Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01410/16
Data do Acordão:05/31/2017
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:IRS
MAIS VALIAS
INSOLVÊNCIA
Sumário:I - Os bens apreendidos e vendidos em processo de insolvência continuam a ser propriedade do insolvente até à venda.
II - A diferença entre o valor de aquisição e de venda dos bens imóveis, ainda que esta se faça em processo de insolvência e o respectivo produto fique afecto à satisfação dos credores da insolvência, não deixa de ser um rendimento obtido pelo insolvente, que está obrigado a declará-lo.
III - Em sede de impugnação judicial da liquidação de um imposto apenas pode conhecer-se da legalidade desse acto e já não da responsabilidade pelo pagamento da correspondente dívida.
Nº Convencional:JSTA00070213
Nº do Documento:SA22017053101410
Data de Entrada:12/14/2016
Recorrente:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:MASSA INSOLVENTE DE A...
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF AVEIRO
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - IMPUGN JUDICIAL
Legislação Nacional:CIRE04 ART1 ART2 N1 A ART36 N1 G ART46 N1 ART81 N1 N4 ART268.
CIRS01 ART10 N1 A.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC0669/15 DE 2017/05/10.; AC STA PROC0582/15 DE 2016/11/21.; AC STA PROC01660/15 DE 2017/03/08.
Referência a Doutrina:CARVALHO FERNANDES E JOÃO LABAREDA - CIRE ANOTADO 3ED PAG916-917.
LIMA GUERREIRO - OS CRÉDITOS FISCAIS NO NOVO CPERF, FISCO, ANOV N54 PAG118.
SARA DIAS - O CRÉDITO TRIBUTÁRIO E AS OBRIGAÇÕES FISCAIS NO PROCESSO DE INSOLVÊNCIA PAG98-99.
ANA PRATA, JORGE DE CARVALHO E RUI SIMÕES - CIRE ANOTADO PAG716.
BRUNO SANTIAGO E BEATRIZ CAPELOA GIL - A RESPONSABILIDADE PELO IMPOSTO DEVIDO NA LIQUIDAÇÃO DOS BENS QUE INTEGRAM A MASSA INSOLVENTE, CADERNOS DE JUSTIÇA TRIBUTÁRIA N13 PAG3-15.
OLIVEIRA ASCENSÃO - EFEITOS DA FALÊNCIA SOBRE A PESSOA E NEGÓCIOS DO FALIDO, REVISTA DA ORDEM DOS ADVOGADOS DEZEMBRO DE 1995 PAG652-653
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da sentença proferida no processo de impugnação judicial com o n.º 669/15.1BEAVR

1. RELATÓRIO

1.1 A Fazenda Pública (adiante Recorrente) recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo da sentença por que a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, julgando procedente a impugnação judicial deduzida por A………….. (a seguir Impugnante ou Recorrida), anulou a liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) efectuada com referência ao ano de 2011 no que respeita às mais-valias apuradas pela venda de dois imóveis, ocorrida no âmbito do processo em que aquela e o seu marido foram declarados insolventes.

1.2 O recurso foi admitido, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e a Recorrente apresentou as alegações, que sintetizou em conclusões do seguinte teor: «

I- O objecto do recurso

I. Visa o presente recurso reagir contra a douta sentença proferida nos autos em epígrafe, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por A…………… contra a liquidação de IRS referente ao ano de 2011, pretendendo a recorrente Fazenda Pública a sua revogação e substituição por decisão que considere tal impugnação improcedente.

II. A questão decidenda consiste em saber se a douta sentença padece de erro de julgamento, por ter anulado a liquidação com fundamento na inexigibilidade da dívida ao insolvente.


II- O erro de julgamento – a exigibilidade do pagamento

III. De acordo com o Tribunal a quo, a “questão fulcral” em dissídio consistia em “determinar a quem deve ser exigido o pagamento de mais-valias relativas à venda, pelo Administrador de Insolvência, de imóveis, integrados na massa insolvente por força da declaração de insolvência, do proprietário/insolvente”.

IV. Assim, considerou que o imposto devido pela mais-valia gerada pela alienação de um prédio integrante da massa insolvente é “uma dívida da massa insolvente”, centrando a sua abordagem na questão da exigibilidade do pagamento de tais mais-valias.

