Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0328/18
Data do Acordão:05/03/2018
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:GARANTIA
PENHOR
AVALIAÇÃO
NULIDADE DE SENTENÇA
Sumário:I - Improcede a invocação de nulidade se a arguida falta de fundamentação de direito se refere, não à ratio decidendi da sentença, mas a considerandos aí aduzidos como um obiter dictum, como «uma excrescência em relação ao silogismo judiciário que motivou e estruturou a decisão», na impressiva expressão que este Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a usar.
II - Cumpre à AT, perante o caso concreto, averiguar da idoneidade da garantia oferecida em ordem à suspensão da execução fiscal, idoneidade que deve aferir-se pela susceptibilidade de assegurar o pagamento da dívida exequenda e do acrescido, caso seja necessário executar a garantia (arts. 169.º, 199.º e 217.º, do CPPT, e art. 52.º, da LGT).
III - A avaliação das acções de uma sociedade a dar em penhor em ordem à prestação de garantia na execução fiscal há que aplicar o critério legal de avaliação prescrito pelo art. 199.º-A do CPPT (aditado pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, Lei do Orçamento do Estado para 2016).
Nº Convencional:JSTA000P23237
Nº do Documento:SA2201805030328
Data de Entrada:03/22/2018
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A..., SGPS, SA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da sentença proferida no processo de reclamação de actos do órgão de execução fiscal com o n.º 1933/17.0BEPRT

1. RELATÓRIO

1.1 A Representante da Fazenda Pública junto do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (adiante Recorrente) recorre para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença por que aquele Tribunal, julgando procedente a reclamação deduzida pela sociedade denominada “A……………, S.G.P.S., S.A.” (adiante Recorrida) ao abrigo dos arts. 276.º e 278.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), anulou a decisão do órgão da administração tributária que lhe ordenou o reforço da prestação de garantia após a reavaliação das acções dadas em penhor.

1.2 Com o requerimento de interposição do recurso, a Recorrente apresentou as respectivas alegações, que resumiu em conclusões do seguinte teor:

«1- Vem o presente recurso interposto da douta sentença de fls. que julgou totalmente procedente a reclamação deduzida no PEF 338720051068610, anulando, em consequência, o despacho reclamado e condenou a Fazenda Pública na totalidade das custas processuais.

2- A Fazenda Pública não se conforma com tal decisão, considerando que a mesma padece de erro de julgamento em matéria de direito, devendo, por isso, ser anulada.

3- Com efeito, julgou a douta sentença recorrida que o artigo 199.º-A do CPPT se aplica apenas à avaliação das fianças, ou, quanto muito, a garantias de natureza pessoal.

4- Considerando assim, não ser de aplicar o artigo 199.º-A n.º 1 alínea a) à situação dos presentes autos, uma vez que o despacho reclamado versava sobre a avaliação de um lote de 1.786.380 acções da B……………., SA, detida em relação de domínio pela Reclamante, oferecidos como garantia nos autos.

5- Consequentemente declarou a inaplicabilidade do critério de avaliação de garantia previsto no artigo 199.º-A do CPPT à avaliação do penhor de acções, objecto dos presentes autos, anulando, em consequência, o despacho reclamado.

6- Com a devida vénia, a Fazenda Pública considera que a douta sentença recorrida não terá feito uma correcta delimitação do âmbito de aplicação do artigo 199.º-A n.º 1 alínea a) do CPPT, incorrendo, dessa forma, em erro de julgamento.

7- Entende a Fazenda Pública que os critérios de avaliação das garantias previstos no artigo 199.º-A do CPPT se aplicam a todas as garantias, quer estas tenham natureza real ou pessoal, sendo apenas excluídas as garantias prestadas sob a forma de garantia bancária, caução ou seguro caução, tal como resulta expressamente do texto da norma.

8- Com efeito, a norma refere, expressamente, que “Na avaliação da garantia, com excepção da garantia bancária, caução e seguro caução, deve atender-se ao valor dos bens ou do património do garante, apurados nos termos dos artigos 13 a 17 do CIS, com as necessárias adaptações, deduzido dos seguintes montantes”.

9- Efectivamente, se o legislador pretendesse restringir os critérios estabelecidos no artigo 199.º-A do CPPT apenas às fianças, tê-lo-ia dito expressamente.

10- Ao invés, o legislador exclui da norma apenas um conjunto de garantias, designadamente, garantias bancárias, cauções e seguros cauções, as quais, pela sua própria natureza, escapam ao juízo de idoneidade do Órgão da Execução Fiscal, porque, de acordo com as suas regras próprias, serão sempre susceptíveis de assegurar os créditos do Exequente.

11- A norma refere, expressamente, que na avaliação da garantia deve atender-se ao valor dos bens ou do património do garante, apurado nos termos dos artigos 13.º a 17.º do CIS, o que parece indicar que, além do património do garante, o que é típico das garantias pessoais, poderá ser dado em garantia apenas um bem isolado, o que nos remete para as garantias reais.

12- Entendimento que será reforçado se analisarmos o conteúdo dos artigos 13.º a 17.º do CIS, na medida em que os artigos 13.º e 14.º do CIS dizem respeito à avaliação de bens imóveis, ou bens móveis, respectivamente, isoladamente considerados.

13- A seguir-se o entendimento vertido na douta sentença, com o devido respeito, não faria qualquer sentido a remessa para os artigos 13.º e 14.º do CIS.

14- A douta sentença admite a possibilidade do artigo 199.º-A ter aplicação a outras garantias de natureza pessoal.

15- Se bem virmos as coisas, o penhor de acções, na medida em que as acções representam o património do garante, em certa medida, é idêntico à fiança.

16- Pelo que, seguindo-se o raciocínio vertido na douta sentença, faria todo o sentido aplicar-se o artigo 199.º-A igualmente ao penhor das acções, tendo em vista que estas avaliam o património do garante que servirá de base à satisfação do crédito do Exequente, se a garantia for accionada.

17- Da leitura conjugada das epígrafes dos artigos não parece razoável inferir o âmbito de aplicação da norma, muito menos no sentido de restringir a uma modalidade de garantia, quando, o corpo do artigo refere, expressamente, que se deve atender ao valor dos bens, o que nos remete directa e seguramente para outro tipo de garantias que não a fiança, já que a mesma estará abrangida pelo seguimento da norma que manda atender ao valor do património do garante.

