Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02477/19.1BEBRG
Data do Acordão:09/16/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANÍBAL FERRAZ
Descritores:HIPOTECA LEGAL
Sumário:I - A decisão de constituição de hipoteca legal (mesmo que da autoria do IGFSS, I.P.), no processo de execução fiscal, encerra natureza administrativa e tem de ser antecedida da possibilidade de exercício do direito de audiência por parte do executado.
II - A normatividade presente no art. 207.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (CRCSPSS), objetiva e finalisticamente, em nada difere da do art. 50.º da Lei Geral Tributária (LGT) e, também, não permite, especificamente, defender, sem mais, a desnecessidade de audiência prévia.
Nº Convencional:JSTA000P26362
Nº do Documento:SA22020091602477/19
Data de Entrada:07/16/2020
Recorrente:INSTITUTO DE GESTÃO FINANCEIRA DA SEGURANÇA SOCIAL, IP – BRAGA
Recorrido 1:A.......
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
Acórdão proferido no Supremo Tribunal Administrativo (STA), com sede em Lisboa;

# I.

O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P. (IGFSS, I.P.) - Secção de Processo Executivo de Leiria, recorre da sentença proferida, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Braga, em 16 de abril de 2020, que julgou procedente reclamação de ato/decisão do órgão da execução fiscal, apresentada por Salustiano da Cruz Nogueira, com os demais sinais dos autos, determinando, em consequência, a anulação do despacho reclamado.

O recorrente (rte) formalizou alegação, terminada com o seguinte quadro conclusivo: «

1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos presentes, nos termos do qual o Tribunal a quo decidiu julgar procedente por provada a reclamação deduzida e, em consequência, ordenou a anulação do acto reclamado.

2. Decidiu-se na douta sentença que, previamente à decisão de constituição da hipoteca legal pelo órgão de execução fiscal, tinha o reclamante que ser notificado para exercício do direito de audição prévia, nos termos dos artigos 60.º da Lei Geral Tributária, e art. 45.º do Código de Procedimento e Processo Tributário.

3. Veio o executado reclamar da constituição da hipoteca, invocando nunca ter sido notificado para o exercício do direito de audiência prévia relativamente à decisão de constituição de hipoteca legal, nos termos dos artigos 60.º da Lei Geral Tributária, art.º 45.º do Código de Procedimento e Processo Tributário e art. 121.º do Código de Procedimento Administrativo.

4. A hipoteca legal que a legislação específica da segurança social consagra para garantia do pagamento dos seus próprios créditos, não se trata da hipoteca legal que no art. 50.º da LGT genericamente se concede à administração tributária para garantia dos créditos tributários, tendo antes previsão legal nos termos do art. 195.º do CPPT e art. 207.º do C. Regimes Contributivos SPSS.

5. A constituição de hipoteca legal reveste uma natureza ato preventivo, sendo que, a sua comunicação prévia poderia originar a subtração à esfera garantística da administração dos créditos objeto de hipoteca.

6. É razoável prever, em função das regras da experiência comum, que a eventual realização da audiência dos interessados no caso concreto origine uma eventual alienação ou oneração do património imobiliário do executado e com isso, ficar comprometida a execução do despacho de constituição da hipoteca (alínea c) do n.º 1 do artigo 124.º do Código de Procedimento Administrativo (aplicável por força da alínea d) do n.º 2 do artigo 2.º da Lei Geral Tributária).

7. O processo de execução fiscal é, por sua natureza, um processo célere destinado à cobrança dos créditos de Estado e de outras entidades públicas, pelo que, em execução fiscal, o único caso em que é admissível o exercício do direito de audição prévia é o da reversão da execução, mas, neste caso, por disposição expressa da lei (art. 23.º , n.º 4 do CPPT) (vide Ac. STA de 12-09-2012, Proc. 0864/12 - 2.ª Secção).

8. A decisão do órgão de execução fiscal de constituir garantia mediante a hipoteca legal consubstancia um ato processual inserido no procedimento processual dirigido à cobrança coerciva de determinadas quantias.