V. Acompanhando o entendimento vertido no acórdão do TR do Porto de 02-07-2015 (processo n.º 8729/12.4TBVNG-G.P1), o douto Tribunal desatendeu os demais pedidos formulados pela impugnante, anulando apenas a liquidação com fundamento na responsabilidade pelo pagamento da dívida.

VI. Sendo o insolvente o sujeito passivo do imposto, temos aqui uma nítida separação entre quem preenche os pressupostos do facto tributário e tem o dever de cumprir uma obrigação declarativa acessória (a entrega da declaração, nos termos do n.º 2 do artigo 31.º da LGT), i.e., o sujeito passivo stricto sensu e quem deve satisfazer perante o credor tributário a obrigação principal (o pagamento do imposto, nos termos do n.º 1 do artigo 31.º da LGT), i.e., o devedor do imposto.

VII. Logo, se inexiste qualquer ilegalidade que afecte a validade ou existência do acto tributário, mas apenas a sua eventual exigibilidade àquele sujeito passivo, entramos já no domínio da eficácia do acto, pelo que

VIII. O meio processual adequado para dirimir esta questão seria a oposição à execução e não a impugnação judicial, por força disposto nos artigos 99.º a contrario e 204.º n.º 1 alínea b), ambos do CPPT.

IX. Por conseguinte, verificando-se um erro na forma de processo e não sendo possível in casu a convolação no meio processual adequado, a declaração de tal erro importaria a anulação de todos os actos que não pudessem ser aproveitados, com a consequente absolvição da instância da Fazenda Pública.

X. Nestes termos, incorreu o douto Tribunal em erro de julgamento de direito, por:

a) ter ordenado a anulação da liquidação com fundamento na sua inexigibilidade, violando o disposto nos artigos 99.º a contrario e 204.º n.º 1 alínea b), ambos do CPPT;

b) não ter declarado a ocorrência de erro na forma de processo, sem possibilidade de convolação, com a necessária absolvição da instância por parte da Fazenda Pública, violando o disposto nos artigos 193.º, 278.º alínea e) e 576.º n.º 2, todos do CPC.

Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser considerado procedente, revogando-se a decisão ora posta em crise, assim se fazendo JUSTIÇA».

1.3 A Recorrida sustentou a manutenção do decidido.

1.4 Remetidos os autos a este Supremo Tribunal Administrativo, o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que seja concedido provimento ao recurso, revogada a sentença e julgada improcedente a impugnação judicial, com a seguinte fundamentação:

«[…]
Em causa está a tributação das mais-valias decorrentes da venda de imóvel integrado na massa insolvente dos ora recorridos.
A “massa insolvente” é um património autónomo administrado pelo Administrador da Insolvência (adiante AI), que está afecto à satisfação dos interesses dos seus credores. Não obstante esse facto e a circunstância da venda ser efectuada pelo AI no âmbito do processo de insolvência tal não retira ao Insolvente a qualidade de sujeito passivo do imposto devido pelas mais-valias eventualmente realizadas, nem tão pouco o desonera das obrigações declarativas que sobre ele impendem. É que, a declaração de insolvência não transfere a qualidade de sujeito passivo desse imposto para a massa insolvente ou para o AI, nem a titularidade dos bens se transfere com a mera declaração de insolvência. Com efeito, embora o art. 18.º, n.º 3 da LGT não circunscreva à pessoa singular ou colectiva a qualidade de sujeito passivo da relação jurídica tributária, “a massa insolvente não é sujeito passivo de imposto sobre o rendimento por não existir norma de incidência que o determine e, a fortiori, não possui quer personalidade, quer capacidade tributárias1 [1 Nos termos dos arts. 15.º e 16.º da LGT] (cfr. Bruno Santiago e Beatriz Capeloa Gil, in “A responsabilidade pelo imposto devido na liquidação dos bens que integram a massa insolvente”, “Cadernos de Justiça Tributária”, n.º 13, Julho-Setembro de 2016). A declaração da insolvência apenas priva o Insolvente dos poderes de administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente que passam a competir ao AI (art. 81.º, n.º 1 do CIRE).
Assim, tendo sido realizadas mais-valias no âmbito do processo de liquidação da massa insolvente, como decorre dos factos que resultaram provados, concretiza-se um rendimento que releva em sede de IRS, nos termos do art. 10.º do CIRS, sendo que as mais-valias geradas pela alienação onerosa de bens integrados na massa insolvente não estão contempladas na norma do art. 268.º, n.º 1 do CIRE. Apenas as mais-valias realizadas por efeito da dação em cumprimento de bens do devedor e da cessão de bens aos credores estão, de acordo com o dizer normativo, isentas de impostos sobre o rendimento das pessoas singulares e colectivas, não concorrendo para e determinação da matéria colectável do devedor. E assim é, não obstante a similitude das situações, na medida em que a venda de um bem integrado na massa insolvente é, como notam Bruno Santiago e Beatriz Capeloa Gil, in artigo citado, “perfeitamente equiparável, por identidade de razão, à dação em cumprimento por possuir os mesmos efeitos práticos: a obtenção de liquidez para pagar aos credores”.
A solução a que chegou a sentença recorrida louvou-se na doutrina do douto Ac. da Relação do Porto, de 2.07.2015, proferido no Proc. n.º 8729/12.4BVNG-G.P1 e nesse sentido igualmente se pronunciam Bruno Santiago e Beatriz Capeloa Gil, in artigo citado, ponderando que “(...), é característica dos patrimónios autónomos a sua responsabilidade por dívidas próprias. Consequentemente, uma vez que o bem alienado é parte integrante da massa falida, a dívida tributária a que deu origem deverá ser satisfeita por bens pertencentes à massa insolvente, ao abrigo do disposto no art. 51.º, n.º 1, alínea c) do CIRE. Se assim não fosse, estar-se-ia a contrariar a própria acepção de património autónomo e a desvirtuá-la de qualquer conteúdo e utilidade”.
A solução parece ajustada desde logo porque a mais-valia gerada com venda de bem integrado na massa insolvente é um ganho que se concretiza primordialmente em benefício do património autónomo e separado que constitui a massa insolvente, cuja administração o Insolvente não controla e que está exclusivamente afecto à satisfação dos interesses dos seus credores, não constituindo um fluxo financeiro que aumentasse o rendimento e, consequentemente, a capacidade contributiva do sujeito passivo, no caso o Insolvente; o benefício deste apenas se materializa na redução do seu passivo.
Certo é que o sujeito passivo do imposto é o Insolvente e que as mais-valias em causa decorrem da venda de bens imóveis que, embora integrados na massa insolvente, não deixam de ser propriedade dos Insolventes, nem de concorrer para a determinação do rendimento colectável, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 10.º n.º1, al. a) do CIRS e art. 268.º, n.º 1 do CIRE a contrario. Certo é, ainda, que constitui obrigação principal do sujeito passivo efectuar o pagamento da dívida tributária (art. 31.º, n.º 1 da LGT). Por outro lado, sendo exacto que as dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente (art. 51.º, n.º 1, al. c) do CIRE) não parece que nestas se possam incluir a dívida ou segmento da dívida de IRS a que o insolvente está obrigado, enquanto sujeito passivo desse imposto. As dívidas a que alude o preceito serão, salvo o devido respeito e melhor entendimento, aquelas que decorram das despesas e pagamentos que haja que efectuar em consequência da realização dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente.
Assim, embora não acompanhando o todo da argumentação vertida na Alegação de Recurso pois, manifestamente, inexiste qualquer erro na forma do processo – quer o pedido quer a causa de pedir são adequados ao processo de impugnação judicial e não ao processo de oposição à execução fiscal – sou de parecer, revendo em parte anterior pronúncia sobre a matéria, que a sentença recorrida, nos termos em que foi proferida, não deverá ser mantida, igualmente não procedendo, nessa medida a impugnação deduzida pelos ora recorridos».

1.5 Após os vistos dos Juízes Conselheiros adjuntos, cumpre apreciar e decidir.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro efectuou o julgamento da matéria de facto nos seguintes termos:

«1. Em 11/03/2010, foi proferida sentença no âmbito do processo n.º 963/10.TBVFR, que correu termos no Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, 3.º Juízo Cível, na qual se declarou a insolvência de B…………… e esposa A……………., e ainda se determinou a nomeação do administrador de insolvência Sr. Dr. C………….., bem como a apreensão para imediata entrega ao administrador de insolvência de todos os bens dos insolventes ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos [cfr. doc. fls. 62/63 verso do p.f., cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido];

2. Em 25/01/2011, no Cartório Notarial de Carlos Manuel Forte Ribeiro Tavares, foi celebrada escritura de compra e venda, cfr. fls. 64/67 do p.f., nos seguintes termos:














3. Da declaração de rendimentos do ano de 2011, a Impugnante obteve além dos rendimentos de mais-valias elencados no anexo G, rendimentos da categoria A (cfr. fls. 8/10 do PA);

4. Pela AT, foi emitida a liquidação n.º 2015 5000037251, do ano de 2011, no montante de € 26.912,39 [cfr. fls. 46 do PA];

5. Em 17/06/2015, foi remetida mediante correio registado para o Serviço de Finanças de S. João da Madeira a presente Impugnação [cfr. fls. 4 do p.f.]».


*

2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

No âmbito de um processo de insolvência foram apreendidos e vendidos dois prédios pertencentes à ora Recorrida e seu marido. A AT, considerando que dessa venda resultaram para estes ganhos sujeitos a IRS (categoria G “mais-valias”), que não foram oportunamente declarados, procedeu à liquidação adicional de imposto e respectivos juros compensatórios.
A ora Recorrida impugnou essa liquidação adicional de IRS por considerar, em síntese, que a mesma é ilegal porque «as transmissões onerosas em causa não incidiram sobre bens da Impugnante, mas antes sobre bens da […] massa insolvente em ordem à satisfação dos credores, em concurso universal», motivo por que «não obteve qualquer ganho patrimonial efectivo», não lhe podendo ser imputado rendimento algum proveniente dessa alienação, pelo que, mesmo a admitir-se que tais ganhos estejam sujeitos a tributação por mais-valias «sempre o valor do imposto terá de ser revertido contra a massa insolvente por constituir uma dívida desta nos termos do […] artigo 51.º, n.º 1, alínea c) do CIRE».
A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, louvando-se no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2 de Julho de 2015, proferido no processo n.º 8729/12.4TBVNG-G.P1 (Disponível em
http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/ee9cbc696061c44480257e830048e624.), julgou a impugnação judicial procedente e anulou a liquidação impugnada na parte em que se refere aos rendimentos por mais-valias. Para tanto, após transcrever aquele aresto, referiu que, porque a venda dos imóveis «foi realizada pelo Administrador da insolvência, após a declaração de falência de A……………. e B…………… (cfr. pontos 1. e 3. do probatório), ou seja, respeitam a dívidas reportadas a períodos de imposto em que o imóvel era já parte integrante da massa insolvente e relativamente aos quais os poderes de administração e de disposição competiam ao liquidatário judicial», «o imposto devido pela mais-valia gerada por essa alienação [art. 10/1 a) do CIRS] é uma dívida da massa insolvente [art. 51./1 c) do CIRE]», para concluir nos seguintes termos: «Propugnamos, assim, o referido no Acórdão supracitado, cuja interpretação não altera a qualidade de sujeito passivo do imposto, prevista no artigo 10.º, n.º 1, alínea a) do CIRS, mas valoriza a responsabilidade da massa pela dívida em causa, que decorre directamente do artigo 51.º, n.º 1, al. c) do CIRE».
A Fazenda Pública, discordando desse entendimento, recorreu da sentença para este Supremo Tribunal. Sustenta, em resumo e se bem interpretamos as alegações e respectivas conclusões, que a sentença padece de erro de julgamento, na medida em que, «centrando a sua abordagem na questão da exigibilidade do pagamento» do imposto resultante das mais-valias geradas pela alienação dos prédios que integravam a massa insolvente, tratou questão que respeita, não à legalidade da liquidação, mas à exigibilidade da dívida que teve origem nesse acto, ou seja, saiu do domínio da validade ou existência da liquidação, que é o da impugnação judicial, para o domínio da eficácia do acto, discussão que apenas poderia ter lugar em sede de oposição à execução fiscal. Assim, deveria a sentença ter considerado verificado o erro na forma do processo e, na impossibilidade da convolação da impugnação judicial para o meio processual adequado – que seria a oposição à execução fiscal –, deveria ter absolvido a Fazenda Pública da instância.
A questão a apreciar e decidir é a de saber se a venda de um bem imóvel da massa insolvente é, ou não, susceptível de gerar uma mais-valia do insolvente que seja pessoa singular, sujeita a tributação em sede de IRS. Atento o teor da sentença e a conformação do recurso, a resposta a essa questão passa por indagar se a mais-valia valia resultante dessa venda deve considerar-se ganho do insolvente ou da massa insolvente, designadamente se, como sustentou a Impugnante, o imóvel deixou ser propriedade do insolvente com a sua apreensão para a massa insolvente. Previamente, haverá também que verificar se, como sustentado nas alegações de recurso, ocorre o erro na forma do processo, a determinar absolvição da Fazenda Pública da instância, na insusceptibilidade dessa nulidade ser sanada mediante convolação da petição inicial para o meio processual adequado.

2.2.2 DO INVOCADO ERRO NA FORMA DO PROCESSO

A Recorrente sustenta que deveria o Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro ter declarado o erro na forma do processo, sem possibilidade de convolação e, por isso, ter absolvido a Fazenda Pública da instância.
Salvo o devido respeito, e acompanhando o Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal, não concordamos.
O erro na forma do processo é uma nulidade que decorre da utilização de meio processual desajustado ao pedido formulado, à providência judicial solicitada, à pretensão de tutela jurídica formulada em juízo.
Ora, no caso, o pedido formulado pela Impugnante foi que fosse «anulada a liquidação adicional de IRS referente ao ano de 2011» (cfr. fls. 7 v.º), pedido que, inequivocamente, é adequado à forma processual escolhida – a impugnação judicial –, que tem como fim a anulação de um acto praticado pela Administração tributária, ou a declaração da sua nulidade ou inexistência (cfr. art. 124.º, n.º 1, do CPPT).
A nosso ver, a alegação da Recorrente tem a ver, não com a nulidade por erro na forma do processo – que, manifestamente, não ocorre –, mas com o modo como a sentença abordou a questão. Isto porque a sentença, como melhor veremos adiante, ao invés de sindicar a legalidade da liquidação adicional impugnada, entendeu pronunciar-se sobre a responsabilidade do pagamento da dívida gerada por aquela liquidação.
Seja como for, como temos vindo a dizer noutras ocasiões, para efeitos de verificar se ocorre esta nulidade deve atender-se exclusivamente ao pedido ou pedidos formulados e não à validade ou adequação ao pedido das causas de pedir invocadas (Como tem vindo a salientar a jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo, é questão diferente do erro na forma do processo a de saber se na petição inicial foram alegados fundamentos válidos do meio processual escolhido, questão que se situa no âmbito da viabilidade do pedido e já não da propriedade do meio processual. Neste sentido, os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 28 de Março de 2012, proferido no processo com o n.º 1145/11, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/4ee18297540be732802579df0033cd10;
- de 18 de Junho de 2014, proferido no processo n.º 1549/13, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/80c2d813e2115b2980257d01004c1a09.); por maioria de razão, à verificação do erro na forma do processo é de todo irrelevante o enquadramento que o juiz faça das causas de pedir.
Afastada que está a possibilidade de ocorrência do erro na forma do processo, invocado pela Recorrente, vejamos agora se a sentença fez correcto julgamento ao anular a liquidação com o fundamento de que a Impugnante não é a responsável pela dívida resultante da liquidação impugnada.