18- Relativamente à douta jurisprudência citada na douta sentença recorrida, com a devida vénia, entende a Fazenda Pública ter existido um erro de raciocínio do Tribunal “a quo”.

19- Efectivamente, resulta da douta jurisprudência transcrita na fundamentação da decisão em crise que os critérios pata a avaliação das fianças, quando sejam prestadas por uma pessoa colectiva, após a introdução do artigo 199.º-A do CPPT, se reconduz aos critérios para avaliação das acções previsto no artigo 15.º do CIS, porque, nestas situações, tal como se referiu, se está a avaliar a globalidade do património do garante, tal como acontece na avaliação das fianças.

20- Com o devido respeito, e tanto quanto consegue alcançar a Representação da Fazenda Pública, o facto de para a avaliação das fianças prestadas por pessoas colectivas se recorrer aos critérios de avaliação das acções, nas situações aplicáveis, como forma de apuramento do património, não significa nem permite extrair a conclusão que tal dispositivo visou apenas a avaliação da fiança.

21- Pelo que, da análise da legislação transcrita na douta sentença recorrida, com o devido respeito, não nos parece ser possível sustentar a tese defendida na douta sentença.

22- A douta sentença desaplicou ainda a norma prevista no artigo 199.º-A n.º 1 alínea a) à situação dos autos, por considerar a mesma inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade.

23- Com a devida vénia, a douta sentença recorrida não refere a norma constitucional alegadamente violada, apenas refere o princípio alegadamente desrespeitado pela norma, nem explica em que sentido ou medida tal princípio é atingido.

24- Desta forma, a Fazenda Pública está totalmente incapaz de apreciar a alegada inconstitucionalidade da norma em causa e efectuar um juízo sobre a mesma para efeito de concordância ou discordância.

25- A Fazenda Pública desconhece os fundamentos, os motivos ou as razões pelos quais considera a douta sentença em crise que a norma é desconforme com o princípio da proporcionalidade consagrado na Constituição.

26- Considera assim a Fazenda Pública que a douta sentença em crise, quanto a este seguimento, padece do vício de nulidade, por falta de fundamentação de direito, nos termos do artigo 615.º n.º 1 alínea b) do CPC, aplicável por força do artigo 2.º alínea e) do CPPT e artigo 125.º do CPPT.

27- A douta sentença em crise violou, assim, entre outros, os artigos 199.º-A n.º 1 alínea a) do CPPT, artigo 615.º n.º 1 alínea b) do CPC, aplicável por força do artigo 2.º alínea e) do CPPT e artigo 125.º do CPPT.

Termos em que, com o douto suprimento de V. Ex.a, requer se dignem admitir o presente recurso, julgando o mesmo procedente por provado, e, em consequência, revoguem a douta sentença recorrida, substituindo a mesma por douto acórdão que declare que o artigo 199.º-A n.º 1 alínea a) tem igualmente aplicação às situações em que a garantia é prestada através do penhor de acções, ordenando, em consequência, a remessa dos autos à primeira instância, a fim de ser conhecido o pedido, ou, se assim entenderem, decidirem definitivamente os autos, com todas as consequências legais.

Mais requer seja julgada procedente por provada, a arguição do vício de nulidade da douta sentença, por falta de fundamentação de direito, nos termos dos artigos 615.º n.º 1 alínea b) do CPC, aplicável por força do artigo 2.º alínea e) do CPPT, e artigo 125.º do CPPT, revogando-se, em consequência, a douta sentença, com todas as consequências legais.

Assim decidindo, farão V. Ex. aliás, como sempre, justiça».

1.3 O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.

1.4 Foram apresentadas contra-alegações, com conclusões do seguinte teor:

«1. A Representação Pública interpôs recurso da douta sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, que julgou totalmente procedente reclamação de actos do órgão de execução fiscal apresentada pela A……….., e, em consequência, que determinou a anulação do despacho do Chefe de Finanças do Porto 4, datado de 5 de Maio de 2017, condenando ainda a Fazenda Pública no pagamento da totalidade das custas processuais.

2. Inconformada com a decisão, a Fazenda Pública interpôs o presente recurso, propugnando que os critérios de avaliação das garantias previstos no artigo 199.º-A do CPPT são aplicáveis a todas as garantias, quer estas tenham natureza real ou pessoal, encontrando-se apenas excluídas as garantias expressamente previstas, prestadas sob a forma de garantia bancária, caução ou seguro caução.

3. Não tem, de todo, razão a Fazenda Pública.

4. O n.º 1 do artigo 199.º-A compreende-se à luz de uma preocupação da AT em dar preferência às garantias com maior liquidez, isto é, àquelas que com maior facilidade assegurem a cobrança dos créditos tributários, e vem, de resto, dirigida a afinar os critérios de idoneidade de garantias de determinado tipo, mais expostas a contingências não reflectidas no valor que originariamente serve de base à sua consideração ou mais susceptíveis a ajustamentos em função da complexidade do processo de avaliação e da ausência de critérios objectivos da análise, como é o caso das fianças.

5. O legislador quis, através deste expediente, dirigir-se a um certo tipo de garantias, de natureza pessoal, com exclusão das enunciadas taxativamente – também garantias pessoais mas de elevada liquidez – relativamente às quais não existia ainda na lei uma orientação ou um critério legal de determinação. Não é, naturalmente, esse o caso das garantias reais, para as quais há muito foi criado um critério valorimétrico, numa outra sede – cfr. artigos 13.º a 17.º do Código do Imposto do Selo.

6. Aliás, o n.º 1 do artigo 199.º-A, ao estipular a regra de que os bens que compõem o património do garante devem ser apurados pelas regras constantes dos artigos 13.º a 17.º do Código do Imposto do Selo, vai justamente de encontro a este raciocínio: se o artigo 199.º-A do CPPT se dirigisse à avaliação de garantias reais, ele tornar-se-ia redundante face àquelas disposições, criando uma tortuosa metodologia de avaliação cuja relevância não seria sequer compreendida.

7. É que, como vimos, os artigos 13.º a 17.º do Código do Imposto do Selo prevêem já todos os necessários ajustamentos à idónea avaliação dos bens que configuram a garantia do exequente; nele estão necessariamente considerados todas as convenientes variáveis de índole jurídico-económica susceptíveis de influenciar o processo de apuramento do valor substancial dos bens sob avaliação.

