Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0945/18.1BEAVR
Data do Acordão:03/10/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:PEDRO VERGUEIRO
Descritores:OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO FISCAL
DÍVIDA
IRS
MAIS VALIAS
VENDA DE IMÓVEL
PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
RESPONSABILIDADE
Sumário:I - Em função da realidade de facto apurada nos autos, à data da emissão da liquidação que deu origem à quantia exequenda e da instauração da execução fiscal, o processo de insolvência já tinha sido encerrado, nos termos do artigo 230º nº 1, alínea a), do CIRE, ou seja, após o rateio final, verificando-se que a partir deste momento deixou de existir o património autónomo que era a massa insolvente, o que significa que o devedor recupera todos os seus poderes sobre o seu património, o qual responde por todas as suas dívidas.
II - Por outro lado, ainda que no âmbito do processo de insolvência haja sido decidido exonerar o insolvente do passivo restante (na matéria de facto consta apenas a decisão inicial), esta exoneração não abrange os créditos tributários, atento o disposto no artigo 245º nº2 alínea d) do CIRE, de modo que, é manifesto que o Recorrente é parte legítima na execução instaurada para cobrança da dívida exequenda identificada nos autos.
III - A venda do imóvel gerou um acréscimo patrimonial na esfera jurídica do Recorrente, e o facto de o produto da venda ter sido afecto ao pagamento das dívidas da massa insolvente, não constitui fundamento para considerar anulados os ganhos assim obtidos.
Nº Convencional:JSTA000P27319
Nº do Documento:SA2202103100945/18
Data de Entrada:10/19/2020
Recorrente:A ………………….
Recorrido 1:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE COM 1 DEC VOT
Aditamento:
Texto Integral: Processo n.º 945/18.1BEAVR (Recurso Jurisdicional)

Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. RELATÓRIO

A………………, devidamente identificado nos autos, inconformado, veio interpor recurso jurisdicional da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, datada de 24-03-2020, que julgou improcedente a pretensão pelo mesmo deduzida no presente processo de OPOSIÇÃO relacionado com a execução fiscal n.º 0132201801058428 instaurada para cobrança da quantia de € 16.213,08 euros, relativa a IRS do ano de 2016.


Formulou nas respectivas alegações, as seguintes conclusões que se reproduzem:

“ (…)

A- Vem o presente recurso interposto da sentença do TAF Aveiro, que considerou não haver qualquer vicio de violação de lei, por erro nos pressupostos de facto ou direito do ato tributário impugnado, concluindo pela improcedência da Oposição.

B- Não se conforma a Recorrente com a decisão proferida, porquanto não se vê convencido da fundamentação que apresentou em seu favor e mantém.

C- A dívida a que se refere o processo de execução em epigrafe, diz respeito a alegadas mais-valias de imóveis realizadas no âmbito de alienação dos ativos no processo de insolvência que visou o oponente, não resultando para o mesmo qualquer rendimento direto da operação.

D- Foi a massa insolvente que efectivamente arrecadou o produto da venda, a qual ocorreu sem qualquer participação do insolvente. Pelo deveria ser a massa insolvente, (e não o contribuinte mais tarde ou a todo tempo), a responder por eventuais mais-valias decorrentes dessa venda do imóvel. O insolvente não obteve, efectiva e diretamente, quaisquer ganhos de que possa retirar uma parte para fazer face ao pagamento de imposto.

E- Ressalta, de forma manifesta, a ilegitimidade e inexigibilidade da divida relativamente ao Oponente, devendo a presente Oposição ter sido julgada procedente o que não aconteceu.

F- O entendimento que permitisse, a tributação que se pretende, violaria frontalmente o principio da capacidade contributiva, já que este se caracteriza como um princípio estruturante do sistema fiscal que exprime e concretiza o princípio da igualdade e justeza tributária e que tem assento implícito na “Constituição Fiscal”, por força da conjugação dos artigos 103º e 104º da CRP. Ele constitui, com efeito, uma das expressões ou manifestações mais fortes - em termos fiscais - da ideia de Estado de Direito Material.

