Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0497/18
Data do Acordão:07/12/2018
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO
PRINCÍPIO NE BIS IN IDEM
DISPENSA DE COIMA
PENA DE ADMOESTAÇÃO
Sumário:I - Não há violação do princípio ne bis in idem (consagrado no n.º 5 do art. 29.º da CRP) nos casos em que foi invocada com fundamento no pagamento da coima reduzida e este pagamento não pode considerar-se por ter sido efectuado para além do termo do prazo legal para o efeito.
II - Em sede de RGIT e atento o disposto no seu art. 32.º (que constitui um regime especial em face do n.º 3 do art. 18.º do RGCO), a dispensa da coima depende sempre da regularização da situação tributária na pendência do processo administrativo.
III - Quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, o tribunal pode decidir proferir uma admoestação, ex vi do disposto no art. 51.º do RGCO, subsidiariamente aplicável às contra-ordenações tributárias por força da alínea b) do art. 3.º do RGIT.
Nº Convencional:JSTA00070786
Nº do Documento:SA2201807120497
Data de Entrada:05/14/2018
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A... INC. SUCURSAL EM PORTUGAL
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:RECURSO JURISDICIONAL
Objecto:SENTENÇA DO TRIBUNAL TRIBUTÁRIO DE LISBOA
Decisão:CONCEDE PROVIMENTO
Área Temática 1:CONTRAORDENAÇÃO
Área Temática 2:ADMOESTAÇÃO
Legislação Nacional:ARTIGOS 29º, N.º 5 DA CRP, 32º DO RGIT E 51º DO RGCO
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da sentença proferida no processo de recurso judicial da decisão de aplicação da coima com o n.º 444/13.8BELRS

1 RELATÓRIO

1.1 O Representante da Fazenda Pública junto do Tribunal Tributário de Lisboa recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença por que aquele Tribunal, julgando procedente o recurso judicial interposto pela sociedade acima identificada como Recorrente, anulou a decisão administrativa que lhe aplicou uma coima pela prática da infracção fiscal prevista nos arts 27.º, n.º 1 e 41.º, n.º 1 alínea a), do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (CIVA) – pagamento de imposto fora de prazo – e punida pelos arts 114.º, n.º 2 e 26.º, n.º 4, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT). Apresentou para o efeito alegações com o seguinte quadro conclusivo:

«A. Considerou o Tribunal que, tendo sido condenada a arguida em coima anterior (no âmbito do processo de redução de coima – PRC), tal não obsta a que se aplique uma nova coima ao agente.

B. Salvo o devido respeito, não concorda a Fazenda Pública com o assim decidido pelas razões que se seguem:

C. Conforme resulta dos autos a coima reduzida, no montante € 5.625,00, não foi paga no prazo previsto no art. 30.º do RGIT.

D. Em consequência do incumprimento do prazo, foi instaurado o processo de contra ordenação (PCO) n.º 3247201296044098.

E. Tal procedimento afigura-se correcto ao abrigo do disposto no art. 30.º n.º 5 do RGIT que determine a instauração do PCO quando for paga, dentro do prazo, o valor da coima reduzida.

F. Não podendo os arguidos beneficiar de pagamento reduzido da coima, quando não cumprem os prazos estabelecidos para o efeito.

G. Não concorda, também, a Fazenda Pública com a argumentação de que se encontram preenchidos os pressupostos para dispensar a aplicação de coima, nos termos do art. 32.º n.º 1 do RGIT.

H. O disposto na alínea a) do art. 32.º do RGIT tem em vista apenas casos não directamente conexionados com o pagamento da prestação tributária.

I. No caso em análise, porque a arguida não fez acompanhar a respectiva declaração periódica de IVA da prestação tributária, infringindo assim o disposto no art. 26.º, n.º 1 e art. 40.º, n.º 1 do CIVA, ocasionou com a sua conduta um efectivo prejuízo ao Estado.

J. Na verdade, ao protelar o pagamento do imposto subjacente à declaração periódica, ainda que o venha a pagar mais tarde, acrescido de juros, não deixa de causar prejuízo, uma vez que os juros não são uma recompensa pelo atraso no pagamento, mas uma consequência objectiva da falta de pontualidade no pagamento que a Lei estabelece.

