Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01279/13
Data do Acordão:08/14/2013
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:FIEL DEPOSITÁRIO
ACTO LESIVO
Sumário:I - O art. 276.º do CPPT, em sintonia com os arts. 95.º, n.º 1, e 103.º, n.º 2, da LGT, permite ao executado ou a qualquer interessado impugnarem judicialmente (reclamar) a decisão proferida ou o acto praticado pelo órgão da execução fiscal, desde que seja lesivo dos seus direitos ou interesses legítimos (cfr. art. 268.º, n.º 4, da CRP).
II - O fiel depositário pode, pois, reclamar ao abrigo do art. 276.º do CPPT da decisão que o removeu do cargo, se dessa remoção resultar para ele a lesão de algum seu direito ou interesse legítimo; mas já não se essa remoção não tiver qualquer repercussão imediata negativa na sua esfera jurídica.
III - Nos casos em que o fiel depositário seja o executado e o bem penhorado seja um veículo automóvel, não pode considerar-se que a sua remoção do cargo de depositário constitua um prejuízo para a sua posição de executado, pois, não só o executado não tem o direito de ser nomeado fiel depositário do bem penhorado, como essa nomeação não visa dar resposta a qualquer interesse legítimo do executado, designadamente ao alegado interesse na “preservação” ou “conservação” desse bem.
IV - Porque a decisão de remoção do cargo de fiel depositário não constitui acto lesivo de qualquer direito ou interesse legítimo do executado, este não pode impugnar judicialmente essa decisão ao abrigo do art. 276.º do CPPT.
Nº Convencional:JSTA000P16141
Nº do Documento:SA22013081401279
Data de Entrada:07/17/2013
Recorrente:A....
Recorrido 1:FAZENDA PÚBLICA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Recurso jurisdicional da decisão proferida no processo de reclamação de actos do órgão de execução fiscal com o n.º 173/13.2BEPNF

1. RELATÓRIO

1.1 A……. (a seguir Reclamante ou Recorrente), invocando o disposto no art. 276.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), reclamou para o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel do acto por que foi removido das funções de fiel depositário de um veículo automóvel penhorado no âmbito de um processo de execução fiscal em que é executado.

1.2 A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel, após julgar improcedente a excepção de ilegitimidade suscitada pela Fazenda Pública, decidiu pela improcedência da reclamação por considerar que a decisão administrativa reclamada não é reclamável, uma vez que «o acto em si não ofende qualquer direito ou interesse legítimo» do Reclamante.

1.3 O Reclamante não se conformou com essa sentença e dela recorreu para este Supremo Tribunal Administrativo, apresentando com o requerimento de interposição do recurso as respectivas alegações, que resumiu em conclusões do seguinte teor:

«1.º Conforme decorre da sentença de que se recorre, o aqui recorrente é simultaneamente fiel depositário e executado, além de conjugue[sic], tendo por isso, direitos, obrigações e interesses.

2.º No art. 276.º prevê-se a possibilidade de impugnação de quaisquer actos do órgão de execução fiscal ou de outras autoridades da administração tributária que afectem os direitos ou interesses legítimos de qualquer pessoa que se sinta lesada.

3.º O ora recorrente sente-se directa e indirectamente lesado pelo acto de que reclamou, quer na qualidade de fiel depositário, quer como executado, quer como conjugue[sic].

4.º A sentença de que se recorre é ilegal, por violadora do disposto no art. 276.º do CPPT, ao não considerar o acto em causa susceptível de reclamação e a sua interpretação errónea do art. 276.º do CPPT é também ela inconstitucional, por violar directamente o disposto no n.º 4 do art. 268.º da C.R.P., dado que o acto de que reclamou ofende directa e indirectamente direitos e interesses do ora recorrente.

Termos em que, e sem prejuízo daquilo que doutamente e superiormente V.a s Ex.as poderão complementar ou suprir, deve por V.ªs Ex.ªs ser revogada a decisão da Meritíssima Juíza do tribunal “a quo”, como único acto de inteira e sã Justiça».

1.4 O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.

1.5 Não foram apresentadas contra alegações.

1.6 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo e dada vista ao Ministério Público, o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer nos seguintes termos:

«Em nosso parecer, a pretensão do ora recorrente de se manter no exercício do cargo de fiel depositário do veículo penhorado no processo de execução fiscal em que é executado, pretensão subjacente à sua reclamação do despacho de remoção de tal cargo, não se revelará estranha à tutela dispensada aos legítimos interesses do executado, nos termos do art. 276.º do CPPT, enquanto manifestação do seu específico e particular interesse na preservação/conservação do veículo de que é proprietário, de que fez eco nas suas alegações de recurso.
Assim sendo, o despacho afigura-se-nos reclamável.
Todavia, acompanhando as razões invocadas pela Fazenda Nacional, na sua contestação, a reclamação não poderá deixar de improceder, termos em que o recurso não merecerá provimento».

1.7 Dispensaram-se os vistos dos Juízes adjuntos, atento o carácter urgente do processo.

1.8 A questão suscitada pelo Recorrente é a de saber se (a sentença recorrida fez correcta interpretação e aplicação da lei quando considerou que não) pode proceder a reclamação deduzida pelo executado contra o despacho por que foi removido do cargo de fiel depositário de um veículo automóvel que lhe foi penhorado no âmbito da execução fiscal, o que, como procuraremos demonstrar, passa exclusivamente por indagar se a remoção do depositário constitui acto lesivo dos direitos ou interesses legítimos do executado.


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2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:

«1.º - Em 02.10.2007 foi instaurado o processo de execução fiscal n.º 1899200701025694 por dívidas de IVA relativas ao 1.º e 2.º trimestres do ano de 2006, no montante de € 220.315,10 e acrescidos, que corre os seus termos no Serviço de Finanças de Valongo 1, em que é executado o ora reclamante.

2.º - Em 02.11.2007 foi remetida citação pessoal, via postal, ao executado.

3.º - A mesma foi recepcionada em pessoa diversa, pelo que foi dado cumprimento ao determinado no art.241.º do CPPT.

4.º - Decorridos 30 dias após a citação, sem que tivesse sido efectuado o pagamento, nos termos do art.215.º, foi extraído mandato de penhora.

5.º - Na sequência do qual foram registados pedidos de penhora de imóvel, vencimento e veículo, que vieram a concretizar-se na penhora de imóvel com o n.º 26/2008 (em 07.01.2008) e na penhora de um veículo de matricula ……., com o n.º 302/2008 (em 10.04.2008).

6.º - Em 18.02.2008, foi apresentada pelo executado uma reclamação da decisão do órgão de execução fiscal nos termos do art. 276.º, do CPPT, invocando falta ou nulidade da sua citação pessoal e requerendo a suspensão do processo por isenção de garantia, que correu os seus termos neste Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel com o n.º 151/08.3BEPNF, a qual foi julgada improcedente.

7.º - Em 04.06.2008, o ora reclamante foi notificado para entrega dos documentos do veículo penhorado.

8.º - Em 09.06.2008, apresentou o executado reclamação nos termos do art. 276.º do CPPT, invocando de igual modo a falta ou nulidade da citação, alegando que o veículo penhorado era necessário às necessidades básicas da sua família.

9.º - Na sequência da remessa dos autos de execução fiscal ao Serviço de Finanças competente, decidiu o órgão de execução fiscal mandar repetir a citação pessoal do executado.

10.º - Em 04.02.2009 foi por este deduzida oposição à execução, a qual correu termos neste Tribunal com o n.º 235/09.0BEPNF.

11.º - Após a admissão liminar da oposição, em 11.05.2009 foi o executado notificado para prestar garantia de forma a suspender o processo executivo, nos termos do n.º 5 do art.169.º, do CPPT.