G- O princípio da capacidade contributiva compreende duas dimensões, que são a de pressuposto e a de limite da tributação. Como pressuposto ou fonte da tributação, o princípio da capacidade contributiva baseia-se na força económica do contribuinte expressa na titularidade ou utilização da riqueza. Já como limite ou medida valor do imposto, veda que o legislador adopte elementos de ordenação incidentes sobre os elementos constitutivos do imposto contrários às exigências de justiça fiscal enunciadas pelo mesmo princípio.

H- A capacidade contributiva reclama não só a personalização da tributação mas também que o legislador dirija o imposto às três manifestações de riqueza relevantes que indiciem a capacidade económica do contribuinte e que constituem a base tributável. Trata-se da riqueza que angaria, (o rendimento), a riqueza que possui (o património) e a riqueza que dispende (o consumo).

I- O princípio da capacidade contributiva reclama, para os impostos nacionais um critério unitário de tributação, o qual determina que a incidência e a repartição desses impostos se faça segundo a capacidade económica dos contribuintes (Ac. do TC 142/2004).

J- Mal andou, por isso, o juiz a quo, ao assim não proceder e decidir, aplicando erradamente a Lei, nomeadamente a al. a) do nº1 do art. do CIRS, ignorando as normas constitucionais citadas.

NESTES TERMOS E MELHORES DE DIREITO, com o douto suprimento de V/Ex.ªs Exmos Juízes Conselheiros, deve o presente Recurso ser julgado procedente, por provado e, por consequência, revogar-se a douta sentença recorrida, nos termos e fundamentos invocados, substituindo-a por outra que julgue totalmente procedente a Oposição.”

A Recorrida Autoridade Tributária e Aduaneira não apresentou contra-alegações.

O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Cumpre decidir.




2. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que a matéria apontada nos autos resume-se, em suma, em saber se a sentença recorrida padece do vício de erro de julgamento ao ter considerado o oponente parte legítima na execução, por ser o responsável pelo pagamento da dívida exequenda e se com esse entendimento foi violado o princípio da capacidade contributiva.




3. FUNDAMENTOS

3.1. DE FACTO

Neste domínio, consta da decisão recorrida o seguinte:

“…

1. Mediante sentença proferida em 02.06.2015, no processo n.º 521/14.8T8OAZ, foi declarada a insolvência do ora Oponente - cfr. documento, que se dá por integralmente reproduzido, a fls. 26 do sitaf;

2. Em 27.01.2016, no âmbito do processo referido no ponto anterior, foi proferido despacho inicial de exoneração do passivo restante – cfr. documento a fls. 29 do sitaf;

3. Em 16.03.2017, foi proferida decisão de encerramento do processo de insolvência, determinado nos termos do artigo 230.º n.º 1 alínea a) e com os efeitos previstos no artigo 233.º n.º 1 alíneas a) a d), ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - cfr. documentos a fls. 27 e 28 do sitaf;

4. Em 16.03.2018, foi emitida em nome do Oponente a liquidação de IRS n.º 2018 5000021241, referente a IRS do ano de 2016, no montante de € 17.514,66, na qual se procedeu à tributação das mais-valias obtidas com a alienação de imóveis no âmbito do processo de insolvência;

5. Em 09.05.2018, a Direção de Finanças de Aveiro instaurou contra o Oponente o processo de execução fiscal n.º 0132201801058428, para cobrança do montante de € 16.213,08 referente a parte do valor da liquidação identificada no ponto anterior - cfr. documento de fls. 24/25, 50 e 51 do sitaf;

6. Mediante ofício remetido por correio registado em 10.05.2018, o Serviço de Finanças de Oliveira de Azeméis dirigiu ao Oponente um documento para citação no processo de execução fiscal identificado no ponto anterior – cfr. documentos a fls. 7, 52 e 53 do sitaf;

7. Em 11.07.2018, o processo de execução fiscal n.º 0132201801058428 encontrava-se suspenso - cfr. documento a fls. 30 do sitaf;

8. Em 15.06.2018, deu entrada no Serviço de Finanças de Oliveira de Azeméis a petição inicial da presente Oposição - cfr. comprovativo a fls. 4 e teor da informação de fls. 21 a 23 do sitaf.