K. Pelo exposto, e salvo o devido respeito por melhor opinião, ao contrário do que foi decidido na douta sentença ora posta em crise, afigura-se-nos não se encontrarem reunidos os requisitos legais para a dispensa da coima, em virtude de não se encontrar preenchido o requisito legal enunciado na alínea a) do n.º 1 do art. 32.º do RGIT.

Termos em que concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão ser revogada e substituída por acórdão que julgue a oposição judicial totalmente improcedente».

1.2 O recurso foi admitido e a Recorrida contra-alegou, tendo formulado conclusões do seguinte teor:

«A. Aquando da aplicação da coima ora em crise, a AT não levou em conta (mais: nem sequer mencionou) a coima anteriormente paga pela mesma infracção, cujo montante nunca foi devolvido à ora Recorrida.

B. Isto significa que, tal como decidiu o Tribunal a quo, a coima ora em crise mais não é do que uma segunda coima sobre a mesma infracção, violando assim o princípio ne bis in idem.

C. A interpretação do disposto no artigo 30.º do RGIT nos moldes pretendidos pela Exma. RFP, em que o pagamento da coima com redução, efectuado fora do prazo concedido para o efeito, numa situação em que a AT recebe o montante dessa coima, não devolve, nem o deduz à nova coima e nem sequer o menciona na decisão, possibilita a aplicação de uma nova coima, é inconstitucional por violação do artigo 29.º n.º 5 da CRP.

D. Caso este Venerando Tribunal considere o recurso da AT procedente (o que apenas se admite por dever de patrocínio), deverá então decidir sobre os pedidos subsidiários, nos termos em que foram pedidos na p.i., devendo decidir-se pela dispensa da coima ou, caso assim não se entenda, pela sua substituição por uma admoestação ou, caso assim não se entenda, ser a coima especialmente atenuada, nos termos peticionados.

Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exa. doutamente suprirá, deve ser negado provimento ao presente recurso, confirmando-se a decisão proferida pelo Tribunal a quo no despacho saneador recorrido ou, caso assim não se entenda, deverão ser apreciados os pedidos subsidiários conforme consta de p.i.».

1.3 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que seja concedido provimento ao recurso e proferida decisão que dispense a Arguida da coima ou, a aplicar sanção, se fique pela admoestação. Isto, após enunciar os termos em que vem deduzido o recurso e o teor da decisão recorrida, com os seguintes fundamentos:
«[…] Ainda que haja divergências na doutrina e na jurisprudência crê-se que o requisito da al. a) do dito art. 32.º n.º 1 do R.G.I.T., de não ser causado “prejuízo efectivo”, é susceptível de um entendimento segundo o qual não se basta com a falta de entrega de prestação tributária dentro do prazo legalmente previsto, a contrário do que defende a recorrente.
Com efeito, o referido adjectivo “efectivo” leva a admitir como admissível uma apreciação como a efectuada, em concreto, e da qual foi possível considerar não existir tal prejuízo, tendo o pagamento da prestação em falta sido efectuado no dia seguinte ao termo do respectivo prazo e com juros.
Por outro lado, tendo o pagamento da coima sido efectuado para além do prazo previsto no art. 30.º n.º 1 al. a) do R.G.I.T., e encontrando-se à data já levantado auto de notícia, não tinha o recorrido direito à redução das coimas pelo mínimo, pelo que quanto a tal tem razão a F. P., importando que seja proferida decisão sobre a dispensa da coima que não chegou a ser aplicada.
O disposto no art. 29.º n.º 5 da C.R.P., em que se prevê o princípio “ne bis in idem” quanto ao julgamento de um mesmo crime, não impede que seja proferida decisão sobre tal dispensa da coima, ou, caso assim, se não entenda sobre a sua substituição por admoestação, ou ainda, pela aplicação de coima especialmente atenuada.
No caso, resultam elementos no sentido de se decidir pela dita dispensa por reunidos os vários requisitos previstos no dito art. 32.º do R.G.I.T. ou, caso assim se não entenda, é de proceder à substituição da coima pela admoestação, conforme em vários casos semelhantes o S.T.A. já decidiu – assim, nos acórdãos de 7-7-2010, 3-4-13 e 25-10-17, respectivamente, nos processos n.º 0356/10, 05/13 e 0371/17, acessíveis em www.dgsi.pt.
Concluindo:
Ainda que não seja de manter a decisão de anulação da coima decretada na sentença recorrida, a decisão de aplicação de coima aplicada pela entidade tributária não pode subsistir, sendo de dispensar a mesma ou proceder à aplicação de admoestação em sua substituição».