Nestes termos, e nos que mais V. Exc.ªs doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao presente recurso, e consequentemente revogada a sentença recorrida, e substituída por outra no sentido de manter o ato reclamado, com o que se fará a necessária e costumada JUSTIÇA »


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O recorrido (rdo) apresentou contra-alegação, onde conclui: «

… Impõe-se, assim, concluir que a sentença em crise não merece qualquer reparo, porquanto se encontra invulgarmente bem fundamentada, abordando exaustivamente todas as questões suscitadas pelas partes, com o devido cuidado de subsumir todos os factos provados ao direito aplicável, com integral respeito pela doutrina e jurisprudência orientadora dos tribunais superiores.

… Não obstante, caso não seja este o entendimento perfilhado, deverá ser ordenado o prosseguimento dos autos de reclamação, para apreciação das restantes questões suscitadas, ainda não apreciadas.

TERMOS EM QUE,

PELAS RAZÕES ADUZIDAS, DEVE O RECURSO INTERPOSTO PELO RECLAMANTE E RECORRENTE, IGFSS, IP, SER JULGADO IMPROCEDENTE E, CONSEQUENTEMENTE, MANTIDA A SENTENÇA RECORRIDA, COMO É DE INTEIRA JUSTIÇA.»


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O Exmo. Procurador-geral-adjunto emitiu parecer, em que, após indicação de normação e jurisprudência relevantes e consonantes, conclui dever ser negado provimento ao recurso e mantida, integralmente, a sentença recorrida.

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Com dispensa de vista, compete conhecer e decidir.

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# II.


Na sentença, em sede de julgamento factual, vem expresso: «

1. Contra a sociedade DIVIMINHO, LDA foi instaurado o Processo de Execução Fiscal (PEF) nº 0301201400454184 e apensos, pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP (IGFSS,IP) para cobrança coerciva de € 481.276,81, acrescido de juros e custas, proveniente de contribuições e cotizações - Cf. PEF junto aos autos e doc. 1 junto com a resposta do IGFSS,IP.

2. O PEF e apensos referidos em 01) reverteu contra o reclamante - Cf. fls. 1149/1157 do PEF.

3. Através de despacho de 10.07.219 foi ordenado, pelo IGFSS,IP o registo de hipoteca legal sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Braga com o nº 2513-O, sito na freguesia de Vermoim, concelho da Maia - Cf. fls. 1177/1178 do PEF incorporado nos autos, pág. 1167/1168 do SITAF, cujo teor se tem por integralmente reproduzidos para os devidos efeitos legais.

4. Consta daquele despacho, o seguinte: “(…)


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5. O reclamante apresentou reclamação contra o despa(c)cho referido nos dois pontos anteriores, que foi indeferida - Facto não controvertido.»


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A única questão, de direito, a solucionar, neste recurso jurisdicional, prende-se com determinar se a sentença recorrida errou, ao julgar procedente a presente reclamação e determinar a anulação do despacho reclamado, com base no entendimento de que, in casu, se impunha a audição (prévia) do reclamante/executado, relativamente à decisão, do órgão da execução fiscal, de constituir de garantia, mediante hipoteca legal, prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo (art.) 50.º da Lei Geral tributária (LGT) e no n.º 1 do art. 195.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Como na peça recorrida se dá explícita referência (e transcrição), este STA, sobre a temática em apreço, pronunciou-se, entre outros, no acórdão de 11 de abril de 2018 (0312/18) (Disponível em www.dgsi.pt), nestes moldes: «

(…).

Assim, a questão que importa apreciar e decidir é a de saber se a sentença recorrida fez errado julgamento ao considerar que se impunha que a AT tivesse assegurado à Executada a possibilidade de exercer o direito de audiência prévia à decisão de constituir hipoteca legal e que, não lhe tendo sido facultada essa possibilidade, tal decisão enferma de vício por preterição de formalidade essencial, a determinar a sua anulação.

2.2.2 DO DIREITO DE AUDIÇÃO PRÉVIA À DECISÃO DE CONSTITUIR HIPOTECA LEGAL AO ABRIGO DO ART. 195.º DO CPPT

A questão prende-se com a natureza dos actos praticados em sede de execução fiscal pela AT.