*

Não se deram como provados ou não provados quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa.

O facto constante do ponto 4 foi dado como provado atenta a posição concordante assumida pelas partes nos autos e, bem assim, ao teor do documento a fls. 8 do sitaf.

Os restantes factos foram dados como provados com base na análise crítica dos documentos e informações oficiais constantes dos autos, conforme se encontra especificado em cada um dos pontos do probatório.”


«»

3.2. DE DIREITO

Assente a factualidade apurada cumpre, então, entrar na análise da realidade em equação nos autos, sendo que a este Tribunal está cometida a tarefa de indagar da bondade da decisão recorrida quando considerou o ora Recorrente parte legítima na execução, por ser o responsável pelo pagamento da dívida exequenda e se com esse entendimento foi violado o princípio da capacidade contributiva.


A questão que se coloca consiste em saber se a sentença recorrida padece do vício de erro de julgamento ao ter considerado o oponente parte legítima na execução, por ser o responsável pelo pagamento da dívida exequenda e se com esse entendimento foi violado o princípio da capacidade contributiva.

Nas suas alegações, o Recorrente insiste que é parte ilegítima na execução e que a responsabilidade pelo pagamento da dívida exequenda recai sobre a massa insolvente, por o produto da venda dos imóveis ter sido afecto ao pagamento das dívidas da massa e o executado não ter obtido quaisquer ganhos com os quais possa fazer face ao pagamento do imposto, apontando ainda que tal entendimento vertido na sentença recorrida viola o princípio da capacidade contributiva plasmado na Constituição da República e o disposto no CIRS.

Na verdade, a decisão recorrida perfilhou a tese de que o ora Recorrente é o sujeito passivo do imposto gerado pelo acréscimo patrimonial obtido com a alienação onerosa de bens imóveis aprendidos à ordem da massa insolvente, apontando que na data em que foi realizada a citação do Oponente no âmbito do processo de execução fiscal n.º 0132201801058428, já há mais de um ano que o processo de insolvência estava encerrado, ou seja, há muito que haviam cessado as atribuições do administrador da insolvência, que o devedor recuperara o direito de disposição dos seus bens e que os credores, nomeadamente o credor tributário, podiam exercer, directamente contra o devedor, os seus direitos, fossem eles relativos a dívidas geradas anteriormente ou posteriormente à declaração de insolvência, concluindo que, com o encerramento do processo de insolvência, passou a recair sobre o insolvente a responsabilidade pelo pagamento da totalidade das dívidas tributárias.

Que dizer?

Desde logo, cumpre reter que a dívida exequenda respeita a liquidação de IRS do ano de 2016, emitida em 16-03-2018, na sequência do apuramento de mais-valias com a venda de imóveis no âmbito do processo de insolvência, tendo a execução fiscal sido instaurada em 09-05-2018, estando ainda assente que o executado foi declarado insolvente por sentença datada de 02-06-2015, no âmbito de cujo processo foi proferido em 27-01-2016 despacho de exoneração do passivo e em 16-03-2017 encerrado o processo de insolvência.

Para cabal enquadramento da realidade em apreço, importa ainda aludir à jurisprudência deste STA no sentido de que as mais-valias apuradas com a venda de imóveis que fazem parte de uma massa insolvente estão sujeitas a tributação, sendo sujeito passivo o insolvente.