12.º - Em 29.05.2009 o executado requereu a dispensa de prestação de garantia.

13.º - Por despacho de 05.06.2009 foi deferido o pedido e determinada a suspensão dos autos, nos termos do art.169.º do CPPT até à decisão da oposição judicial.

14.º - Por sentença de 15.09.2009, foi julgada improcedente a oposição com o n.º 235/09.0BEPNF.

15.º - Decisão que já transitou em julgado.

16.º - Em 30.10.2009, foi remetida ao ora reclamante notificação para o exercício do direito de audição da sua nomeação de fiel depositário do veículo correspondente à penhora n.º 302/2008.

17.º - Em 11.11.2009 foi o mesmo notificado do pedido de entrega do veículo.

18.º - Em 12.03.2010 o executado foi nomeado fiel depositário do imóvel penhorado nos autos.

19.º - Em 12.03.2010, foi citada pessoalmente a cônjuge do executado, nos termos do art.239.º, do CPPT.

20.º - Na sequência do que veio apresentar um processo de oposição judicial que corre os seus termos por este Tribunal com o n.º 378/10.8BEPNF.

21.º - Em 06.02.2013, foi nomeado fiel depositário do veículo penhorado nos autos, um contribuinte com o NIPC: ……. .

22.º - Na sequência do que foi remetida notificação para apreensão do veículo.

23.º - Em 21.02.2013 o ora reclamante foi notificado da sua destituição como fiel depositário electronicamente.

24.º - Notificação confirmada via postal em 07.03.2013.

25.º - Em 04.03.2013, foi apresentada a presente reclamação»


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2.2 DE DIREITO

2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

Numa execução fiscal, efectuada a penhora de um veículo automóvel, foi nomeado fiel depositário o executado.
Ulteriormente, o depositário foi destituído do cargo e substituído nessas funções por um terceiro. A remoção do cargo terá sido motivada pelo facto de o depositário não ter apresentado os documentos do veículo na sequência da notificação para o efeito (cfr. facto dado como provado sob o n.º 7, que não foi posto em causa).
Veio então o executado, ao abrigo do disposto no art. 276.º do CPPT, reclamar judicialmente da decisão que o destituiu do cargo de depositário do veículo penhorado, pedindo ao Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel a anulação dessa decisão. Isto, com os seguintes fundamentos: (i) enquanto executado, reclamou de decisões proferidas no processo de execução fiscal, bem como deduziu oposição à execução fiscal, sendo que ainda não tem conhecimento das decisões proferidas nesses processos, que aguarda; (ii) foi notificado «para audição [relativamente à sua remoção do cargo de] fiel depositário», mas ulteriormente, por conversa telefónica com uma funcionária do Serviço de Finanças de Valongo 1, foi-lhe dito que «a notificação para audição […] que era automática ficava sem efeito», pelo que «o executado não deveria nem tinha que fazer nada porque ela ia dar sem efeito esta notificação».
Afigura-se-nos manifesto que a única alegação susceptível de suportar o pedido de anulação do despacho de remoção do cargo de fiel depositário seria a que respeita à alegada informação que lhe foi dada no sentido de que iria ser “dado sem efeito” o despacho que ordenou a sua notificação para o exercício do direito de audiência prévia à sua remoção do cargo, informação que teria prejudicado o exercício desse direito (e, assim, violado o seu direito de participação naquela decisão). A demais alegação não é susceptível de constituir ilegalidade do despacho ou que se possa repercutir na legalidade do mesmo, sendo que o Reclamante nem sequer tentou concretizar em que constituiria a suposta ilegalidade que poderia advir para a decisão reclamada do facto de não estarem decididos os “outros processos judiciais” a que faz referência.
Na resposta, a Fazenda Pública alegou que o Reclamante não tem legitimidade para reclamar, uma vez que o acto reclamado não contende com os interesses do Reclamante enquanto fiel depositário, mas enquanto executado, uma vez que «deixa de ter na sua posse a utilização do veículo».
A Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Penafiel começou por apreciar a excepção da ilegitimidade do Reclamante, arguida pela Fazenda Pública, julgando-a improcedente.
Depois, decidiu pela improcedência da reclamação por considerar que a decisão administrativa reclamada não é reclamável, uma vez que «o acto em si não ofende qualquer direito ou interesse legítimo» do Reclamante.
O Executado e fiel depositário discordou dessa decisão e dela veio recorrer para este Supremo Tribunal Administrativo.
Boa parte das alegações de recurso foi dedicada à demonstração da possibilidade de qualquer interessado impugnar judicialmente (reclamar ao abrigo do art. 276.º do CPPT) os actos praticados ou as decisões proferidas pelo órgão da execução fiscal que lesem os seus direitos ou interesses legalmente protegidos.
Mas, salvo o devido respeito, é questão que não cumpre apreciar nos presentes autos, pois não foi com fundamento na impossibilidade de o fiel depositário/executado impugnar judicialmente a decisão que a reclamação foi julgada improcedente (A questão foi abordada sob a óptica da legitimidade pela sentença recorrida que, julgando improcedente a excepção da ilegitimidade arguida pelo Representante da Fazenda Pública, decidiu expressamente que o Reclamante é parte legítima. E, na verdade, não há qualquer dúvida de que o meio processual previsto no art. 276.º do CPPT está disponível, não só para o executado, como para qualquer interessado, como resulta inequivocamente do teor do preceito legal na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2002). Aliás, ainda antes (ou seja, quando a redacção do artigo se referia exclusivamente a executado), a doutrina e a jurisprudência vinham entendendo que o art. 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, bem como o art. 95.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, impunham que se admitisse a reclamação por qualquer interessado.
Sobre a questão, vide JORGE LOPES DE SOUSA, Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, IV volume, anotação 3 ao art. 276.º, págs. 268/269.); o motivo por que a reclamação foi julgada improcedente foi, exclusivamente, o de a decisão reclamada não ser lesiva dos direitos ou interesses legítimos do Reclamante.
Se bem interpretamos as alegações de recurso e respectivas conclusões, na parte que importa considerar, o Recorrente discorda da sentença porque considera que, ao contrário do que nesta se decidiu, a sua remoção do cargo de depositário afecta os seus direitos, quer como depositário, quer como executado, quer como cônjuge: como depositário, porque «com a sua remoção foi posta em causa, nomeadamente a sua idoneidade»; como executado, porque foi preterido o seu «interesse na preservação do automóvel», uma vez que entende que este seria «mais bem conservado nas suas mãos do que nas de um qualquer estranho»; como cônjuge (não é bem perceptível a invocação da qualidade de cônjuge por quem é o próprio executado, mas, ao que parece, o Recorrente fá-la derivar do facto da sua mulher ter deduzido oposição), porque o bem penhorado é do casal.
Na verdade, porque a sentença julgou a reclamação improcedente por considerar que a decisão administrativa em causa não viola qualquer direito ou interesse legítimo do Reclamante, cumpre verificar se tal violação ocorreu, pelos motivos invocados em sede de recurso ou por outros.
Note-se que o art. 276.º do CPPT, admitindo a impugnação judicial por qualquer interessado dos actos praticados ou decisões proferidas no âmbito da execução fiscal, faz depender essa possibilidade da circunstância desses actos serem lesivos dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, ou seja, serem susceptíveis de afectar negativamente a esfera jurídica dos particulares, quer retirando-lhes direitos ou impondo-lhes obrigações, quer recusando-lhe o reconhecimento de direitos ou a satisfação de pretensões (Cfr. JORGE LOPES DE SOUSA, ob. cit., I volume, anotação 3 ao art. 96.º, pág. 28, e IV volume, nota 4 ao art. 276.º, págs. 269-271.
Na jurisprudência, vide os seguintes acórdãos desta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 30 de Julho de 2008, proferido no processo n.º 553/08, publicado no Apêndice ao Diário da República de 7 de Novembro de 2008 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2008/32230.pdf), págs. 887 a 889, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/1263135885d267338025749e003b77c5?OpenDocument;
- de 6 de Fevereiro de 2013, proferido no processo n.º 42/13, ainda não publicado no jornal oficial, mas disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/443d00ab9cdc3b0980257b210039e650?OpenDocument.).
É manifesto que a remoção do cargo de fiel depositário pode constituir acto lesivo dos direitos e interesses daquele que foi nomeado para esse cargo. Desde logo, porque dessa remoção, se motivada pelo incumprimento das obrigações que a lei faz recair sobre o depositário, designadamente pela falta injustificada de apresentação dos bens, podem advir-lhe consequências negativas sobre a sua esfera jurídica, quer a nível patrimonial, com a possibilidade de ser executado por uma importância equivalente ao valor dos bens depositados [cfr. art. 854.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC) e art. 233.º, alínea a), do CPPT], quer a nível criminal, podendo ser responsabilizado pela prática de um crime de abuso de confiança qualificado ou de desobediência [cfr. arts. 205.º, n.ºs 1 e 2, e 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal].
Mas não foi para obviar a que seja executado pelo valor do veículo depositado ou para obviar à denúncia criminal (Denúncia que é obrigatória para os funcionários, de acordo com o disposto no art. 242.º, alínea b), do Código de Processo Penal.), situações que não se verificaram no caso sub judice, que o Reclamante veio impugnar judicialmente a decisão por que foi removido do cargo de depositário.
Como ele mesmo afirma, reagiu contenciosamente contra essa decisão enquanto depositário porque a mesma «põe em causa a sua idoneidade». No entanto, não concretiza, nem nós vislumbramos, em que constitui a invocada violação à sua idoneidade e de que modo a mesma afecta os seus direitos ou interesses.
Por outro lado, não pôs em causa a factualidade dada como assente (Se o tivesse feito, a competência em razão da hierarquia para apreciar este recurso não seria deste Supremo Tribunal Administrativo, mas do Tribunal Central Administrativo Norte, atento o disposto nos arts. 26.º, alínea b), e 38.º, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, e no art. 280.º, n.º 1, do CPPT.) e da qual resulta que não cumpriu com a entrega dos documentos do veículo, o que sempre impediria que a sua reclamação fosse julgada procedente.
O ora Recorrente afirma também que a sentença fez errado julgamento quando não atentou em que a decisão reclamada lesa os seus direitos como cônjuge. Salvo o devido respeito, a alegação do Recorrente não é perceptível eafigura-se-nos que resulta de uma deficiente compreensão dos estatutos processuais de executado e de cônjuge do executado. Sendo o Recorrente executado nos autos, não pode pretende assumir no processo outra qualidade processual que a lei não lhe reconhece.
Seja como for, o facto de a sua mulher ter deduzido oposição à execução fiscal e de o respectivo processo não estar ainda decidido afigura-se-nos absolutamente inócuo relativamente a uma eventual lesão dos direitos ou interesses legítimos do ora Recorrente pela decisão reclamada. Note-se que também o Recorrente não refere como se concretiza essa lesão.
Não seria, pois, com fundamento numa eventual lesão de direitos ou interesses legítimos do Reclamante enquanto fiel depositário ou enquanto “cônjuge” que a reclamação poderia ser bem-sucedida. O recurso nunca poderia ser provido com fundamento em erro de julgamento quanto a essa lesão.
Assim, resta-nos como questão a apreciar e decidir – a única que verdadeiramente importa apreciar e decidir, como adiantámos em 1.9 – a de saber se a decisão reclamada lesa os seus direitos e interesses enquanto executado, designadamente se da mesma resulta preterido o seu «interesse na preservação do automóvel», que sustenta que seria «mais bem conservado nas suas mãos do que nas de um qualquer estranho».

2.2.2 DA REMOÇÃO DO DEPOSITÁRIO COMO ACTO SUSCEPTÍVEL DE LESAR DIREITOS OU INTERESSES LEGÍTIMOS DO EXECUTADO

Desde logo, cumpre ter presente que o executado não tem o direito de ser nomeado fiel depositário. Vejamos:
Nos termos do disposto no art. 221.º, alíneas a) e b) do CPPT (O art. 221.º do CPPT dispõe:
«Na penhora de móveis observar-se-á designadamente o seguinte:
a) Os bens serão efectivamente apreendidos e entregues a um depositário idóneo, salvo se puderem ser removidos, sem inconveniente, para os serviços ou para qualquer depósito público;
b) O depositário é escolhido pelo funcionário, podendo a escolha recair no executado;
c) Na penhora lavrar-se-á um auto que será lido em voz alta e assinado pelo depositário ou por duas testemunhas, onde se registe o dia, hora e local da diligência, se mencione o valor da execução, se relacionem os bens por verbas numeradas, se indique o seu estado de conservação e valor aproximado e se refiram as obrigações e responsabilidades a que fica sujeito o depositário a quem será entregue uma cópia;
d) Se o executado estiver presente e se recuse a assinar, mencionar-se-á o facto».), a penhora de bens móveis efectiva-se por apreensão efectiva do bem penhorado e, em face da inexistência de depósito público para o qual possa ser removido o veículo automóvel penhorado, o mesmo deverá ser entregue a um depositário, da escolha do funcionário, podendo a escolha recair no executado.
Relativamente aos veículos automóveis, porque o CPPT, para além do disposto no art. 230.º do CPPT (O art. 230.º do CPPT dispõe:
«1 - Quando a penhora de móveis estiver sujeita a registo, será este imediatamente requerido pelo órgão da execução fiscal, aplicando-se o n.º 4 do artigo 195.º.
2 - O serviço competente efectuará o registo no prazo de 15 dias e, dentro deste prazo, remeterá o respectivo certificado e a certidão de ónus, a fim de serem juntos ao processo.
3 - A penhora prevista neste artigo também pode ser realizada por comunicação electrónica à conservatória competente, nos termos previstos no Código de Processo Civil».), nada mais prevê, é de considerar subsidiariamente aplicável o disposto no art. 851.º, n.ºs 2 e 3, do CPC (Dizem os n.ºs 2 e 3 do art. 851.º do CPC:
«2 - A penhora de veículo automóvel é seguida de imobilização do veículo, designadamente através da imposição de selos ou de imobilizadores e da apreensão do documento de identificação do veículo, nos termos dos n.os 3 a 8 do artigo 164.º e do artigo 161.º do Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, com as necessárias adaptações, e de portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.
3 - Após a penhora e a imobilização, o veículo só é removido quando o agente de execução entenda necessário para a salvaguarda do bem, aplicando-se, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 167.º e 168.º do Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio».), no que se refere às medidas destinadas à apreensão efectiva (Neste sentido, JORGE LOPES DE SOUSA, ob. cit., III volume, anotação 8 ao art. 230.º, pág. 636.). Ou seja, a penhora implica a imobilização do veículo e a sua entrega à guarda de um depositário idóneo, cuja escolha recai sobre o funcionário.
Apesar de, como já referimos, a escolha do fiel depositário pelo funcionário poder recair sobre o executado, este não tem direito a ser nomeado quando o bem penhorado seja um veículo automóvel (Tanto quanto nos recordamos, o direito de escolha do depositário só não existe nos casos previstos no art. 839.º, n.º 1, do CPC.). Consequentemente, a sua remoção do cargo também não afecta qualquer direito que lhe advenha da sua qualidade de executado.
É certo que o Recorrente argumenta com o seu «interesse na preservação do automóvel», uma vez que entende que este seria «mais bem conservado nas suas mãos do que nas de um qualquer estranho». Mas essa argumentação não procede.
Desde logo, a lei entendeu não tutelar esse “interesse”; caso contrário, teria estabelecido uma preferência pela nomeação do executado como fiel depositário do veículo que lhe seja penhorado, solução que não foi a adoptada.
Depois, porque o alegado interesse do Executado só estaria melhor assegurado pela sua nomeação como fiel depositário se estivesse demonstrado que reúne condições para o exercício do cargo e que o fiel depositário que o substituiu no exercício do cargo não as reúne, demonstração que nem sequer foi ensaiada.
Finalmente, o interesse do executado na guarda e conservação do bem penhorado está garantido pelo conteúdo funcional do cargo de fiel depositário, do qual destacamos o dever de guarda (cfr. art. 1187.º do Código Civil), e pela responsabilidade que a lei lhe assaca pelo incumprimento dos seus deveres. Note-se que se o fiel depositário incumprir com os seus deveres, designadamente os de guarda ou conservação, não só ele, como também o Estado, podem ser responsabilizados. Na verdade, o Estado pode ser responsabilizado pelos actos do depositário, que deve ser considerado como um seu agente ad hoc (Cfr. JORGE LOPES DE SOUSA, ob. cit., III volume, anotação 7 ao art. 233.º, págs. 645/646.), como decidiu já este Supremo Tribunal Administrativo (Vide o acórdão da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo de 5 de Dezembro de 2007, proferido no processo n.º 491/07, publicado no Apêndice ao Diário da República de 21 de Maio de 2008 (http://www.dre.pt/pdfgratisac/2007/32140.pdf), págs. 3536 a 3545, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/4def1c891caaa487802573b6005c1b67?OpenDocument.).
Por tudo o que vimos de dizer, concluímos que bem andou a sentença recorrida ao considerar que a decisão de remoção do cargo de fiel depositário não constitui acto lesivo de qualquer direito ou interesse legítimo do executado, motivo por que este não pode obter sucesso na impugnação judicial dessa decisão ao abrigo do art. 276.º do CPPT.
O recurso não merece, pois, provimento.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - O art. 276.º do CPPT, em sintonia com os arts. 95.º, n.º 1, e 103.º, n.º 2, da LGT, permite ao executado ou a qualquer interessado impugnarem judicialmente (reclamar) a decisão proferida ou o acto praticado pelo órgão da execução fiscal, desde que seja lesivo dos seus direitos ou interesses legítimos (cfr. art. 268.º, n.º 4, da CRP).
II - O fiel depositário pode, pois, reclamar ao abrigo do art. 276.º do CPPT da decisão que o removeu do cargo, se dessa remoção resultar para ele a lesão de algum seu direito ou interesse legítimo; mas já não se essa remoção não tiver qualquer repercussão imediata negativa na sua esfera jurídica.
III - Nos casos em que o fiel depositário seja o executado e o bem penhorado seja um veículo automóvel, não pode considerar-se que a sua remoção do cargo de depositário constitua um prejuízo para a sua posição de executado, pois, não só o executado não tem o direito de ser nomeado fiel depositário do bem penhorado, como essa nomeação não visa dar resposta a qualquer interesse legítimo do executado, designadamente ao alegado interesse na “preservação” ou “conservação” desse bem.
IV - Porque a decisão de remoção do cargo de fiel depositário não constitui acto lesivo de qualquer direito ou interesse legítimo do executado, este não pode impugnar judicialmente essa decisão ao abrigo do art. 276.º do CPPT.


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3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo acordam, em conferência, negar provimento ao recurso.

Custas pelo Recorrente.


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Lisboa, 14 de Agosto de 2013. – Francisco Rothes (relator) – Madeira dos Santos – Rui Botelho.