Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0718/15
Data do Acordão:10/12/2016
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:IMPOSTO DE SELO
USUCAPIÃO
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
Sumário:I - Embora sendo uma forma de aquisição originária (cfr. arts. 1287.º e segs. do CC), a usucapião é, para efeitos de incidência do IS, considerada (ficcionada) como uma transmissão gratuita de bens imóveis [cfr. arts. 1.º, n.ºs 1 e 3.º, alínea), e 2.º, n.º 2, alínea b), do CIS], que ocorre, no caso de escritura de justificação notarial, no momento em que for celebrada a escritura [cfr. a alínea r) do art. 5.º do CIS].
II - Essa ficção, que se impõe por razões de prevenção e combate à fraude, não se afigura como desproporcionada, sendo que apesar dos efeitos civis da usucapião retroagirem à data do início da posse, a fixação do nascimento da obrigação tributária na data da celebração da escritura não contende com os princípios constitucionais que devem presidir à tributação.
III - Porque os recursos jurisdicionais são específicos meios de impugnação de decisões judiciais, que visam modificar as decisões recorridas, e não criar decisões sobre matéria nova, não se pode, em regra, neles tratar de questões que não tenham sido apreciadas pela decisão impugnada, salvo questões novas de conhecimento oficioso e não decididas com trânsito em julgado.
Nº Convencional:JSTA00069841
Nº do Documento:SA2201610120718
Data de Entrada:06/05/2015
Recorrente:A............ E OUTRA
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT FAF COIMBRA
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - IMPUGN JUDICIAL.
Legislação Nacional:CPA15 ART152 N3
LGT98 ART77.
CCIV66 ART487 N2 ART1287 ART1251 ART1288 ART1317 ART9.
CIS03 ART1 N3 ART2 N2 ART5 R ART6 E.
CPPTRIB99 ART100 N1.
CONST76 ART266 N2.
Jurisprudência Nacional:AC STAPLENO PROC0746/11 DE 2012/05/02.; AC STA PROC01112 DE 2013/02/20.; AC STA PROC0466/14 DE 2014/10/01.
Referência a Doutrina:BAPTISTA MACHADO - INTRODUÇÃO AO DIREITO E AO DISCURSO LEGITIMADOR 1983 PAG108-109.
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da sentença proferida no processo de impugnação judicial com o n.º 224/07.0BECBR

1. RELATÓRIO
1.1 A………… e mulher, B………… (adiante Impugnantes ou Recorrentes), recorrem para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra que julgou improcedente a impugnação judicial que, após o indeferimento das reclamações graciosas, deduziram contra as liquidações de Imposto de Selo (IS) que lhes foram efectuadas, uma a cada um, na sequência da celebração de uma escritura de justificação notarial que efectuaram com referência a um prédio urbano.

1.2 O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo e os Recorrentes apresentaram as alegações, que remataram com conclusões do seguinte teor:

«A) O Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, ao considerar os actos impugnados suficientemente fundamentados, errou no julgamento que fez, uma vez que, in casu, se exigiria da Administração Fiscal uma particular fundamentação, de molde a elucidar, devidamente, os impugnantes das razões das liquidações;

B) Justificavam-no o facto de os impugnantes não terem tido acréscimo patrimonial, em resultado da aquisição por usucapião e ainda a circunstância de a Administração Fiscal os reconhecer como proprietários do imóvel, para efeito de contribuição predial, não os reconhecendo, contudo, como proprietários para efeitos de tributação de Imposto de Selo;

C) Da escritura de justificação notarial não resultou qualquer transmissão de bens, pois o usucapiente não viu acrescido o seu património nem sucedeu nos direitos de um qualquer anterior titular de direitos de propriedade sob o imóvel em causa.

D) Ao tributar o acto de justificação notarial em causa, a Administração Fiscal busca extrair encargos económicos sobre os impugnantes de forma pouco clara e transparente, o que, no mínimo, levanta dúvidas sobre a existência do facto tributário objecto da presente impugnação, pelo que não pode deixar de constituir fundamento para a sua anulação, atento o disposto no art. 100.º, n.º 1, do CPPT.

E) O direito de liquidar os tributos objecto da presente impugnação há muito que caducou, atento o disposto na lei (art. 45.º da LGT) e o espaço de tempo decorrido desde a aquisição do prédio por usucapião;

F) Impunha-se à Administração Fiscal uma interpretação correctiva da norma do art. 1.º, n.º 3, alínea a) do CIS, no sentido de serem tributadas apenas as aquisições por usucapião, das quais resultasse acréscimo patrimonial efectivo na esfera jurídica do usucapiente, sob pena de violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade, da boa-fé e da justiça inscritos no art. 266.º, n.º 2, da CRP;

G) A norma contida na alínea a) do n.º 3 do art. 1.º, do Código do Imposto de Selo, ao ser interpretada em sentido amplo, como o fizeram os Serviços da Administração Fiscal, in casu, é inconstitucional, na medida em que não pode deixar de ser considerado o elemento económico resultante de acréscimo patrimonial, efectivo, na esfera jurídica dos sujeitos passivos;

H) As liquidações objecto da presente impugnação estão gravemente feridas de ilegalidade por ofensa de princípios da ordem jurídico-tributária, designadamente os da legalidade, da boa-fé, da justiça, consagrados no art. 55.º da LGT, da verdade material e da prevalência da substância sobre a forma, estabelecidos no art. 11.º, n.º 3 da LGT;

I) Em todo o caso, a manter-se a tributação sub judice, sempre deveria ser concedida ao impugnante, filho dos autores da liberalidade, isenção de Imposto de Selo, nos termos do art. 6.º, alínea e) do CIS;

J) Contudo, diferente foi a leitura que a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo fez dos factos submetidos a juízo, incorrendo em erro sobre os pressupostos em que baseou a sua decisão e, consequentemente, em erro de julgamento;

Termos em que e nos mais de direito, que V. Exa.s, doutamente, suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, com as legais consequências, assim se fazendo a habitual JUSTIÇA».