Com efeito, como se aponta no no Ac. deste Tribunal de 06-06-2018, Proc. nº 01136/17, www.dgsi.pt, “… «O art. 268.º do CIRE, que tem como epígrafe «Benefícios relativos a impostos sobre o rendimento das pessoas singulares e colectivas», prevê no seu n.º 1 uma isenção relativamente aos impostos sobre o rendimento nos seguintes termos: «As mais-valias realizadas por efeito da dação em cumprimento de bens do devedor e da cessão de bens aos credores estão isentas de impostos sobre o rendimento das pessoas singulares e colectivas, não concorrendo para a determinação da matéria colectável do devedor».

Como resulta da letra da lei apenas estão abrangidas pela isenção de IRS, as mais-valias resultantes da dação em cumprimento de bens do insolvente e da cessão desses bens aos credores e já não as resultantes da venda desses bens - figuras jurídicas inequivocamente distintas e tratadas autonomamente no Código Civil (CC) -, ainda que o seu produto seja aplicado no pagamento aos credores.

Antes do mais, cumpre ter presente que, em matéria de isenções, há que observar o princípio constitucional da legalidade tributária, na sua vertente de tipicidade, que veda a integração analógica de normas de isenção de imposto, embora consinta na sua interpretação extensiva, como, aliás, reconhece o legislador ordinário (cfr. art. 10.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais). A interpretação extensiva pressupõe que, por via interpretativa, se conclua que o legislador minus dixit quam voluit, que o legislador disse menos do que aquilo que se pretendia dizer (Sobre a questão, vide o seguinte acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

- de 23 de Novembro de 2011, proferido no processo n.º 592/11, disponível em (http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/276fb5605d95722d8025795d00445be9.), ou seja, que quando isentou de IRS as mais-valias resultantes da dação em cumprimento de bens do devedor aos credores ou da cessão de bens aos credores pretendia igualmente abranger no âmbito da isenção as mais-valias realizadas com a venda a terceiros desses bens, pelo menos na parte em que o produto dessa venda fosse utilizado no pagamento aos credores. Mas, salvo o devido respeito, qualquer que seja o juízo sobre a bondade da opção legislativa, não pode é sustentar-se que o legislador pretendia também abranger na isenção prevista no n.º 1 do art. 268.º do CIRE as mais-valias resultantes da venda de bens do devedor. Na verdade, a ser assim, por certo o teria dito expressamente (cfr. art. 9.º, n.º 3, do CC), tanto mais que as situações de venda serão mais vulgares que as de dação em pagamento ou cessão de bens aos credores. Por outro lado, nada permite concluir, designadamente a ratio legis, que o legislador quisesse aplicar às situações em que há venda de bens (transferência de bens do insolvente para terceiros) tratamento idêntico àquele em que há uma transferência directa de bens da esfera patrimonial do insolvente para a dos credores, sendo legítimo concluir que pretendeu estimular este modo de extinção das dívidas do insolvente.

Concluímos, pois, que as mais-valias resultantes da venda de bens do insolvente não estão abrangidas pela isenção prevista no n.º 1 do art. 268.º do CIRE. Mas será que, como sustentou o Juiz do Tribunal a quo, que o insolvente não obteve qualquer rendimento com a alienação do imóvel?

Atento o disposto nos arts. 1.º e 2.º, n.º 1, alínea a), do CIRE, o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e, designadamente, a repartição do produto obtido pelos credores, podendo ser objecto de tal processo quaisquer pessoas singulares ou colectivas, sendo que, no caso, apenas nos interessa considerar a insolvência de pessoa singular.

Quando uma pessoa singular é objecto de uma declaração de insolvência, os seus bens susceptíveis de penhora são apreendidos, de acordo com a alínea g) do n.º 1 do art. 36.º do CIRE, e passam a integrar um património autónomo e de afectação, uma vez se destina à satisfação dos interesses dos credores da insolvência, denominada massa insolvente.

A massa insolvente, de acordo com o conceito do n.º 1 do art. 46.º do CIRE, «destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo».

