Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2632/23.0T8STS.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALBERTO TAVEIRA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO INDISPONÍVEL DO INSOLVENTE
ALTERAÇÃO DA DECISÃO
CIRCUNSTÂNCIAS SUPERVENIENTES
Nº do Documento: RP202404092632/23,0T8STS.P2
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A decisão transitada em julgado proferida que fixou o rendimento indisponível ao devedor, é susceptível de ser alterada, a requerimento do devedor ou de qualquer interessado, sempre que ocorram circunstâncias supervenientes a essa decisão.
II - É requisito que as circunstâncias supervenientes impliquem o aumento ou a redução do rendimento indisponível antes fixado ao devedor, por forma a torná-lo conforme a um sustento minimamente digno actual deste e do seu agregado familiar.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º[1] 2632/23.0T8STS.P2

*

Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo de Comércio de Santo Tirso - Juiz 7

RELAÇÃO N.º 130

Relator: Alberto Taveira

Adjuntos: Rui Moreira

               Ramos Lopes


*

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

*
I - RELATÓRIO.

AS PARTES


Insolvente: AA

*

A)


AA apresentou-se à insolvência por requerimento de 15.09.2023, tendo a mesma sido declara insolvente por sentença de 19.09.2023.

A requerente deduziu pedido de exoneração do passivo restante, pedindo a fixação do rendimento disponível no valor correspondente a dois salários mínimos.


B)

A Administrador de Insolvência não de opôs ao pedido de exoneração do passivo restante.

C)

A 14.12.2023 é proferida a seguinte decisão:

Do pedido de exoneração do passivo:

A devedora requereu a exoneração do passivo restante.

O Exmo. Administrador da Insolvência formulou parecer no sentido de nada ter a opor a tal pedido.

Não foi deduzida qualquer oposição ao deferimento do pedido por qualquer um dos credores.


*

Com interesse para a decisão a proferir, mostra-se já assente nestes autos que:

1 – A requerente apresentou-se à insolvência e, por sentença proferida nos autos declarou-se tal insolvência;

2 – A insolvente é casada, mas encontra-se separada de facto e sem qualquer contato com o marido desde Agosto de 2004.

3 - Atualmente vive em união de facto, sendo que o seu companheiro se encontra desempregado e sem qualquer subsídio.

4 - A insolvente tem três filhos, que consigo residem. Uma das filhas é menor de idade (7 anos) e dois filhos são maiores, tendo um 19 anos, o qual não estuda, nem trabalha. A outra filha maior tem 21 anos, já trabalha, mas encontra-se de baixa médica por doença autoimune e aufere cerca de 500,00 € mensais de subsídio por doença.

5 - A insolvente, atualmente exerce a função de rececionista, auferindo um salário base no montante de 760,00 €, acrescido do subsídio de alimentação e dos respectivos subsídios de férias e de natal.

6 - Vivem em habitação arrendada;

7 – Nunca foi condenada pela prática de crime a previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal.


*

Motivação:


Os factos acima elencados resultam do teor do CRC junto aos autos, do teor do relatório apresentado pelo Exmo. AI e do teor dos documentos juntos aos autos com a p.i..

*

O Direito:


O art. 235º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas dispõe que “se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste”.

“O pedido de exoneração do passivo restante é feito pelo devedor no requerimento de apresentação à insolvência ou no prazo de 10 dias posteriores à citação, e será sempre rejeitado, se for deduzido após a assembleia de apreciação do relatório, ou, no caso de dispensa da realização desta, após os 60 dias subsequentes à sentença que tenha declarado a insolvência; o juiz decide livremente sobre a admissão ou rejeição de pedido apresentado no período intermédio.” (cfr. art. 236º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).

Acrescenta o n.º 3 do mesmo normativo que “do requerimento consta expressamente a declaração de que o devedor preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes”.

Tendo em conta que o devedor atestou preencher os requisitos de que depende o deferimento do pedido de exoneração do passivo restante, o Exmo. AI nada apurou que leve a que se indefira tal pedido e nenhum dos credores se opôs, sendo certo que dos autos não resultam quaisquer indícios que possam levar ao indeferimento liminar do pedido formulado, decide-se admitir liminarmente o pedido de exoneração de passivo restante formulado.

Quanto ao rendimento disponível a ceder:

O rendimento disponível do devedor objeto da cessão ao fiduciário, nos termos do art. 239º, nº 2 do C.I.R.E., é integrado por todos os rendimentos que ao devedor advenham, a qualquer título com exclusão, e no que à economia da presente decisão importa, do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional (art. 239º, nº 3, b), i) do C.I.R.E.) e do que seja razoavelmente necessário para outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor (art. 239º, nº 3, b), iii) do C.I.R.E.).

No caso da devedora, sabemos que: A insolvente é casada, mas encontra-se separada de facto e sem qualquer contato com o marido desde Agosto de 2004. Atualmente vive em união de facto, sendo que o seu companheiro se encontra desempregado e sem qualquer subsídio. A insolvente tem três filhos, que consigo residem. Uma das filhas é menor de idade (7 anos) e dois filhos são maiores, tendo um 19 anos, o qual não estuda, nem trabalha. A outra filha maior tem 21 anos, já trabalha, mas encontra-se de baixa médica por doença autoimune e aufere cerca de 500,00 € mensais de subsídio por doença. A insolvente, atualmente exerce a função de rececionista, auferindo um salário base no montante de 760,00 €, acrescido do subsídio de alimentação e dos respetivos subsídios de férias e de natal.Vivem em habitação arrendada.

É nosso entendimento, que na fixação do rendimento indisponível para cessão devemos em entrar em linha de conta com o montante fixado para o salário mínimo nacional, considerando-se esse valor como suficiente para permitir a um cidadão maior e que viva sozinho fazer face às despesas do quotidiano, mantendo um nível de vida minimamente condigno.

No caso concreto há, no entanto, que ponderar o facto da devedora ter um filho menor que se encontra a seu cargo.

Ponderando o custo de educação, sustento e formação de um filho menor em condições minimamente condignas, consideramos que o valor a ter por referência por cada filho dependente é de 0,5 SMN.

Quanto aos filhos maiores da devedora, verificamos que a filha de 21 anos, apesar de padecer de doença autoimune já recebe rendimento. Quanto ao filho de 19 anos, do relatório resulta que o mesmo não estuda, não fora demonstrado que o mesmo necessita ainda do auxílio da mãe, ou que o mesmo não esteja capaz de trabalhar. Ao filho maior apenas poderá ser considerado 0,5 SMN de rendimento indisponível da devedora, no caso de ainda se encontrar a estudar, e mediante a apresentação do comprovativo, o que não sucedeu no caso concreto. Assim, por ora, não pode ser atribuído esse valor para efeitos de cálculo de rendimento indisponível.

Nesta medida, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 239º do CIRE, determina-se que o rendimento da devedora que ultrapasse o equivalente a uma vez e meia o salário mínimo nacional por mês, considerando os 12 meses do ano, seja cedido ao Exmo. AI que neste ato se nomeia para exercer as funções de fiduciário. Não existindo fundamentos para atribuir 2 SMN, conforme requerido pela devedora, porquanto não ficara demonstrada a efetiva necessidade de dependência dos filhos menores por parte da progenitora.

Dado que o processo de insolvência fora encerrado por insuficiência da massa, o período de cessão de rendimento disponível terá início com o trânsito em julgado do presente despacho.

O período de cessão é, agora, de três anos, nos termos do art. 235.º e 239.º, n.º 2, CIRE, na redação dada pela Lei n.º 9/2022, 11.01.


*

Em face do exposto, o tribunal decide deferir liminarmente o requerido, proferindo despacho inicial de exoneração do passivo da insolvente, e determina:

1. Que durante os três anos subsequentes ao trânsito em julgado do presente despacho, o rendimento disponível que a devedora venha a auferir considera-se cedido ao fiduciário abaixo nomeado;

2. Que o rendimento disponível acima referido é integrado por todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz; do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno da devedora e do seu agregado familiar, não devendo exceder uma vez e meia o salário mínimo nacional (1,5 SMN)¸ considerando os 12 meses do ano;

O cálculo do rendimento disponível para cessão deve ponderar o rendimento global auferido pelo devedor no ano de cessão em análise, e dividir o valor global por 12 meses, verificando se fora ultrapassado o rendimento anual indisponível fixado.

3. Que durante aquele período a devedora fica obrigado a:

a) não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;

b) exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;

c) entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão;

d) informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;

e) não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores. (…)“.


D)

A insolvente desta decisão veio interpor recurso, a 08.01.2024, sendo que a final, a 20.02.2024, por este Tribunal da Relação do Porto é proferido Ac.: “Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

E)

A insolvente após requerimento de interposição de recurso, veio apresentar a juízo requerimento datado de 15.01.2024, pelo qual alega o seguinte:

Por lapso a insolvente não alegou e juntou prova relativa a despesa referente ao colégio da sua filha de 7 a nos, no valor de 250,00 €. Que tal permite aos pais trabalharem até mais tarde.

Acaba por pedir que seja atribuído “2 SMN de rendimento indisponível à insolvente, de acordo com o supra exposto.”.


F)

O credor A... DAC, veio pronunciar-se pugnando por: “Pelo exposto, não deverá o rendimento indisponível fixado à Insolvente ser aumentado em valor superior à proporção da contribuição do valor despendido com a frequência da menor no colégio, nomeadamente, € 125,00 mensais, o que se requer. “.

**

*
DA DECISÃO RECORRIDA


A 23.01.2024 é proferida a seguinte decisão:

II. Requerimentos de 15 e 18.01.2023:

A despesa referente à educação da filha menor da insolvente agora alegada (mensalidade de colégio privado no montante de € 250,00 mensais) já existia à data da prolação do despacho liminar de exoneração. Ademais, a fixação de 0,5 SMN por cada filho menor dependente já contém uma ponderação genérica e abstrata quanto às despesas de educação dos filhos, e mínimo necessário para o sustento condigno de um filho menor, cabendo depois ao devedor optar pela colocação do filho em escola pública, ou no ensino privado.

Entendemos, assim, que não existem circunstâncias fácticas supervenientes que permitam a este Tribunal de primeira instância alterar o rendimento disponível fixado no despacho liminar, encontrando-se esgotado o poder jurisdicional nesta matéria – art. 613.º CPC, ex vi art. 17.º CIRE, pelo que se indefere o requerido pela devedora a 15.01.2023.

Notifique.


*
DAS ALEGAÇÕES

A insolvente, vem desta decisão interpor RECURSO, acabando por pedir o seguinte:

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, alterando-se o despacho recorrido no sentido de atribuir o acréscimo de pelo menos 0,25 de SMN de rendimento indisponível à insolvente, para sustento da sua filha menor, fazendo-se dessa forma Justiça. “.


*

A recorrente apresenta as seguintes CONCLUSÕES:

1. Tem o presente recurso por fundamento a ilegalidade do despacho proferido a 25/01/2024, em que o Tribunal indeferiu à insolvente o aumento para 2 SMN de rendimento indisponível.

2. Em primeiro lugar, apesar de já existir à data da prolação do despacho liminar de exoneração, a despesa existe e é absolutamente necessária.

3. A fixação de ½ SMN por cada filho menor dependente, contém uma ponderação genérica e abstracta quanto às despesas de educação dos filhos e mínimo necessário para o sustento condigno de um filho menor, mas deverá analisada caso a caso, de acordo com o circunstancialismo específico, aferindo-se as suas necessidades efectivas.

4. O colégio privado permite à insolvente e ao pai da menor trabalhar até mais tarde.

5. A menor teve imensas dificuldades de socialização e adaptação à escola anterior, sendo que no colégio actual a sua adaptação foi harmoniosa e suave.

6. A escola pública que a menor teria que frequentar tem um ambiente mais complicado de adaptação, ao qual a menor não se adaptaria, atentas as suas dificuldades.

7. A escolha do colégio da menor teve por base apenas e só o seu bem-estar e adaptação, motivo pelo qual o mesmo se afigura essencial ao seu desenvolvimento saudável e harmonioso.

8. O despacho recorrido peca quando sugere que cabe ao devedor optar por uma escola pública ou pelo ensino privado, com base na aludida ponderação genérica de ½ SMN atribuído por cada filho menor dependente.

9. Existem circunstâncias fácticas supervenientes que permitem, desde logo, alterar o rendimento disponível fixado no despacho liminar, pois a supra aludida ponderação constante do despacho, não pode ser genérica, mas sim casuística.

10. A credora A... DAC, pronunciou-se pelo deferimento do aumento de, pelo menos, € 125,00 mensais de rendimento indisponível.

11. Encontra-se, assim, devidamente fundamentada a razão de ser da insolvente ter optado pelo colégio privado.

12. Nestes termos, deve alterar-se a decisão recorrida, deferindo-se a atribuição do acréscimo de, pelo menos, 0,25 de SMN de rendimento indisponível à insolvente, atenta a despesa com o colégio da sua filha menor. “.


*

Não foram apresentadas contra-alegações.

***

*
II-FUNDAMENTAÇÃO.


O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil

Como se constata do supra exposto, a questão a decidir, é a seguinte:

Será admissível a alegação de factos e junção de prova, após decisão do incidente do rendimento disponível.


**

*
OS FACTOS


Os factos com interesse para a decisão da causa e a ter em consideração são os constantes no relatório e da decisão em crise (supra transcrita), e que aqui se dão por reproduzidos.

**

*
DE DIREITO.


Desde já afirmamos que a pretensão da recorrente não pode ter vencimento.

A alegação da insolvente após prolação da decisão final do incidente de fixação do rendimento disponível não é capaz de alterar o decidido pela primeira instância, pelas seguintes razões/fundamentos.

É patente e claro que no caso dos autos estamos perante alegação de factualidade nova e junção de novos documentos, que não foram conhecidos e valorados pela primeira instância, aquando da decisão da fixação do rendimento disponível.

Recai sobre a insolvente a formulação do pedido de exoneração do passivo restante e bem como do pedido de fixação do rendimento disponível. É ónus da insolvente a alegação da factualidade conducente a tais finalidades.

Impõe a Lei das Insolvências que o devedor, querendo, deve formular pedido de exoneração do passivo restante – artigo 236.º do CIRE.

Tal pedido deverá ser feito no requerimento inicial de apresentação à insolvência, se for o caso, ou nos 10 dias seguintes à citação do pedido contra si formulado – artigo 236-º, n.º 1 do CIRE.

Nos termos do artigo 239.º, n.º 2, “O despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado por período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade (…)“.

Segundo a alínea b) do n.º 3 “Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: (…)

b) Do que seja razoavelmente necessário para:

i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;

ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;

iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.

Tal como se deixou afirmado no Ac. proferido neste processo, quanto à fixação do rendimento disponível, na ausência de um critério matemático o legislador encarregou o julgador de caso a caso aferir de um montante que seja necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado.

Deste modo, na fixação do rendimento disponível deve o Tribunal proceder à análise das despesas imprescindíveis para o sustento digno do devedor e seu agregado. E aqui têm especial relevo aquelas despesas comuns do quotidiano e que a normalidade do “português” tem, ou é suposto ter, para ter um mínimo de dignidade.

O critério último deve estar alicerçado na dignidade humana em cada caso concreto.

Deve assim ser ponderado, em primeiro lugar, que se está perante uma situação transitória, durante a qual a insolvente deverá fazer um particular esforço de contenção de despesas de maneira a atenuar ao máximo as perdas que advirão aos credores da exoneração do passivo restante e, em segundo lugar, atender ao que é indispensável para, em consonância com a consagração constitucional do respeito pela dignidade humana, assegurar as necessidades básicas do insolvente e do seu agregado familiar, neste sentido, Ac Tribunal da Relação de Lisboa 27138/11.6T2SNT-C.L1-2, relatado pela Des VAZ GOMES, in dsgi.pt.

O CIRE contém uma série de regras processuais, com o objectivo de modo célere ser decidido o processo, incluindo os seus incidentes, como é o caso da fixação do rendimento disponível.

É pacífico que é ónus do insolvente alegar no requerimento inicial a factualidade atinente a todo o circunstancialismo, que diga respeito aos requisitos da fixação do rendimento disponível, factualidade à data da apresentação da pretensão. Não tendo a insolvente alegado a factualidade que à data existia no momento próprio, precludiu o direito de a alega

r posteriormente factualidade que lhe competia alegar e tal momento.

Contudo, caso ocorra alteração da factualidade subsequente a tal momento, é possível a sua alegação, para efeitos de alteração da decisão de fixação do rendimento disponível.

Sendo o rendimento indisponível, conforme antedito, correspondente à quantia que seja razoavelmente necessária para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, e tendo esse rendimento de ser fixado no despacho de deferimento liminar do incidente de exoneração, o caso julgado que cobre esse despacho, quanto a este segmento decisório, à semelhança do que acontece com a decisões condenatórias de prestação de alimentos ou a satisfazer outras prestações dependentes de circunstâncias especiais quanto à sua medida ou duração, em que o n.º 2, do art. 619º do CPC, determina que o trânsito em julgado dessas sentenças não obsta à alteração das mesmas sempre que se modifiquem as circunstâncias que determinaram a condenação, bem como, das sentenças proferidas no âmbito dos processos de jurisdição voluntária, em que o art. 988º, n.º 1 do mesmo Código é expresso em estabelecer que as decisões neles proferidas podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração, também a decisão que fixe o rendimento indisponível, em sede de incidente de exoneração do passivo restante, são alteráveis sempre que ocorram circunstâncias supervenientes que imponham essa alteração, isto é, quando surjam novas despesas ou quando as despesas que foram consideradas na anterior decisão, transitada em julgado, sofram alterações que imponham a alteração do rendimento indisponível antes fixado, de modo a torná-lo conforme ao quantitativo necessária a garantir um sustento minimamente digno ao devedor e ao seu agregado familiar.

O trânsito em julgado que cobre, pois, a decisão que fixa o rendimento indisponível ao devedor no âmbito do incidente de exoneração, fica sujeito a uma cláusula “rebus sic standibus”, ou seja, o caso julgado que sobre ela incide é temporalmente limitado, apenas garantindo a incontestabilidade e a imodificabilidade do nela decido na estrita medida em que os pressupostos da decisão proferida não sofra alterações/modificações que demandem a alteração do decidido[34].

A enunciada alterabilidade da decisão que fixa o rendimento indisponível no âmbito do incidente de exoneração, apesar do respetivo trânsito em julgado, decorre não só da própria natureza das coisas, mas da própria lei.

Decorre da própria natureza das coisas quando se pondera que o rendimento indisponível corresponde ao rendimento que o devedor não tem de entregar ao fiduciário durante o período de cessão, por corresponder ao rendimento que é  necessário e indispensável para assegurar o sustento minimamente digno do próprio devedor e do seu agregado familiar; aos critérios legais que presidem à fixação desse rendimento indisponível,  os quais  dependem da composição do agregado familiar do devedor e suas necessidades, fatores esses que não são estáticos no tempo; da circunstância do período de cessão apenas se iniciar com o encerramento do processo de insolvência, e que esse encerramento poderá ocorrer em momentos bem distintos (cfr. art. 230º, n.º 1), e que, por isso, esse período de cessão poderá iniciar-se em momento mais ou menos dilatados no tempo em relação à data da prolação do despacho de deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante e em que, consequentemente, se fixou o rendimento indisponível ao devedor; e, finalmente, quando se pondera que o período de cessão tem uma duração de três anos, período de tempo esse suficientemente amplo, onde poderão ocorrer múltiplas alterações na composição do agregado familiar do devedor e das suas necessidades.

Acresce que, no art. 239º, n.º 3, al. b), iii), prevê-se expressamente integrar o rendimento indisponível “outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior”, o que é bem demonstrativo que na mente do legislador está a alterabilidade da decisão que fixa o rendimento indisponível ao devedor, apesar do seu trânsito em julgado, com fundamento em circunstâncias supervenientes que demandem a alteração desse rendimento.

Essas circunstâncias supervenientes não são naturalmente circunstâncias que já existiam quando o devedor solicitou que lhe fosse concedido o benefício de exoneração do passivo restante, mas que o mesmo não cuidou em alegar, ou que tendo alegado, não provou e, que, por isso, não foram consideradas na decisão antes proferida que lhe fixou o rendimento indisponível.

As circunstância supervenientes que fundamentam a alteração da decisão antes proferida e transitada em julgado, que fixou o rendimento indisponível ao devedor, terão de ser necessariamente factos ocorridos historicamente após a prolação dessa anterior decisão e que, por isso, nela não podiam ser considerados, como é o caso  de uma alteração da composição do agregado familiar do devedor (v.g. nascimento de um filho ou redução de elementos desse agregado, cujo sustento era assegurado pelo devedor, seja por morte, casamento, etc.), da alteração das necessidades do agregado familiar (v.g. um elemento que antes dependia do sustento do devedor, entretanto, arranjou trabalho remunerado e passou a dispor de condições económicas próprias para prover ao seu sustento, ou a situação inversa), o surgimento de novas necessidades do devedor ou do seu agregado familiar (v.g., fruto do avançar da idade, de uma doença, etc.) ou de necessidade já consideradas na anterior decisão mas cuja satisfação demandem agora um custo acrescido ao antes considerado.“, Ac do Tribunal da Relação de Guimarães, 1824/20.8T8GMR.G1, de 22.06.2023, relatado pelo Des JOSÉ ALBERTO DIAS, dgsi.pt, realçado nosso.

Deste modo, o alegado pela insolvente no seu requerimento de 15.01.2024, aludido em E) e que deu azo à decisão ora impugnada, é inequívoco que a factualidade alegada pela insolvente e que decorre do meio de prova junto, prova documental, é contemporânea do requerimento inicial.

Assim tudo visto, estes factos não podem ser considerados e valorados para efeitos da decisão já proferida pela primeira instância confirmada por este Tribunal da Relação do Porto, e bem como não consideradas para efeito de alteração de tal decisão, por a factualidade ser contemporânea ao requerimento inicial do pedido de fixação do rendimento disponível, na sequência do pedido de exoneração do passivo restante.

Tendo presente o supra exposto, improcede a pretensão da insolvente, ainda que por diferente fundamentação.


***

*
III DECISÃO


Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela apelante (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil).


*

Sumário nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil.

………………………………

………………………………

………………………………


*
Porto, 09 de Abril de 2024
Alberto Taveira
Rui Moreira
João Ramos Lopes
________________
[1] O relator escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.