1.4 Cumpre apreciar e decidir, sendo as questões a dirimir as seguintes:

i) se a sentença fez correcto julgamento ao afastar a aplicação da coima com base no princípio ne bis in idem; na negativa, i.e., se a ora Recorrida houver de ser condenada pela infracção que lhe foi imputada,
ii) se pode dispensar-se a aplicação da coima ou, na impossibilidade da dispensa, se a contra-ordenação pode ser sancionada com admoestação ou, se não for possível aplicar esta sanção, se pode a coima aplicável ser especialmente atenuada.


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2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

Na sentença recorrida deu-se como assente a seguinte factualidade:

«a) Em 08/01/2013, foi proferida decisão administrativa pelo serviço de finanças de Lisboa-2, em sede do processo de contra-ordenação que, na fase administrativa possuía o n.º 3247201206144098 e que a condenou na coima de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), acrescida de € 76,50 (setenta e seis euros e cinquenta cêntimos) de custas, pela prática da infracção fiscal prevista nos artigos 27.º, n.º 1 e 41.º, n.º 1 alínea a) do CIVA – pagamento de imposto fora de prazo e punida pelos artigos 114.º, n.º 2 e 26.º, n.º 4 do RGIT, referente ao período 7/2012 – decisão administrativa, junta a fls. 7 e 8 dos autos, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.

b) O termo do prazo para cumprimento da obrigação de imposto, id. na alínea antecedente, terminava em: 10/09/2012 e a sociedade recorrente efectuou o pagamento da totalidade do imposto de IVA, no valor de € 758.647,07 em 11/09/2012 – citada decisão e oficio da AT, de fls. 23 dos autos, cujos conteúdos aqui se dão por integralmente reproduzidos.

c) Para além do referido em b), foram ainda pagos, pela recorrente, juros moratórios e custas no valor global de € 145,64, em sede do Processo de Execução Fiscal, instaurado em 15/12/2012, para cobrança coerciva dos juros referentes ao Imposto pago em 11/09/2012 – doc. do portal das finanças de fls. 21 e recibo de fls. 22 dos autos, cujos conteúdos aqui se dão por reproduzidos.

d) Da decisão administrativa condenatória consta ainda, com interesse para os autos que, “a recorrente praticou a referida infracção de forma acidental”, constando ainda da decisão administrativa: “não ter havido actos de ocultação, nem benefício económico, não existir obrigação de não cometer a infracção, ser o infractor de situação económica e financeira baixa e a infracção assumir a forma negligente – negligência simples (...)” – citada decisão administrativa.

MAIS SE PROVOU QUE:

e) A sociedade recorrente procedeu ao pagamento da coima, com redução, relativamente à infracção tributária identificada em a), no dia 12/12/2012 – informação do serviço de finanças de fls. 25 e segs. dos autos, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido;

f) A ATA não considerou o pagamento da coima com redução, identificado na alínea antecedente, alegando ter “notificado a contribuinte, para efectuar o pagamento no prazo de 10 dias e o pagamento não ter sido efectuado dentro do prazo, que terminava a 07/11/2012” – citado ofício junto a fls. 25 e segs. dos autos.

g) Apesar da coima com redução, id. na alínea antecedente, ter sido paga em 12/12/2012, pela recorrente, e da ATA ter recepcionado a respectiva quantia, aquele valor não foi considerado nem devolvido à recorrente, na douta decisão que aplicou a nova coima, ora em crise, relativamente à mesma infracção tributária – citada decisão administrativa».