Como bem salientou a Recorrente, o art. 60.º da LGT - disposição legal ao abrigo da qual a sentença considerou impor-se a participação, a concretizar através do direito de audiência prévia - só logra aplicação em sede do procedimento tributário, como resulta, desde logo, da inserção sistemática da norma, no Título III da LGT, sujeito à epígrafe “Do Procedimento Tributário”.

Ora, o processo de execução fiscal tem natureza judicial, expressamente reconhecida pelo art. 103.º, n.º 1, da LGT («O processo de execução fiscal tem natureza judicial, sem prejuízo da participação dos órgãos da administração tributária nos actos que não têm natureza jurisdicional».). Como resulta deste preceito, admite-se que a AT pratique actos naquele processo, apenas lhe estando vedada a prática daqueles que tenham natureza jurisdicional («De aplicação da norma ao caso em concreto, mas resolvendo um litígio ou um conflito de pretensões» (JOAQUIM FREITAS DA ROCHA, Lições de Procedimento e Processo Tributário, Coimbra Editora, 2.ª edição, pág. 265).), que os princípios da separação dos poderes e âmbito da função jurisdicional, consagrados nos arts. 110.º, 111.º e 202.º da Constituição da República (CRP), impõem que fique reservada ao tribunal, numa distribuição de competências a que o legislador ordinário deu concretização através dos arts. 10.º, n.º 1, alínea f), e 151.º do CPPT.

Como também bem deu conta a Recorrente, o facto de a AT poder praticar no processo de execução fiscal actos de natureza não jurisdicional não implica que todos os actos por ela praticados naquele processo constituam actos administrativos em sentido estrito. No âmbito do processo de execução fiscal, a AT pratica, não só actos administrativos de natureza tributária (que lhe competem na sua condição de exequente, quando o seja), mas também outros actos processuais, cuja competência lhe está cometida enquanto órgão da execução fiscal, nos termos do disposto no já referido art. 10.º, n.º 1, alínea f), do CPPT. Relativamente a estes últimos, a lei constitucional não impõe que hajam de ser praticados por um juiz, podendo o legislador ordinário atribuir a competência para o efeito a um funcionário ou ao juiz, desde que, no primeiro caso, fique salvaguardada a possibilidade de discutir judicialmente a sua legalidade, sob pena de violação do art. 20.º da CRP (Cfr. o acórdão n.º 80/2003 do Tribunal Constitucional, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20030080.html.).

Ou seja, no processo de execução fiscal, sendo certo que está vedada à AT a prática de actos jurisdicionais, é-lhe permitido praticar quer actos administrativos de natureza tributária, que respeitam à dívida tributária e integram procedimentos tributários (v.g., a reversão, a dação em pagamento, o pagamento em prestações, a aprovação de garantias e a dispensa de prestação de garantia), em que estamos perante actos «praticados por entidades diferentes do órgão da execução fiscal, na sequência de procedimentos tributários autónomos, que correm paralelamente ao processo de execução fiscal e em conexão com ele» (Cfr. o acórdão da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 25 de Fevereiro de 2009, proferido no processo com o n.º 1116/08, disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/05868b3c29c9dc3c8025756f00556c32.), cuja prática está reservada à AT enquanto exequente, enquanto credora (Podendo, inclusive, não ser do órgão da execução fiscal, mas de outra autoridade da AT.), quer actos de natureza processual, constituindo alguns meras operações materiais (remessa do título executivo ao órgão da execução, instauração da execução) e outros actos judiciais de tramitação processual sem natureza jurisdicional (citação, penhora, venda), cuja prática o legislador pôs a cargo da AT enquanto órgão da execução fiscal (A natureza destes últimos actos, que não tenham natureza administrativo-tributária, é discutível, mas será idêntica à dos actos de natureza não jurisdicional que são praticados no âmbito de todos os processos judiciais.), a qual age aí como um mero “auxiliar” (Aliás, era como juiz auxiliar que o Código de Processo das Contribuições e Impostos se referia ao chefe da repartição de finanças (cfr. art. 40.º, § único), a quem, fora de Lisboa e do Porto, competia instaurar os processos de execução fiscal e realizar os actos a eles respeitantes, com excepção dos de natureza jurisdicional e sempre com recurso para o juiz do tribunal tributário.) na prossecução do escopo da execução (a cobrança das dívidas), numa «colaboração operacional com a administração da justiça segundo os termos em que esta se encontra cometida pela Constituição aos tribunais» (…).

