Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1824/20.8T8GMR.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MARTINS MOREIRA DIAS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
NULIDADE POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
DISCRIMINAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS E DOS NÃO PROVADOS
ALTERAÇÃO DO RENDIMENTO INDISPONÍVEL
CIRCUNSTÂNCIAS SUPERVENIENTES
EFEITOS JURÍDICOS DA DECISÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- Padece do vício da nulidade por falta de fundamentação, a que alude a al. b), do n.º 1, do art. 615º do CPC, o despacho judicial de alteração do rendimento indisponível, proferido em sede de incidente de exoneração do passivo restante, em que a 1ª Instância omitiu totalmente a indicação e a discriminação dos factos que julgou provados e a indicação dos que julgou não provados.
2- Perante esse vício, cumpre à Relação, no uso dos seus poderes de substituição, suprir o vício da nulidade por falta de fundamentação, sempre que o processo contenha todos os elementos probatórios que, com a necessária segurança, lhe permita responder à matéria de facto, julgando-a provada ou não provada. De contrário, terá de anular o despacho recorrido e devolver os autos à 1ª Instância para que responda à matéria de facto e motive o julgamento de facto que realize.
3- A decisão transitada em julgado proferida, no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante, que fixou o rendimento indisponível ao devedor, é suscetível de ser alterada, a requerimento do devedor ou de qualquer interessado, sempre que ocorram circunstâncias supervenientes a essa decisão que demandem novas despesas para o devedor ou a alteração (para mais ou para menos) das despesas consideradas na anterior decisão, sempre que essas circunstâncias supervenientes reclamem o aumento ou a redução do rendimento indisponível antes fixado ao devedor, por forma a torná-lo conforme a um sustento minimamente digno atual deste e do seu agregado familiar.
4- A decisão judicial que altere o rendimento indisponível produz efeitos jurídicos desde a apresentação em juízo do requerimento em que foi requerida essa alteração, sob pena de se incorrer em inconstitucionalidade material por violação do princípio da dignidade humana tutelado pelos arts. 1º, 13º, n.º 1 e 63º, n.ºs 1 e 3 da CRP, 25º da Declaração dos Direitos do Homem e 239º, n.º 3, al. b), i), do CIRE.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães no seguinte:

I-  RELATÓRIO

Nos presentes autos de ação especial de insolvência, instaurados por AA, residente na Rua ..., ..., ... ..., Guimarães, em que esta se apresentou à insolvência e requereu que lhe fosse concedido o benefício de exoneração do passivo restante, por sentença proferida em 15/04/2020, transitada em julgado, declarou-se a requerente insolvente.

Por decisão de 26/10/2020, transitada em julgado, deferiu-se liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e fixou-se o rendimento indisponível em 745,00 euro mensais, constando essa decisão do teor que se segue (que aqui se transcreve ipsis verbis):

“O despacho inicial sobre o procedimento de exoneração do passivo restante é proferido quando não haja motivo para indeferimento liminar nos termos do art. 238º do CIRE.
O despacho inicial determina a abertura, nos cincos anos posteriores ao encerramento do processo, do período de cessão, ou seja, o período dentro do qual, por forma a revelar-se merecedor da concessão da exoneração do passivo restante, o devedor é posto à prova, através da cessão do rendimento disponível a um fiduciário, e da imposição de um conjunto de obrigações (cfr. Manual de Direito da Insolvência, 7ª ed., Maria do Rosário Epifânio, págs. 379 e ss.).
Os factos e a prova a produzir tem que ser levada aos autos pelo administrador de insolvência e credores, pois sobre eles recai o ónus de prova nos termos do art. 342º do Cód. Civil, aplicando-se a regra geral do ónus de prova dos factos constitutivos do seu direito e sobre o devedor o ónus da alegação e prova dos factos extintivos daquele direito.
No caso em apreço não se verifica nenhuma das circunstâncias que nos termos do art. 238º do CIRE imporiam o indeferimento liminar deste pedido, pelo que, deve ser proferido o aludido despacho inicial de admissão do pedido de EPR da requerente AA.
Nomeia-se Fiduciário o Sr. Administrador de Insolvência.
Cumpra o disposto no art. 247º do CIRE.
*
O despacho inicial determina a cessão do rendimento disponível do devedor a um fiduciário durante o prazo de 5 anos (art. 239º, nº2 do CIRE).
A cessão do rendimento disponível abrange todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, não se estando, portanto, apenas perante rendimentos em sentido técnico, sendo abrangidos por quaisquer acréscimos patrimoniais. Assim se o insolvente receber uma herança durante o período de cessão, o património hereditário que lhe compete deve igualmente considerar-se cedido ao Fiduciário. A tal não obsta o art. 2028º, nº2 do Cód. Civil, dado que a cessão de rendimento constitui uma hipótese legalmente prevista. (cfr. Direito da Insolvência, 8ª ed., Luís Menezes Leitão, p. 369).