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2.2 DE DIREITO

2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR

O Chefe do Serviço de Finanças do Lisboa-2 aplicou à ora Recorrida uma coima de € 45.000,00, imputando-lhe a prática de uma infracção prevista nos arts 27.º, n.º 1 e 41.º, n.º 1 alínea a), do CIVA e punida pelos arts 114.º, n.º 2 e 26.º, n.º 4, do RGIT, em virtude de o montante de € 758.647,07 de imposto respeitante ao mês de Julho de 2012, que deveria ter sido entregue até ao dia 10 de Setembro desse ano, o ter sido apenas no dia seguinte, 11 de Setembro de 2012.
A Arguida impugnou judicialmente essa decisão administrativa de aplicação da coima, ao abrigo do disposto no art. 80.º do RGIT, pedindo que, atento o atraso de apenas um dia na entrega do imposto, o pagamento imediato dos juros moratórios e o facto de ser a primeira situação em que se atrasou, fosse dispensada do pagamento da coima ou, caso assim não se entendesse, lhe fosse aplicada uma admoestação ou, caso ainda assim não se entendesse, lhe fosse especialmente atenuada a coima a aplicar.
O Tribunal Tributário de Lisboa anulou a decisão de aplicação da coima. Após ter considerado que as circunstâncias do caso imporiam que fosse ponderada «a aplicação, à recorrente, do instituto da dispensa de pena, atento todo o probatório, supra fixado», entendeu, no entanto, que no caso «a douta decisão administrativa omitiu um facto essencial para a ponderação da necessidade de aplicação de uma “outra coima”: o facto de já ter sido aplicada anteriormente coima, pela prática da infracção que constitui objecto dos autos, a qual se encontra paga» e que, «de acordo com o princípio processual penal “ne bis in idem” aplicável aos recursos de contra-ordenação, por remissão do RGIT e do RGCO, a condenação em coima anterior, já paga, pela prática da mesma infracção, obsta a que se aplique uma nova coima ao agente».
Discordando da sentença, o Representante da Fazenda Pública dela interpôs recurso para este Supremo Tribunal. Alega, em síntese, que o Tribunal a quo incorreu em erro quando considerou que, pela prática da infracção em causa, houve pagamento anterior de uma coima e, por isso, que não podia ser aplicada nova coima, sob pena de violação do princípio ne bis in idem. Isto porque o pagamento da coima reduzida não foi efectuada dentro do prazo do art. 30.º do RGIT, motivo por que não pode ser relevado (cfr. conclusões A. a F.).
Alegou ainda no sentido de manifestar a sua discordância com a argumentação expendida na sentença, «de que se encontram preenchidos os pressupostos para dispensar a aplicação de coima, nos termos do art. 32.º, n.º 1, do RGIT», sustentando que esta previsão apenas abarca as infracções não conexionadas com o pagamento de prestações tributárias, pois nestas existe sempre um efectivo prejuízo causado ao Estado pelo protelar do pagamento, que não pode considerar-se sanado pelo ulterior pagamento dos juros moratórios (cfr. conclusões G. a K.).
Desde já, diremos que a única questão que foi decidida pela sentença recorrida foi a da violação do princípio ne bis in idem, sendo com esse fundamento que o Tribunal Tributário de Lisboa anulou a decisão administrativa de aplicação da coima.
Na verdade, os considerandos que na sentença foram efectuados em torno da dispensa da coima foram-no apenas como mero reforço argumentativo, ou seja, não constituem um fundamento da decisão (uma ratio decidendi), uma questão que tenha sido apreciada e decidida pela sentença ou seja, aquilo que a jurisprudência caracteriza como um obiter dictum ou, de modo mais impressivo, como «uma excrescência em relação ao silogismo judiciário que motivou e estruturou a decisão» (Cfr. os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 25 de Setembro de 2013, proferido no processo n.º 511/13, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/5d5a0bbcf303621780257bf8005550d6;
- de 23 de Maio de 2018, proferido no processo n.º 409/17, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/20e3e23f2fef60ea802582980047367d.). Que assim foi, resulta inequivocamente do uso do condicional com que a Juíza do Tribunal Tributário de Lisboa terminou esses considerandos: «Seria, pois, de equacionar a aplicação, à recorrente, do instituto da dispensa de pena» (sublinhado nosso).
Ou seja, o motivo por que a sentença anulou a decisão administrativa foi um só: foi violado o princípio do ne bis in idem.
Não significa que, eventualmente, não haja de vir a ponderar-se a dispensa de aplicação da coima, mas isso, não porque a sentença tenha decidido essa questão, mas porque, uma vez que estamos em sede contra-ordenacional, o tribunal de recurso não está vinculado pelos termos da sentença recorrida, antes podendo e, se for caso disso, devendo alterá-la sem qualquer vinculação aos seus termos e sentido (Cfr. JORGE LOPES DE SOUSA e MANUEL SIMAS SANTOS, Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, Áreas Editora, 2.ª edição, anotações 24 e 25 ao art. 83.º, págs. 519 a 521.).
Assim, a questão a apreciar e decidir é a de saber se a sentença fez correcto julgamento ao afastar a aplicação da coima com base no princípio ne bis in idem.
Se essa questão for respondida negativamente e se a ora Recorrida houver de ser condenada pela infracção que lhe foi imputada, então haveremos de ponderar, sucessivamente, as possibilidades de dispensa de coima, ou aplicação de admoestação ou atenuação especial da coima, tudo como deixámos dito em 1.4.