Sobre esta matéria, fazendo um aprofundado estudo da questão, vide o acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 23 de Fevereiro de 2012, proferido no processo n.º 59/12 (Disponível em http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/be23336db28e007f802579bc003e8347.).

Certo é que todos estes actos estão sempre sujeitos ao controlo judicial, como resulta do disposto no art. 103.º, n.º 2, da LGT, controlo que, quando efectuado a pedido dos interessados, se concretiza através do meio processual previsto no art. 276.º do CPPT e que o legislador denominou reclamação. É através desse meio que os interessados (executado ou outros) podem reagir contra todos os actos praticados por órgãos administrativos no âmbito da execução fiscal, independentemente da natureza que estes possam revestir. Aliás, é essa diversidade da natureza dos actos praticados pela AT na execução fiscal que gera as consabidas dificuldades de conceptualização deste meio processual (JOAQUIM FREITAS DA ROCHA refere que esta reclamação «tem um misto de recurso contencioso – pois trata-se do controlo de um acto de um órgão administrativo por parte do tribunal – e de recurso jurisdicional – na medida em que o acto a ser controlado pelo tribunal é um acto praticado num processo» (ob. cit., pág. 297).) e dá origem a várias críticas dirigidas à sua inadequada denominação como reclamação (JORGE LOPES DE SOUSA, ob. cit., volume IV, anotação 2 ao art. 276.º, págs. 267/268.).

Dito isto, e regressando ao caso sub judice, afigura-se-nos que bem andou a sentença ao reconhecer o carácter administrativo da constituição de hipoteca legal e, consequentemente, ao entender que o órgão de execução fiscal que pretenda constituir essa garantia especial da dívida exequenda tem que facultar previamente ao executado o exercício do direito de audiência.

Na verdade, como bem sustentou a Juíza do Tribunal a quo - com apoio doutrinal e jurisprudencial (…) - e contrariamente ao entendimento da Recorrente, o acto de constituição da hipoteca legal deve qualificar-se como verdadeiro acto administrativo em matéria tributária e não como mero acto de trâmite, uma vez que não se confina nos estreitos limites da ordenação intraprocessual, antes projecta externamente efeitos jurídicos numa situação individual e concreta e, por isso, a decisão da AT de proceder à constituição de tal hipoteca implica e determina manifestos reflexos na esfera jurídica dos ora recorridos. A AT surge, ali, nas suas vestes de sujeito activo da relação tributária, agindo com base na verificação de requisitos que só a ela cabe apreciar, quais sejam os da garantia se revelar necessária à cobrança efectiva da dívida ou o imposto incidir sobre a propriedade dos bens [cfr. alínea b) do n.º 2 do art. 50.º da LGT] ou «quando o interesse da eficácia da cobrança o torne recomendável» (n.º 1 do art. 195.º do CPPT).

Como lapidarmente se deixou dito no citado acórdão de 23 de Fevereiro de 2012, proferido no processo n.º 59/12, quando o órgão da execução fiscal «instaura, conduz e tramita a execução fiscal constitui um sujeito processual que age como interlocutor no diálogo processual, “substituindo” o juiz e praticando nele todos os actos que, não contendendo com qualquer composição de interesses, sejam legalmente necessários para a obtenção do fim a que o processo se destina. E a competência que detém o processo não brota, em princípio, da função tributária exercida pela Administração Fiscal nem emana de um poder de autotutela executiva da Administração, resultando, antes, de uma competência que a lei lhe confere para intervir no processo judicial como órgão auxiliar ou colaborador operacional do Juiz. Razão por que, todos os actos inscritos no procedimento processual pelos sujeitos processuais (partes, mandatários, órgão da execução, funcionários, juiz) estão submetidos a estritas regras processuais, que encontram previsão nas normas que regulam o processo tributário e, subsidiariamente, nas normas inscritas no CPC por força do disposto no artigo 2.º, alínea e), do CPPT.

