rec. 39911, de 26.09.96, Rec. 267, de 27.11.96, Rec. 39544, de 19.02.97, Rec. 39589, de 24.11.98, Rec. 43737 de 03.03.99, Rec. 40222, de 23.03.99, Rec. 43973, de 26.05.99, Rec. 40648, de 13.10.99, Rec. 44068, de 26.09.00, Rec. 46024, de 06.07.00. Rec. 46161, de 03.10.00, Rec. 356 e de 11.07.00, Rec. 318).
Temos, assim, que a competência do tribunal se afere face à pretensão formulada pelo autor na petição inicial, traduzida no binómio pedido/causa de pedir, ou seja, face ao «quid disputatum» e não ao «quid decisum», isto é, dito por outras palavras, a competência determina-se pelo pedido do Autor, irrelevando qualquer tipo de indagação acerca do seu mérito.
É consabido que aos tribunais administrativos incumbe assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas, sendo certo que lhes é retirada competência para conhecimento de acções que tenham por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público.
É, pois à luz da doutrina e jurisprudência citada, bem como das referidas normas delimitadoras da competência da jurisdição administrativa e da dos tribunais judiciais, que cumpre decidir se o conhecimento da presente acção incumbe aos tribunais administrativos ou aos tribunais judiciais.
Vejamos então.
Acolhendo o ensinamento sufragado pela doutrina e jurisprudência, acima mencionada, segundo a qual o tribunal materialmente competente para conhecer a pretensão do A., deve aferir-se em face “do teor desta pretensão e dos fundamentos em que se estriba”, irrelevando qualquer indagação acerca do seu mérito, e “sendo igualmente certo que o tribunal não está vinculado às qualificações jurídicas efectuadas pelo requerente ou autor”, não se concorda com o EPGA junto desta secção no sentido de que esta secção carece de competência para conhecer do recurso.
Com efeito, sendo, conceptualmente, a competência dos tribunais os limites dentro dos quais a cada tribunal cabe exercer a função jurisdicional, é a medida de jurisdição dos diversos tribunais, o modo como entre eles se fracciona e reparte o poder jurisdicional, que, tomado em bloco, pertence ao conjunto dos tribunais, sob esse prisma, o que o EPGA suscita é, não a falta de poder deste Supremo para julgar o recurso porque o mesmo não cabe dentro da esfera de jurisdição genérica ou abstracta deste Tribunal mas, sim, que a Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal o possa fazer por caber ao TCAS.
À denominada “jurisdição administrativa e fiscal”, na qual se integram quer o STA-SCT, os TCAs e o TT 1ª Instância, incumbe assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações administrativas e fiscais (cf. artºs 1º e 4° do ETAF, e artº 212 nº 3 da CRP).
Mas a “jurisdição fiscal” é distinta da “jurisdição administrativa” por constituir uma especialização dentro desta na qual cabem todas as questões administrativas que não tenham natureza fiscal e cujo conhecimento não seja atribuído a outro Tribunal; no âmbito da “jurisdição fiscal”, caberão assim todas as questões administrativas de natureza fiscal que são não só as resultantes de resoluções autoritárias que imponham aos cidadãos o pagamento de quaisquer prestações pecuniárias, com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos dos respectivos entes impositores, como as que os dispensem isentem delas, como ainda, numa perspectiva mais abrangente, as respeitantes à interpretação e aplicação de normas de direito fiscal.
Nesse sentido, é inquestionável que o acto recorrido foi praticado por entidades administrativas, no exercício das suas funções e no uso dos seus poderes de autoridade e versa sobre as já assinaladas questões.
Nos termos do artigo 13º do CPTA “o âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria”.
E nos termos do artigo 97º nº 1 do CPC novo (aprovado pela Lei nº 41/2013), ex vi do artigo 1º do CPTA a incompetência absoluta “deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa.”
O artigo 1º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, define o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal em função dos litígios emergentes das “relações jurídicas administrativas e fiscais” à luz do disposto no nº 3 do artigo 212º da Constituição da República Portuguesa que determina que “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
À luz daqueles normativos o critério de determinação da jurisdição competente é o critério material da relação jurídica subjacente ao litígio.