2.2.2 DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO NE BIS IN IDEM

O princípio ne bis in idem (Segundo GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, o princípio ne bis in idem comporta «duas dimensões: (a) como direito subjectivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); (b) como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto» (Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 4.ª edição revista (2007), I volume, anotação XI ao art. 29.º, pág. 497).) encontra-se consagrado no n.º 5 do art. 29.º da Constituição da República Portuguesa, n.º 5 da CRP, que dispõe: «Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime». Trata-se de um princípio que, apesar de consagrado no artigo constitucional que regula a lei criminal, é aplicável por analogia a todos os procedimentos de natureza sancionatória, designadamente em sede contra-ordenacional (Cfr. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, ob. e vol. cit., anotação XIII ao art. 29.º, pág. 498.).
Será que no caso esse princípio foi violado?
Salvo o devido respeito, os elementos constantes dos autos, designadamente a matéria de facto que foi dada como assente permitem concluir que não. Vejamos:
A sentença considerou que tinha sido violado o princípio da proibição de que alguém seja condenado mais do que uma vez pelo mesmo ilícito porque considerou que já fora «aplicada anteriormente coima, pela prática da infracção que constitui o objecto dos autos» e até que a mesma já se encontra paga, motivo por que «a condenação em coima anterior, já paga, pela prática da mesma infracção, obsta a que se aplique uma nova coima ao agente».
Sucede, porém, como alega a Recorrente e resulta da matéria de facto dada como assente, a Arguida – e ora Recorrida – não foi condenada anteriormente em coima pela prática da mesma contra-ordenação. O que sucedeu foi, tão-só, que a Arguida, depois de ter regularizado a entrega do IVA em falta, foi notificada nos termos prescritos no n.º 5 do art. 30.º do RGIT, ou seja, foi notificada para, no prazo de dez dias, efectuar o pagamento da coima reduzida no valor de € 5.625,00, pagamento que efectuou, mas apenas após o termo desse prazo. Esse pagamento, porque efectuado para além do termo do prazo legal para o efeito, não pode valer como pagamento da coima reduzida.
Assim, porque esse pagamento foi efectuado depois da data limite legalmente cominada para beneficiar da dita redução, foi levantado o auto de notícia e instaurado o respectivo processo de contra-ordenação, tudo nos termos do n.º 5 do art. 30.º do RGIT. Por isso, o processo prosseguiu e, a final, a Arguida foi condenada na coima. Não pode, pois, considerar-se que a Arguida foi condenada em duas coimas pela prática da mesma infracção.
É certo que o pagamento efectuado mediante a invocação do n.º 5 do art. 30.º do RGIT deveria ter sido devolvido à Arguida ou, pelo menos, descontado no montante a ser-lhe exigido a título da coima que lhe foi efectivamente aplicada. O facto de o não ter sido não significa que lhe tenham sido aplicadas duas coimas, mas apenas que a AT poderá encontrar-se em situação de incumprimento perante a Arguida.
A sentença não pode, pois, manter-se na ordem jurídica.