Todavia, já assim não será nos casos em que no procedimento processual surge “enxertado” um procedimento administrativo/tributário, em que a Administração Tributária actua como tal, no exercício da sua função tributária, agindo sobre a relação jurídica tributária estabelecida entre si (como sujeito activo) e o contribuinte (como sujeito passivo) ou sobre a obrigação que dela emana, produzindo actos materialmente administrativos em matéria tributária, pois a estes procedimentos tributários há que aplicar os princípios gerais que regulam a actividade administrativa e as normas que a LGT prevê para os procedimentos tributários […]».

É o que sucede com a constituição da hipoteca legal no âmbito da execução fiscal. Como ficou dito no acórdão que vimos citando, nas situações em que a AT age no âmbito da execução fiscal na sua veste de «na qualidade de credora/exequente […] abre-se no processo de execução fiscal um verdadeiro procedimento administrativo/tributário, que é apreciado e decidido pela administração tributária nessa própria qualidade, enquanto credora/exequente […] produzindo actos materialmente administrativos em matéria tributária […].

Ou seja, nesses casos a Administração Tributária actua como tal, no exercício da sua função tributária, agindo sobre a relação jurídica tributária estabelecida entre si (como sujeito activo) e o contribuinte (como sujeito passivo), produzindo actos materialmente administrativos em matéria tributária, inseridos, assim, no âmbito de um procedimento tributário autónomo e funcionalmente diferente do procedimento processual dirigido à cobrança coerciva de determinadas quantias, embora “enxertado” neste ou a correr paralelamente a ele.

E a esses procedimentos tributários há que aplicar, naturalmente, os princípios gerais que regulam a actividade administrativa e as normas que a Lei Geral Tributária prevê para os procedimentos tributários, designadamente a norma contida no seu artigo 60.º».

Ora, parafraseando o citado acórdão de 23 de Fevereiro de 2012, a constituição de hipoteca legal depende de uma decisão da AT, da prolação de um acto materialmente administrativo em matéria tributária, não podendo qualificar-se como um mero acto administrativo de carácter disciplinador dos termos do processo executivo, nele praticado pelo colaborador operacional do juiz face ao quadro normativo que regula o legal andamento do processo, sujeito a estritas regras e princípios processuais.

A decisão de constituir hipoteca surge como o culminar de um verdadeiro procedimento administrativo/tributário, apreciado e decidido pela AT, por vontade própria, na qualidade de credora e no exercício de uma competência exclusiva.

Por outro lado, a decisão de constituir hipoteca deve também qualificar-se como um verdadeiro acto administrativo em matéria tributária, uma vez que o órgão da execução está ainda a exercer uma actividade materialmente tributária que passa pela expressão de uma vontade própria, enquanto sujeito activo da obrigação tributária, de constituir garantia especial em ordem ao pagamento da dívida exequenda e do acrescido, cabendo-lhe uma avaliação se o “interesse da eficácia da cobrança” recomenda ou não a constituição da hipoteca.

Aliás, a utilização da expressão “o órgão da execução fiscal pode constituir hipoteca legal”, contida no n.º 1 do art. 195.º do CPPT, tal como a redacção do n.º 2 do art. 50.º da LGT, apontam no sentido de se estar perante um poder discricionário que é atribuído à AT na qualidade de titular do crédito cujo pagamento o executado deve assegurar. Tratar-se-á, pois, de um poder que o sujeito activo da relação tributária obrigacional ou titular do crédito exercerá em conformidade com o juízo que formule, no âmbito de competências próprias, sobre a pertinência da constituição da hipoteca em ordem a assegurar a cobrança, salvaguardando o crédito tributário. Esse juízo deve ser formulado no âmbito de um procedimento específico, “enxertado” no processo executivo, estando a respectiva decisão sujeita aos princípios que regem os procedimentos tributários previstos nos arts. 55.º e segs. da LGT e, entre eles, ao princípio da participação consagrado no art. 60.º.