8. O que o artigo 199.º-A visa é intervir a jusante da avaliação dos elementos do património com base nas referidas disposições do Código do Imposto do Selo, consagrando regras novas de aferição de idoneidade de garantias cujas características não sejam de tanta objectividade quanto as conferidas pelas de natureza real.

9. Ao contrário do que defende a recorrente, não há qualquer ponto de contacto entre o penhor de acções, ou uma qualquer das garantias de natureza real, e uma fiança, ou uma qualquer das garantias de natureza pessoal. No domínio das garantias reais, há que efectivamente aferir o valor do bem que consubstancia a garantia do credor, aspecto que o legislador compreende e para o que criou uma fórmula matemática estanque. No domínio das garantias pessoais, há que, determinado o valor dos bens que compõem o património pessoal do garante, conciliá-lo com uma série mais vasta de variáveis que necessariamente influencia a avaliação global da capacidade pessoal do garante para cumprir satisfazer o crédito do credor.

10. É, a este respeito, muito esclarecedor o excerto do Acórdão do STA, proferido no âmbito do processo n.º 0965/17, de 27 de Setembro de 2017, citado na sentença: “Sendo oferecida como garantia uma fiança prestada por uma sociedade, o critério legal de avaliação da garantia previsto no artigo 199.º-A do CPPT (aditado pela Lei 7-A/2016, de 30 de Março, Lei do Orçamento do Estado para 2016) manda atender ao valor do património (n.º 1) da sociedade garante e faz corresponder este ao valor da totalidade dos títulos representativos do seu capital social, determinado nos termos do artigo 15.º do CIS (n.º 2) e deduzido dos montantes referidos nas alíneas do n.º 1 daquele preceito”.

11. Compreende-se assim que não seja, nem estranha, nem sintomática de que o artigo 199.º do CPPT se destina a avaliar garantias de qualquer tipo com exclusão expressamente previstas, o facto de nele ser feita uma referência aos artigos 13.º a 17.º do Código do Imposto do Selo.

12. Não colhe, com efeito, a tese defendida pela recorrente, impondo-se a manutenção da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, e, em consequência, a anulação do despacho proferido pelo Chefe de Finanças do Porto 4, datado de 5 de Maio de 2017.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado improcedente, por não provado, com todas as consequências legais, designadamente a manutenção, nesta parte, da sentença recorrida».

1.5 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que seja negado provimento ao recurso e mantida a sentença recorrida. Isto, após enunciar o objecto do recurso e referir a tese adoptada pela sentença, com a seguinte fundamentação:

«[…] Da matéria de facto assente na sentença recorrida resulta que a Recorrida foi notificada pelo órgão de execução fiscal para reforçar o valor da garantia constituída e prestada no âmbito do processo de execução fiscal – penhor de 1.786.380 acções de uma terceira sociedade, cujo capital social é detido pela executada –, que na sequência de reavaliação por parte da AT se considerou ter sido objecto de uma “diminuição significativa de valor”, o que impunha o seu reforço, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 199.º do CPPT.
O referido reforço da garantia, no valor de € 26.871.547,99 euros, foi fundamentado pela AT no facto de com a entrada em vigor em 2016 do artigo 199.º-A do CPPT, este prever um novo método de avaliação das acções, e nos termos do qual foi atribuído às acções dadas em penhor pela executada, no termos do artigo 15.º, n.º 3, alínea a), do CIS, o valor de € 1.965.018,00, o qual sujeito às deduções previstas nas alíneas a) e c) do artigo 199.º-A do CPPT, ficou reduzido a um valor negativo, insusceptível de constituir garantia idónea da quantia exequenda.
E é em face desta fundamentação que há que apreciar da legalidade da decisão recorrida na apreciação que fez do acto da AT sindicado perante o tribunal “a quo”.
Não acompanhamos o entendimento sufragado na sentença recorrida no sentido de que o artigo 199.º-A do CPPT se aplica apenas à garantia prestada através da fiança, uma vez que tal interpretação restritiva não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal (art. 9.º, n.º 2, do Código Civil) e nessa medida deve ser afastada.
A este propósito, afigura-se-nos pertinente a crítica que a executada e aqui Recorrida teceu ao acto sindicado quando afirma (artigos 49.º e 50.º da petição inicial) que «as eventuais deduções consagradas nas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 199.º-A do CPPT dizem respeito, directa e especificamente, aos bens oferecidos como garantia. A norma não se refere, nem permite que a AT se refira, a ónus ou encargos de qualquer outra realidade – paralela ou complementar – que não seja, estritamente os ónus ou encargos do bem determinado que lhe é colocado à apreciação».
Com efeito, as garantias constituídas sobre os imóveis que fazem parte do património da sociedade “B……………”, cujas acções foram dadas em penhor, podem eventualmente repercutir-se no valor dessas acções, mas esses efeitos devem ser mensurados aquando da avaliação dessas mesmas acções. Ora, os ajustamentos decorrentes das diversas alíneas do n.º 1 do artigo 199.º-A do CPPT têm por referência o próprio objecto da garantia e, como refere a recorrida, só relevam no caso concreto se as acções já tivessem sido oneradas ou dadas como garantia (e no caso das garantias pessoais, v.g. a fiança, por referência ao património do garante).
Ora, não é esse o caso concreto dos autos, pois como decorre da fundamentação do acto sindicado e vertida parcialmente na sentença recorrida, o valor deduzido ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 199.º-A do CPPT, no montante de € 6.018.876,91 euros, respeita à parte proporcional (17,86%) determinada pela AT, relativa ao montante total de € 33.700.318,63 euros garantido através de hipotecas constituídas sobre activos da sociedade “B…………..” – cfr. ponto 10) do probatório.
E, como refere a executada e aqui Recorrida, se as hipotecas constituídas respeitam a passivo já reflectido no balanço, o qual foi considerado na avaliação das acções, ao abrigo da fórmula consagrada na alínea a) do n.º 3 do artigo 15.º do CIS, não há fundamento para proceder a qualquer ajustamento ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 199.º-A do CPPT.
Como resulta da mesma fundamentação do acto sindicado, o total das acções dadas em penhor – 1.786.380 – foram avaliadas em € 1.965.018,00 euros, quando anteriormente, à data da constituição da garantia, tinham sido avaliadas em € 22.028.244,78 euros (=1.786.380 x 12,33122) – ponto 6) do probatório.
Ocorreu, assim, uma “diminuição significativa” do valor do bem dado como garantia – penhor – que justifica o reforço da garantia ao abrigo do n.º 10 do artigo 199.º do CPPT, e n.º 1 do artigo 177.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, por o valor atribuído às acções dadas em penhor ser inferior a 80% do valor da garantia fixado. Só que não nos moldes estipulados pela Administração Tributária na decisão notificada à executada e objecto de impugnação, a qual padece de ilegalidade, por errónea interpretação e aplicação do disposto no artigo 199.º-A do CPPT.
No que respeita ao alegado vício de inconstitucionalidade invocado na sentença recorrida entendemos que a invocação em causa, nos termos em que foi feita pelo tribunal “a quo”, se mostra irrelevante, pois não foi minimamente identificado e caracterizado o referido vício, constituindo uma afirmação inócua e sem efeito.
Afigura-se-nos, assim, que se impõe a confirmação da sentença recorrida no sentido da procedência da reclamação e anulação do ato sindicado, julgando-se desta forma o recurso improcedente».