2.2.3 DA SANÇÃO EM CONCRETO

Cumpre, agora, verificar se a decisão administrativa deve ou não manter-se, em face da alegação aduzida pela Recorrente em sede de recurso judicial e reiterada, a título subsidiário, no presente recurso jurisdicional.
Quanto à pretendida dispensa de coima, diremos não ser a mesma possível.
A possibilidade de dispensa de coima, prevista no art. 32.º, n.º 1, do RGIT, tem como pressupostos cumulativos (i) que esteja «regularizada a falta cometida», (ii) que «a prática da infracção não ocasione prejuízo efectivo à receita tributária» e (iii) «a falta revelar um diminuto grau de culpa».
No caso, é inquestionável que houve regularização da falta, pois quando está em causa a falta de cumprimento de uma prestação tributária essa regularização consiste no seu pagamento, como resulta do n.º 3 do art. 30.º do RGIT, que dispõe: «Entende-se por regularização da situação tributária, para efeitos deste artigo, o cumprimento das obrigações tributárias que deram origem à infracção». De igual modo se poderá dar como verificado o requisito do diminuto grau de culpa, pois a infracção vem imputada à Arguida a título de negligência.
Mas já não se poderá considerar verificado o segundo requisito, qual seja o de que não se tenha chegado a produzir prejuízo antes de ocorrer a regularização, não sendo relevante para preenchimento dessa condição o eventual ressarcimento do prejuízo provocado pela conduta que constitui contra-ordenação.
No caso sub judice, a ora Recorrida não efectuou o pagamento do imposto liquidado no prazo legal, o que, por si só, originou um prejuízo efectivo, que se traduz no não recebimento do respectivo montante na data legalmente prevista. O facto de o imposto ter sido entregue – e de o ter sido no dia seguinte ao termo do prazo –, bem como de terem sido pagos os respectivos juros moratórios não significam que inexistiu prejuízo, mas apenas que este foi ressarcido.
Relembramos aqui o que o Professor GERMANO MARQUES DA SILVA deixou dito numa intervenção no Centro de Estudos Judiciários, subordinada ao tema «Princípios gerais em matéria de contra-ordenações tributárias», sobre os regimes sancionatórios de dispensa e da atenuação especial da coima:
«A dispensa e atenuação especial das coimas constituem de certo modo formas de direito premial e visam incentivar os infractores a regularizarem a falta cometida (art. 32.º do RGIT).
Note-se que em ambos os casos se exige a regularização da situação tributária.
A atenuação especial da coima está prevista em termos gerais no art. 18.º, n.º 3, do RGCO, mas o RGIT contém regime especial constante do art. 32.º que julgamos exaustivo. Não há lacunas neste domínio no RGIT.
Acrescem dois outros pressupostos da dispensa: (i) a infracção não ocasione prejuízo efectivo à receita tributária, e (ii) a falta revelar um diminuto grau de culpa. Relativamente ao primeiro pressuposto – não ocasionar prejuízo – tem de considerar-se o momento da infracção. É a esse momento que se tem de referir o prejuízo. A regularização posterior já não releva para esta condição. A problemática da culpa em grau diminuto é mais difícil de apurar, mas isso sucede em geral com a avaliação das infracções para graduação da coima aplicável.
De modo semelhante no que respeita à atenuação especial com a diferença de que agora nem sequer é condição o grau diminuto da culpa. O que vale é a regularização da situação tributária na pendência do processo administrativo» (Contraordenações Tributárias 2016 [Em linha]. Lisboa: Centro de Estudos Judiciários, 2015. [Consult. 7 Jul. 2018]. Disponível na internet: <URL:
http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/Administrativo_fiscal/eb_contraordenacoes_t_2016.pdf.).
Ou seja, como esta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a dizer, reiterada e uniformemente, no RGIT a dispensa da coima depende sempre da regularização da situação tributária antes da fase judicial, não relevando a regularização ulterior, ainda que acompanhada pelo pagamento dos juros moratórios.
Assim, no caso não se mostram reunidos os requisitos para que possa dispensar-se a coima.
Será que a coima legalmente cominada para a infracção praticada pode ser substituída por admoestação, como propugna a Recorrida e sustenta o Procurador-Geral Adjunto?
Seguindo a jurisprudência deste Supremo Tribunal (Vide os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 13 de Outubro de 2010, proferido no processo n.º 670/10, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/f8f18cd0b02a5e9f802577c300380da6;
- de 3 de Abril de 2013, proferido no processo n.º 5/13, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/0543caf4c817aeda80257b4b003e06cc;
- de 25 de Outubro de 2017, proferido no processo n.º 371/17, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/d575d11d58c7cf07802581c9004ffb74.), diremos que sim.
Parafraseando essa jurisprudência, verificamos que do registo da linha temporal dos acontecimentos relevantes para o caso dos autos, levada ao probatório, resulta que o período em que o imposto devido esteve em falta foi de apenas um dia (entre 10 e 11 de Setembro de 2012), tendo sido a Recorrida a regularizar espontaneamente a situação, bem como pagou os juros moratórios.
Assim, como ficou dito no acórdão de 13 de Outubro de 2010, proferido no processo n.º 670/10, «[n]ão descortinamos justificação convincente para que em face de uma culpa reconhecidamente diminuta, um atraso na entrega da prestação … pouco expressivo … e um prejuízo à receita tributária tão pouco relevante, se possa entender como adequada ao grau de ilicitude e culpa do agente uma coima…de 45.000,00… razão pela qual, atendendo às circunstâncias do caso e ponderando que a aplicação dos termos da atenuação especial da coima previstos no artigo 18.º n.º 3 do RGIT implicam uma punição da arguida desproporcional e desadequada, se decide punir o agente com uma pena de admoestação, ex vi do disposto no artigo 51.º do RGCO, punição esta legalmente possível atendendo a que a infracção, na medida em que foi prontamente reparada, se revelou efectivamente de reduzida gravidade e a culpa do agente é manifestamente diminuta, desta forma se satisfazendo as exigências de prevenção».
Concluímos, assim, que a sanção adequada à infracção cometida pela recorrida é a da admoestação.
Pelo exposto, haverá que revogar a decisão recorrida no segmento em que vinha impugnada, proferindo uma admoestação, ex vi do disposto no art. 51.º do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, subsidiariamente aplicável em matéria de contra-ordenações tributárias, nos termos do art. 3.º alínea b) do RGIT.
Finalmente, diremos que, tendo a Recorrente obtido sucesso no recurso jurisdicional, as custas deste recurso serão suportadas pela Recorrida. Já quanto às custas do recurso judicial, mantendo-se embora a imputação da infracção feita pela AT, há que atentar que a aí Recorrente – e ora Recorrida – logrou parcial vencimento. Quanto às custas da fase administrativa do processo de contra-ordenação, são devidas pela Arguida, ex vi do disposto no art. 513.º do Código de Processo Penal, aplicável subsidiariamente por força do art. 2.º, alínea b), do RGIT e do art. 41.º, n.º 1, do RGCO.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - Não há violação do princípio ne bis in idem (consagrado no n.º 5 do art. 29.º da CRP) nos casos em que foi invocada com fundamento no pagamento da coima reduzida e este não pode considerar-se por ter sido efectuado para além do termo do prazo legal para o efeito.