Assim, acompanhamos a sentença no entendimento da natureza administrativa da decisão de constituição de hipoteca legal e da necessidade de a mesma ser antecedida da possibilidade de exercício do direito de audiência por parte do executado.

Acompanhamo-la também na parte em que considerou não poder degradar-se o vício em não essencial, uma vez que o princípio do aproveitamento do acto administrativo apenas é admissível quando a intervenção do interessado no procedimento tributário for inequivocamente insusceptível de influenciar a decisão final, o que acontece em geral nos casos em que se esteja perante uma situação legal evidente ou se trate de actividade administrativa vinculada, não se vislumbrando a mínima possibilidade de a audiência do interessado poder ter influência sobre o conteúdo da decisão (Sobre a questão, vide os seguintes acórdãos do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

- de 22 de Janeiro de 2014, proferido no processo n.º 441/13, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/212bcafe7f4d180f80257c6f004ea9c0;
de 15 de Outubro de 2014, proferido no processo n.º 1374/13, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/29e75cff6637cdef80257d7800526d92. ), o que não é o caso.

Nem se diga, como a Recorrente, que a tese sufragada pela sentença compromete o efeito útil dos actos previstos no art. 195.º do CPPT (hipoteca legal ou penhor), porque «a comunicação prévia poderia originar a subtracção à esfera garantística da administração dos créditos objecto de hipoteca», alegação que pensamos referir-se ao risco de alienação de bens. É que, se verificados os respectivos requisitos, a AT tem ao seu dispor as providências cautelares de arresto e arrolamento, nos termos dos arts. 136.º a 142.º e 214.º («Havendo justo receio de insolvência ou de ocultação ou alienação de bens, pode o representante da Fazenda Pública junto do competente tribunal tributário requerer arresto em bens suficientes para garantir a dívida exequenda e o acrescido, com aplicação do disposto pelo presente Código para o arresto no processo judicial tributário».) do CPPT, não sendo através do sacrifício do direito de participação na decisão de constituir hipoteca legal que logrará mitigar o risco de que o executado dissipe o património.

Finalmente, também se não pode extrair argumento algum em favor da tese da Recorrente do n.º 2 do art. 195.º do CPPT. Este normativo apenas estabelece o modo como se constitui a hipoteca, nada referindo quanto ao procedimento prévio à decisão.

(…). »

Esta pronúncia jurisprudencial, porque responde, no essencial, às críticas coligidas pelo rte e mantém atualidade, tem de ser operada na situação julganda (No pressuposto, ainda, de que as referências feitas à “AT”, são, perfeitamente, transponíveis, aplicáveis, com as adaptações que se mostrem necessárias, às Secções de Processo Executivo do IGFSS, I.P.); somente, se mostra necessário acrescentar:


- a normatividade presente no art. 207.º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social (CRCSPSS)

(«Artigo 207.º

(Hipoteca legal

1 - O pagamento dos créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respectivos juros de mora poderá ser garantido por hipoteca legal sobre os bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, existentes no património do contribuinte.
2 - Os actos de registo predial no âmbito do registo de hipoteca legal para a garantia de contribuições, quotizações e juros de mora em dívida à segurança social, desde que requeridos pelas instituições de segurança social, são efectuados gratuitamente.»), objetiva e finalisticamente, em nada difere da do art. 50.º da LGT e, muito menos, encerra qualquer tipo de apoio à pretensão do rte;

- reiteramos, aqui, o entendimento de que o processo de execução fiscal é, por natureza, um processo (tendencialmente) célere, destinado à cobrança dos créditos do Estado e de outras entidades públicas, mas, em que tal celeridade não pode servir de teto à perpretação de ilegalidades.

Em suma, a sentença recorrida não merece a censura que o rte lhe manifestou.

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# III.

Pelo exposto, em conferência, na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, acordamos negar provimento ao recurso.

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Custas a cargo do recorrente.

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[ Texto redigido em meio informático e revisto, com versos em branco ]

Lisboa, 16 de setembro de 2020. - Aníbal Augusto Ruivo Ferraz (relator) - Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes.