Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0369/12.4BELRS
Data do Acordão:01/16/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO
RECURSO JURISDICIONAL
Sumário:I - É aplicável subsidiariamente ao processo contra-ordenacional tributário, regulado pelo RGIT, a norma do art. 73.º, n.º 2, do RGCO, em que se permite aos tribunais superiores aceitar recursos da sentença, ou do despacho referido no art. 64.º do mesmo RGCO, quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência, mesmo em casos em que o valor da coima é inferior a ¼ da alçada do tribunal tributário.
II - Não se afigura manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência o recurso da decisão judicial que considerou que a dispensa pela autoridade administrativa da inquirição das testemunhas arroladas pelo arguido quando apresentou a sua defesa, por desnecessidade, não constitui nulidade insanável da decisão administrativa de aplicação da coima, nem violação alguma ao direito de defesa do arguido em sede de processo de contra-ordenação, consagrado no n.º 10 do art. 32.º da CRP.
Nº Convencional:JSTA000P24093
Nº do Documento:SA2201901160369/12
Recorrente:A............, LDA
Recorrido 1:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da decisão proferida no processo de contra-ordenação acima indicado

1. RELATÓRIO

1.1 Inconformada com a decisão por que o Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa julgou improcedente o recurso judicial que deduziu contra a decisão administrativa que lhe aplicou uma coima pela prática de uma contra-ordenação tributária, veio a sociedade acima identificada (a seguir Arguida ou Recorrente) dela recorrer para este Supremo Tribunal Administrativo, mediante a invocação do regime do art. 73.º, n.º 2, do Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, aplicável ex vi da alínea b) do art. 3.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), apresentando alegação que resumiu em conclusões do seguinte teor:

«1) Vem o presente recurso interposto da douta sentença que considerou o recurso improcedente;

2) O presente recurso é circunscrito à questão que diz respeito a um erro de julgamento;

3) Trata-se da garantia constitucional de tutela jurisdicional efectiva (artigos 20.º n.º 1 e 268.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa) e a vertente judicial do direito de defesa do arguido no processo de contra-ordenação (art. 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa);

4) Na medida em que sustenta a responsabilidade objectiva da pessoa colectiva, ou seja, a responsabilidade independente da culpa.

5) O que, com o devido respeito, não resulta do art. 2.º e n.ºs 2, 3 e 4 do art. 7.º, ambos do RGIT;

6) Entende a Recorrente que o Tribunal “a quo”, com base neste erróneo pressuposto, decidiu ao arrepio do entendimento partilhado por toda a jurisprudência penal e contra-ordenacional

7) O entendimento adoptado pelo Juiz do Tribunal “a quo” consubstancia um clamoroso erro de julgamento na medida em que tendo a sociedade arguida arrolado testemunhas, que fariam a prova que ministra formação aos seus trabalhadores sobre a forma como são preenchidas as guias e que lhes dá instruções precisas para cumprirem a respectiva legislação, não lhe pode ser imputada a presente infracção;

8) Sempre com o devido respeito, o que configura uma situação de direito manifestamente errada ou injusta;

9) Trata-se de um caso de erro claro na decisão judicial, que, por isso, repugna manter na ordem jurídica por constituir uma afronta ao direito, justificando a utilização do recurso previsto no n.º 2 do art. 73.º do RGCO para promoção da uniformidade da jurisprudência ou para melhoria da aplicação do direito;

10) Entendimento diverso, nomeadamente o entendimento que existe responsabilidade objectiva, independentemente de culpa e consequentemente desnecessidade de prova, viola o exercício do direito de defesa da sociedade arguida e qualquer outra interpretação a que se refere o art. 70.º e 71.º do RGIT, fere o n.º 10 do art. 32.º da CRP e tal interpretação sempre seria inconstitucional.

11) Tendo em conta a unidade do sistema jurídico e a aplicação subsidiária do RGCO neste âmbito, por força da alínea b) do art. 3.º do RGIT, a sociedade arguida tem legitimidade para recorrer nos recursos de processos de contra ordenação tributária, nos termos do n.º 2 do art. 73.º do RGCO.

12) Como resulta do entendimento dos Conselheiros Jorge Lopes de Sousa e Simas Santos em “Regime Geral das Infracções Tributárias anotado”, 4.ª edição, 2010, em anotação ao art. 83.º, página 562 e seguintes;

13) É aliás este o entendimento que a jurisprudência uniforme do STA tem acolhido quanto tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito, como é o caso, a título de exemplo, do Acórdão do STA de 08.06.2011 no Proc. 0420/11. Disponível em www.dgsi.pt;

14) Quanto à subida imediata do presente recurso, entende a sociedade arguida que, no regime previsto no art. 84.º, do RGIT, complementado pelo RGCO, não é possível a execução das coimas e sanções acessórias antes do trânsito em julgado ou de se ter tornado definitiva a decisão administrativa que as aplicar;

15) Sendo esta a única interpretação que assegura a constitucionalidade material do citado art. 84.º, do RGIT, nos casos em que o recurso é interposto de decisão condenatória; Não sendo necessário a prestação de garantia para que o mesmo recurso goze de efeito suspensivo da decisão recorrida – conforme se doutrinou no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 15.11.2011, processo n.º 04847/11;

16) Entendimento perfilhado pelos Conselheiros Jorge Lopes de Sousa e Simas Santos em “Regime Geral das Infracções Tributárias anotado”, 4.ª edição, 2010, em anotação ao art. 84.º, página 582 e seguintes.

Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e em consonância revogada a sentença recorrida e substituída por outra que conceda provimento ao recurso, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA».

1.3 O recurso foi admitido e não foram apresentadas contra-alegações.

1.4 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso não deve ser admitido, por não se verificarem os pressupostos do n.º 2 do art. 73.º do RGIT, e, caso assim não se entenda, deverá ser-lhe negado provimento com a seguinte fundamentação: «[…]
Uma vez que o valor da coima única aplicada (€ 250,00) não ultrapassa ¼ da alçada fixada para os tribunais judiciais de 1.ª instância, nos termos do disposto no artigo 83.º do RGIT o presente recurso jurisdicional foi interposto e admitido ao abrigo do estatuído no artigo 73.º/2 do RGCO.
Impõe-se, pois, previamente, analisar se ocorrem os requisitos de admissão do recurso ao abrigo do citado normativo.
Nos termos do disposto no citado artigo 73.º/2 do RGCO, poderá aceitar-se recurso da sentença, sempre que tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
Como referem os Juízes Conselheiros Jorge de Sousa e Manuel Santos 1 [1 Regime Geral das Infracções Tributárias, anotado e comentado, 4.ª edição, 2010, página 562, Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos] «…a possibilidade de recurso assegurada pelo n.º 2 deste art. 73.º, nos casos em que tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou haja divergências jurisprudenciais, parece assegurar eficazmente os direitos do arguido, por permitir o controlo jurisdicional dos casos em que haja erros claros na decisão judicial, ou seja comprovadamente duvidosa a solução jurídica. É a possibilidade de recurso ao abrigo do n.º 2 deste art. 73.º com esta amplitude que assegura a compatibilidade da alçada com a norma constitucional que garante o direito à defesa».
E continuam os mesmos autores «A expressão «melhoria da aplicação do direito» utilizada no artigo 73.º, n.º 2, do RGIT deve ser interpretar-se como abrangendo todas as situações em que há «erros claros na decisão judicial» 2 [2 Neste sentido podem ver-se os acórdãos do STA de 20.06.2007, recurso n.º 411/07 e de 25.3.2009, recurso n.º 106/09], situações essas em que, à face do entendimento jurisprudencial amplamente adoptado, repugne manter na ordem jurídica a decisão recorrida, por ela constituir uma afronta ao direito».
Ora, no caso em apreciação, o que está em causa é a alegada violação do direito de defesa, porquanto foi indeferida a requerida inquirição de três testemunhas.
Ao contrário da posição sustentada pela recorrente, parece-nos certo que não se evidenciam erros claros na decisão sindicada nem se vislumbra necessidade de uniformidade da jurisprudência.
De facto, como bem refere a decisão recorrida, mostrando-se provada a factualidade constante do auto de notícia, que a recorrente não questiona, em sede de exercício do direito de defesa não alegou qualquer facto novo concreto excludente da ilicitude/culpa, que pudesse exteriorizar que a arguida, na sua vontade, se encontrava em situação que não lhe permitisse agir de acordo com o dever constante dos normativos do artigo 4.º/4/7 do DL 147/03, de 11/07.
Como tal, ressalvado melhor juízo, a inquirição das arroladas testemunhas apresentava-se inútil para a descoberta da verdade material.
É inquestionável que, como decorre dos artigos 2.º/1 e 7.º do RGIT, a punição pela prática de uma contra-ordenação implica, sempre, a verificação do elemento subjectivo da infracção, a saber o dolo ou simples negligência.
Assim, quando a decisão recorrida se refere à responsabilidade objectiva das pessoas colectivas, só pode querer significar que a responsabilidade das pessoas colectivas assenta numa imputação directa e autónoma, quer o fundamento dessa responsabilidade se encontre num defeito estrutural da organização empresarial, quer pela imputação a uma pessoa singular funcionalmente ligada à pessoa colectiva que não precisa de ser identificada nem individualizada.
Tanto assim parece ser que a decisão recorrida, na página 9, acaba por sancionar que a factualidade apurada suporta a imputação à recorrente da infracção tributária, a título de negligência.
Portanto, a nosso ver e ressalvado melhor juízo, não se verifica a necessidade de interposição do recurso para uma melhoria da aplicação do direito.
Também, não se vê que a admissão do recurso seja necessária tendo em vista a promoção da uniformização da jurisprudência, uma vez que a decisão recorrida que cauciona a dispensa da inquirição de testemunhas pela autoridade tributária segue a posição do STA sobre a matéria e a melhor doutrina (acórdão de 19/04/2017 - P. 01262/16, acessível em www.dgsi.pt e autores e obras citados, página 481).
Assim sendo, em nosso entendimento e ressalvado melhor juízo, o recurso não deve ser admitido, atenta a não verificação dos requisitos a que se reporta o artigo 73.º/2 do RGCO».
Para a eventualidade de assim não se entender, o Procurador-Geral Adjunto considerou ainda: «[…]
Nos processos de contra-ordenação são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa (artigo 32.º/10 da CRP).
A prova do arguido pode ser produzida verbalmente no serviço tributário competente (artigo 71.º/1 RGIT).
Apresentada a defesa, o dirigente do serviço tributário pode, se considerar necessário, ordenar novas diligência de investigação e instrução, sendo certo que durante a investigação e instrução pode solicitar a todas as entidades policiais e administrativas a cooperação necessária (artigo 71.º/2/3 RGIT).
No processo de contra-ordenação vigora o princípio do inquisitório, por via do qual a autoridade que o dirige pode realizar todas as diligências que considere necessárias para a descoberta da verdade material
Tal princípio tem subjacente a obrigação de prossecução do interesse público imposto à actividade administrativa, que se deve nortear pelo princípio da imparcialidade (artigos 266.º/1/2 da CRP e 55.º da LGT).
Cabe ao dirigente do serviço que dirige a instrução do processo, deferir ou indeferir a realização das diligências requeridas, devendo abster-se de realizar as que se lhe não afigurem de utilidade para a descoberta da verdade material (Obra e autores citados, página 481).
Descendo ao caso dos autos.
A recorrente foi notificada para deduzir a sua defesa, nos termos do disposto no artigo 70.º do RGIT (ponto F do probatório).
A recorrente apresentou defesa escrita e arrolou três testemunhas (ponto G do probatório).
Como bem refere a decisão recorrida, o dirigente do serviço dispensou a audição das arroladas testemunhas, porquanto a arguida/recorrente não alegou quaisquer factos novos, susceptíveis de infirmar a responsabilidade contra-ordenacional, que pudessem determinar a necessidade de realização de novas diligências instrutórias, designadamente, a inquirição de testemunhas.
Efectivamente, a recorrente não pôs nem põe em causa a factualidade constante do auto de notícia e dada por assente na decisão de aplicação das coimas, sendo certo que, em sede de exercício do direito de defesa não alegou qualquer facto concreto excludente da ilicitude/culpa, que pudesse exteriorizar que a arguida, na sua vontade, se encontrava em situação que não lhe permitisse agir de acordo com o dever estatuído no artigo 4.º/4/7 do DL 147/03, de 11/07.
Como tal, ressalvado melhor juízo, a inquirição das arroladas testemunhas apresentava-se inútil para a descoberta da verdade material.
Não se mostra, assim, preterido o direito de defesa da arguida/recorrente».

1.5 O parecer foi notificado à Arguida e à Fazenda Pública para, querendo, se pronunciarem sobre a questão da inadmissibilidade do recurso.

1.6 Cumpre apreciar e decidir.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 DE FACTO

O Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa procedeu ao julgamento da matéria de facto nos seguintes termos:

«Com interesse para a decisão a proferir nos autos, considero provados os seguintes factos:

A) Em 30.11.2011, pelas 15h15, o veículo com a matrícula ………, conduzido por B…………, circulava na Rotunda Norte do Parque das Nações, em Loures, com mercadorias que se faziam acompanhar de duplicado da guia de transporte n.º 1925 (Cfr. fls. 4 dos autos).

B) A Guia de transporte referida em A), não indica a hora do início do transporte (Cfr. fls. 4 dos autos).

C) A saída parcial dos bens era titulada por documentos internos que não faziam referência ao documento global que acompanhava a mercadoria, a guia de transporte referida, em A) (Cfr. fls. 5 e 6 dos autos).

D) Em 30/08/2011 foi levantado auto de notícia pela subunidade D.A.F de Lisboa, da Unidade de Acção Fiscal da Guarda Nacional Republicana (Cfr. fls. 2 dos autos).

E) Em 07.09.2011, com base no auto de notícia referido em D), foi autuado o processo de contra-ordenação (PCO) n.º 3158201106059007, pelo Serviço de Finanças de Loures-3 (Cfr. fls. 1 dos autos).

F) Em 09.09.2011, a Recorrente foi notificada para defesa, no Processo de Contra Ordenação, identificado em E) (Cfr. fls. 10 e 11 dos autos em suporte físico).

G) Em 26.09.2011, a ora Recorrente apresentou junto do Serviço de Finanças de Loures-3, instrumento para efeitos do exercício do direito de defesa, o qual ora se dá por integralmente reproduzido, onde arrolou 3 testemunhas (Cfr. fls. 12 a 18 dos autos em suporte físico).

H) Em 27.09.2011, o substituto legal do Chefe de Finanças do Serviço de Finanças de Loures-3, proferiu a decisão de fls. 30 dos autos, ora recorrida, que aqui se dá por integralmente reproduzida, para todos os legais efeitos.

I) A decisão recorrida contém a seguinte fundamentação de facto:
«Ao(À) arguido(a) foi levantado Auto de Notícia pelos seguintes factos: durante uma acção de fiscalização foi detectado que o arguido se fazia acompanhar dos documentos de transporte em relação aos bens em circulação com omissão: - da hora do início do transporte (GT 1925); e, - da referência ao documento global (DI 10967 e 10968); APRECIAÇÃO DA DEFESA: Em 2011-09-23, o infractor apresentou defesa alegando que a menção na Guia de Remessa da data e hora a que se inicia o transporte, a que se refere o n.º 4 do artigo 4.º, é meramente indicativa.
DESTE MODO, não tendo sido apresentada qualquer fundamentação legal justificativa do não cumprimento da obrigação descrita, somos de parecer que se mantêm os factos descritos no auto de notícia, os quais se dão como provados.
(…)» (Cfr. fls. 29 dos autos).

J) Quanto à fundamentação de direito, considerou a decisão recorrida:
«Normas Infringidas e Punitivas
Os factos relatados constituem violação do(s) artigo(s) abaixo indicado(s), punidos pelo(s) artigo(s) do RGIT referidos no quadro, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 05/07, constituindo contra-ordenação(ões)

»
(Cfr. fls. 29 dos autos)».

2.2 DE DIREITO

2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR

À sociedade ora Recorrente foi aplicada pelo Chefe do Serviço de Finanças de Loures-3 a coima única de € 250,00 pela prática de duas contra-ordenações, uma prevista pelo n.º 4 do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 147/03, a outra prevista pelo n.º 7 do mesmo artigo, ambas punidas pelas disposições conjugadas dos arts. 119.º, n.º 2, 24.º, n.º 2, e 26.º, n.º 4, do RGIT.
A sociedade arguida interpôs recurso judicial dessa decisão administrativa de aplicação da coima no Tribunal Tributário de Lisboa, cujo Juiz (decidindo o recurso por despacho, nos termos permitidos pelo disposto no art. 64.º do RGCO e depois de ter notificado a Recorrente e o Ministério Público nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, como resulta de fls. 78 a 83), o julgou improcedente.
Considerou o Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa, em resumo, que se não verificava a invocada violação do direito de audição e defesa, por não terem sido ouvidas pela autoridade administrativa (leia-se, o Chefe do Serviço de Finanças de Loures-3) as testemunhas que a Arguida arrolou no âmbito do processo administrativo, quando apresentou a defesa ao abrigo do art. 71.º do RGIT, omissão que a Recorrente considerou consubstanciar a nulidade prevista no art. 119.º, alínea c), do Código de Processo Penal (CPP), a determinar a invalidade dos actos dela dependentes, nos termos do art. 122.º, n.º 1, do mesmo Código. Segundo a decisão judicial ora recorrida, sendo inequívoco que em sede de processo contra-ordenacional devem ser assegurados os direitos de audiência e defesa, como decorre do art. 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa (CRP), o art. 72.º do RGIT tem vindo a ser interpretado pela doutrina e pela jurisprudência (Deu como exemplos da primeira e da segunda, respectivamente:
- JORGE LOPES DE SOUSA e MANUEL SIMAS SANTOS, Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, Áreas Editora, 4.ª edição, anotação 10 art. 73.º, pág. 493;
- acórdão de 19 de Abril de 2017, proferido no processo n.º 1262/16, da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/b7b0c97ad71582548025810f004beaa6.) no sentido de que a autoridade administrativa competente, tendo a obrigação de apreciar os fundamentos aduzidos na defesa, não é obrigada a realizar todas as diligências de prova requeridas, designadamente as que se lhe afigurem desnecessárias para o apuramento dos factos que interessam à decisão.
Assim, prosseguiu o Juiz do Tribunal a quo, ao não realizar a inquirição das testemunhas arroladas pela Arguida, o Serviço de Finanças de usou da faculdade que a lei lhe concede (cfr. art. 72.º, n.º 1, do RGIT), de não realizar diligências desnecessárias ao apuramento da verdade. Concluiu, pois, que não foi violado o direito de defesa, primeiro porque a Arguida foi notificada para apresentar defesa no âmbito do processo de contra-ordenação (na sua fase administrativa e previamente à prolação da decisão condenatória), e, depois, porque o órgão administrativo competente não procedeu à requerida produção de prova testemunhal, inquirindo as testemunhas arroladas, por considerar tal diligência desnecessária à descoberta da verdade.
Mais referiu o Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa, também em resumo, que não se verificava a invocada possibilidade de, através da audição dessas testemunhas, fazer a «prova de que a arguida não teve nenhuma responsabilidade na infracção», pois, por um lado, a sua responsabilidade resulta do disposto no art. 7.º do RGIT, que imputa às sociedades a responsabilidade pelas infracções cometidas pelos seus órgãos e representantes, quando em seu nome e no interesse delas, e, por outro lado, dos factos provados – que a Arguida não só não contestou, como, ao invés, assumiu expressamente – resulta que a Arguida não alegou factualidade susceptível de dirimir essa responsabilidade, sendo que «eventual conduta incorrecta» por parte de um seu trabalhador apenas poderá relevar no âmbito das relações entre ambos e já não para efeitos de dirimir a culpa da Arguida, que resulta provada dos factos.
A Arguida não se conformou com o assim decidido e, invocando o disposto no art. 73.º, n.º 2, do RGCO, aplicável por força do art. 3.º, alínea b), do RGIT, recorreu dessa decisão para o Supremo Tribunal Administrativo. Em ordem à admissão do recurso à luz daquela norma legal, alegou que a decisão recorrida «sustenta a responsabilidade objectiva da pessoa colectiva, ou seja, a responsabilidade independentemente de culpa» e, consequentemente, a desnecessidade da produção de prova, em violação do direito de defesa da sociedade arguida e «ao arrepio do entendimento perfilhado por toda a jurisprudência».
Assim, antes do mais, há que apreciar se é admissível em processo contra-ordenacional tributário o recurso ao abrigo do disposto no art. 73.º, n.º 2, do RGCO – uma vez que o tribunal ad quem não se encontra vinculado pela decisão a esse propósito proferida pelo tribunal a quo –, e, sendo-o, se estão reunidos os requisitos para a sua aceitação.
Só depois, caso a essa questão seja dada resposta positiva, haveremos de apreciar e decidir o erro de julgamento assacado à decisão judicial recorrida.

2.2.2 DA ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

2.2.2.1 O presente recurso vem interposto ao abrigo do n.º 2 do art. 73.º do RGCO, ou seja, para «melhoria da aplicação do direito» ou «promoção da uniformidade da jurisprudência».
Na verdade, porque o valor da causa – determinado pelo valor da coima, ou seja, € 250,00 – não atinge 1/4 do valor da alçada fixada para os tribunais judiciais de 1.ª instância (Esse valor foi fixado em € 5.000,00 pelo art. 44.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto.) e porque não foi aplicada sanção acessória, não é permitido o recurso ao abrigo do disposto no art. 83.º, n.ºs 1 e 2 do RGIT, normas legais que dizem, respectivamente, o seguinte: «O arguido, o representante da Fazenda Pública e o Ministério Público podem recorrer da decisão do tribunal tributário de 1.ª instância para o Tribunal Central Administrativo, excepto se o valor da coima aplicada não ultrapassar um quarto da alçada fixada para os tribunais judiciais de 1.ª instância e não for aplicada sanção acessória» e «Se o fundamento exclusivo do recurso for matéria de direito, é directamente interposto para a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo».
No entanto, como a jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a afirmar há muito (Vide, entre outros e por mais antigos, os seguintes acórdãos da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 18 de Junho de 2003, proferido no processo n.º 503/03, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/396bbbf3dc1e9c4680256d50003bd38c;
- de 16 de Novembro de 2005, proferido no processo n.º 524/05, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/6516372085d10671802570c2003de02e;
- de 17 de Janeiro de 2007, proferido no processo n.º 1116/06 disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/d70e24eba82e81228025726e003fc9f6.), mesmo em casos em que o valor da coima é inferior à alçada e não há aplicação de sanção acessória, o recurso pode ser admitido ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 73.º do RGCO, aplicável ex vi da alínea b) do art. 3.º do RGIT, «quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência».
Note-se ainda que, apesar de o art. 73.º, n.º 2, do RGCO se referir apenas a sentença – e a decisão recorrida ter sido proferida, ao abrigo da faculdade concedida pelo art. 64.º, n.º 2, do RGCO, aplicável ex vi da alínea b) do art. 3.º do RGIT, por despacho –, tem vindo a entender-se que não há razão para não estender a admissibilidade desse recurso aos despachos, pois «não existe nenhuma diferença de natureza entre as duas decisões», sendo que «a alternativa da decisão por despacho ou sentença não radica na complexidade das questões a decidir pelo que aquele n.º 2 do dito art. 73.º se deve aplicar indiferentemente a ambas as decisões».
Foi ao abrigo dessa disposição legal que a Arguida interpôs e a Juíza do Tribunal a quo recebeu o recurso, pelo que cumpre verificar se estão reunidos os requisitos para a aceitação do mesmo por este Supremo Tribunal Administrativo.

2.2.2.2 Indaguemos, pois, se o recurso da decisão que rejeitou se assume como «manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência».
Estão em causa nos autos as faltas de referência na guia de transporte das mercadorias i) à hora do início do transporte e ii) ao documento global de transporte, faltas que a AT considerou integrarem as contra-ordenações previstas, respectivamente pelo n.º 4 e pelo n.º 7 do art. 4.º do Decreto-Lei n.º 147/03, ambas punidas pelas disposições conjugadas dos arts. 119.º, n.º 2, 24.º, n.º 2, e 26.º, n.º 4, do RGIT.
A Recorrente entende que lhe deveria ter sido facultada a possibilidade de fazer prova de que “nenhuma responsabilidade” recai sobre si, prova que se propunha efectuar através das testemunhas que arrolou quando apresentou a sua defesa, demonstrando, designadamente, que «ministra formação aos seus trabalhadores sobre a forma como são preenchidas as guias e que lhes dá instruções precisas para cumprirem a respectiva legislação», o que, a seu ver, teria como consequência que «não lhe pode ser imputada a presente infracção»; em suma, entende que o Tribunal a quo «sustenta a responsabilidade objectiva da pessoa colectiva, ou seja, a responsabilidade independente de culpa».
Vejamos:
É certo que, na peça processual que apresentou junto do Serviço de Finanças de Loures-3 ao abrigo do disposto no art. 71.º do RGIT, a Arguida alegou, na parte que ora nos interessa considerar, que só o seu trabalhador que conduzia o veículo onde eram transportadas as mercadorias em causa «pode explicar a razão pela qual» a guia de remessa que acompanhava aquelas mercadorias não mencionava a hora de carga e descarga, sendo que ela «nunca deu instrução a este ou a qualquer outro trabalhador no sentido de violarem qualquer norma a que estão obrigados», «[m]uito menos nos documentos relativos ao transporte de mercadorias», e que «[t]odos os trabalhadores da empresa têm formação no sentido de darem cumprimento a todas as exigências legais», no caso, «têm formação duas vezes por ano, no sentido de se habilitarem a preencher correctamente todos os documentos e também as Guias de Remessa». Com interesse para a decisão, mais alegou que não está preenchido o elemento subjectivo da infracção, pois não existe factualidade que permita imputar-lhe os factos a título de culpa, que não se pode presumir.
O Juiz entendeu que a não inquirição pela autoridade administrativa das testemunhas arroladas não tinha violado o direito de defesa da Arguida, na medida em que esta não pôs em causa os factos que integram o ilícito contra-ordenacional e que este sempre lhe seria imputável em face do art. 7.º do RGIT.
Pese embora não acompanhemos integralmente os considerandos expendidos na decisão judicial ora recorrida, afigura-se-nos que a mesma não incorre um erro flagrante de julgamento que justifique a abertura do recurso previsto no n.º 2 do art. 73.º do RGCO.
Na verdade, a Arguida não pôs em causa a factualidade constante do auto de notícia e da decisão recorrida.
Ora, dispõe o n.º 1 do art. 7.º do RGIT que «As pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo».
Note-se que, para este efeito de responsabilização das pessoas colectivas, na expressão representantes – que não se restringe aos representantes legais, mas antes inclui todos os que agem em nome e no interesse da pessoa colectiva – se integram os trabalhadores ao serviço da pessoa colectiva ou equiparada, desde que actuem no exercício das suas funções ou por causa delas Com interesse, dando nota da doutrina e da jurisprudência, vide o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República com o n.º 11/2003, publicado no Diário da República n.º 178/2013, Série II, de 16 de Setembro de 2013, págs. 28814 - 28827 (https://dre.pt/application/conteudo/2571789), também disponível em
http://www.dgsi.pt/pgrp.nsf/7fc0bd52c6f5cd5a802568c0003fb410/d74d5fc794d5302180257b6e0051c9ee.), o que a Arguida, aliás, não questiona. Serão, muitas vezes, os trabalhadores que praticam ou omitem os actos susceptíveis de censura contra-ordenacional, maxime no âmbito das infracções respeitantes às guias de transporte.
Como ficou dito nas conclusões do Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República com o n.º 11/2013 (Ver nota anterior.), «A responsabilidade contra-ordenacional das pessoas colectivas assenta numa imputação directa e autónoma, quer o fundamento dessa responsabilidade se encontre num “defeito estrutural da organização empresarial” (defective corporate organization) ou “culpa autónoma por défice de organização”, quer pela imputação a uma pessoa singular funcionalmente ligada à pessoa colectiva, mas que não precisa de ser identificada nem individualizada» e «A imputação da infracção à pessoa colectiva resulta de se considerar autor desta o sujeito que tiver violado (por acção ou por omissão) a proibição legal ou o dever jurídico cuja violação a lei comina com contra-ordenação, solução que é coerente com o facto de no Direito contra-ordenacional a ilicitude não assentar numa censura ético-jurídica mas sim na violação de um dever legal».