Para além dos demais tribunais superiores, são órgãos da jurisdição administrativa e fiscal os Tribunais Administrativos de Círculo e os Tribunais Tributários.
Consoante o disposto no Artigo 26.º do ETAF, compete à Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo conhecer:
a) Dos recursos dos acórdãos da Secção de Contencioso Tributário dos tribunais centrais administrativos, proferidos em 1.º grau de jurisdição;
b) Dos recursos interpostos de decisões de mérito dos tribunais tributários, com exclusivo fundamento em matéria de direito;
c) Dos recursos de atos administrativos do Conselho de Ministros respeitantes a questões fiscais;
d) Dos requerimentos de adoção de providências cautelares respeitantes a processos da sua competência;
e) Dos pedidos relativos à execução das suas decisões;
f) Dos pedidos de produção antecipada de prova, formulados em processo nela pendente;
g) (Revogada.)
h) De outras matérias que lhe sejam deferidas por lei.
A esse respeito, deve entender-se por “questão fiscal”, aquela que, de qualquer forma, imediata ou mediata, faça apelo à interpretação e aplicação de norma de direito fiscal com atinência ao exercício da função tributária da Administração ou à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos. Sendo assim “questão fiscal” aquela que emerge de resolução autoritária que imponha o pagamento de prestações pecuniárias com vista à satisfação de encargos públicos dos respectivos entes impositivos (cfr. Casalta Nabais in, “Direito Fiscal”, 2.ª edição, pág. 366). Ou, por outras palavras, está-se perante “questão fiscal” “quando a mesma diga respeito à interpretação e aplicação de normas legais de natureza tributária, ou seja, se refira a uma resolução autoritária que negue direito a não pagamento ou que imponha o pagamento de qualquer prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação dos encargos públicos do Estado ou de outras pessoas coletivas públicas, bem como o conjunto de relações jurídicas que com elas estejam objetivamente conexas ou teleologicamente subordinadas” (vide, Acórdão do TCA Norte de 25/11/2011, Proc. 02750/10.4BEPRT, in www.dgsi.pt/jtcan).
O litígio é relativo a uma “questão fiscal”, na tese ampliativa perfilhada pela jurisprudência, segundo a qual questões fiscais são “as que exigem a interpretação e aplicação de quaisquer normas de Direito Fiscal substantivo ou adjetivo para a resolução de questões sobre matérias respeitantes ao exercício da função tributária da Administração Pública” (cfr. Ac. do Pleno do STA de 12.11.2009, proc. n.º 0366/09). Ora, a acção envolve directamente a interpretação e aplicação de disposições de direito fiscal, ou que se situam no campo da actividade tributária.
Marcello Caetano, ensinava que “o preço pago pelas prestações fornecidas pelos serviços públicos geridos diretamente por pessoas coletivas de direito público tem a natureza jurídica de taxa e nessa qualidade está sujeito ao regime de cobrança das receitas fiscais” (cfr. Manual de Direito Administrativo, Vol. II, pág. 1061 - sobre a distinção entre taxa e preço, cfr. Alberto Xavier, Manual de Direito fiscal, 1974, pág. 53 e ss.; Sousa Franco, Manual de Finanças Públicas e Direito Financeiro, Vol. I, Lisboa, 1974, pág. 760, Teixeira Ribeiro, Finanças Públicas, pág. 262).
Ora, a discussão da questão em presença, até pelos fundamentos aduzidos em sede de pretensão e articulado de oposição, passa pela aferição da legalidade e bondade de interpretação e aplicação de normas de direito fiscal com atinência ao exercício da função tributária da Administração.
Assim, por o litígio respeitar a questão fiscal, emergindo de relação jurídica tributária, deverá este STA-SCT ser considerado tribunal administrativo materialmente incompetente para a apreciar e decidir.
Daí que o presente litígio surja no âmbito de relações de natureza tributária, i. é., de uma imposição pecuniária (taxa, imposto, contribuição especial ou outra) de natureza pública e coactiva que nos diz estarmos perante um tributo.
Aqui há “questões fiscais”, pois estas são não só aquelas que têm como pressuposto a aplicação de normas relacionadas com a imposição de toda e qualquer prestação pecuniária, com o fim de obtenção de receitas destinadas à satisfação dos encargos públicos da pessoa colectiva impositora, como as que emergem de uma resolução autoritária que imponha aos cidadãos o pagamento de qualquer prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos do Estado e demais entes públicos, como, ainda, as relações jurídicas que surjam em virtude do exercício da função de imposição de tais prestações ou que com elas estão objectivamente conexas ou tecnologicamente subordinadas.
*
Vejamos de seguida se ocorre a incompetência hierárquica deste STA-SCT nos termos perfilados pelo EPGA.
Nos termos do artigo 282.º, n.º 1, do CPPT, das decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância é admissível recurso para o Tribunal Central Administrativo, salvo quando a matéria for exclusivamente de direito, caso em que o mesmo é admissível para a secção de contencioso tributário do STA. Resulta assim da lei e designadamente do disposto igualmente no artigo 26.º, alínea b) do ETAF, que a competência do STA se circunscreve aos recursos que tenham exclusivamente por fundamento matéria de direito.
E como se deixou exarado no acórdão do STA de 11/05/2011, tirado no recurso n.º 0324/11, o recurso não versa exclusivamente matéria de direito, se nas conclusões do respectivo recurso se questionar a questão factual, manifestando-se divergência, por insuficiência, excesso ou erro, quanto à matéria de facto provada na decisão recorrida, quer porque se entenda que os factos levados ao probatório não estão provados, quer porque se considere que foram esquecidos factos tidos por relevantes, quer porque se defenda que a prova produzida foi insuficiente, quer ainda porque se divirja nas ilações de facto que se devam retirar dos mesmos (v., entre outros, os acórdãos do STA de 16/12/2009 e de 21/04/2010, proferidos nos recursos n.ºs 738/09 e 189/10, respectivamente).
Cumpre, pois, ajuizar da competência, questão que é de ordem pública e prioritária em relação a qualquer outra [cf. art. 13.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro]. Cumpre, designadamente, aferir da incompetência em razão da hierarquia, que determina a incompetência absoluta do tribunal, a qual é do conhecimento oficioso e pode ser arguida até ao trânsito em julgado da decisão final (cf. art. 16.º do CPPT). No caso, foi arguida pelo Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal.
Note-se ainda que na sequência da declaração de incompetência em razão da hierarquia deve proceder-se à remessa do processo ao tribunal competente (cf. art. 18.º do CPPT).
Ora, figura-se-nos que no caso concreto dos autos, a Recorrente não só questiona a interpretação e aplicação das normas jurídicas ao caso concreto que foram feitas na sentença recorrida, como questiona a própria matéria de facto dada como assente.
2.2.2 Como é sabido, nos termos do disposto nos arts. 26.º, alínea b), e 38.º, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, e no art. 280.º, n.º 1, do CPPT, a competência para conhecer dos recursos das decisões dos tribunais tributários de 1.ª instância em matéria de contencioso tributário, pertence à Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo quando os recursos tenham por exclusivo fundamento matéria de direito, constituindo uma excepção à competência generalizada dos tribunais centrais administrativos, aos quais cabe conhecer «dos recursos de decisões dos Tribunais Tributários, salvo o disposto na alínea b) do artigo 26.º» [art. 38.º, alínea a), do ETAF].
Assim, para aferir da competência em razão da hierarquia do Supremo Tribunal Administrativo, há que olhar para as conclusões da alegação do recurso e verificar se, em face das mesmas, as questões controvertidas se resolvem mediante uma exclusiva actividade de aplicação e interpretação de normas jurídicas, ou se, pelo contrário, implicam a necessidade de dirimir questões de facto, seja por insuficiência, excesso ou erro, quanto à matéria de facto provada na decisão recorrida, quer porque se entenda que os factos levados ao probatório não estão provados, quer porque se considere que foram esquecidos factos tidos por relevantes, seja porque se defenda que a prova produzida foi insuficiente, seja ainda porque se divirja nas ilações de facto que se devam retirar dos mesmos (Vide, entre outros, os acórdãos da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 16 de Dezembro de 2009, proferido no processo n.º 738/09, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/faa144134d6efbf5802576a30041135b;
- de 21 de Abril de 2010, proferido no processo n.º 189/10, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/8445188eb602055b80257711005292ba.).