1.6 Dispensaram-se os vistos dos Juízes adjuntos, atento o carácter urgente do processo.

1.7 As questões suscitadas pela Recorrente são as de saber se a sentença recorrida i) enferma de nulidade por falta de fundamentação no que respeita à questão da inconstitucionalidade da norma contida no art. 199.º-A do CPPT (cfr. conclusões 1 e 22 a 27) e se ii) fez errado julgamento quando decidiu pela não aplicabilidade do critério de avaliação previsto na mesma norma quando a garantia em causa é a prestar por penhor de acções (cfr. conclusões 1 a 21 e 27).


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:

«1) Corre termos no Serviço de Finanças do Porto 4, o processo de execução fiscal n.º 3387200501068610, contra a reclamante, com vista à cobrança de uma dívida de IRC referente ao ano de 2002, no valor global de 17.136.692,31 € (informação e documento a fls. 8 e 16 do processo físico).

2) Em 03/0212006, a ora reclamante apresentou impugnação judicial para discussão da dívida referida no ponto anterior, que corre termos sob o n.º 321/06.9BEPRT.

3) No âmbito do processo de execução fiscal referido em 1), foi fixado o valor de 22.028.230,33 € para prestação de garantia, com vista à respectiva suspensão (documento de fls. 16 do processo físico).

4) Em 16/05/2006, a reclamante efectuou um pagamento por conta no valor de 381.751,58 € (informação a fls. 8 do processo físico).

5) A reclamante ofereceu, a título de garantia, 5.000.000 de acções da sociedade B……………….., SA, avaliadas no valor de 2.028.230,33 € (informação a fls. 8 do processo físico).

6) Em 21/06/2007, a reclamante ofereceu, para reforço da garantia referida no ponto anterior, 5.000.000 de acções da sociedade B………………, SA, no valor nominal de 5,00 € cada uma, tendo posteriormente oferecido mais 5.000.000 de acções da sociedade C…………….., SA e caso o valor das acções fosse insuficiente para garantir a totalidade da dívida, indicou vários imóveis, pertencentes às sociedades D……………, SA e B………………, SA, tendo as acções desta última sido avaliadas no valor de 61.656.095,33 € (informação a fls. 8 e 9 do processo físico).

7) Em 05/07/2011, o Chefe do Serviço de Finanças do Porto 4 proferiu despacho, no sentido de ser constituída garantia no valor de 22.028.230,33€ através do penhor de 1.786.380 acções da B………………., SA, o que a reclamante comprovou ter efectuado em 25/07/2011, tendo o processo de execução fiscal permanecido suspenso desde 03/08/2011 (informação a fls. 9 do processo físico).

8) Em Setembro de 2013, foi efectuada a reavaliação das acções referidas no ponto anterior, tendo sido fixado, por despacho, o seu valor global em 439.360,16 € e tendo sido informada a reclamante para reforçar ou prestar nova garantia no valor de 30.731.077,18 €.

9) O despacho referido no ponto anterior foi judicialmente anulado, por acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 14/08/2015.