No caso em apreço há que considerar a seguinte factualidade:
- A insolvente aufere um salário mensal de € 635,00.
- Apresentou as seguintes despesas:
- documento n.º ...: renda no valor de 350,00€;
- documento n.º ...: gás no valor de 7,15€;
- documento n.º ...: luz no valor de 14,90 euros;
- documento n.º ...: água no valor de 25,02€;
- documento n.º ...: Nos telecomunicações no valor de 42,99€;
- documento n.º ...: propina da filha mais velha na Universidade ..., no valor de 69,70€;
- documento n.º ...: despesas de autocarro da filha mais velha para deslocação à universidade no valor de 62,80€;
- documento n.º ...: Atletismo do filho mais novo no valor de 26,00€;
- documento n.º ...: despesas medicamentosas no valor de 54,78€;
- tem ainda a insolvente as despesas mensais correntes com alimentação e produtos de higiene no valor de 250,00€.
- Assim, tem a Insolvente despesas mensais correntes no valor total de 903,34€ (novecentos e três euros e trinta e quatro cêntimos).
- A Requerente habita com os seus 3 filhos, sendo 2 dos quais menores.
Embora se tenda para a consideração de um salário mínimo por devedor como necessário para o seu sustento minimamente digno e do respetivo agregado familiar, não deixa de se reconhecer, na múltipla jurisprudência existente sobre o tema, que ele não deve ser tomado senão como critério de partida, mas aberto, a ajustar pelo julgador em função das especificidades de cada caso concreto.
Considerando tais factos, entendemos que o montante relativo às exclusões previstas na alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, deve fixar-se em € 745,00, que se considera ser o limite que assegura a subsistência com o mínimo de dignidade.
Excluem-se da exoneração os créditos previstos no artigo 245.º, n.º 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Notifique.
Publicite e Registe. (cfr. artigo 247.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas)”.

Ainda por decisão de 26/10/2020, declarou-se encerrado o processo de insolvência, nos termos do disposto na al. d), do n.º 1, do art. 230º do CIRE, por inexistência de ativo.

Em 27/12/2021, a fiduciária juntou aos autos relatório anual relativo ao estado da cessão, a que alude os arts. 240º, n.º 2, parte final, e 61º do CIRE, onde se lê que:

1- O rendimento destinado a sustento da devedora foi fixado no valor igual a 745,00 euros mensais;
2- Ora, durante o ano e 2020, a devedora auferiu rendimentos da Categoria A, no valor anual de 13.093,59 euros, que, deduzidos das contribuições à Segurança Social, totalizam 12.139,00 euros (13.093,59 euros – 954,53 euros), pelo que o valor auferido pela insolvente ascendeu à media mensal de 1.011,59 euros.
Nessa conformidade, a insolvente deverá depositar a quantia de 799,77 euros (1.011,59 euros – 745,00 euros = 266,59 euros.
266,59 euros x 3 meses = 790,77 euros.
3- A fiduciária já notificou a mandatária da insolvente do montante a depositar”.

