Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0302/15
Data do Acordão:04/15/2015
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ISABEL MARQUES DA SILVA
Descritores:RECLAMAÇÃO JUDICIAL
ILEGALIDADE DA PENHORA
MORATÓRIA
PLANO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
INDISPONIBILIDADE DOS CRÉDITOS TRIBUTÁRIOS
Sumário:I – Os n.ºs 2 e 3 do art. 36.º da LGT são peremptórios ao estabelecer que os elementos essenciais da relação jurídica tributária não podem ser alterados por vontade das partes e que a AT não pode conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias (cfr. também o n.º 3 do art. 85.º do CPPT), salvo nos casos expressamente previstos na lei.
II – A indisponibilidade dos créditos tributários, consagrada no n.º 2 do art. 30.º da LGT («O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária»), foi reafirmada pelo n.º 3 aditado àquele artigo pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2011), que estipula: «O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial».
III – O processo especial de revitalização instituído pelos arts. 17.º-A a 17.º-I, aditados ao CIRE pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, não autoriza a AT a conceder qualquer moratória na cobrança das dívidas tributárias para além das já previstas na lei.
Nº Convencional:JSTA00069147
Nº do Documento:SA2201504150302
Data de Entrada:03/12/2015
Recorrente:FAZENDA PÚBLICA
Recorrido 1:A... LDA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC JURISDICIONAL
Objecto:SENT TAF VISEU
Decisão:PROVIDO
Área Temática 1:DIR PROC TRIBUT CONT - EXEC FISCAL.
Legislação Nacional:CIRE2012 ART17-A - ART17-I.
L 16/2012 DE 2012/04/20.
LGT ART30 N2 N3 ART36 N2 N3 ART55.
CPPTRIB99 ART85 N3 ART196 N6 N7.
L 55-A/2010 DE 2010/12/31 ART123.
CONST ART103 N3 ART266 N2.
CPA ART5 N1.
Jurisprudência Nacional:AC STA PROC0278/15 DE 2015/03/25.; AC STJ PROC464/07.1TBSJM-L.S1 DE 2009/06/04.; AC STJ PROC467/09.1TYVNG-Q.P1.S1 DE 2011/12/15.
Referência a Doutrina:DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM RODRIGUES E JORGE DE SOUSA - LEI GERAL TRIBUTÁRIA ANOTADA E COMENTADA 4ED.
SARA L. S. VEIGA DIAS - O CRÉDITO TRIBUTÁRIO E AS OBRIGAÇÕES FISCAIS NO PROCESSO DE INSOLVÊNCIA UNIVERSIDADE MINHO - ABRIL 2012.
SUSANA TAVARES DA SILVA E MARTA COSTA SANTOS - CRÉDITOS FISCAIS NOS PROCESSOS DE INSOLVÊNCIA REFLEXÕES CRITICAS E REVISÃO DA JURISPRUDÊNCIA.
RUI DUARTE MORAIS - A EXECUÇÃO FISCAL 2ED.
Aditamento:
Texto Integral: Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- Relatório -
1 – A Fazenda Pública recorre para este Supremo Tribunal da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, de 2 de Fevereiro de 2015, que julgou procedente a reclamação judicial deduzida por A…………………, LDA, com os sinais dos autos, do despacho do Chefe do Serviço de Finanças de Viseu que ordenou a penhora de imóvel no âmbito do processo de execução fiscal n.º 27202014140163707, instaurado para cobrança coerciva de dívidas de IRS (retenção na fonte), referente ao período de Dezembro de 2013, no montante de €1.854,91.
A recorrente termina as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:

a) Incide o presente recurso sobre a douta sentença que julgou procedente a reclamação apresentada nos autos com a consequente revogação do despacho reclamado, cumprindo indagar da sua legalidade;

b) Está em causa decisão proferida pelo Órgão de Execução Fiscal que ordenou a penhora de um bem imóvel, no caso as instalações da reclamante;

c) Segundo o douto entendimento do Tribunal a quo, não pode ser instaurado qualquer processo de execução e suspendendo-se os existentes, enquanto pender o plano especial de revitalização da empresa reclamante, ao abrigo do art. 17.º-E, n.º 1 do CIRE;

d) Atentos à factualidade cronológica dos acontecimentos, podemos facilmente depreender que a AT agiu em conformidade com os princípios básicos da legalidade fiscal, tendo em atenção a intangibilidade dos créditos tributários e a sua prevalência sobre qualquer legislação especial.

e) A reclamante devedora requereu um plano de recuperação (PER) em 15/11/2013. De acordo com o legalmente previsto, existindo dívidas fiscais à data, no montante de € 23,50, foram as mesmas reclamadas, tendo a AT, através da Direcção de Serviços de Gestão dos Créditos Tributários, manifestado intenção em participar nas negociações do PER, de acordo com o Ofício 8950 de 28/11/2013. Não obstante esta disponibilidade, o certo é que nunca foi contactada para fazer parte das negociações, embora esta fosse uma diligência obrigatória por lei, nem da lista provisória publicada no “Portal Citius”, nem da listagem oficial da homologação, consta a AT como credora;

f) O PER foi homologado em 10/03/2014 e afixado por edital em 13/03/2014 (Processo n.º 3523/13.8TBVIS). A instauração do processo executivo onde ocorreu a penhora objecto de reclamação, reporta-se à data de 20/02/2014, não tendo sido realizado qualquer acto conducente à cobrança da dívida até à data de 18/07/2014, data da penhora, muito portanto, após a conclusão das negociações;

g) Tenha-se presente que as normas insertas nos artigos 17-A a 17-I do CIRE não se sobrepõem às normas fiscais, conforme dispõe o TCA Sul, no seu douto Acórdão de 08/02/11, no Processo n.º 4497/11: “1. Do princípio da indisponibilidade dos créditos tributários, enunciado no art. 30.º, n.º 2, da L. G. Tributária, decorre a inadmissibilidade, em execuções fiscais em que esteja em causa a sua cobrança, de causas de extinção da execução não previstas nas leis tributárias”, atentos ainda ao facto de que a própria concessão de moratórias se encontra vedada, a não ser nos casos e condições expressamente previstos na lei (vide artigos 36.º, n.º 3 da LGT e 85.º, n.º 3 do CPPT);

h) Mesmo admitindo-se a aplicação das normas dos artigos 17.º-A a 17.º-I do CIRE, verifica-se, ainda assim, que não foram efectuadas diligências que afectassem patrimonialmente a situação da devedora durante as negociações, como refere o art. 17.º-E, n.º 1 do CIRE, pois a instauração do processo executivo e a penhora ocorreram muito tempo depois do terminus das negociações;

i) Assenta a posição da AT no facto de que, sendo a penhora praticada em sede executiva posterior ao desenlace das negociações do PER, não estava a elas vinculada;

j) Não foi a AT tida nem achada nas negociações do PER, embora, de acordo com o legalmente previsto, cfr. art. 17.º-I do CIRE, devesse a devedora ter notificado todos os credores, mesmo os que não participaram nas negociações, ficando a elas subjugados, mau grado a AT ter realizado todas as diligências ao seu alcance para participar nas mesmas negociações;

k) Como dever obrigatório da defesa da causa pública que impende sobre a AT, acautelando os seus créditos, mal andaria a Fazenda Pública se concedesse alguma excepção, que não é coberta, no nosso entendimento, por qualquer preceito legal;

l) Ao admitir-se a aplicação aos tributos fiscais das normas dos artigos 17.º-A a 17.º-I do CIRE, esclarece-se que as mesmas só se aplicam ao período em que decorreram as negociações (cfr. n.º 1 do art. 17.º-E do CIRE) para o efeito de obstar à instauração de nova execução ou suspensão das que estejam em curso, extinguindo-se imediatamente a seguir à homologação do plano especial de revitalização;

m) De facto, em face do exposto, tem que ser mantida na ordem jurídica a penhora, por terem sido observados, na íntegra, os preceitos legais;

n) Nestes termos, somos de parecer que o despacho reclamado que ordenou a penhora do bem imóvel, não padece de qualquer vício, devendo o processo executivo prosseguir os seus trâmites legais.

Termos em que, concedendo-se provimento ao presente recurso, deve a decisão recorrida ser revogada, com a consequente manutenção do despacho reclamado, prosseguindo a execução os seus termos normais.

2 – Não foram apresentadas contra-alegações.

3 – O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto junto deste STA emitiu o parecer de fls. 143/145 dos autos, concluindo no sentido da procedência do recurso, com a consequente revogação da sentença recorrida e a baixa dos autos ao tribunal “a quo” para apreciação das demais questões relativas à legalidade da penhora suscitadas pelo reclamante.

Sem vistos, dado o carácter urgente do processo, vêm os autos à conferência.

- Fundamentação –

4 – Questão a decidir
É a de saber se a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento ao ter considerado ilegal a penhora efectuada pelo Serviço de Finanças por ter sido ordenada no âmbito de um processo de execução fiscal que não deveria ter prosseguido, atenta a “pendência” de um processo especial de revitalização, instituído pelos arts. 17.º-A a 17.º-I, aditados pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, ao Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), que foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Maio.

5 – Matéria de facto
Na decisão recorrida foram fixados os seguintes factos:
1. Em 15/11/2013, a Reclamante apresentou em juízo um requerimento manifestando a pretensão de levar a cabo negociações com os credores em ordem à obtenção de um acordo dirigido à recuperação da empresa que foi autuado sob o n.º 3523/13.8TBVIS e correu termos pelo 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Viseu. – cfr. certidão de fls. 10 dos autos (SITAF).
2. Em 19/11/2013, foi nomeado o administrador judicial provisório, dada publicidade ao Processo Especial de Revitalização e estipulado prazo para que os credores viessem reclamar os seus créditos – facto não controvertido.
3. Por sentença de 10/03/2014 foi homologado o plano de recuperação da empresa reclamante e declarado encerrado o processo – cfr. fls. 11/12 dos autos (SITAF).
4. Da referida sentença consta, entre o mais, o seguinte: “Mais determino que a presente decisão, nos termos do disposto no artigo 17.º-F, n.º 6, CIRE vincula os credores que não hajam participado na negociação”. – cfr. fls. 12 dos autos (SITAF).
5. O plano de recuperação consta de fls. 158 a 207 dos autos (SITAF), cujo teor se tem por reproduzido.
6. Através de edital afixado em 13.03.2014 foi dada publicidade à referida homologação, dele constando o seguinte: “Mais ficam citados todos os credores e demais interessados de tudo o que antecede e ainda de que a citação vincula os credores, mesmo aqueles que não hajam participado nas negociações” – cfr. fls. 13 dos autos (SITAF).
7. Da decisão referida no ponto 3 foram interpostos recursos para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão datado de 21.10.2014, foram julgados improcedentes. – cfr. acórdão de fls. 78 a 114 dos autos (SITAF).
8. Pelo ofício n.º 8950, de 28/11/2013, remetido pela Direcção de Serviços de Gestão dos Créditos Tributários e dirigido à Reclamante, com o conhecimento do Sr. Administrador Judicial Provisório, a Administração Fiscal manifestou disponibilidade para participar nas negociações a realizar, no âmbito do Processo Especial de Revitalização, bem como as condições de regularização dos seus créditos – cfr. fls. 23/25 dos autos (SITAF).
9. Em 23/01/2014, a Direcção de Serviços de Gestão dos Créditos Tributários remeteu novo ofício dirigido à Reclamante, com o conhecimento do Sr. Administrador Judicial Provisório, no qual refere que apesar da disponibilidade manifestada para participar nas negociações, até ao momento não foi contactada para o efeito, reiterando as condições de regularização dos créditos tributários – cfr. fls. 26/28 dos autos (SITAF).
10. Posteriormente ao início do processo de revitalização, a Reclamante entrou em incumprimento das suas obrigações fiscais, nomeadamente no que diz respeito ao pagamento do IRS/Retenção na Fonte e IVA, tendo sido, a partir de dezembro de 2013 instaurados pelo Serviço de Finanças de Viseu diversos processos de execução fiscal contra a Reclamante, ascendendo ao valor global de 72.159,36 € – cfr. fls. 29 dos autos (SITAF).
11. O processo de execução fiscal n.º 272020140163707 foi instaurado em 20.02.2014 para cobrança coerciva da quantia de 1.854,91€, IRS (Retenção na Fonte), referente ao período de dezembro de 2013 e respectivos juros de mora. – cfr. fls. 11 e 29 dos autos (SITAF).
12. O prazo de pagamento voluntário da dívida em causa terminou em 30/01/2014 – cfr. fls. 11 dos autos (SITAF).
13. Em 19/05/2014, a Reclamante dirigiu à Direcção de Serviços de Gestão de Créditos Tributários requerimento de pagamento da dívida exequenda em prestações, a incluir no Plano Especial de Revitalização que, por despacho do Sr. Director de Serviços, por delegação, foi indeferido – cfr. fls. 36 dos autos.
14. A Reclamante, em 27/08/2014, formulou junto do órgão de execução fiscal pedidos de pagamento em prestações no âmbito dos processos de execução fiscal principais n.º 2720201301151746 e n.º 2720201401205986, que foram deferidos na condição de no prazo de 15 dias ser prestada garantia idónea no valor de 71.822,28 € e 10.172,63 €, respectivamente – cfr. fls. 51/52 dos autos (SITAF).
15. A Administração Tributária procedeu à penhora do imóvel inscrito na matriz urbana da freguesia de …………., concelho e distrito de Viseu sob o n.º 3942-R/C-B e descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Viseu sob o n.º 52177/2006020. – cfr. certidão de fls. 14 e ss. dos autos (SITAF).
16. O imóvel referido no ponto anterior encontra-se onerado com três hipotecas voluntárias, com o valor máximo assegurado em cada uma de 232.093,75 €, 285.723,00 € e 337.802,50 € – cfr. certidão de fls. 14 e ss. dos autos (SITAF).
17. A Reclamante desenvolve a sua atividade comercial no imóvel penhorado.



6 – Apreciando.
6.1 – Da (i)legalidade da penhora em virtude da “pendência” de Processo Especial de Revitalização
A sentença recorrida, a fls. 106 a 118 dos autos, julgou procedente a reclamação judicial deduzida pela ora recorrida do despacho do Chefe de Finanças de Viseu que, no âmbito do processo de execução fiscal n.º 272020140163707, instaurado para cobrança coerciva de dívidas de IRS relativas a Dezembro de 2013, ordenou a penhora do imóvel onde exerce a sua actividade comercial, no entendimento de que tal penhora era ilegal.
Para assim decidir, considerou o Tribunal “a quo” - após referir que a questão se prende com a interpretação dos arts. 17.º-A a 17.º-I do CIRE e de tecer diversos considerandos sobre o diploma – Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril – que aditou essas normas àquele Código e sobre o PER pelas mesmas instituído -, em síntese, que o artigo 17.º-E, n.º 1 do CIRE consagra uma norma especial que afasta a aplicação do CPPT, designadamente o n.º 6 do art. 180.º, como resulta da melhor interpretação do n.º 1 do art. 17.º-E do CIRE, que dispõe que o despacho por que o juiz nomear o administrador judicial provisório obsta à instauração de «quaisquer acções» para a cobrança de dívidas contra o devedor e que a paralela cobrança de dívidas fiscais inviabilizaria na prática a boa concretização do plano de revitalização», pelo que concluiu pela impossibilidade de instauração de novos processos de execução fiscal, mesmo que para cobrança de créditos vencidos após o despacho de nomeação do administrador provisório», razão pela qual julgou a penhora ilegal e ordenou o seu levantamento.

Discorda do decidido a Fazenda Pública, imputando à sentença recorrida erro de julgamento, alegando, em síntese, que as normas dos arts. 17.º-A a 17.º-I do CIRE não se sobrepõem às normas fiscais (e, por isso e por falta de previsão legal, não podia a AT conceder moratória alguma na cobrança da dívida exequenda) e, que, mesmo a admitir-se que são aplicáveis aquelas normas, a instauração do processo executivo e a penhora ocorreram muito após a conclusão das negociações ocorridas no PER.

O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal, no seu parecer junto aos autos, sustenta o provimento do recurso, de harmonia, aliás, com o decidido por Acórdão do STA do passado dia 25 de Março, proferido no recurso n.º 278/15, em que as partes são as mesmas e idêntica é a questão decidenda, bem como, no essencial, as alegações de recurso e os probatórios fixados (salvo no que à dívida exequenda respeita).

Sufragamos o mesmo entendimento da questão, pelo que, com a devida vénia, nos limitaremos a transcrever o que sobre ela se consignou no referido Acórdão do passado dia 25 de Março, recurso n.º 278/15:

«Acompanhamos a sentença no segmento em que dá conta da evolução histórica do designado, hoje talvez algo impropriamente, direito falimentar, cujas soluções, umas vezes privilegiam a recuperação das empresas e, outras, manifestam preferência pela liquidação delas, bem como quanto aos pertinentes considerandos que teceu em torno dos motivos e dos fins prosseguidos pelo PER.

No que respeita às alterações introduzidas pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril – que institui o PER, aditando ao CIRE os arts. 17.º-A a 17.º-I –, a opção foi claramente no sentido de privilegiar e fomentar a recuperação, como decorre dos trechos da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 39/XII, que esteve na sua origem e que a Juíza do Tribunal a quo oportunamente transcreveu na sentença recorrida.

Mas, a nosso ver, as alterações introduzidas pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, no CIRE, prosseguindo como principal objectivo o de «reorientar o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas para a promoção da recuperação, privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial, relegando-se para segundo plano a liquidação do seu património sempre que se mostre viável a sua recuperação» (Cfr. o segundo parágrafo da referida exposição de motivos.), não permitem concluir que o legislador tenha querido ou admitido restrição alguma ao princípio da indisponibilidade dos créditos tributários ou sequer que a sua cobrança pudesse sofrer restrições outras para além das consagradas na legislação aplicável, maxime na Lei Geral Tributária (LGT), que, não constituindo lei de valor reforçado, assume a natureza de lei que fixa os princípios e fundamentos do sistema tributário (DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, Encontro da Escrita, 4.ª edição, anotações 1 e 3 ao art. 2.º, págs. 64 a 66: «A LGT não é uma lei constitucional nem sequer uma lei reforçada. […] Contudo, foi intenção do legislador que a LGT fosse uma lei de “cúpula” do sistema tributário, fixando os seus princípios estruturantes e fundamentantes em matéria axiológica», visando «como regra, regular exaustivamente as matérias de que trata […] [d]e modo que, qualquer futura alteração nestas matérias, ou deve ser introduzida na própria lei geral ou deve ser vista pelo legislador como uma verdadeira derrogação a esta e, como tal, devidamente ponderada e assinalada»; consequentemente, «o art. 2.º revela a intenção do legislador de sobrepor, nas matérias de que esta trata, a Lei Geral Tributária às restantes leis ordinárias».), e no Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Nesse sentido, da transcrição feita na sentença da referida exposição de motivos permitimo-nos salientar a seguinte passagem, respeitante ao PER: «[…] Este processo especial permite ainda a rápida homologação de acordos conducentes à recuperação de devedores em situação económica difícil celebrados extrajudicialmente, num momento de pré-insolvência, de tal modo que os referidos acordos passem a vincular também os credores que aos mesmos não se vincularam, desde que seja respeitada a legislação aplicável à regularização de dívidas à administração fiscal e à segurança social e observadas determinadas condições que asseguram a salvaguarda dos interesses dos credores minoritários» (sublinhado nosso).

Aponta também nesse sentido o terceiro parágrafo da mesma exposição de motivos, que a sentença não transcreveu, mas que se nos afigura também relevar para o correcto enquadramento da questão a dirimir; por isso, transcrevemo-lo agora: «As alterações que se propõem ao artigo 1.º visam, por um lado, sublinhar que a recuperação dos devedores é, sempre que possível, primacial face à sua liquidação, desde que, obviamente, tal não prejudique a satisfação tão completa quanto possível dos credores do devedor insolvente, designadamente a administração fiscal e a segurança social» (sublinhado nosso).

Afigura-se-nos, pois, que, como resulta da referida exposição de motivos, o legislador não quis de modo algum que o propósito assumido de promover a recuperação dos devedores que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente, em ordem a possibilitar a manutenção do devedor no giro comercial, o tenha determinado a alijar a natureza indisponível dos créditos tributários.

A indisponibilidade dos créditos tributários está expressamente prevista no n.º 2 do art. 30.º da LGT, que dispõe: «O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária».

A indisponibilidade dos créditos tributários – que significa que AT não pode discricionariamente alterar a relação jurídica tributária e, assim, dispor livre e autonomamente dos seus créditos – decorre, em última análise, do princípio da legalidade tributária, que impõe à AT que actue com vista à obtenção da prestação efectivamente devida nos termos da lei fiscal [cfr. arts. 103.º, n.º 3, e 266.º, n.º 2, da CRP e art. 3.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo (CPA)], e do princípio da igualdade [cfr. arts. 13.º e 266.º, n.º 2, da CRP e art. 5.º, n.º 1, do CPA], que lhe impõe a obrigação de prosseguir o objectivo de tratar igual e uniformemente todos os contribuintes, maxime na exigência, modificação ou extinção das obrigações tributárias deles. Ambos os princípios estão também consagrados no art. 55.º da LGT, que enumera os princípios a observar pela AT na sua actividade.