10) Em data não apurada mas anterior a 04/05/2017, foi elaborada uma informação que procedeu à reavaliação da garantia referida no ponto anterior, da qual consta, designadamente, o seguinte (informação de fls. 8 a 15 do processo físico cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido):
“(…) III. ANÁLISE DO PEDIDO
(...) Neste conspecto, a reavaliação agora proposta já não se enquadra no cumprimento da sentença acima referida mas na realização de um novo acto administrativo (voluntário) por parte da AT que, nesta data, decide proceder a (nova) reavaliação dos bens dados em garantia, no sentido de concluir, nesta fase do PEF, pela necessidade de reforço, ou não, da garantia prestada, tendo em vista assegurar, no presente, a manutenção da suspensão do PEF e, no futuro, a cobrança da dívida exequenda.
Pelo que, a realização do acto de reavaliação da garantia prestada terá que, inelutavelmente, atender à legislação que, nesta data, se encontra em vigor.
(...) IV. AVALIAÇÃO DO PENHOR DE ACÇÕES
A Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, que aprovou o Orçamento do Estado para 2016 (LOE 2016), entrou em vigor em 31 de Março de 2016 e aditou ao CPPT o artigo 199.º-A que veio regular a avaliação de garantias na execução fiscal.
Com a LOE 2016, o novo artigo 199.º-A do CPPT dispõe no n.º 1 que:
“1 - Na avaliação da garantia, com excepção de garantia bancária, caução e seguro-caução, deve atender-se ao valor dos bens ou do património do garante apurado nos termos dos artigos 13.º a 17.º do Código do Imposto do Selo, com as necessárias adaptações, deduzido dos seguintes montantes:
a) Garantias concedidas e outras obrigações extra-patrimoniais assumidas;
b) Partes de capital do executado que sejam detidas, directa ou indirectamente, pelo garante;
c) Passivos contingentes;
d) Quaisquer créditos do garante sobre o executado”.
Assim, a avaliação das acções dadas em penhor será efectuada utilizando a metodologia de avaliação preconizada no artigo 199.º-A do CPPT “com as necessárias adaptações” ao meio de garantia apresentado para efeitos de suspensão do PEF.
Tendo em conta que estamos perante um Penhor de acções e não perante uma Fiança ter-se-á que afastar, no que diz respeito ao apuramento do valor dos bens, as deduções previstas nas alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 199.º-A do CPPT, porquanto estas referirem explicitamente que se aplicam ao “garante”, logo, quando se está perante uma fiança em que a garantia prestada corresponde ao património do garante.
Por conseguinte, será de deduzir ao valor total das acções dadas em penhor apenas, e caso existam os montantes relativos às deduções previstas nas alínea a) e e) do n.º 1 do artigo 199.º-A do CPPT, ou seja, as garantias concedidas e outras obrigações extra-patrimoniais assumidas e os passivos contingentes (nomeadamente processos de execução fiscal activos existentes perante a AT) que possam estar a onerar as acções dadas em penhor.
Em face do ante exposto, será de promover a avaliação das acções dadas em penhor nos moldes que se seguem:
A presente avaliação é efectuada tendo por base as Demonstrações Financeiras (DF) da sociedade cujas acções estão a ser dadas em penhor referentes a 2014 e 2015, bem como as informações prestadas pelo devedor no âmbito do ónus da prova (artigo 74.º da LGT) e do princípio de colaboração (artigo 59.º da LGT).
No caso em análise, não tendo a B………………., SA as suas acções cotadas em bolsa o cálculo do valor de cada acção resulta da aplicação da fórmula constante da parte final da alínea a) do referido artigo 15.º do Código do Imposto do Selo, conforme disposto no artigo 199.º-A do CPPT:
Va = ½ n [S-((R1 + R2)/2) f]. Sendo que:
Va representa o valor de cada acção à data de referência das demonstrações financeiras;
n é o numero de acções representativas do capital da sociedade garante;
S é o valor substancial, que corresponde ao valor do Capital Próprio à data de 2015-12-31;
R1 e R2 são os resultados líquidos obtidos nos períodos 2015 e 2014, respectivamente, considerando-se R1+R2=0 nos casos em que o somatório dos resultados for negativo;
f é o factor de capitalização dos resultados líquidos calculado com base na taxa de juro aplicada pelo Banco Central Europeu às suas principais operações de refinanciamento, tal como publicada no jornal da União Europeia e em vigor à data da transmissão, acrescido de um spread do 4%, neste caso f = 1/4%.
(…)
Resultando que o valor total das 1.786.380 acções dadas em penhor ascende a 1.965.018,00 (1.786380 x 1,10) euros.
Se expurgarmos a este valor as deduções previstas nas alíneas a) e c) do n.º 1 no art. 199.º-A do CPPT, nomeadamente:
a) Garantias concedidas e outras obrigações extra patrimonial:
· Conforme discriminado nas notas 6, 10 e 11 do Anexo às Demonstrações Financeiras de 2015 (ADF 2015) da B………………, existem activos dados em hipoteca a favor de outras sociedades, no valor total de 33.700.318,63 euros;
· Tendo em conta que o n.º de acções dadas em penhor representa 17,86% do capital social da sociedade, há que deduzir ao valor apurado o montante de 6.018.876,91 (33.700.318,63 x 17.86%) euros, correspondente à proporção dos activos dados em hipoteca atendendo ao peso relativo das acções dadas em penhor no total do capital social da B……………..
b) (Outros) Passivos contingentes:
· Não foram identificados nos Sistemas informáticos da AT quaisquer Processos de Execução Fiscal activos em que a garante seja executada.
Em face às deduções ante indicadas, o valor das acções avaliadas, nos termos do artigo 199.º-A do CPPT da garante é negativo em 4.053.858,91 euros, conforme Quadro II:


V. CONCLUSÕES
A avaliação do valor das acções da B…………….., SA. NIF: ……………., nos termos e para os efeitos preconizados no artigo 199.º-A do CPPT, enquanto garante do montante de 22.028.230,33 euros no processo de execução fiscal (PEF) n.º 3387200501068510, cujo valor em dívida à data da presente análise ascende a 24.121.847,79 euros, em que é devedora a sociedade A………….., SGPS, SA, NIF: …………….., pode ser resumida pelos seguintes pontos, de análise cumulativa:
O valor total das 1.786.380 acções da empresa que se encontram a garantir o PEF ascende a 1.965.018,00 euros;
O valor das garantias já prestadas a favor de outras sociedades, conforme n.º 10 do ponto IV da presente informação, ascende a 6.018,876,91 euros.
Nem foram identificados nos sistemas informáticos da AT, quaisquer processos de execução fiscal activos.
Pelo que, o valor das 1.786.380 acções dadas em penhor (corrigido) da garante mostra-se negativo em 4.053.858,91 euros.
(…)
Face ao exposto, propõe-se a notificação ao executado do valor actual do penhor de acções que se encontra a garantira PEF n.º 3387200501068610.
VI- GARANTIA
Atendendo ao exposto e de acordo com o n.º 5 do artigo 199.º do CPPT, “No caso de a garantia apresentada se tornar insuficiente, a mesma deve ser reforçada nos termos das normas previstas neste artigo”, conjugado com o n.º 6 do mesmo preceito legal e de acordo com o ofício-circulado 60.094 de 12/03/2013 da Direcção de Serviços de Gestão dos Créditos Tributários, devendo a garantia a prestar ser de:


Assim, propõe-se ainda a notificação ao executado do valor actual da garantia a prestar (€ 26.671.547,99), no prazo de 15 dias, para garantir o PEF n.º 3387200501068610.
À consideração superior,
(…)”

11) Sobre a informação referida no ponto anterior, foi exarado despacho de concordância, datado de 05/05/2017, proferido pelo Chefe do Serviço de Finanças do Porto 4, com o seguinte conteúdo (despacho de fls. 6 e 7 do processo físico):

12) Por ofício da mesma data, com a referência GPS20175000115667, enviado à reclamante por carta registada com o n.º RD 1490 2445 5 PT, com aviso de recepção, este assinado pela reclamante em 08/05/2017, foi-lhe comunicado o seguinte (ofício, registo e aviso de recepção de fls. 18, 31 e 31 verso do processo físico, cujo teor se dá por integralmente reproduzido):
“(...) da insuficiência da garantia e da obrigação de prestar, no prazo de 15 (quinze) dias, uma nova garantia no valor de 26.871.547,99 €, conforme cálculos constantes da informação (...).“

13) A presente reclamação deu entrada no Serviço de Finanças do Porto 4 em 17/05/2017 (comprovativo de envio por fax de fls. 41 do processo físico).