1.3 A Fazenda Pública não contra alegou.

1.4 Recebidos neste Supremo Tribunal Administrativo, os autos foram com vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral Adjunto proferiu parecer no sentido de que seja negado provimento ao recurso, com a seguinte fundamentação:

«[…]
3.1 Falta de fundamentação do acto tributário

Alegam os Recorrentes que o tribunal “a quo” não apreciou correctamente a questão do arguido vício de falta de fundamentação do acto tributário, uma vez que “não obtiveram qualquer acréscimo de rendimento ou de património em resultado da feitura da referida escritura de justificação notarial”, pelo que “são no mínimo insuficientes os fundamentos de facto e de direito que levaram a Administração Fiscal a liquidar o tributo”.
Na sentença recorrida considerou-se que «os argumentos expendidos pelos impugnantes evidenciam que compreenderam perfeitamente o sentido e as razões que determinaram o acto impugnado, embora não concordem com o mesmo e o coloquem em crise, pelo que ter-se-á de concluir que a fundamentação dos actos de liquidação em causa cumpriu a sua função instrumental”. E quanto aos elementos que constam do acto é apreensível a forma como foi determinada a matéria tributável tendo por base o valor patrimonial tributário do prédio, e a taxa constar da norma do Código de Imposto de Selo indicada.
E afigura-se-nos correcto tal entendimento, sendo certo que o mesmo não é posto em causa pelos Recorrentes nas suas alegações de recurso. Ao alegarem que não compreendem a tributação porque “não obtiveram qualquer acréscimo de rendimento ou de património”, os Recorrentes apenas manifestam a sua discordância quanto a essa tributação e não que os termos do acto tributário praticado pela administração tributária seja incoerente ou incompreensível.
Afigura-se-nos, assim, que a sentença recorrida fez um correcto enquadramento e apreciação desta questão.

3.2 Inexistência do facto tributário

Persistem os Recorrentes em pugnar pela irrelevância económica e jurídica do acto consubstanciado na outorga da escritura pública de justificação notarial, pretendendo que os seus efeitos se circunscrevam a um mero “reatar do trato sucessivo para efeitos de registo predial”, mas carecem de razão.
Com efeito, independentemente da situação de facto de domínio sobre a coisa ter perdurado durante um período de tempo bastante longo, certo é que a formalização jurídica de tal domínio ocorre com a celebração da escritura pública de justificação notarial, a qual constitui o título que confere a titularidade do imóvel motivo pelo qual a lei atribui a esse acto a relevância para efeitos de incidência em imposto de selo. E assim sendo carece de fundamento legal a argumentação dos Recorrentes.
E porque é assim, carece igualmente de relevância para este efeito o momento em que se iniciou a posse que originou a usucapião, como se entendeu no acórdão do STA de 09/07/2014 (recurso n.º 0269/14), no qual se deixou exarado que, «o aumento da capacidade contributiva que o legislador tributário entendeu ser de atender é aquele em que de forma mais segura e com contornos definidos se invoca a usucapião num acto público, como a escritura de justificação notarial» - (no mesmo sentido o acórdão de 26/11/2008, recurso n.º 0376/08).
Igualmente por este motivo carece de fundamento a invocada caducidade do direito de liquidação, já que este tem que se reportar à ocorrência do facto tributário e nos termos da lei - art. 5.º, alínea r), do Código de Imposto de Selo - a obrigação tributária constitui-se na data em que for celebrada a escritura de justificação notarial.
Entendemos, assim, que a sentença recorrida fez igualmente nesta parte uma correcta interpretação e aplicação da lei.

3.3 Inconstitucionalidade da alínea a) do n.º 3 do artigo 1.º do CIS na interpretação efectuada pelo tribunal “a quo”

Alegam os Recorrentes que “impunha-se à Administração Fiscal uma interpretação correctiva da norma do art. 1.º, n.º 3, alínea a) do CIS, no sentido de serem tributadas apenas as aquisições por usucapião, das quais resultasse acréscimo patrimonial efectivo na esfera jurídica do usucapiente, sob pena de inconstitucionalidade, por via interpretativa, do disposto na parte final da referida alínea a) do n.º 3 do art. 1.º do Código de Imposto de Selo, por ofensa dos princípios constitucionais da proporcionalidade, da boa-fé e da justiça, inscritos no art. 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa”.
Conforme se alcança do artigo 266.º, n.º 2, da CRP, os princípios ali consagrados são dirigidos à actuação da Administração Pública, o que resulta da inserção sistemática do mesmo normativo.
Ora, no caso concreto dos autos estamos perante um acto vinculado, sem margem de qualquer discricionariedade e que se impõe à Administração Fiscal. Por isso não faz sentido a arguição do referido vício de inconstitucionalidade.
Entendemos, assim, que é igualmente de improceder o recurso nesta parte.

3.4 Ilegalidade do acto de liquidação por ofensa dos princípios da legalidade, boa-fé e da justiça consagrados no artigo 55.º da Lei Geral Tributária

Assentam os Recorrentes o referido vício no argumento de que “da outorga da referida escritura de justificação notarial não ter resultado qualquer acréscimo patrimonial”.
Dispõe o artigo 55.º da LGT que «A administração tributária exerce as suas atribuições na prossecução do interesse público, de acordo com os princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da celeridade, no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários».
Ora, em face dos referidos princípios norteadores da actuação da Administração Fiscal não se alcança em que termos resulta a sua violação na prática do acto de liquidação impugnado, nem os Recorrentes esclarecem tal questão.
E sendo certo que a tributação em imposto de selo no caso concreto visa o acréscimo patrimonial resultante do ingresso do bem no património dos recorrentes, não se pode aceitar a sua asserção de que no caso concreto esse acréscimo patrimonial não se verificou. Com efeito, a celebração de escritura de justificação notarial consubstancia o reconhecimento, perante uma entidade pública, da verificação desse acréscimo patrimonial, ainda que os efeitos deste se tenham consolidado com o decurso do tempo.
Carece, assim, de base legal o invocado vício de ilegalidade do acto tributário.

3.5 Isenção de imposto de selo - alínea e) do artigo 6.º do CIS

Entendem por último os Recorrentes que a verificar-se o facto tributário e uma vez que o mesmo é reportado à data da celebração sempre deveria considerar-se que o Recorrente beneficia da isenção prevista na alínea e) do artigo 6.º do CIS, por ser filho dos autores da liberalidade, invocando para o efeito a doutrina do acórdão do STA de 20/02/2013, recurso n.º 01112/12.
Sucede que a referida questão não foi suscitada na 1.ª instância pelos Recorrentes, motivo pelo qual a sentença não se pronuncia sobre a mesma.
Ora é entendimento pacífico que os recursos “são específicos meios de impugnação de decisões judiciais, que visam modificar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova” (cfr. neste sentido os acórdãos do STA de 04/12/2008 e de 30/10/2008, recursos n.ºs 0840/08 e 0112/07, respectivamente). Por isso e em princípio não se pode apreciar questões que não tenham sido apreciadas na decisão impugnada, a não ser que se trate de questões de conhecimento oficioso.
Ora, a questão que vem colocada pelos Recorrentes não foi apreciada pela sentença recorrida nem é de conhecimento oficioso, motivo pelo qual não é passível de conhecimento em sede deste recurso.».

1.5 Foi dada vista aos Juízes Conselheiros adjuntos.

1.6 Cumpre apreciar e decidir.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra efectuou o julgamento da matéria de facto nos seguintes termos:

«Compulsados os autos e analisada a prova produzida, dão como provados, com interesse para a decisão, os seguintes factos:

1. Em 22.12.2003 o Impugnante marido entregou na então Repartição de Finanças do Concelho de Cantanhede Declaração Modelo 1 de IMI, assinalando como motivo “Prédio Melhorado/Modificado/Reconstruído”, com referência a prédio inscrito na matriz da ……… sob o artigo 416, mais declarando que o prédio possuía 30 anos;
Cfr. declaração Modelo 1 de IMI presente a fls. 64 dos autos.

2. Foi então atribuído o Artigo provisório de matriz P977 e fixado valor patrimonial do prédio referido no número anterior, no ano de 2004, em € 88.940,00;
Conforme se retira do documento comprovativo da declaração Modelo 1 de IMI e da ficha de avaliação n.º 53873 do Serviço de Finanças de Cantanhede, a fls. 63/63 e 58/59 dos autos, respectivamente.

3. Levado ao conhecimento dos ora Impugnantes por correio registado com aviso de recepção recepcionado em 07.03.2005;
Cfr. cópia dos AR’s a fls. 71 dos autos, com indicação de Ficha n.º 000053873.

4. No dia 29.06.2005 foi outorgada no Cartório Notarial de Cantanhede sito no Largo Cândido dos Reis, salas 4/5, em Cantanhede, do notário …………, escritura de justificação em que constam como primeiros outorgantes os ora Impugnantes e como segundos outorgantes C…………, D………… e E…………, na qual se pode ler, entre o mais o seguinte: «...
Disseram os primeiros outorgantes:
Que, com exclusão de outrem, são donos e legítimos possuidores do seguinte imóvel:
Prédio urbano composto de casa de habitação de rés do chão, primeiro andar e quintal, na Rua ………, no lugar de ………, freguesia de ………, concelho de Cantanhede, com a área total de quinhentos e oitenta e um metros quadrados, sendo de área coberta de duzentos e trinta e seis metros quadrados, dependência com a área de sessenta metros quadrados e quintal com a área de duzentos e oitenta e cinco metros quadrados, a confrontar do norte com ………, do sul com ………, do nascente com estrada e do poente com ………, não descrito na Conservatória do Registo Predial de Cantanhede, omisso na respectiva matriz tendo-lhe sido atribuído o artigo provisório P 977, com o valor patrimonial igual ao atribuído de oitenta e oito mil novecentos e quarenta euros, prédio este que se encontrava inscrito na respectiva matriz predial urbana da mesma freguesia da ……… sob o artigo 416;
Que o identificado prédio, que resultou de melhoramentos efectuados, se encontra inscrito na matriz em nome do justificante, lhes pertence por lhe ter sido verbalmente doado, por seus pais, F………… e mulher G…………, residentes que foram no mencionado lugar de ………, cerca do ano de mil novecentos e sessenta, sem que, todavia, tenha sido lavrada a competente escritura, tendo desde então até hoje desfrutado o dito imóvel como coisa própria, autónoma e exclusiva, dele retirando as vantagens de que é susceptível, nele efectuando as obras necessárias, pagando os respectivos impostos e nele praticando os actos materiais correspondente ao direito de propriedade plena na convicção de não lesar o direito de outrem, pelo que o possui em nome próprio há mais de vinte anos, sem a menor oposição de quem quer que seja desde o seu início, posse que sempre exerceram sem interrupção e ostensivamente, com o conhecimento e acatamento de toda gente, sendo, por isso, uma posse pública, pacífica e contínua, pelo que o adquiriram por usucapião, não havendo, todavia, dado o modo de aquisição, documento que lhe permita fazer a prova do seu direito de propriedade perfeita.
Declararam, seguidamente, os segundos outorgantes:
Que confirmam as declarações que antecedem, por serem inteiramente verdadeiras»
cfr. doc. de fls. 53-57 dos autos, igualmente a fls. 7 a 11 do Processo Administrativo Tributário em apenso — Cópia de certidão do cartório Notarial de Cantanhede, datada de 08.08.2005, relativa à visada escritura de justificação.

5. Em 08.08.2005 foi participada ao Serviço de Finanças de Cantanhede a justificação notarial referida no ponto anterior;
Cfr. declarações Modelo 1 de IS, participações n.º 164800 e 164807, a fls. 1 a 6 do PAT em apenso.

6. Em 30.05.2006 foi emitida a nota de liquidação n.º 140235 em nome do ora Impugnante marido, com referência à participação n.º 164800 e a nota de liquidação n.º 140230 em nome da ora Impugnante mulher, com referência à participação n.º 164807, ambas no valor de € 4.447,00 e referentes a Imposto do Selo, por Aquisição por Usucapião;
Cfr. Demonstração da Liquidação – Aquisição por Usucapião, a fls. 17 e 35 do PAT em apenso.

7. Em 27.12.2006 os ora Impugnantes apresentaram, cada um, reclamação graciosa das liquidações emitidas em seu nome referidas no número anterior, em que peticionaram a anulação das visadas liquidações, por falta de fundamentação dos actos reclamados e por não ter adquirido o prédio em causa por usucapião, uma vez que «a escritura de justificação notarial que celebrou, conjuntamente com a sua esposa, destinou-se unicamente a fazer prova, perante a Conservatória do Registo Predial, do direito de propriedade que já detinham»;
Cfr. carimbos de entrada do SF de Cantanhede e documentos em que os mesmos foram apostos, a fls. 13 e ss. e 31 e ss. do PAT em apenso.

8. Sobre as reclamações graciosas referidas no número anterior foram elaborados projectos de decisões de indeferimento, de igual conteúdo, sobre informação prestada em 11.01.2007 por técnico administrativo tributário na qual se pode ler, entre o mais, o seguinte:

«III - ANÁLISE DO PEDIDO
III-A) - DE FACTO:
Em 29/06/2005, foi celebrada no Cartório Notarial de Coimbra a cargo do notário Lic. ………… uma escritura de Justificação, tendo como primeiro outorgante A………… e mulher B…………, actuando na qualidade de usucapientes do prédio Urbano sob o artigo n.º P977 da Freguesia de ………, concelho de Cantanhede;
Em 08/08/2005 foi entregue neste Serviço de Finanças a participação de Imposto de Selo relativo à referida aquisição à qual foi atribuído o n.º 164807, tendo sido, depois de liquidado pelos Serviços (Liquidação n.º 140230 de 30/05/2006), emitida a respectiva nota de cobrança tendente ao pagamento do imposto devido.
Em 27/12/2006 vem apresentar a presente petição a solicitar a anulação da referida liquidação.
II-B) - DE DIREITO:
Pelo disposto no artigo 1.º do Código do Imposto de Selo (CIS) “o imposto de selo incide sobre todos os actos, contratos, documentos, títulos, livros, papéis e outros factos previstos na tabela geral”..., sendo “consideradas transmissões gratuitas designadamente as que tenham por objecto o direito de propriedade ou figuras parcelares desse direito sobre bens imóveis, incluindo a aquisição por usucapião”.
Refere a alínea b) do n.º do artigo 2.º do CIS, que “nas transmissões gratuitas são sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares para quem se transmitam os bens” e “nas demais transmissões gratuitas, incluindo as aquisições por usucapião, o imposto é devido pelos respectivos beneficiários”.
Conforme a alínea r) do n.º 5 do CIS “a obrigação tributária considera-se constituída, nas aquisições por usucapião, na data em que transitar em julgado a acção de justificação judicial ou for celebrada a escritura de justificação notarial”.
De acordo com o artigo 9.º, 25.º e 26.º do CIS, “o valor tributável do imposto de selo é o que resulta da Tabela Geral...”, sendo “a liquidação do imposto devido... promovida pelo serviço de Finanças da residência... do usucapiente” sendo, “... o beneficiário de qualquer transmissão gratuita sujeita a imposto obrigado a participar ao serviço de finanças competente a justificação judicial ou notarial da aquisição por usucapião...”
Refere ainda o artigo 43.º e 46.º do CIS que “o imposto do selo é pago mediante documento de cobrança de modelo oficial” e, “ é extraído em nome das pessoas para quem se transmitirem os bens”.
IV-CONCLUSÃO
Em face do exposto e considerando por um lado que o Imposto do Selo liquidado ao reclamante pela aquisição por usucapião do bem supra identificado se mostra devido e, por outro, não se vislumbrando quaisquer factos susceptíveis de ilegalidade, parece-me que o pedido deverá ser INDEFERIDO na sua totalidade.
Superiormente bem se apreciará e decidirá»;
Cfr. documentos de fls. 22-24 e 40-42 do PAT em apenso.

9. Os Reclamantes não exercerem o seu direito de audição, em referência aos projectos de decisão referidos no número anterior;
Conforme decorre da análise dos processos de reclamação graciosa em apenso, bem como ao conteúdo das informações a fls. 27 e 45 dos PAT em apenso.

10. Em 22.02.2007 o Chefe do Serviço de Finanças de Cantanhede proferiu o seguinte despacho em cada um dos processos de reclamação graciosa originado pelas reclamações referidas em 7.: «Considerando que o reclamante foi notificado, para exercer o direito de audição conforme o disposto no artigo 60.º da Lei Geral Tributária, do projecto de decisão datado de 11/01/2007, conforme Aviso de Recepção assinado em 01/02/2007. Considerando que o prazo de dez dias concedidos para o exercício de tal faculdade expirou já no dia 12/02/2007 e que o reclamante não usou a faculdade aludida dentro do prazo antes mencionado, mantenho o oportuno projecto de decisão.
Notifique-se o interessado»;
Cfr. despachos a fls. 27 e 46 do PAT em apenso.

11. As decisões referidas no número anterior foram enviadas por correio registado em 23.02.2007 aos ora Impugnantes e recepcionadas na sua residência, por terceira pessoa, em 26.02.2007;
Cfr. ofícios, talões de registo e AR’s respectivos, a fls. 29 e 29 verso e 47 e 47 verso do PAT em apenso».


*

2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR

Na sequência de uma escritura notarial de justificação a AT liquidou IS a cada um dos justificantes.
Os sujeitos passivos reagiram contra essas liquidações, primeiro graciosamente e, na sequência do indeferimento das reclamações graciosas, mediante impugnação judicial, considerando que aqueles actos enfermam de diversas ilegalidades.
A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra julgou a impugnação judicial improcedente e os Impugnantes vêm perante este Supremo Tribunal Administrativo reiterar a argumentação anteriormente aduzida na petição inicial (O que, como este Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a dizer desde há muito, constitui um modo aceitável de exprimir discordância com a sentença recorrida. Por todos, vide o seguinte acórdão desta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 2 de Fevereiro de 2000, proferido no recurso com o n.º 22.418, publicado no Apêndice ao Diário da República de 21 de Novembro de 2002 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2000/32212.pdf), págs. 275 a 278.) e aditar um outro, qual seja o de que, a manter-se a tributação, então deverá reconhecer-se ao Impugnante marido a isenção prevista na alínea e) do art. 6.º do CIS, uma vez que recebeu o prédio dos seus pais.
Assim, a questão que cumpre apreciar e decidir é a de saber se a sentença incorreu em erro de julgamento ao considerar que as liquidações não enfermavam dos vícios que lhes eram imputadas e que são, pela ordem por que foram conhecidos pela sentença recorrida, os seguintes: inexistência de facto tributário, caducidade do direito à liquidação, inconstitucionalidade do art. 1.º, n.º 3, alínea a), do CIS, falta de fundamentação. Na negativa, haverá ainda que indagar se pode conhecer-se em sede de recurso da invocada isenção ao abrigo da alínea e) do art. 6.º do CIS e, se sim, se pode julgar-se a impugnação judicial procedente com esse fundamento.

2.2.2 DA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO

Os Recorrentes insistem na tese da insuficiência – legalmente equiparada à falta [cfr. art. 152.º, n.º 3, do Código do Procedimento Administrativo (CPA)] – de fundamentação da liquidação impugnada.
Sustentam que a sentença não fez correcto julgamento no que se refere a este vício, que invocaram na petição inicial com a alegação de que se impunha que a AT tivesse aduzido «uma fundamentação mais exigente, mais elaborada, de molde a que os ora impugnantes entendessem a razão de ser da tributação».
Como bem salienta o Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal, a alegação expendida pelos Recorrentes, de que se impunha uma «particular fundamentação» por «os impugnantes não terem tido acréscimo patrimonial, em resultado da aquisição por usucapião» e ainda em face da «circunstância de a Administração Fiscal os reconhecer como proprietários do imóvel, para efeito de contribuição predial, não os reconhecendo, contudo, como proprietários para efeitos de tributação de Imposto de Selo» [cfr. conclusões A) e B)], não se reconduz ao vício formal de falta de fundamentação, mas antes ao erro de julgamento. Na verdade, essa alegação não se refere à falta de externação dos elementos de facto e de direito que suportaram a liquidação, a impedir o conhecimento dos motivos por que a AT a efectuou, mas antes à discordância quanto à própria tributação: os Recorrentes entendem que não há lugar à tributação em IS, por um lado, porque não houve acréscimo algum do seu património e, por outro lado, porque a AT já anteriormente os reconhecia como proprietários do prédio, para efeitos de tributação sobre o património. O que significa que está em causa, não qualquer vício de falta de fundamentação, mas antes o vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito.
Em todo o caso, sempre diremos, com a sentença recorrida, que bem decidiu a questão, que os elementos de facto e de direito dados a conhecer pela AT quando da prática do acto impugnado permitem aos seus destinatários – os ora Recorrentes – ficar a conhecer os motivos por que foi efectuada a liquidação e o modo como foi determinada a matéria tributável. Consequentemente, a AT cumpriu com o dever de fundamentar os actos de liquidação impugnados de harmonia com o princípio plasmado no art. 268.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e acolhido no art. 152.º (anterior 125.º) do CPA e no art. 77.º da Lei Geral Tributária (LGT).
Como a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem vindo a dizer, o acto estará suficientemente fundamentado quando o administrado, colocado na posição de um destinatário normal – o bonus pater familiae de que fala o art. 487.º, n.º 2, do Código Civil (CC) – possa ficar a conhecer as razões factuais e jurídicas que estão na sua génese, de modo a permitir-lhe optar, de forma consciente e esclarecida, entre a aceitação do acto ou o accionamento dos meios legais de reacção contra o mesmo, e de modo que, em caso de impugnação judicial, o tribunal possa também exercer o efectivo controle da legalidade do acto, aferindo o seu acerto jurídico em face da sua fundamentação contextual.
Aliás, da petição inicial resulta inequívoco que os ora Recorrentes bem compreenderam os fundamentos fácticos da liquidação, assim como as regras de direito em que a AT alicerçou a liquidação impugnada. Não pode confundir-se a discordância quanto à tributação com a não externação pela AT dos motivos por que o acto tributário foi praticado ou a insuficiência dessa motivação.
O recurso não pode, pois, ser provido com fundamento em erro de julgamento relativamente à invocada falta de fundamentação.