Observado o contraditório, em 30/01/2022, a devedora requereu que fosse autorizada a entregar à fiduciária a quantia de 799,77 euros, em quatro prestações iguais, mensais e sucessivas de 199,95 euros cada, dado não ter possibilidades económicas para entregar aquela quantia de uma só vez.
Por despacho de 31/01/2022, transitado em julgado, deferiu-se o requerido pela devedora.

Em 30/12/2022, a fiduciária juntou aos autos relatório anual sobre o estado da cessão, em que se lê:
1- O rendimento destinado a sustento da devedora foi fixado no valor igual a 745,00 euros mensais;
2- Ora, no ano de 2021, a devedora auferiu em rendimentos da Categoria A – Trabalho Dependente - o valor anual de 13.916,30 euros, que, deduzidos das contribuições à Segurança Social, totalizam 13.916,30 euros (15.031,23 euros – 1.114,93 euros), pelo que o valor auferido pela insolvente ascendeu à média mensal de 1.159,69 euros.
Nessa conformidade, a insolvente deverá depositar a quantia de 4.976,28 euros (1.159,69 euros – 745,00 euros = 414,69 euros.
414,69 euros x 12 meses = 4.976,28 euros.
3- A fiduciária já notificou a mandatária da insolvente do montante a depositar”.

Observado o contraditório, por requerimento de 09/03/2023, a devedora alegou não ter possibilidades económicas para entregar a quantia de 4.976,28 euros, apesar de ter tentado obter ajuda financeira junto de familiares, o que não lhe foi possível dado o elevado valor daquela quantia.
A devedora aufere um salário mensal ilíquido de 705,00 euros, e que é inferior à retribuição mínima legal garantida, porquanto, o seu salário mensal líquido se cifra em 621,27 euros.
A diferença do valor vindo a referir pela fiduciária em relação à sua retribuição mensal líquida corresponde à pensão de alimentos que é paga pelo FGPA aos seus três filhos e ao abono de família destes.
A devedora tem três filhos, dos quais agora dois são maiores, e um menor, encontrando-se todos a estudar.
Os dois filhos maiores estudam na Universidade ..., enquanto o mais novo frequenta o 6º ano de escolaridade, na Escola ... ... e tem dificuldades de aprendizagem devido a sofrer de dislexia, necessitando de maior acompanhamento escolar.
A devedora tem a cargo esses três filhos e cria-os sozinha, porquanto, o progenitor não os contacta, nem cumpre com qualquer responsabilidade parental, motivo pelo qual recorreu ao FGPA para receber, pelo menos, as prestações alimentícias dos filhos.

É a devedora que, com a ajuda de familiares próximos, vai conseguindo, com muitas dificuldades, sustentar os filhos, e tem as seguintes despesas fixas mensais médias:
- 350,00 euros de renda de casa;
- 400,00 euros de alimentação e higiene do agregado familiar;
- 59,38 euros em telecomunicações,
- 80,26 euros de luz e água;
- 165,00 euros de propina ao centro de estudos frequentado pelo filho BB;
- 24,30 euros de medicação para o filho BB;
- 12,00 euros de alimentação escolar para o filho BB;
- 69,70 euros de propina da filha CC;
- 47,90 euros de transporte da filha CC;
- 69,70 euros de propina do filho DD; e
- 25,00 euros de alimentação do filho DD.
O que perfaz um total de 1.335,95 euros por mês.

Acresce que, ao longo do ano, a devedora tem ainda as seguintes despesas fixas:
- 300,00 euros de seis em seis meses em vestuário e calçado para o agregado familiar;
- 500,00 euros de três em três meses na aquisição de óculos para os filhos CC e DD; e
- 110,00 euros de nove em nove meses na aquisição de lentes para a filha CC.

A essas despesas acrescem despesas inesperados, nomeadamente, com saúde.
O montante fixo de 745,00 euros mensais não assegura a subsistência da devedora e do seu agregado familiar com o mínimo de dignidade.
Concluiu pedindo que se alterasse o rendimento indisponível de 745,00 euros mensais para a quantia correspondente a duas vezes a retribuição mínima garantida (760,00 euros x 2 = 1.520,00 euros), com efeitos retroativos à data do despacho inicial sobre o procedimento de exoneração do passivo restante e, em consequência, se dê sem efeito a entrega da quantia de 4.976,28 euros, posto que só assim se garantirá o sustento minimamente digno daquela e do seu agregado familiar.
Juntou em anexo a esse requerimento dezasseis documentos.
Por despacho proferido em 13/03/2023, a 1ª Instância deferiu parcialmente a pretensão da devedora, fixando o rendimento indisponível em 880,00 euros mensais, a vigorar a partir do trânsito em julgado desta decisão, constando esse despacho do teor que se segue (segue-se a respetiva reprodução ipsis verbis):
Desde já se diga que a alteração do valor do rendimento disponível não pode ter efeitos retroativos e servir como meio de extinção da dívida gerada, sendo que tal despacho em momento próprio transitou em julgado, assim o montante em dívida deverá ser liquidado pela insolvente no período de exoneração do passivo restante, sem prejuízo do disposto no art. 242º-A do CIRE.  
O CIRE preocupou-se em fixar um limite máximo para a indisponibilidade do rendimento, mas já não fixou diretamente um limite mínimo, usando o conceito indeterminado de “sustento minimamente digno” previsto em i) da alínea b) do nº 3 do CIRE.
No seu requerimento a insolvente alega um conjunto de despesas mensais que excedem o valor atualmente fixado como rendimento disponível.
Na determinação do valor indisponível para os credores, temos de atender à situação concreta do agregado familiar do devedor, nomeadamente ao número de membros desse agregado familiar dependentes do rendimento do insolvente (ver acórdãos da RG de 10.10.2013 e de 11.07.2017).
Pelo exposto, fixa-se o valor do rendimento da insolvente excluído da cessão em € 880 mensais, a vigorar a partir do trânsito em julgado do presente despacho.
Notifique”.

Inconformada com o decidido, a devedora interpôs o presente recurso de apelação, em que formula as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto douto despacho datado de 13 de março de 2023, com a referência n.º ...61.
2. A recorrente, não pode conformar-se com o douto despacho do Tribunal a quo no tocante à falta de fundamentação do mesmo, à determinação do valor do rendimento disponível e aos efeitos retroativos da alteração do valor do rendimento disponível.
3. O dever de fundamentar uma decisão judicial é uma decorrência, em primeiro lugar, do disposto no artigo 205.º, n.º 1 da Constituição, segundo o qual “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
4. É a própria Constituição a afirmar, a propósito da função jurisdicional, que “Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo” (artigo 202.º, n.º 1) e o povo exprime a sua vontade geral através da lei, que são os atos normativos (artigo 112.º).
5. O Código de Processo Civil enuncia uma noção legal de sentença, através do seu artigo 152.º, n.º 2, ao referenciar que “Diz-se sentença o ato pelo qual o juiz decide a causa principal ou algum incidente que apresente a estrutura de uma causa”.
6. Mais adiante no artigo 154.º, renova aquele “dever de fundamentação da decisão”, enumerando no seu artigo n.º 1 que “As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”. Mais acrescenta no seu n.º 2 que “A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.
7. No que concerne aos despachos judiciais em geral, nada se diz quanto aos requisitos formais da fundamentação.
8. Já no que concerne às consequências, o artigo 195.º, n.º 1 do Código de Processo Civil estabelece que “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
9. A consequência legal da falta de fundamentação de uma sentença é a sua nulidade, como decorre do artigo 615.º n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, ao reportar-se aos casos em que “Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
10. Por sua vez, de acordo com o artigo 615.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, “As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrario, ter como fundamento qualquer dessas nulidades”.
11. Esta última disciplina pode ser aplicada aos despachos, por via do artigo 613.º, n.º 3 do Código Civil, ao consagrar que “O disposto nos números anteriores, bem como nos artigos subsequentes, aplica-se, com as necessárias adaptações aos despachos”.
12. Deste modo, a falta de fundamentação de um despacho judicial tanto pode corresponder à omissão de uma formalidade legalmente exigida e essa irregularidade influir decisivamente na decisão da causa, como à nulidade desse despacho pelas regras adaptadas da nulidade da sentença, porquanto o seu destinatário fica sem saber quais são as razões públicas que a sustentam.
13. Ora, a aqui Insolvente veio aos autos com um requerimento a informar que não tinha possibilidades económicas para proceder ao pagamento do valor em falta no âmbito do procedimento de EPR que se cifra em €4.976,28 e, em consequência, requerer que fosse alterado o valor do seu rendimento indisponível para dois salários mínimos nacionais, juntando para o efeito comprovativos dos seus gastos e do seu agregado familiar.
14. Com efeito, o douto tribunal proferiu o despacho que ora se recorre e fixou, agora, o tal rendimento indisponível em 880,00 mensais.
15. Sucede, porém, que o despacho não está fundamentado de facto e de direito e como se pode constatar do seu o mesmo não enuncia minimamente qualquer suporte fundamentador, seja de facto, seja de direito, nomeadamente quanto ao facto de o valor por si concedido para atribuição do rendimento indisponível fazer face ao “sustento minimamente digno”.
16. Na verdade, o despacho não fundamenta como é que o valor de 880,00€ é suficiente para a subsistência com dignidade da Insolvente e do seu agregado familiar composto por três filhos, sendo, por isso, nulo.
17. O n.º 1 do artigo 615.º da lei processual civil contém uma enumeração taxativa das causas de nulidade da sentença.
18. Respeita o vício elencado na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º da lei processual civil à omissão de fundamentação, quer de facto, quer de direito, da sentença.
19. O despacho ora recorrido padece do vício de falta de fundamentação, pois não elenca os factos julgados provados e considerados com relevância para atribuição do valor de 880,00€ para o cálculo do rendimento indisponível, bem como, não indica os meios que serviram de suporte a esse juízo – fazendo, por exemplo, referência aos documentos juntos pela insolvente no seu requerimento para atestar os seus rendimentos e encargos, ao relatório elaborado pela Sra. Administradora de Insolvência.
20. Pelo que deve ser declarada a nulidade do despacho ora recorrido nos termos e para os efeitos do artigo 613º, n.º 3 do Código Civil ex vi o artigo 615º do Código de Processo Civil, com as legais consequências.
21. De acordo com o artigo 1.º do CIRE, “O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente”.
22. Não obstante o objetivo fundamental do processo de insolvência se traduzir na satisfação, tão eficiente quanto possível, dos direitos dos credores, o CIRE, através da exoneração do passivo restante, permite, em certas circunstâncias, que os insolventes, pessoas singulares, se libertem das dívidas que os oneram e recomecem de novo, sem elas, a sua vida económica.
23. Assim, através do recurso à exoneração do passivo restante ao devedor/insolvente é concedida a faculdade, em casos previamente delimitados e previstos, de, decorridos três anos - período durante o qual terá de ceder parte do seu rendimento aos credores através de um fiduciário -, obter a extinção das suas dívidas não satisfeitas ou satisfeitas apenas em parte, através da liquidação da massa insolvente, ou através daquela cessão dos rendimentos, desvinculando-se da obrigação de no futuro proceder ao seu pagamento integral.
24. Segundo o n.º 2 do artigo 239.º do CIRE, “o despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capitulo designado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhido pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte”.
25. Ora, sobre o preenchimento do conceito normativo de “rendimento disponível”, estabelece o n.º 3 do mesmo preceito legal: “integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiros, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz; b) Do que seja razoavelmente necessário para: i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrario, três vezes o salário mínimo nacional;(…)”
26. No caso em apreço, a devedora obteve o deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante que formulou, na respetiva decisão liminar determinou-se que o rendimento indisponível, considerado necessário a garantir o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, devia corresponder a 745,00€.
27. Pelo facto, da condição económica da Insolvente se ter alterado e de não estar assim assegurado o seu sustento minimamente digno e do seu agregado familiar com o valor vindo de referir, esta através de requerimento requereu que o valor fosse alterado para dois salários mínimos nacionais, sendo um salário para a devedora e um salário para os seus três filhos.
28. Ora, o douto Tribunal entendeu, mesmo com documentos comprovativos das despesas da Insolvente e do seu agregado familiar, fixar a quantia em 880,00€.
29. É contra a decisão que dessa forma quantificou o rendimento disponível que a insolvente reage, através do presente recurso, pugnando para que o rendimento indisponível se fixe em valor nunca inferior a dois salários mínimos nacionais.
30. Nessa medida, o rendimento disponível será o que sobra do rendimento do insolvente deduzidos os valores a que se reportam as alíneas e subalíneas do n.º 3 do artigo 239.º CIRE, neles se incluindo o que seja razoavelmente necessário para o sustento digno do devedor e seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada em contrário, três vezes o montante do salário mínimo nacional.
31. Ora, o legislador balizou com um limite máximo o montante necessário para salvaguarda do sustento digno do devedor, que não deve exceder, salvo decisão contrária do juiz, devidamente fundamentada, o montante correspondente a três salários mínimos nacionais, tem a jurisprudência defendido que o limite mínimo não pode deixar de ter como referência o salário mínimo nacional.
32. Assim, o rendimento disponível do insolvente, para efeitos de cessão ao fiduciário, sempre haverá de ser determinado casuisticamente, ponderando a situação concreta do devedor e respetivo agregado familiar.
33. O artigo 239.º, n.º 3, alínea b), i) do CIRE confere relevo não apenas à salvaguarda do sustento do insolvente, mas também ao do respetivo agregado familiar: o sustento garantido é, pois, o do “devedor e do seu agregado familiar.”
34. No caso vertente a Insolvente no seu requerimento comprovou receber uma remuneração mensal inferior ao SMN, sendo que o valor líquido se cifra em €621,27, bem como, relatou e comprovou as suas despesas mensais e do seu agregado familiar, sendo que, tais despesas mensais perfazem a quantia de €1335,95.
35. Ademais, a Insolvente ainda relatou e comprovou as seguintes despesas extraordinárias, bem como, relatou e comprovou outras despesas inesperadas, como por exemplo, exames médicos, consultas de rotina.
36. Por outro lado, a Insolvente explicou ao douto Tribunal a sua situação e do seu agregado familiar.
37. Com efeito, a Insolvente demostrou que o seu agregado familiar é composto por esta e por três filhos, sendo um menor e hoje em dia dois maiores, estando as crianças a seu cargo sozinha.
38. Na verdade, a Insolvente cuida sozinha dos seus filhos, porquanto o pai destes “abandonou-os”, não tendo contacto nenhum com as crianças, sendo a pensão de alimentos dos menores paga pelo Fundo de Garantia de Pensão de Alimentos Devidos a Menores, no valor de 100,00€ para cada criança.