II - Em sede de RGIT e atento o disposto no seu art. 32.º (que constitui um regime especial em face do n.º 3 do art. 18.º do RGCO), a dispensa da coima depende sempre da regularização da situação tributária na pendência do processo administrativo.

III - Quando a reduzida gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, o tribunal pode decidir proferir uma admoestação, ex vi do disposto no art. 51.º do RGCO, subsidiariamente aplicável às contra-ordenações tributárias por força da alínea b) do art. 3.º do RGIT.


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3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se conceder provimento ao recurso jurisdicional, revogar a sentença recorrida e, julgando parcialmente procedente o recurso judicial, aplicar à Arguida admoestação do seguinte teor: «O Tribunal lembra que o dever de pontual entrega das prestações tributárias constitui não apenas uma obrigação dos sujeitos passivos objecto de tutela sancionatória, mas dever de cidadania, devendo estes organizarem-se de modo a que factores imprevistos não impeçam o cumprimento pontual desse dever. O atraso, mesmo ligeiro, mesmo prontamente reparado, constituiu infracção, que não se apagou pelo facto de o Tribunal entender que esta admoestação se revela, no caso, suficiente para punir a infracção cometida».

Custas pela Recorrida, neste Supremo Tribunal Administrativo e em 1.ª instância, na proporção do decaimento, bem como na fase administrativa do processo, fixando-se a taxa de justiça em duas UC.


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Lisboa, 12 de Julho de 2018. – Francisco Rothes (relator) – Isabel Marques da Silva – Dulce Neto.