2.2.3 DA INEXISTÊNCIA DE FACTO TRIBUTÁRIO

Os Recorrentes sustentam que a sentença incorreu também em erro de julgamento na medida em que não atendeu a invocada ilegalidade da liquidação por inexistência de facto tributário, vício que invocaram na petição inicial alegando que a escritura notarial de justificação se limitou a formalizar uma situação de facto e de direito pré-existente. A seu ver, a escritura pública de justificação notarial limitou-se a proporcionar o “reatar do trato sucessivo para efeitos de registo predial”, não assumindo qualquer outro relevo económico e jurídico, na medida em que os Recorrentes já eram os proprietários do prédio, que tinham adquirido em momento prévio por usucapião, motivo por que dessa escritura «não resultou qualquer transmissão de bens, pois o usucapiente não viu acrescido o seu património nem sucedeu nos direitos de um qualquer anterior titular de direitos de propriedade sob o imóvel em causa», sendo que, com a tributação impugnada, «a Administração Fiscal busca extrair encargos económicos sobre os impugnantes de forma pouco clara e transparente, o que, no mínimo, levanta dúvidas sobre a existência do facto tributário objecto da presente impugnação, pelo que não pode deixar de constituir fundamento para a sua anulação, atento o disposto no art. 100.º, n.º 1, do CPPT» [cfr. conclusões C) e D)].
Também aqui, sempre salvo o devido respeito, os Recorrentes não têm razão.
Para efeito da tributação em IS apenas releva a celebração da escritura de justificação notarial. Como bem salientou o Procurador-Geral Adjunto, «independentemente da situação de facto de domínio sobre a coisa ter perdurado durante um período de tempo bastante longo, certo é que a formalização jurídica de tal domínio ocorre com a celebração da escritura pública de justificação notarial, a qual constitui o título que confere a titularidade do imóvel motivo pelo qual a lei atribui a esse acto a relevância para efeitos de incidência em imposto de selo».
Vejamos:
Antes do mais, convém ter bem presente que na escritura de justificação foi invocada a usucapião como causa de aquisição (originária) e, contrariamente ao que alegam os Recorrentes, nela não se referiu que a justificação se destinava ao reatamento do trato sucessivo, tendo em vista suprir a falta de um título respeitante a uma transmissão derivada intermédia, apesar de se referir a inexistência de documento que permitisse a prova da propriedade.
Depois, há que ter também presente o disposto no Código do IS (CIS).
Nos termos do art. 1.º, n.º 1, do CIS, «[o] imposto de selo incide sobre todos os actos, contratos, documentos, títulos, livros, papéis e outros factos previstos na tabela geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens», sendo que, nos termos da alínea a) do n.º 3 do mesmo artigo são consideradas transmissões gratuitas, para além do mais, as que tenham por objecto o «[d]ireito de propriedade ou figuras parcelares desse direito sobre bens imóveis, incluindo a aquisição por usucapião».
No art. 2.º, n.º 2, o CIS refere que «[n]as transmissões gratuitas são sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares para quem se transmitam os bens» e na alínea b) do mesmo artigo e número que «[n]as demais transmissões gratuitas [que não as sucessões por morte, referidas no número anterior], incluindo as aquisições por usucapião, o imposto é devido pelos respectivos beneficiários».
Na alínea r) do art. 5.º do CIS, diz-se que «[a] obrigação tributária considera-se constituída, nas aquisições por usucapião, na data em que transitar em julgado a acção de justificação judicial ou for celebrada a escritura de justificação notarial».
Ou seja, nos termos do CIS, é devido imposto pela aquisição por usucapião, que o citado art. 2.º, n.º 2, alínea b), equipara para efeitos de tributação às transmissões gratuitas, sendo que a obrigação tributária, no caso de ter sido celebrada escritura de justificação notarial, se considera constituída na data da celebração da escritura.
É certo que os Recorrentes alegam que adquiriram o prédio por usucapião há mais de vinte anos e que a escritura de justificação visou apenas a prova, perante a Conservatória do Registo Predial, do direito de propriedade que já detinham.
Assim, sustentam que «[d]a escritura de justificação notarial não resultou qualquer transmissão de bens, pois o usucapiente não sucedeu nos direitos de um qualquer titular de direitos de propriedade sobre o prédio em questão».
Há, no entanto, que ter presente que, como este Supremo Tribunal tem vindo a dizer (Vide, entre outros, os seguintes acórdãos:
- de 14 de Julho de 2010, proferido no processo n.º 1073/09, publicado no Apêndice ao Diário da República de 1 de Abril de 2011 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2010/32230.pdf), págs. 1235 a 1241, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/63b52f469299da5e80257767004e478a [apesar de a tese que nele vingou não ter sido acolhida pelo Pleno – cfr. o acórdão infra referido de 2 de Maio de 2012, proferido no processo n.º 746/11 –, os considerandos relativamente à tributação em IS na sequência de escritura de justificação em que foi invocada a usucapião não foram postos em causa e são entendimento unânime deste Supremo Tribunal);
- de 13 de Outubro de 2010, proferido no processo n.º 431/10, publicado no Apêndice ao Diário da República de 26 de Maio de 2011 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2010/32240.pdf), págs. 1555 a 1558, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/349c68b5713d55f4802577c20035c117.), a usucapião, que constitui uma forma de aquisição originária (cfr. arts. 1287.º e segs. do CC), é, para efeitos fiscais, considerada – melhor dizendo, ficcionada (Ficção jurídica é uma técnica legislativa pela qual são equiparadas juridicamente duas realidades que, de facto, são diversas. O legislador procede à «assimilação fictícia de realidades factuais diferentes, para efeito de as sujeitar ao mesmo regime jurídico» (Cfr. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, pág. 108).) – como uma transmissão gratuita de bens imóveis, que ocorre no momento do trânsito em julgado da acção de justificação judicial ou em que é celebrada a escritura de justificação notarial [cfr. a citada alínea r) do art. 5.º do CIS].
Assim, para efeitos do nascimento da obrigação tributária, não releva o momento da aquisição do direito de propriedade, pois que a obrigação tributária se constitui com a escritura de justificação notarial, incidindo o IS sobre o acto de aquisição por usucapião.
Note-se que a usucapião constitui uma forma de aquisição originária do direito correspondente à posse exercida – e não uma forma de transmissão –, uma forma de aquisição de direitos que se funda na posse («poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real», na definição do art. 1251.º do CC), quando esta reveste certas características e desde que se mostrem verificados alguns requisitos, relativos, nomeadamente, ao seu tempo de duração (cfr. art. 1287.º do CC), sendo certo que a usucapião tem sempre na sua base uma situação possessória e essa posse pode ter sido constituída ex novo pelo sujeito a quem a usucapião aproveita ou pode derivar da transmissão, a favor desse sujeito, de posse anterior. A invocação desta posse apta à usucapião, tanto pode ser feita judicial como extrajudicialmente (como no presente caso aconteceu) e, uma vez invocada, a usucapião actua retroactivamente, tendo-se a aquisição como operada desde o início da posse [arts. 1288.º e 1317.º, alínea c), do CC]. E tratando-se de justificação, só no caso de ser invocada a usucapião como causa de alguma das aquisições é que pode haver lugar ao pagamento de imposto de selo; tal não acontecerá, por exemplo, no caso de o processo de justificação se destinar ao reatamento do trato sucessivo tendo em vista suprir a falta de um título relativo a uma transmissão derivada intermédia.
Só que não é esse o caso dos autos. Porque foi pela verificação de todos os requisitos da usucapião na esfera dos ora Recorrentes que se deu por justificada extrajudicialmente a aquisição originária do direito de propriedade, deve concluir-se que não estamos perante caso de justificação de transmissão de direitos anteriores (independentemente de também ter sido referido na escritura de justificação que o prédio foi «verbalmente doado» ao Recorrente marido pelos seus pais).
Assim, e em conclusão, permitimo-nos aqui transcrever o que ficou dito no acórdão do Pleno desta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 2 de Maio de 2012 (Proferido no processo n.º 746/11, publicado no Apêndice ao Diário da República de 18 de Fevereiro de 2013 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2012/32420.pdf), págs. 59 a 70, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/9afdcb3811778f5b802579fa0053667f.): «Quando o legislador veio, no artigo 1.º, n.º 3, do CIS, dizer que para efeitos da verba 1.2 da Tabela Geral são consideradas transmissões gratuitas, designadamente a aquisição por usucapião, não ignorava que a usucapião não consubstancia uma aquisição translativa da propriedade, nem quis alterar essa natureza, visando apenas alargar a base de incidência, equiparando a usucapião às transmissões gratuitas, o que equivale a uma ficção legal para efeitos fiscais».
Do exposto resulta que não procede a invocação de inexistência de facto tributário, o qual, contrariamente ao que supõem os Recorrentes, não exige uma efectiva transmissão. O legislador, dentro do âmbito dos poderes que lhe cabem, entendeu, para efeitos de incidência do IS, equiparar a aquisição por usucapião à transmissão gratuita de bens imóveis.
Não pode, pois, sustentar-se a inexistência de facto tributário, nem sequer qualquer dúvida a esse respeito. Em todo o caso, sempre será de recordar, em face da invocação do art. 100.º do CPPT pelos Recorrentes, que as dúvidas a que se refere esse preceito legal referem-se às dúvidas quanto aos factos que permaneçam mesmo depois de desenvolvida a pertinente actividade instrutória a que a AT está obrigada; nesse caso, no n.º 1 daquele artigo estabelece-se o princípio de que as dúvidas sobre a existência e quantificação do facto tributário são valoradas a favor do contribuinte, conduzindo à anulação do acto impugnado.
Não podem acobertar-se à dúvida aí prevista as que se refiram à aplicação do direito, a questões jurídicas, uma vez que, no campo de aplicação do direito, o tribunal não pode ficar com dúvidas, tendo o dever de julgar mesmo em casos de falta ou obscuridade da lei (cfr. art. 8.º, n.º 1, do CC). Aliás, a situação, tal como a configuram os Recorrentes, nem é de dúvidas quanto à solução de direito, mas de discordância quanto à solução de direito consagrada na norma de incidência objectiva.
O recurso também não pode ser provido com fundamento no erro de julgamento quanto à invocada inexistência de facto tributário.