Da leitura das conclusões do presente recurso jurisdicional, que acima ficaram transcritas e que delimitam os respectivos âmbito e objecto (cf. art. 684.º, n.º 3, do CPC), e como bem salientou o Procurador-Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal, resulta que a Recorrente insiste nas afirmações – que fizera já na petição inicial e das quais pretende extrair relevante consequência jurídica, a saber:
“9.ª No entendimento do TJUE é necessária a evidência de que há distorção na tributação o que se faz através da demonstração da ligação dos bens e serviços de utilização mista ao financiamento e à gestão dos contratos de locação financeira, o que, no caso em apreço e como demonstrado, não sucedeu;
10.ª Resulta evidente que sobre o Tribunal a quo recaía a obrigação de pronúncia sobre a verificação da ligação dos bens e serviços de utilização mista ao financiamento e à gestão dos contratos de locação financeira, como, aliás, parece de resto ter entendido o STA, no acórdão proferido no processo n.° 1075/13, em que decidiu baixar os autos ao tribunal de 1.ª instância para a pronúncia sobre as questões que ficaram prejudicadas pela decisão;
11.ª No caso sub judice a verificação da ligação dos bens e serviços de utilização mista ao financiamento ou à gestão dos contratos de locação financeira não é concretamente aferida pelo Tribunal recorrido como o deveria ter sido;
12.ª No que respeita aos montantes das operações incluídas no cálculo do pro-rata, nem a Diretiva, nem o Código do IVA estabeleceram qualquer restrição, exceção ou segregação dos mesmos, não podendo concluir-se senão pela inclusão da integralidade montantes que constituem o volume de negócios;
13.ª Não compete ao intérprete abalar a natureza unitária da contraprestação e distinguir o capital do juro e considerar, para efeitos do cálculo do pro-rata, que somente o valor dos juros e dos encargos referentes às rendas dos contratos de locação financeira devem ser relevados (neste sentido vai a supra citada doutrina de JOSÉ MARIA MONTENEGRO);
14.ª Resulta evidente que se impõe a verificação da ligação dos bens e serviços de utilização mista ao financiamento ou à gestão dos contratos de locação financeira (neste sentido que vai o acórdão do STA, proferido em 27.01.2016, no processo n.° 0331/14);
15.ª Tanto o legislador europeu, como o legislador nacional, cientes das alegadas distorções que o pro rata poderia gerar, poderiam ter determinado expressamente que, não obstante a sujeição da totalidade da renda a IVA, só o respetivo juro seria considerado no pro rata — o que não o fizeram;
16.ª Nesta medida, se o TJUE julgou por necessária verificação casuística, é porque a mesma não decorre da natureza dos contratos, mas das circunstâncias concretas de cada caso;
17.ª Se não fosse necessária essa verificação em concreto, bastaria ao TJUE afirmar como princípio que a componente de capital nunca poderia estar incluída para efeitos de cálculo do pro rata de dedução, pelo que, não o tendo feito, foi porque se impunha sempre a verificação em concreto da ligação dos bens e serviços de utilização mista ao financiamento ou à gestão dos contratos de locação financeira;
18.ª A verificação da ligação dos bens e serviços de utilização mista ao financiamento ou à gestão dos contratos de locação financeira não é concretamente aferida pelo Tribunal recorrido no caso sub judice;
19.ª A interpretação que o Tribunal a quo concede ao artigo 174°, n.° 1, da Diretiva 2006/112/CE (Diretiva do IVA), viola quer o princípio da tutela jurisdicional efetiva (cf. artigo 20.°, n.° 5, da CRP), quer os princípios da atribuição da subsidiariedade e da proporcionalidade e da cooperação leal entre a União Europeia e os Estados;
20.ª Demonstra-se a violação do princípio do inquisitório pelo Tribunal a quo, porquanto inexistem quaisquer elementos nos autos que permitam ao Tribunal a quo a concluir que essa ligação existe, pelo que, estando em causa um contencioso de mera anulação, tal só pode conduzir, no caso sub judice e à luz dos elementos de prova constantes dos autos, à declaração de ilegalidade do ato tributário sub judice por falta de prova da ligação dos bens e serviços de utilização mista ao financiamento e à gestão dos contratos de locação financeira;