2.2.3 DA TRIBUTAÇÃO EM IRS DA MAIS-VALIA DECORRENTE DA VENDA DE BEM IMÓVEL QUE INTEGRE A MASSA INSOLVENTE

Recuperamos aqui a exposição que elaboramos em anterior acórdão (Referimo-nos seguinte acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 10 de Maio de 2017, proferido no processo n.º 669/15, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/edfbfa910117a87e80258124003c91f8.).
Atento o disposto nos arts. 1.º e 2.º, n.º 1, alínea a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e, designadamente, a repartição do produto obtido pelos credores, podendo ser objecto de tal processo quaisquer pessoas singulares ou colectivas, sendo que, no caso, apenas nos interessa considerar a insolvência de pessoa singular.
Quando uma pessoa singular é objecto de uma declaração de insolvência, os seus bens susceptíveis de penhora são apreendidos, de acordo com a alínea g) do n.º 1 do art. 36.º do CIRE, e passam a integrar um património autónomo e de afectação, uma vez se destina à satisfação dos interesses dos credores da insolvência, denominada massa insolvente. A massa insolvente, de acordo com o conceito do n.º 1 do art. 46.º do CIRE, «destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo».
Esses bens são entregues ao administrador da insolvência (O administrador da insolvência é um órgão da insolvência sem poderes de representação do insolvente que seja pessoa singular, contrariamente ao que sucede relativamente às pessoas colectivas (cfr. art. 81.º, n.º 4, do CIRE).), que é quem pode exercer poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente (cfr. art. 81.º, n.º 1, do CIRE).
Daqui decorre que a massa insolvente tem autonomia patrimonial, que existe quando se está perante uma «certa massa de bens afectada ao pagamento de um conjunto próprio de dívidas» (Cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil anotado, volume I, 3.ª edição, Coimbra Editora, anotação 4 ao art. 601.º, pág. 586.
No mesmo sentido, OLIVEIRA ASCENSÃO, Efeitos da falência sobre a pessoa e negócios do falido, Revista da Ordem dos Advogados, Dezembro de 1995, págs. 652/653; MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, Os efeitos substantivos da falência, PUC 2000, pág. 127; PAULA COSTA E SILVA, A liquidação da massa insolvente, Revista da Ordem dos Advogados, 2005, volume III, págs. 717 a 719, onde fala de «património de afectação» (também disponível em http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=44561&ida=44625).), mas não constitui uma pessoa (singular ou colectiva), um novo ente, distinto daquele a quem o património autónomo continua a pertencer (Não passam a existir duas pessoas, tal como não existem três entes em resultado de um casamento, apesar de existirem dois patrimónios próprios e um comum.). Dito de outro modo, «A constituição de um património autónomo não acarreta o aparecimento de uma nova subjectividade jurídica, distinta do devedor insolvente que lhe deu origem» (Cfr. BRUNO SANTIAGO e BEATRIZ CAPELOA GIL, A responsabilidade pelo imposto devido na liquidação dos bens que integram a massa insolvente, Cadernos de Justiça Tributária, Centro de Estudos Jurídicos do Minho, n.º 13, págs. 3 a 15.).
A massa insolvente constitui apenas uma parte separada do património da pessoa singular a quem os bens pertencem e a quem não deixam de pertencer por força da declaração de insolvência; o que acontece, quando há uma declaração de insolvência, é apenas a transferência dos poderes de administração e disposição relativamente aos bens integrantes da massa insolvente, da pessoa insolvente para o administrador da insolvência (cfr. art. 81.º, n.º 1, do CIRE). Os bens não deixam de ser propriedade do insolvente; apenas se dá uma transferência daqueles poderes sobre eles.
Assim, praticando o administrador actos de liquidação da massa insolvente, designadamente vendendo (Segundo o art. 158.º, n.º 1, do CIRE, o administrador da insolvência procede com prontidão à venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente.) bem imóvel integrante dessa massa (venda efectuada na qualidade de fiel depositário dos bens do devedor, como representante da massa insolvente, e não em nome próprio), se a venda for efectuada por um valor superior àquele pelo qual o imóvel foi adquirido, gera um acréscimo do património do insolvente, constituindo assim um rendimento sujeito a IRS, nos termos do art. 10.º, n.º 1, alínea a), do Código daquele imposto. Como deixou já dito este Supremo Tribunal Administrativo, para a qualificação como mais-valia sujeita a tributação releva unicamente a diferença positiva entre o valor pelo qual um imóvel foi alienado e o valor da sua aquisição, corrigido e acrescido nos termos legais, sendo irrelevante o destino dado ao produto da venda, uma vez que o ganho tributado é o que decorre da diferença entre os valores de aquisição e de realização, ou seja, entre o valor por que o bem ingressou no património do sujeito passivo e o valor por que dele saiu (Cfr. o seguinte acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 21 de Setembro de 2016, proferido no processo n.º 582/15, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/b601a4ed1e38d3eb80258037004cbb31.). Aliás, nem sequer pode dizer-se que não haja benefício para o insolvente, pois esse acréscimo patrimonial beneficiou o insolvente embora na parte do seu património separada para a massa, traduzindo-se numa diminuição do seu passivo.