2.2.4 DA CADUCIDADE DO DIREITO DE LIQUIDAR

Os Recorrentes sustentam também que a sentença fez errado julgamento quanto à invocada caducidade do direito à liquidação, uma vez que «[o] direito de liquidar os tributos objecto da presente impugnação há muito que caducou, atento o disposto na lei (art. 45.º da LGT) e o espaço de tempo decorrido desde a aquisição do prédio por usucapião» [cfr. conclusão E)]. Isto porque, na sua tese, a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio se terá dado, por usucapião, em 1960, ano do início da posse sobre o mesmo; assim, atento o disposto no art. 45.º da LGT, há muito estava esgotado o prazo para a AT liquidar o imposto.
É certo que a usucapião actua retroactivamente, tendo-se a aquisição como operada desde o início da posse [arts. 1288.º e 1317.º, alínea c), do CC]. Mas não é o momento em que se considera adquirido o direito de propriedade que releva para efeitos do nascimento da obrigação tributária. Como deixámos já dito, para efeitos do nascimento da obrigação tributária o que releva é a data da celebração da escritura de justificação notarial [al. r) do art. 5.º do CIS].
Ou seja, o facto tributário, tal como a lei o configura, ocorre com a celebração da escritura notarial, que ocorreu em 2005. Assim, porque as liquidações impugnadas foram efectuadas em 2006, nenhuma dúvida se coloca relativamente ao respeito pelo prazo de caducidade do direito à liquidação.
O recurso também não pode ser provido com este fundamento.

2.2.5 DA INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.º, N.º 3, ALÍNEA A), DO CIS SUBJACENTE À LIQUIDAÇÃO IMPUGNADA E DA ILEGALIDADE DA MESMA

Alegam os Recorrentes que «impunha-se à Administração Fiscal uma interpretação correctiva da norma do art. 1.º, n.º 3, alínea a) do CIS, no sentido de serem tributadas apenas as aquisições por usucapião, das quais resultasse acréscimo patrimonial efectivo na esfera jurídica do usucapiente, sob pena de inconstitucionalidade, por via interpretativa, do disposto na parte final da referida alínea a) do n.º 3 do art. 1.º do Código de Imposto de Selo, por ofensa dos princípios constitucionais da proporcionalidade, da boa-fé e da justiça, inscritos no art. 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa» [cfr. conclusões F) a G)].
Desde logo, cumpre ter presente que não compete à AT proceder à interpretação correctiva da lei que lhe cumpre aplicar, a menos que esteja segura de que o legislador falhou por completo na passagem a escrito da sua intenção, sendo sempre necessário encontrar na letra da lei uma “correspondência mínima” com o sentido adoptado, como resulta do disposto no n.º 2 do art. 9.º do CC (A letra da lei, não sendo o único elemento a considerar na tarefa hermenêutica, é o que constitui o seu ponto de partida e «[c]omo tal cabe-lhe desde logo uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer “correspondência” ou ressonância nas palavras da lei» (J. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, pág. 182). O mesmo Autor, na pág. 189, explicita: «A letra (o enunciado linguístico) é, assim o ponto de partida. Mas não só, pois exerce também a função de um limite, nos termos do art. 9.º, n.º 2: não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) “que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”. Pode ter de proceder-se a uma interpretação extensiva ou restritiva, ou até porventura a uma interpretação correctiva, se a fórmula verbal foi sumamente infeliz, a ponto de ter falhado completamente o alvo. Mas, ainda neste último caso, será necessário que do texto “falhado” se colha pelo menos indirectamente uma alusão àquele sentido que o intérprete venha a acolher como resultado da interpretação».). Ora, não encontramos na letra da lei o mínimo de correspondência verbal que possa sustentar a tese dos Recorrentes.
Seja como for, e tal como bem salientou a Juíza do Tribunal a quo, não se compreende a alegação de que não houve acréscimo patrimonial na esfera jurídica dos ora Recorrentes. A usucapião constitui inegavelmente uma forma de aquisição de direitos, no caso do direito de propriedade. E nem faz sentido alegar que essa aquisição ocorreu muito antes de celebrada a escritura de justificação notarial. É que, como ficou já dito, se é assim para efeitos civis [cfr. os arts. 1288.º e 1317.º, alínea c), do CC art. do CC], para efeitos fiscais o legislador entendeu relevar apenas o momento da celebração da escritura de justificação notarial [al. r) do art. 5.º do CIS].
O facto de o legislador ter ficcionado que a aquisição por usucapião constituía transmissão para efeitos de tributação em IS bem se compreende por razões que se prendem com a necessidade de prevenir e combater a fraude fiscal, não se afigurando que a fixação do momento da constituição da obrigação tributária no momento da celebração da escritura – momento em que há o reconhecimento perante autoridade pública do acréscimo patrimonial – surja como uma imposição desproporcionada.
Assim, a interpretação do art. 1.º, n.º 3, alínea a), do CIS, efectuada pela AT e subjacente às liquidações impugnadas, e que foi também subscrita pela Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra e por este Supremo Tribunal Administrativo, não se pode ter por violadora de nenhum dos princípios constitucionais invocados.
Por outro lado, como bem salientou o Procurador-Geral Adjunto, os princípios consagrados no n.º 2 do art. 266.º da CRP são dirigidos à actuação da Administração Pública, como resulta da inserção sistemática do mesmo normativo.
Ora, no caso concreto dos autos estamos perante um acto vinculado, sem margem de qualquer discricionariedade e que se impõe à AT. Por isso não faz sentido a arguição do referido vício de inconstitucionalidade, sendo certo que os Recorrentes também não consubstanciaram a violação dos princípios constitucionais que consideram violados.
A nosso ver, o recurso também não pode ser provido com este fundamento.