Por outro lado, o art. 36.º da LGT, no seu n.º 2, é inequívoco: «Os elementos essenciais da relação jurídica não podem ser alterados por vontade das partes» (Como dizem DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, ob. cit., anotação 8 ao art. 36.º, pág. 297, «nenhum elemento da relação tributária pode ser alterado por vontade das partes: nem o objecto da obrigação; nem os juros; nem o prazo de pagamento, etc.» pois «[a] isto se opõe o princípio da legalidade dos impostos e o princípio da legalidade da actividade administrativa».); concretizando, no campo das moratórias, o princípio do citado n.º 2, o n.º 3 do mesmo artigo afirma: «A administração tributária não pode conceder moratórias no pagamento das obrigações tributárias, salvo nos casos expressamente previstos na lei». Em sintonia com o n.º 3 do art. 36.º da LGT, o art. 85.º, n.º 3, do CPPT, prevê que possam ser responsabilizados subsidiariamente os que, dolosamente, concederem moratórias fora dos casos previstos na lei.

Tendo presente o que vimos de dizer, podemos avançar no sentido de que a indisponibilidade do crédito tributário e a impossibilidade de a AT conceder moratórias não previstas na lei (Uma eventual excepção a esse princípio sempre exigiria uma inequívoca manifestação de vontade nesse sentido, concretizada em lei formal da Assembleia da República ou Decreto-Lei do Governo, na sequência de uma Lei de Autorização Legislativa emitida pelo Parlamento para esse efeito, sob pena de violação do princípio da legalidade e da tipicidade tributária.) não foram de modo algum postas em causa pelo CIRE (Para maior desenvolvimento sobre a temática da relação entre os créditos tributários e os processos previstos no CIRE, vide

- SARA LUÍS DA SILVA VEIGA DIAS, O Crédito Tributário e as Obrigações Fiscais no Processo de Insolvência, Universidade do Minho, Escola de Direito, Abril de 2012, disponível em
http://hdl.handle.net/1822/21395 e
- SUZANA TAVARES DA SILVA e MARTA COSTA SANTOS, Os créditos fiscais nos processos de insolvência: reflexões críticas e revisão da jurisprudência, disponível em
http://hdl.handle.net/10316/24784,
em cuja doutrina nos apoiámos na elaboração do presente acórdão.), mesmo após as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril (que veio dar prevalência à recuperação do devedor). Os princípios que enformam o nosso sistema tributário não permitem a extinção, a redução ou a moratória dos créditos fiscais a não ser nos casos previstos expressa e inequivocamente na lei. Assim, a alteração do conteúdo da obrigação fiscal nunca poderia ocorrer por vontade da maioria dos credores, sob pena de se violar de forma grave o princípio da legalidade e da tipicidade tributária, previsto no art. 8.º da LGT e no art. 103.º da CRP, nos termos do qual todos os elementos da relação jurídico tributária têm de estar tipificados na lei (RUI DUARTE MORAIS, ob. cit., 2.ª ed., p. 220, «Um perdão ou moratória relativos a dívidas fiscais decididas em assembleia de credores constituiriam um autêntico benefício fiscal, uma medida excepcional a determinar a não cobrança do imposto ditada por interesses económicos e sociais que se entenderia deverem prevalecer no caso concreto. Por exigência constitucional, nem a administração fiscal, nem, muito menos, uma assembleia de credores podem conceder benefícios fiscais». A concessão de benefícios fiscais tem de estar, nos termos do supra citado n.º 2 do artigo 103.º da CRP, legalmente prevista).
É certo que alguma jurisprudência dos tribunais comuns assim o não entendeu, pelo menos até determinado momento (É exemplo paradigmático dessa jurisprudência o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Junho de 2009, proferido no processo n.º 464/07.1TBSJM-L.S1, disponível em

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/bff8cf2426fedad6802575d6002e6e8a?OpenDocument.).
Independentemente de saber se essa jurisprudência fez ou não a melhor interpretação das normas legais em confronto – e afigura-se-nos que não –, a mesma deixou, de todo, de ser sustentável após o art. 123.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 2011), ter aditado ao art. 30.º da LGT um n.º 3, que, reafirmando o princípio da indisponibilidade dos créditos fiscais, estipula: «O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial». Ademais, o art. 125.º da mesma Lei estabeleceu que «[o] disposto no n.º 3 do Artigo 30.º da LGT é aplicável, designadamente aos processos de insolvência que se encontrem pendentes e ainda não tenham sido objecto de homologação, sem prejuízo da prevalência dos privilégios creditórios dos trabalhadores previstos no Código do Trabalho sobre quaisquer outros créditos».

Na sequência desse aditamento à lei (É discutível se se trata de uma verdadeira alteração legislativa ou se, pelo contrário, o n.º 3 do art. 30.º da LGT não será uma norma com carácter interpretativo e, como tal, sujeita ao regime do art. 13.º do Código Civil, como sustentam SUZANA TAVARES DA SILVA e MARTA COSTA SANTOS, ob. cit., que referem que «a solução nele vertida defluía já dos princípios jurídicos fundamentais ordenadores no nosso sistema jurídico e dos princípios constitucionais que conformam o Estado fiscal».), a jurisprudência dos tribunais comuns acabou por inflectir o rumo (Cfr., por mais antigo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Dezembro de 2011, proferido no processo n.º 467/09.1TYVNG-Q.P1.S1, disponível em

http://www.dgsi.pt/jstjf.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/41a380a845ca0e7380257b900033ee4f?OpenDocument.).
A sentença recorrida, que aderiu à referida jurisprudência dos tribunais comuns na sua primitiva versão, não pode manter-se.

Pese embora o disposto no art. 17.º-E, n.º 3, do CIRE – «A decisão a que se refere a alínea a) do n.º 3 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer acções para cobrança de dívidas contra o devedor […]» –, a AT está obrigada a instaurar e fazer prosseguir contra o devedor execução fiscal para cobrança de dívida fiscal, a menos que tenha sido deferido o pagamento da mesma em prestações ao abrigo da legislação fiscal (e a dívida exequenda e o acrescido estejam garantidos ou tenha sido efectuada penhora que os garanta ou tenha havido dispensa da prestação de garantia, tudo nos termos do disposto nos arts. 196.º e 199.º, do CPPT, e do art. 52.º da LGT), no âmbito do plano de revitalização judicialmente homologado ou fora dele.

Note-se, finalmente, que isto não significa que o Estado se ponha à margem do escopo de recuperação do devedor, ou que, com a intransigência na cobrança das dívidas tributárias (e parafraseando a sentença recorrida) inviabilize na prática a boa concretização do plano de revitalização.

Na verdade, o CPPT prevê o alargamento do número de prestações mensais até 5 anos quando for notória a dificuldade financeira e sejam previsíveis consequências económicas para os devedores, se a dívida exequenda exceder 500 unidades de conta (UC) no momento da autorização, desde que nenhuma delas seja inferior a 10 UC (n.º 6 do art. 196.º, na redacção da Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro); o número de prestações pode mesmo ser alargado até ao dobro (10 anos), se, no âmbito de processo de recuperação económica se demonstrar a indispensabilidade da medida e, ainda, quando os riscos inerentes à recuperação dos créditos o tornem recomendável (n.º 7 do mesmo art. 196.º do CPPT, na redacção da Lei n.º 3-B/2010, de 18 de Abril).

Tudo visto, concluímos que a sentença, pese embora tenha seguido corrente jurisprudencial que, em dado momento, vingou no Supremo Tribunal de Justiça, não fez a melhor interpretação e aplicação das normas e princípios legais aplicáveis.» (fim de citação, com supressão nossa de algumas das notas de rodapé constantes do Acórdão citando).

É este julgamento que aqui reiteraremos, pelos motivos doutamente expostos naquele Acórdão e aqui supra reproduzidos, razão pela qual, no provimento do recurso, haverá que revogar a sentença recorrida e ordenar a baixa dos autos ao Tribunal “a quo” para conhecimento das demais questões suscitadas em torno da legalidade da penhora, julgadas prejudicadas pela sentença recorrida.

- Decisão -
7 - Termos em que, face ao exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar improcedente a reclamação quanto ao fundamento conhecido pela sentença, ordenando-se que os autos regressem à primeira instância para conhecimento das demais questões suscitadas pela reclamante e que a sentença julgou prejudicadas.

Custas pela recorrida, apenas em 1.ª instância, pois não contra-alegou neste STA.

Lisboa, 15 de Abril de 2015. – Isabel Marques da Silva (relatora) – Pedro Delgado – Fonseca Carvalho.