14) Por despacho de 23/08/2017 e com base em informação anterior, o Chefe do Serviço de Finanças do Porto 4 manteve o despacho referido em 10) (despacho de fls. 3 do processo físico).

A convicção do Tribunal, quanto aos factos assentes baseou-se nos elementos documentais existentes no processo que não tendo sido postos em causa, foram considerados credíveis e para que se remete a seguir a cada facto provado. Em relação aos factos provados 2), 8) e 9), a convicção do Tribunal formou-se por via do exercício das funções e baseou-se na consulta oficiosa aos processos de impugnação n.º 321/06.9BEPRT e de reclamação de acto praticado pelo órgão de execução fiscal n.º 2686/13.7BEPRT, ambos inseridos no SITAF».


*

2.2 DE DIREITO

2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR

Contra a sociedade ora Recorrida foi instaurada uma execução fiscal para cobrança coerciva da quantia de € 17.136.692,31, proveniente de dívida de IRC. A sociedade impugnou judicialmente a liquidação do imposto e prestou garantia através da constituição de penhor sobre 1.786.380 acções de uma outra sociedade (“B………….”), após avaliação das mesmas, motivo por que a execução ficou suspensa nos termos do art. 169.º do CPPT.
Após várias vicissitudes relatadas no probatório, o órgão da execução fiscal entendeu proceder à reavaliação das acções dadas em penhor à luz das regras do art. 199.º-A do CPPT, disposição legal que foi aditada ao Código pelo art. 176.º da Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março (Lei do Orçamento do Estado para 2016).
No termo dessa avaliação – na qual entendeu ser de aplicar a metodologia preconizada pelo n.º 1 do art. 199.º-A do CPPT, «com as necessárias adaptações», ou seja, afastando as deduções previstas nas alíneas b) e d), mas não as previstas nas alíneas a) e c) – obteve o valor negativo de € 4.053.858,91.
Assim, no pressuposto da inidoneidade da garantia já prestada e tendo em conta que o valor em dívida na execução fiscal ascendia, à data, a € 21.497.238,39, entendeu notificar a Executada para prestar garantia pelo valor de € 26.871.547,99 (cfr. art. 199.º, n.º 6, do CPPT).
Na sequência dessa notificação, a Executada, discordando da decisão administrativa no que respeita ao resultado da avaliação das acções dadas em penhor e consequente determinação do montante para prestar nova garantia, dela reclamou para o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto ao abrigo do disposto nos arts. 276.º a 278.º do CPPT.
Não questionando a Executada e Reclamante o direito da AT proceder à reavaliação das acções, sustentou, em resumo, que na avaliação das acções dadas em penhor foi feita errada aplicação do critério fixado pelo n.º 1 do art. 199.º-A do CPPT, designadamente por se ter aplicado a dedução prevista na alínea a) daquele preceito; a seu ver, ao valor apurado mediante a aplicação das regras da alínea a) do n.º 3 do art. 15.º do Código do Imposto do Selo (CIS) não há que deduzir o valor referido na alínea a) do n.º 1 do art. 199.º-A do CPPT.
A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto julgou a reclamação procedente.
Para tanto, em síntese, depois de fazer um excurso sobre a jurisprudência e a evolução no tempo da legislação respeitante à avaliação das garantias, deixou dito que «antes de tecer quaisquer considerações acerca da correcta ou errada aplicação do critério da norma em causa, importa averiguar a própria aplicabilidade do artigo 199.º-A do CPPT ao caso vertente».
Considerou a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que o art. 199.º-A do CPPT não é aplicável ao caso sub judice, de avaliação do penhor de acções, uma vez que «a sua aplicação se confina apenas à avaliação da prestação de fiança» ou, quando muito, à fiança e «à prestação de outras garantias pessoais», mas já não à prestação de garantias reais.
Por isso, concluiu que assistia razão à Reclamante «ao pretender eliminar o acto reclamado do ordenamento jurídico-tributário, ainda que com base em fundamento diverso daquele que foi supra exposto [o invocado pela Reclamante], não podendo o mesmo subsistir no ordenamento jurídico» e que, assim, «fica prejudicada a apreciação da correcta ou incorrecta aplicação do critério previsto no artigo 199.º-A, alínea a) do CPPT ao caso em apreço».
A Fazenda Pública discordou da sentença.
Entendeu, em síntese, que a sentença fez errada interpretação do art. 199.º-A do CPPT ao considerar que o mesmo se aplica apenas à avaliação das fianças ou, quando muito, a garantias de natureza pessoal e, em consequência, ao considerá-lo inaplicável na situação sub judice.
Mais entendeu que a sentença enferma de nulidade por falta de fundamentação de direito na parte em que «desaplicou […] a norma prevista no artigo 199.º-A n.º 1 alínea a) à situação dos autos, por considerar a mesma inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade».
Assim, como adiantámos em 1.8, as questões que cumpre apreciar e decidir nestes autos são as de saber se a sentença recorrida i) enferma de nulidade por falta de fundamentação no que respeita à questão da inconstitucionalidade da norma contida no art. 199.º-A do CPPT (cfr. conclusões 1 e 22 a 27) e se ii) fez errado julgamento quando decidiu pela não aplicabilidade do critério de avaliação previsto na mesma norma quando a garantia em causa é a prestar por penhor de acções (cfr. conclusões 1 a 21 e 27).