2.2.6 DA ISENÇÃO PREVISTA NO ART. 6.º, ALÍNEA E), DO CIS

Finalmente, alegam os Recorrentes, a título subsidiário – i.e., para o caso de se entender que há lugar à tributação em IS – que haverá de reconhecer-se que o Recorrente marido goza da isenção prevista no art. 6.º, alínea e), do CIS, por «ser filho dos autores da liberalidade» [cfr. conclusão I)]. Para o efeito, invocam «a doutrina do acórdão do STA de 20/02/2013, recurso n.º 01112/12».
A tese sustentada pelos Recorrentes é a que foi seguida pelo acórdão do Pleno desta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de 2 de Maio de 2012, proferido no processo n.º 746/11 (Ver nota anterior.), que, por maioria (O acórdão de conta com 2 votos de vencido.), entendeu que «[o] art. 6.º, alínea e), do CIS, ao isentar de imposto de selo o cônjuge ou unido de facto, descendentes e ascendentes, remetendo para as transmissões gratuitas sujeitas à verba 1.2 da tabela geral de que são beneficiários, significa que por mera interpretação declarativa se chega ao resultado de incluir a usucapião nas “transmissões gratuitas” para efeitos da referida isenção».
O acórdão invocado pelos Recorrentes (De 20 de Fevereiro de 2013, proferido no processo n.º 1112/12, publicado no Apêndice ao Diário da República de 11 de Março de 2014 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2013/32210.pdf), págs. 897 a 905, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/1fbe4a97d21bdbc380257b2b004b07a5.) filia-se nessa tese, remetendo para a fundamentação expendida no citado aresto do Pleno.
Mas, não há agora que tomar partido nessa querela, pois, antes do mais, há que averiguar se, como sustenta o Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal Administrativo, se trata de questão nova, isto é, de questão que, não sendo do conhecimento oficioso, não pode ser conhecida pelo tribunal ad quem na medida em que não foi oportunamente suscitada perante o tribunal a quo.
Entendemos que tem razão o Procurador-Geral Adjunto. Na verdade, o recurso jurisdicional visa apreciar a correcção das decisões dos tribunais de hierarquia inferior, reapreciando-as – visando anulá-las ou alterá-las com fundamento em vício de forma (nulidade) ou de fundo (erro de julgamento) – e não decidir questões que, podendo e devendo ter sido suscitadas antes, o não foram (Neste sentido, entre muitos outros, os seguintes acórdãos desta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 1 de Outubro de 2014, proferido no processo n.º 466/14, publicado no Apêndice ao Diário da República de 15 de Janeiro de 2016 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2014/32240.pdf), págs. 3083 a 3086, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/c0c8d6de0bfe5fc180257d6600538b57;
- de 5 de Novembro de 2014, proferido no processo n.º 1508/12, publicado no
Apêndice ao Diário da República de 15 de Janeiro de 2016 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2014/32240.pdf), págs. 3709 a 3713, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/a3886f1588995f5f80257d8e00337760;
- de 27 de Maio de 2015, proferido no processo n.º 328/14, publicado no
Apêndice ao Diário da República de 21 de Setembro de 2016 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2015/32220.pdf), págs. 1944 a 1950, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/581f423890da820c80257e59003ec1e1.).
Assim, atenta a função que cabe aos recursos, atento o facto de a questão da eventual isenção do Recorrente marido ao abrigo da alínea e) do art. 6.º do CIS nunca ter sido suscitada antes das alegações de recurso e porque não é questão do conhecimento oficioso, concluímos que o conhecimento da mesma se acha subtraído à jurisdição deste Supremo Tribunal Administrativo no âmbito do presente recurso.

2.2.7 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - Embora sendo uma forma de aquisição originária (cfr. arts. 1287.º e segs. do CC), a usucapião é, para efeitos de incidência do IS, considerada (ficcionada) como uma transmissão gratuita de bens imóveis [cfr. arts. 1.º, n.ºs 1 e 3.º, alínea), e 2.º, n.º 2, alínea b), do CIS], que ocorre, no caso de escritura de justificação notarial, no momento em que for celebrada a escritura [cfr. a alínea r) do art. 5.º do CIS].
II - Essa ficção, que se impõe por razões de prevenção e combate à fraude, não se afigura como desproporcionada, sendo que apesar dos efeitos civis da usucapião retroagirem à data do início da posse, a fixação do nascimento da obrigação tributária na data da celebração da escritura não contende com os princípios constitucionais que devem presidir à tributação.
III - Porque os recursos jurisdicionais são específicos meios de impugnação de decisões judiciais, que visam modificar as decisões recorridas, e não criar decisões sobre matéria nova, não se pode, em regra, neles tratar de questões que não tenham sido apreciadas pela decisão impugnada, salvo questões novas de conhecimento oficioso e não decididas com trânsito em julgado.


* * *

3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em negar provimento ao recurso.

Custas pelos Recorrentes.


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Lisboa, 12 de Outubro de 2016. – Francisco Rothes (relator) – Aragão SeiaCasimiro Gonçalves.