Esses bens são entregues ao administrador da insolvência (O administrador da insolvência é um órgão da insolvência sem poderes de representação do insolvente que seja pessoa singular, contrariamente ao que sucede relativamente às pessoas colectivas (cfr. art. 81.º, n.º 4, do CIRE).), que é quem pode exercer poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente (cfr. art. 81.º, n.º 1, do CIRE).

Daqui decorre que a massa insolvente tem autonomia patrimonial, que existe quando se está perante uma «certa massa de bens afectada ao pagamento de um conjunto próprio de dívidas» (Cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, volume I, 3.ª edição, Coimbra Editora, anotação 4 ao art. 601.º, pág. 586.

No mesmo sentido, OLIVEIRA ASCENSÃO, Efeitos da falência sobre a pessoa e negócios do falido, Revista da Ordem dos Advogados, Dezembro de 1995, págs. 652/653; MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, Os efeitos substantivos da falência, PUC 2000, pág. 127; PAULA COSTA E SILVA, A liquidação da massa insolvente, Revista da Ordem dos Advogados, 2005, volume III, págs. 717 a 719, onde fala de «património de afectação» (também disponível em http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=44561&ida=44625).), mas não constitui uma pessoa (singular ou colectiva), um novo ente, distinto daquele a quem o património autónomo continua a pertencer (() Não passam a existir duas pessoas, tal como não existem três entes em resultado de um casamento, apesar de existirem dois patrimónios próprios e um comum.). Dito de outro modo, «A constituição de um património autónomo não acarreta o aparecimento de uma nova subjectividade jurídica, distinta do devedor insolvente que lhe deu origem» (Cfr. BRUNO SANTIAGO e BEATRIZ CAPELOA GIL, A responsabilidade pelo imposto devido na liquidação dos bens que integram a massa insolvente, Cadernos de Justiça Tributária, Centro de Estudos Jurídicos do Minho, n.º 13, págs. 3 a 15.).

A massa insolvente constitui apenas uma parte separada do património da pessoa singular a quem os bens pertencem e a quem não deixam de pertencer por força da declaração de insolvência; o que acontece, quando há uma declaração de insolvência, é apenas a transferência dos poderes de administração e disposição relativamente aos bens integrantes da massa insolvente, da pessoa insolvente para o administrador da insolvência (cfr. art. 81.º, n.º 1, do CIRE). Os bens não deixam de ser propriedade do insolvente; apenas se dá uma transferência daqueles poderes sobre eles.

Assim, praticando o administrador actos de liquidação da massa insolvente, designadamente vendendo (Segundo o art. 158.º, n.º 1, do CIRE, o administrador da insolvência procede com prontidão à venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente.) bem imóvel integrante dessa massa (venda efectuada na qualidade de fiel depositário dos bens do devedor, como representante da massa insolvente, e não em nome próprio), se a venda for efectuada por um valor superior àquele pelo qual o imóvel foi adquirido, gera um acréscimo do património do insolvente, constituindo assim um rendimento sujeito a IRS, nos termos do art. 10.º, n.º 1, alínea a), do Código daquele imposto. Como deixou já dito este Supremo Tribunal Administrativo, para a qualificação como mais-valia sujeita a tributação releva unicamente a diferença positiva entre o valor pelo qual um imóvel foi alienado e o valor da sua aquisição, corrigido e acrescido nos termos legais, sendo irrelevante o destino dado ao produto da venda, uma vez que o ganho tributado é o que decorre da diferença entre os valores de aquisição e de realização, ou seja, entre o valor por que o bem ingressou no património do sujeito passivo e o valor por que dele saiu (Cfr. o seguinte acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

- de 21 de Setembro de 2016, proferido no processo n.º 582/15, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/b601a4ed1e38d3eb80258037004cbb31.). Aliás, nem sequer pode dizer-se que não haja benefício para o insolvente, pois esse acréscimo patrimonial beneficiou o insolvente embora na parte do seu património separada para a massa, traduzindo-se numa diminuição do seu passivo.