É certo que, como alega a Arguida, o n.º 2 do mesmo art. 7.º do RGIT afasta a responsabilidade contra-ordenacional das pessoas colectivas «quando o agente tenha actuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito».
No entanto, a alegação aduzida pela Arguida, salvo o devido respeito, não permite afastar a responsabilidade que o art. 7.º do RGIT lhe comina. Para esse efeito, não basta à Arguida alegar, como alegou, que nunca deu ordens ou instruções para que os seus trabalhadores desrespeitassem a lei e, ao invés, lhes ordena o cumprimento das prescrições legais, bem como que lhes dá formação profissional no sentido de assegurar que estes cumpram a lei, designadamente os requisitos respeitantes ao preenchimento das guias de transporte. A ser assim, por certo a sua responsabilidade nunca se verificaria (Bastaria à pessoa colectiva divulgar pelos seus trabalhadores uma compilação das regras a que devem obedecer.). Na verdade, fora do âmbito de situações patológicas, as ordens e instruções no seio de uma pessoa colectiva conformar-se-ão com a lei.
A nosso ver, como resulta do requisito legal de que as ordens ou instruções contrariadas sejam expressas (Expressas, aqui, não tem o mero sentido de manifestadas ou comunicadas (exprimidas ou explícitas), pois as ordens e instruções sempre terão de ser externadas (oralmente ou por escrito) àqueles a quem se dirigem, mas o sentido de dirigidas a uma situação concreta, dirigidas propositadamente a uma determinada situação.), seria preciso que a Arguida tivesse alegado que, no caso concreto, a acção ou omissão em que incorreu o seu empregado foi ao arrepio de uma ordem ou instrução dirigida especificamente a essa situação concreta e não à generalidade das situações, em abstracto. Só nessa hipótese a Arguida poderia desresponsabilizar-se da conduta do seu empregado.
Nem se diga que essa responsabilidade é independente de culpa. É que, como resulta da decisão administrativa a infracção foi imputada à Arguida a título de negligência.
Por isso, também nós entendemos, com a decisão recorrida, que não pode falar-se em violação do direito de defesa por a autoridade administrativa, no âmbito dos poderes que lhe estão cometidos, se ter dispensado de inquirir as testemunhas arroladas pela Arguida no âmbito da fase administrativa do processo.
O entendimento adoptado pelo Juiz do Tribunal a quo, podendo ser discutível na sua fundamentação, designadamente quando se refere à «responsabilidade objectiva das pessoas colectivas», deve ser interpretado, como salientou o Procurador-Geral Adjunto, «que a responsabilidade das pessoas colectivas assenta numa imputação directa e autónoma, quer o fundamento dessa responsabilidade se encontre num defeito estrutural da organização empresarial, quer pela imputação a uma pessoa singular funcionalmente ligada à pessoa colectiva que não precisa de ser identificada nem individualizada».
Assim, a decisão, no seu resultado, não surge como manifestamente contrária à jurisprudência ou manifestamente errada ou injusta, não configurando, pois, um caso de erro claro na decisão judicial, que, por isso, repugne manter na ordem jurídica por constituir uma afronta ao direito, a justificar a utilização do recurso previsto no n.º 2 do art. 73.º do RGCO para promoção da uniformidade da jurisprudência ou para melhoria da aplicação do direito, que, como a própria Recorrente alega, tem natureza de “válvula de escape”.
Entendemos, pois, tal como o Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal, que não é de admitir o recurso, por falta de verificação dos respectivos pressupostos.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - É aplicável subsidiariamente ao processo contra-ordenacional tributário, regulado pelo RGIT, a norma do art. 73.º, n.º 2, do RGCO, em que se permite aos tribunais superiores aceitar recursos da sentença, ou do despacho referido no art. 64.º do mesmo RGCO, quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência, mesmo em casos em que o valor da coima é inferior a ¼ da alçada do tribunal tributário.
II - Não se afigura manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência o recurso da decisão judicial que considerou que a dispensa pela autoridade administrativa da inquirição das testemunhas arroladas pelo arguido quando apresentou a sua defesa, por desnecessidade, não constitui nulidade insanável da decisão administrativa de aplicação da coima, nem violação alguma ao direito de defesa do arguido em sede de processo de contra-ordenação, consagrado no n.º 10 do art. 32.º da CRP.


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3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, em não admitir o recurso.

Custas pela Recorrente.

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Lisboa, 16 de Janeiro de 2019. – Francisco Rothes (relator) – Dulce Neto – Ana Paula Lobo.