Neste sentido, aponta também, a contrario, o disposto no art. 268.º do CIRE, ao prever uma isenção de IRS para as mais-valias realizadas por efeito da dação em cumprimento (realização de uma prestação, diferente da que é devida, com o fim de extinguir imediatamente a obrigação) de bens do devedor e da cessão de bens aos credores (em que o devedor encarrega os credores de liquidar o seu património ou parte dele e de repartirem entre si o respectivo produto para satisfação dos seus créditos); o que significa que, se as mais-valias não resultarem de um desses negócios previstos nesta norma de isenção, designadamente se resultarem da venda de bens da massa insolvente, e a menos que gerem rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais (Ou seja, pressupomos que os imóveis pertencem ao património particular do sujeito passivo, isto é, que não estavam afectos a qualquer actividade empresarial e/ou profissional.), estão abrangidas pelo IRS, concorrendo para a determinação da matéria colectável em sede deste imposto [art. 10.º, n.º 1, alínea a), do CIRS]. Neste sentido também se pronunciam a AT, na informação vinculativa emitida no processo 5957/2010 da Direcção-Geral dos Impostos, com despacho concordante da Subdirectora-Geral de 1 de Outubro de 2010 (Disponível em http://info.portaldasfinancas.gov.pt/NR/rdonlyres/B88EB745-5794-49A6-8C8C-00AFC4C8030F/0/ProcN%C2%BA5957_2010IRS.pdf.), e a doutrina (Designadamente:
- CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, 3.ª edição, Quid Juris, 2015, págs. 916/917;
- LIMA GUERREIRO, Os créditos fiscais no novo CPERF, Fisco, ano V, n.º 54, pág. 118;
- SARA LUÍS DA SILVA VEIGA DIAS, O crédito tributário e as obrigações fiscais no processo de insolvência, págs. 98/99, dissertação de mestrado, no repositorium da Universidade do Minho, disponível em
http://hdl.handle.net/1822/21395;
- ANA PRATA, JORGE MORAIS DE CARVALHO e RUI SIMÕES, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, Almedina, 2013, pág. 716, em anotação ao art. 268.º.).
Por isso, considerámos já que o insolvente não está dispensado de declarar esses rendimentos ( Vide o seguinte acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 8 de Março de 2017, proferido no processo n.º 1660/15, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/d1079276043cff20802580e200428332.).
Questão diversa é a de saber quem responde pelo imposto gerado pela mais-valia gerada pela alienação de imóvel da massa insolvente. Foi essa a questão abordada pela sentença, por remissão para o referido acórdão do Tribunal da Relação do Porto. Note-se que a sentença deixou expressamente referido que não estava em causa «a qualidade de sujeito passivo do imposto», mas a «responsabilidade da massa pela dívida em causa». O que significa, sem margem para dúvida, que não foi uma eventual ilegalidade reportada à incidência pessoal do imposto que determinou a sua anulação, mas antes a responsabilidade pela dívida que teve origem na liquidação impugnada.
Mas, salvo o devido respeito, trata-se de questão que não cumpria dirimir no processo, porque neste está exclusivamente em causa a legalidade da liquidação impugnada e não a responsabilidade pela dívida originada por esse acto tributário. Esta última, aliás e como judiciosamente observou a Recorrente, em juízo apenas poderá discutir-se através da oposição à execução fiscal.
A nosso ver, a sentença descentrou a questão que lhe cumpria apreciar e decidir, que era a de saber se os bens vendidos ainda eram da Impugnante à data da venda em processo de insolvência e se a diferença entre o valor por que foram adquiridos (eventualmente corrigido nos termos legais) e o valor por que foram alienados (valores de aquisição e de realização, respectivamente) constitui rendimento da insolvente.
É certo que nos arts. 25 a 27 da petição inicial a Impugnante também alega não ser responsável por eventual dívida resultante do imposto devido por ganhos obtidos com a alienação dos referidos imóveis, mas, como deixámos já dito e a Recorrente bem salientou, a questão de saber a quem incumbe o pagamento da dívida está fora do âmbito da impugnação judicial.
Daqui decorre que não podemos concordar com a sentença quando, considerando que a Impugnante não é responsável pela dívida, anulou a liquidação com esse fundamento.
O recurso será, pois, provido e a impugnação judicial julgada improcedente.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:

I - Os bens apreendidos e vendidos em processo de insolvência continuam a ser propriedade do insolvente até à venda.

II - A diferença entre o valor de aquisição e de venda dos bens imóveis, ainda que esta se faça em processo de insolvência e o respectivo produto fique afecto à satisfação dos credores da insolvência, não deixa de ser um rendimento obtido pelo insolvente, que está obrigado a declará-lo.

III - Em sede de impugnação judicial da liquidação de um imposto apenas pode conhecer-se da legalidade desse acto e já não da responsabilidade pelo pagamento da dívida por ele originada.


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3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar improcedente a impugnação judicial.

Custas pela Recorrida.


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Lisboa, 31 de Maio de 2017. – Francisco Rothes (relator) – Aragão Seia – Casimiro Gonçalves.