Neste sentido, aponta também, a contrario, o disposto no art. 268.º do CIRE, ao prever uma isenção de IRS para as mais-valias realizadas por efeito da dação em cumprimento (realização de uma prestação, diferente da que é devida, com o fim de extinguir imediatamente a obrigação) de bens do devedor e da cessão de bens aos credores (em que o devedor encarrega os credores de liquidar o seu património ou parte dele e de repartirem entre si o respectivo produto para satisfação dos seus créditos); o que significa que, se as mais-valias não resultarem de um desses negócios previstos nesta norma de isenção, designadamente se resultarem da venda de bens da massa insolvente, e a menos que gerem rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais (Ou seja, pressupomos que os imóveis pertencem ao património particular do sujeito passivo, isto é, que não estavam afectos a qualquer actividade empresarial e/ou profissional.), estão abrangidas pelo IRS, concorrendo para a determinação da matéria colectável em sede deste imposto [art. 10.º, n.º 1, alínea a), do CIRS]. Neste sentido também se pronunciam a AT, na informação vinculativa emitida no processo 5957/2010 da Direcção-Geral dos Impostos, com despacho concordante da Subdirectora-Geral de 1 de Outubro de 2010 (() Disponível em http://info.portaldasfinancas.gov.pt/NR/rdonlyres/B88EB745-5794-49A6-8C8C-00AFC4C8030F/0/ProcN%C2%BA5957_2010IRS.pdf.), e a doutrina (Designadamente: - CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, 3.ª edição, Quid Juris, 2015, págs. 916/917;

- LIMA GUERREIRO, Os créditos fiscais no novo CPERF, Fisco, ano V, n.º 54, pág. 118;

- SARA LUÍS DA SILVA VEIGA DIAS, O crédito tributário e as obrigações fiscais no processo de insolvência, págs. 98/99, dissertação de mestrado, no repositorium da Universidade do Minho, disponível em
http://hdl.handle.net/1822/21395;

- ANA PRATA, JORGE MORAIS DE CARVALHO e RUI SIMÕES, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, Almedina, 2013, pág. 716, em anotação ao art. 268.º.). …”.

Nesta sequência, resulta adquirido que, ainda que o facto tributário ocorra no âmbito da liquidação da massa insolvente não pode considerar-se que a dívida emerge do acto de liquidação da massa, de forma a ser subsumível na alínea c) do nº1 do artigo 51º do CIRE, pois que a valorização do imóvel objecto de incidência tributária não tem conexão relevante com o acto de liquidação, já que este se limita a definir o momento da ocorrência do facto tributário, sendo que não estamos perante um tributo devido pela prática desse acto e cuja obrigação de pagamento recaia sobre o administrador de insolvência.

Como quer que seja, em função da realidade de facto apurada nos autos, à data da emissão da liquidação que deu origem à quantia exequenda e da instauração da execução fiscal, o processo de insolvência já tinha sido encerrado, nos termos do artigo 230º nº 1, alínea a), do CIRE, ou seja, após o rateio final, verificando-se que a partir deste momento deixou de existir o património autónomo que era a massa insolvente, o que significa que o devedor recupera todos os seus poderes sobre o seu património, o qual responde por todas as suas dívidas.

Por outro lado, ainda que no âmbito do processo de insolvência haja sido decidido exonerar o insolvente do passivo restante (na matéria de facto consta apenas a decisão inicial), esta exoneração não abrange os créditos tributários, atento o disposto no artigo 245º nº2 alínea d) do CIRE, de modo que, é manifesto que o Recorrente é parte legítima na execução instaurada para cobrança da dívida exequenda identificada nos autos, não podendo proceder o recurso nesta sede.

O Recorrente sustenta também que a cobrança da dívida exequenda viola o princípio da capacidade contributiva, por não ter “arrecadado o produto da venda” com o qual possa fazer face ao pagamento do tributo.