21.ª Ainda que se entenda que se impõe a produção da prova da ligação dos bens e serviços de utilização mista ao financiamento e à gestão dos contratos de locação financeira nos presentes autos, sempre se impunha ao Tribunal, ao invés do decidido na sentença recorrida, à luz do princípio do inquisitório, que promovesse pela realização das diligências necessárias e disponíveis para obter essa prova, designadamente notificando a parte para a junção dos elementos que reputasse necessários;
22.ª Sendo certo que sobre as partes recai o ónus da prova quanto aos factos necessários para fazer valer a sua pretensão, é igualmente certo que o Tribunal a quo detém um papel ativo na descoberta da verdade material, sendo-lhe imputável a não realização de diligências necessárias e disponíveis para alcançar esse objetivo;
23.ª Estando na disponibilidade do Tribunal a requisição de documentos, só lhe é lícito concluir pela falta de prova de um determinado facto se da aludida requisição dos documentos não decorrer a prova desse facto;
24.ª A esta conclusão não obsta as regras do ónus da prova estatuídas no artigo 74.° da LGT, na medida em que o princípio do inquisitório funciona a montante das regras do ónus da prova;
25.ª Admitindo-se que de acordo com o entendimento do Tribunal ad quem não constam do processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão proferida e que permitam a esse Ilustre Tribunal a prolação de decisão sobre esta questão, sempre se impõe no caso sub judice que os autos baixem à 1.ª instância para a ampliação da matéria de facto, face aos já mencionado artigo 662.° do CPC (anterior artigo 711° do CPC), aplicável ex vi artigo 2.° do CPPT;”
É por demais manifesto que, como diz o EPGA, a matéria em discussão diz respeito ao ónus de prova aplicável e a haver matéria de facto não só não contida que o deveria ter sido de acordo com o decidido já pelo T.J.U.E., como, nomeadamente, a constante da conclusões 32.ª, em que se invoca que as viaturas usadas no exercício da actividade de locação financeira são parte integrante do ativo imobilizado da locadora e que, durante o período em que a locadora detém a viatura, foram reflectidas na mesma as respectivas reintegrações, de tal resultando, alegadamente, ser legítima a exclusão, por parte da ora recorrente, da componente de capital das rendas faturadas no âmbito dos contratos de locação financeira, conforme a seguir se defende nas conclusões 33.ª e 34.ª.
Ou seja, a Recorrente afirma factualidade que não foi dada como assente pela sentença e da qual pretende extrair consequências relevantes. O que significa que existe controvérsia factual a dirimir e que a matéria controvertida neste recurso não se resolve mediante uma exclusiva actividade de aplicação e interpretação dos preceitos jurídicos invocados.
Nesta perspectiva, o presente recurso não tem por exclusivo fundamento matéria de direito, não cumprindo sequer averiguar da relevância dos factos impugnados para a decisão a proferir, tarefa de que só poderá ocupar-se o tribunal declarado competente. Assim, a competência em razão da hierarquia para conhecer do presente recurso pertence, não a este Supremo Tribunal Administrativo, mas ao Tribunal Central Administrativo Sul, para o qual a Recorrente deverá proceder-se à remessa do processo, nos termos do estatuído no artigo 18.º do CPPT.
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3. DECISÃO

Em face do exposto, declara-se: i) este Supremo Tribunal Administrativo incompetente em razão da hierarquia para conhecer do presente recursos e ii) que a competência para o efeito é do Tribunal Central Administrativo Sul (Secção de Contencioso Tributário) para o qual deverão ser remetidos os autos.

Custas pela Recorrente.

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Lisboa, 4 de Dezembro de 2019. - José Gomes Correia (relator) - Joaquim Condesso - Ascensão Lopes.