2.2.2 DA INVOCADA NULIDADE DA SENTENÇA POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO

A Recorrente considera que a sentença padece de nulidade por falta de fundamentação de direito, «nos termos do artigo 615.º n.º 1 alínea b) do CPC, aplicável por força do artigo 2.º alínea e) do CPPT e artigo 125.º do CPPT», na parte em que desaplicou a norma prevista no art. 199.º-A do CPPT por inconstitucionalidade decorrente da violação do princípio da proporcionalidade. Isto porque «não refere a norma constitucional alegadamente violada, apenas refere o princípio alegadamente desrespeitado pela norma, nem explica em que sentido ou medida tal princípio é atingido»; assim, porque «desconhece os fundamentos, os motivos ou as razões pelos quais considera a douta sentença em crise que a norma é desconforme com o princípio da proporcionalidade consagrado na Constituição», está impedida de «apreciar a alegada inconstitucionalidade da norma em causa e efectuar um juízo sobre a mesma para efeito de concordância ou discordância».
Antes do mais, cumpre averiguar se, como alegado pela Recorrente, a sentença desaplicou a norma ínsita no art. 199.º-A do CPPT por inconstitucionalidade. Adiantamos que não.
Lida a sentença, verificamos que a Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto considerou que o art. 199.º-A do CPPT não é aplicável ao caso sub judice, porque, a seu ver, «a sua aplicação se confina apenas à avaliação da prestação de fiança» ou, quando muito, à fiança e «à prestação de outras garantias pessoais», mas já não à prestação de garantias reais.
Por isso, concluiu a sentença que assistia razão à Reclamante «ao pretender eliminar o acto reclamado do ordenamento jurídico-tributário, ainda que com base em fundamento diverso daquele que foi supra exposto [o invocado pela Reclamante], não podendo o mesmo subsistir no ordenamento jurídico».
É verdade que, depois de assim concluir, a sentença inclui um parágrafo em que afirma: «Sendo certo que ainda que assim não se considerasse, sempre haveria lugar à desaplicação daquele preceito por constituir uma norma inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, com a consequente anulação do acto colocado em crise nos presentes autos».
Data venia, esta afirmação efectuada na sentença não constitui um fundamento da decisão (uma ratio decidendi), uma questão que tenha sido apreciada e decidida pela sentença, mas um mero argumento retórico em reforço do sentido em que se decidiu, ou seja, aquilo que a jurisprudência caracteriza como um obiter dictum ou, de modo mais impressivo, como «uma excrescência em relação ao silogismo judiciário que motivou e estruturou a decisão» (Cfr. os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 25 de Setembro de 2013, proferido no processo n.º 511/13, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/5d5a0bbcf303621780257bf8005550d6;
- de 11 de Março de 2015, proferido no processo n.º 197/13, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/51f17429bfd53bf580257e0b004b4e3b.).Tal afirmação, efectuada no condicional («sempre haveria lugar»), não influenciou a formação do julgado; como disse o Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal, constitui «uma afirmação inócua e sem efeito».
Concluímos, pois, que a nulidade por falta de fundamentação de direito assacada à sentença se refere a uma questão que não foi apreciada e decidida pela sentença recorrida, mas que nela apenas foi referida com um mero reforço de argumentação.
Improcede, pois, a invocada nulidade da sentença.