O princípio em apreço, que integra os princípios estruturantes do sistema fiscal acolhidos nos arts. 103º e 104º da Constituição da República Portuguesa exprime e concretiza o princípio da igualdade fiscal ou tributária, na medida em que se o princípio da igualdade tributária pressupõe o tratamento igual de situações iguais e o tratamento desigual de situações desiguais, a capacidade contributiva é o “tertium genus” - leia-se, o critério - que há-de servir de base à comparação, ou seja, opera tanto como condição, ou pressuposto, quanto como critério ou parâmetro da tributação, visto que impede que a tributação atinja uma riqueza ou um rendimento que não existe e determina que a exacção do património dos contribuintes se faça de acordo com a sua “capacidade de gastar” (ability to spend), sem olvidar a tributação do rendimento líquido do contribuinte, de onde deflui uma exigência de dedução das despesas necessárias à angariação do próprio rendimento.

Ora, no caso dos autos, a venda do imóvel gerou um acréscimo patrimonial na esfera jurídica do Recorrente, e o facto de o produto da venda ter sido afecto ao pagamento das dívidas da massa insolvente, não constitui fundamento para considerar anulados os ganhos assim obtidos.
Ou seja, embora o valor em apreço não tenha entrado material e fisicamente na posse do Recorrente, não deixou de entrar na sua esfera jurídica, o qual foi destinado à diminuição do respectivo passivo, o que quer dizer que não está em causa qualquer rendimento ficcionado, mas uma vantagem patrimonial efectiva, directamente subsumível na previsão do identificado art. 10º nº 1 al. a), do C.I.R.S., o que arreda, igualmente, a possibilidade de procedência da argumentação de violação do citado princípio da capacidade contributiva, situação que tem um verdadeiro efeito de implosão no que concerne ao presente recurso.



4. DECISÃO

Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em negar provimento ao recurso jurisdicional interposto pelo Recorrente, mantendo-se a decisão judicial recorrida.

Custas pela Recorrente.

Notifique-se. D.N..




Lisboa, 10 de Março de 2021. - Pedro Nuno Pinto Vergueiro (Relator) - Jorge Miguel Barroso de Aragão Seia - Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos (Com declaração de voto em anexo)

Voto a decisão.

O tribunal de primeira instância conheceu da questão de saber a quem pode ser exigido o imposto (gerado com a alienação de ativos no processo de insolvência) e da questão de saber a quem pode ser exigida a dívida fiscal (isto é, quem deve ser chamado à execução por dívidas fiscais do insolvente decorrentes da alienação de ativos no processo de insolvência).

O Recorrente não se conforma com a decisão porque entende que não é o beneficiário da riqueza gerada pelas mais-valias e que, por isso, não é parte legítima na execução fiscal.

Ou seja, o Recorrente entende que que não é o sujeito passivo do imposto e que isso acarreta a sua ilegitimidade como executado na execução fiscal respetiva.

O Recorrente interpreta mal o artigo 204.º, n.º 1, alínea b), do Código de Procedimento e de Processo Tributário: a questão de saber se o insolvente é o sujeito passivo do imposto não tem nada a ver com a questão da legitimidade para a execução fiscal, porque tem a ver com a legalidade concreta da própria liquidação.

À execução fiscal não interessa, em princípio, saber quem deve, mas quem figura como devedor no título. E a oposição não serve para discutir a legalidade da liquidação da dívida titulada, até porque existiria outro meio processual para o fazer: a impugnação judicial.

Pelo que a oposição não é o meio processual adequado para conhecer da questão que o Recorrente suscita em via de recurso.

E a convolação da oposição em impugnação judicial não é admissível, porque o tribunal de primeira instância conheceu de uma questão que é fundamento de oposição e que não é atacada em via de recurso (a de saber quem deve ser chamado à execução por dívidas fiscais decorrentes da alienação de ativos no processo de insolvência, no pressuposto de que essas dívidas - no plano substantivo - são do insolvente).

Pelo que confirmaria a decisão recorrida com a precedente fundamentação.

Lisboa 10 de março de 2021

Nuno Bastos