2.2.3 DA APLICAÇÃO DO CRITÉRIO FIXADO PELO ART. 199.º-A DO CPPT PARA A AVALIAÇÃO DA IDONEIDADE DO PENHOR DE ACÇÕES

Como deixámos já dito, a AT, na reavaliação das acções dadas em penhor pela Executada em ordem à prestação de garantia no âmbito da execução fiscal, utilizou o critério legal previsto na lei em vigor à data, ou seja, o critério consagrado pelo art. 199.º-A do CPPT.
Não está em causa a possibilidade de a garantia ser prestada mediante penhor de acções, que o órgão da execução fiscal tinha já aceitado anteriormente, mas apenas o valor das acções que foram dadas em penhor para garantia a dívida exequenda e o acrescido, considerando a Reclamante que o órgão da execução fiscal procedeu a uma subavaliação das mesmas, em função de uma interpretação ilegal da possibilidade de aplicar a dedução prevista na alínea a) do n.º 1 do art. 199.º do CPPT.
Na verdade, na reclamação, a Executada (ora Recorrida) não discordou de que na avaliação das acções se tenha feito uso das regras do art. 15.º do CIS ex vi do disposto no n.º 1 do art. 199.º-A do CPPT; a sua discordância é de que, ao valor encontrado para as acções por aplicação daquelas regras – que relevam já o valor das hipotecas que incidem sobre os imóveis de que é proprietária a sociedade a que respeitam as acções, que consta do passivo reflectido no balanço –, se tenho feito, depois, a dedução prevista na alínea a) daquele n.º 1, de que resultou que o valor da garantia foi diminuído de modo desproporcionado, com a consequente exigência de reforço da garantia por valor manifestamente superior ao devido.
Na tese da Reclamante e ora Recorrida, a interpretação efectuada pela AT teve como efeito uma «consideração duplamente negativa do valor daquelas hipotecas: primeiro na aplicação da […] alínea a) do n.º 3 do artigo 15.º do Código do Imposto do Selo; depois na aplicação da alínea a) do n.º 1 do artigo 199.º-A do CPPT»; e realça que «aquelas hipotecas existem associadas a passivos da B…………., passivos esses que já estão reflectidos no balanço e, portanto, já haviam sido considerados para o efeito da avaliação das acções ao abrigo da fórmula da primeira norma acima referida».
Ou seja, não questionou a Executada e Reclamante o direito da AT proceder à reavaliação das acções que foram dadas em penhor, nem sequer que nesta reavaliação se utilizem as regras do CIS – no caso, as da alínea a) do n.º 3 do art. 15.º – por força do critério fixado pelo n.º 1 do art. 199.º-A do CPPT. Questionou, isso sim, a interpretação que a AT efectuou deste último preceito legal, da qual resultou que ao resultado obtido nos termos do CIS efectuou a dedução prevista na alínea a) daquele preceito.
A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto julgou a reclamação procedente, mas fê-lo, não com base na tese sustentada pela Reclamante, mas com base no entendimento de que o art. 199.º-A do CPPT não era aplicável à situação sub judice. Considerou, em síntese, que o art. 199.º-A do CPPT fixa um método de avaliação cujo âmbito de aplicação está confinado «apenas à avaliação da prestação de fiança» ou, quando muito, à fiança e «à prestação de outras garantias pessoais», mas já não à prestação de garantias reais.
A Fazenda Pública discorda deste entendimento e, a nosso ver, tem razão nesse ponto. Vejamos:
O art. 199.º-A do CPPT surge como a consagração em letra de lei de uma prática que a AT vinha seguindo, mas que a jurisprudência não tinha aceitado como legal, qual seja a aplicação das regras do CIS para a avaliação das garantias a prestar pelo executado em ordem à suspensão da execução fiscal (A título exemplificativo, vide os seguintes acórdãos da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 2 de Dezembro de 2015, proferido no processo n.º 1458/15, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/d72f8f469d0d1be680257f1800341981;
- de 24 de Fevereiro de 2016, proferido no processo n.º 82/16, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/e6157786ec12272780257f6800543102;
- de 20 de Abril de 2016, proferido no processo n.º 413/16, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/6483576620cbb76480257fa10055c5b0;
- de 29 de Junho de 2016, proferido no processo n.º 710/16, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/00b4c87628862f7680257fe3003d1aef.).
Nos termos desse artigo, apenas ficam fora do seu âmbito de aplicação as garantias bancárias, as cauções e os seguros-caução, garantias que, pela sua natureza, não estão sujeitas a avaliação. Quanto a todas as demais garantias, sem excepções, o artigo pretendeu estabelecer regras de avaliação dos bens dados em garantia ou do património do garante, consoante as garantias a prestar sejam reais ou pessoais. Para isso, numa opção que em abstracto não nos cumpre sindicar, o legislador entendeu remeter para as regras de avaliação previstas no CIS, «com as necessárias adaptações», e prevendo ainda algumas deduções a efectuar ao resultado obtido.
É o que resulta da letra do art. 199.º-A, designadamente do seu n.º 1, que estipula: «Na avaliação da garantia, com excepção de garantia bancária, caução e seguro-caução, deve atender-se ao valor dos bens ou do património do garante apurado nos termos dos artigos 13.º a 17.º do Código do Imposto do Selo, com as necessárias adaptações, deduzido dos seguintes montantes: a) Garantias concedidas e outras obrigações extra-patrimoniais assumidas; b) Partes de capital do executado que sejam detidas, directa ou indirectamente, pelo garante; c) Passivos contingentes; d) Quaisquer créditos do garante sobre o executado».
Saber se estas deduções, particularmente a prevista na alínea a), se efectua em todos os casos ou se, como sustentou a ora Recorrida, há que distinguir consoante o garante seja o executado ou terceira pessoa, era a questão que se impunha tivesse sido apreciada e decidida.
Mas, sempre salvo o devido respeito, não pode concluir-se, como concluiu a sentença recorrida, que o critério de avaliação imposto pelo art. 199.º-A do CPPT se aplique apenas às garantias pessoais.
Nem a letra do preceito – que tem um segmento que refere expressamente o “valor dos bens” – nem a teleologia da norma – que visou fixar regras objectivas para a avaliação das garantias, com propósito de diminuir os factores de subjectividade e discricionariedade da AT nessa avaliação e, desse modo, prevenir a conflitualidade com os contribuintes – autorizam essa interpretação.
Por outro lado, sendo certo que, como bem afirma a Juíza do Tribunal a quo, referindo o elemento histórico, «os critérios de avaliação da garantia agora vertidos no artigo 199.º-A do CPPT não são mais do que os critérios que, anteriormente à entrada em vigor deste preceito legal, já eram aplicados pela autoridade tributária» e que «a sua [daqueles critérios] introdução no CPPT visou precisamente e exclusivamente dar forma legal a uma prática que já era utilizada correntemente pela autoridade tributária na avaliação das prestações de fiança», afigura-se-nos que não pode daí concluir-se, como concluiu a sentença, que «é neste âmbito que se circunscreve a aplicação do referido preceito».
É que os referidos critérios de avaliação, mesmo antes da sua consagração legal no art. 199.º-A do CPPT, eram seguidos pela AT, não só relativamente à fiança, mas também a outros modos de prestação de garantia, designadamente o penhor de acções, como resulta inequivocamente do Ofício-Circulado n.º 60.078, de 30 de Agosto de 2010, da Direcção de Serviços de Gestão dos Créditos Tributários (Disponível para consulta em http://www.taxfile.pt/file_bank/news3610_4_1.pdf.), onde, logo no início, sob a epígrafe “Assunto”, se dizia: «Constituição e manutenção de garantia sobre participações sociais. O caso do penhor de quotas e acções. Formalidades da sua constituição. Legitimidade do dador do penhor».
Afigura-se-nos, pois, que não pode afirmar-se que o art. 199.º-A do CPPT não logra aplicação quando esteja em causa avaliar a garantia por constituição de penhor sobre acções.
Porque a sentença decidiu com esse fundamento, não poderá manter-se.
Revogada a sentença, devem os autos regressar à 1.ª instância, a fim de aí ser conhecida a questão que a sentença considerou prejudicado pela solução que deu à causa, ou seja, nas suas palavras, «a apreciação da correcta ou incorrecta aplicação do critério previsto no art. 199.º-A, n.º 1, alínea a), do CPPT ao caso em apreço».
É nesse sentido que decidiremos.

2.2.4 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - Improcede a invocação de nulidade se a arguida falta de fundamentação de direito se refere, não à ratio decidendi da sentença, mas a considerandos aí aduzidos como um obiter dictum, como «uma excrescência em relação ao silogismo judiciário que motivou e estruturou a decisão», na impressiva expressão que este Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a usar.
II - Cumpre à AT, perante o caso concreto, averiguar da idoneidade da garantia oferecida em ordem à suspensão da execução fiscal, idoneidade que deve aferir-se pela susceptibilidade de assegurar o pagamento da dívida exequenda e do acrescido, caso seja necessário executar a garantia (arts. 169.º, 199.º e 217.º, do CPPT, e art. 52.º, da LGT).
III - Na avaliação das acções de uma sociedade a dar em penhor em ordem à prestação de garantia na execução fiscal há que aplicar o critério legal de avaliação prescrito pelo art. 199.º-A do CPPT (aditado pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de Março, Lei do Orçamento do Estado para 2016).


* * *

3. DECISÃO

Pelo exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e ordenar que os autos regressem à 1.ª instância, a fim de aí ser conhecida a questão que a sentença considerou prejudicada.

Custas pela Recorrida.


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Lisboa, 3 de Maio de 2018. – Francisco Rothes (relator) – Aragão Seia – Dulce Neto.