39. Acresce ainda o facto, do filho mais novo da Insolvente, estar a estudar no 6º ano de escolaridade e sofrer de dislexia, sendo por isso, uma criança que precisa de acompanhamento escolar mais próximo e de medicação regular e os outros dois filhos da Insolvente frequentam a Universidade ..., nomeadamente, a licenciatura de Educação de 1º e 2º ciclo e Licenciatura de Engenharia de Polímetros.
40. Importa frisar, que as dívidas que originaram a Insolvência foram na maioria contraídas pelo ex-marido da aqui Insolvente na constância do matrimónio e pela impossibilidade da cobrança coerciva junto deste, foi aquela quem teve que assumir sozinha a responsabilidade pelo pagamento, levando-a, a um estado de insolvência pessoal.
41. Face ao vindo de expor, é fácil perceber que a Insolvente vive o dia a dia com sérias dificuldades económicas, em que o seu sustento minimamente digno e do respetivo agregado familiar não está garantido.
42. A situação de insolvência demanda sacrifícios do devedor, e, não podendo ele manter o mesmo nível de vida, é-lhe exigível moderação nos gastos, prescindindo de consumos que, para os padrões comuns, não sejam necessários a assegurar condições de sustento minimamente condignas.
43. As despesas do insolvente devem, assim, ser comprimidas ao estritamente necessário a assegurar-lhe uma vida condigna, de forma a garantir também a satisfação dos direitos dos seus credores, pois a não ser assim, correr-se-ia o risco de consentir ao devedor que continuasse a usufruir das condições de vida a que estava habituado, sem exigência de contenção nos gastos, à custa do sacrifício dos seus credores.
44. Considerando que do agregado familiar da Insolvente fazem parte ela própria e os seus três filhos e que por tal facto tem os encargos com as despesas correntes com a sua alimentação, vestuário, calçado, água e eletricidade, renda, medicação e estudos, não se pode concordar que o valor de 880,00€, por mês, com referência aos doze meses do ano, fixado no douto despacho ora recorrido como valor indisponível, não assegura, de forma razoável, o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar.
45. Ora, tal valor não permite que agregado familiar da Insolvente, que é extenso, consiga fazer face as despesas e encargos essenciais para uma sobrevivência condigna.
46. Aliás, não se pode dizer que a Insolvente não tem gastos só essenciais, porquanto os gastos que esta tem são somente com bens essenciais, nomeadamente, renda da casa, água, luz, eletricidade, gás, alimentação, medicação, vestuário e ensino dos seus filhos.
47. Pelo que, a Insolvente não tem qualquer gasto supérfluo na sua vida e do seu agregado familiar, sendo as suas despesas estritamente necessárias para assegurar condições de sustento minimamente condignas.
48. O princípio geral da exoneração do passivo restante é, o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste.
49. Tendo o procedimento de “exoneração do passivo restante” como desígnio último a extinção dessas dívidas restantes e proporcionar uma “nova oportunidade”, ou novo começo (fresh start), sem o peso da insolvência anterior, a quem teve, e continua a revelar, um comportamento fiel ao direito, pautado pela honestidade, transparência e boa fé em matéria de relações jurídico-económicas, é importante dar prevalência à função interna do património, enquanto suporte de vida económica do seu titular, sobre a sua função externa (garantia geral dos credores).
50. Com o devido respeito, o entendimento adotado pelo despacho do Tribunal a quo inverte essa prioridade e acaba por frustrar o escopo legal de garantir ao devedor condições mínimas para desfrutar de uma vida digna.
51. Assim, ao acolher-se o entendimento de que o rendimento disponível se apura por referência ao período de um mês para a devedora e o seu agregado familiar e que se fixa por referência ao SMN, não se se vislumbra com o valor atribuído como serão satisfeitas as necessidades impostas pela sobrevivência digna da devedora e do seu agregado familiar.
52. Por outro lado, não podemos deixar de afirmar que a interpretação feita por este juízo deste Tribunal das normas sobre exclusões dos rendimentos para se chegar ao rendimento, afronta o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, nos termos do qual «todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei» (n.º 1) e ninguém pode «ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social» (n.º 2).
53. Com efeito, neste mesmo Tribunal, mas em outros juízos, bem como, em vários Tribunais espalhados pelo País, tem havido decisões para casos semelhantes a este ou mesmo para situações com menos dificuldades económicas e agregados familiares mais extensos, em que se fixa para o devedor um SMN e para cada um dos filhos metade de um SMN.
54. Sendo certo que, a aqui Insolvente requereu ao Tribunal que fosse fixado para si um SMN e para os seus três filhos um SMN, pois só com esse valor consegue garantir uma existência condigna para todos.
55. Ora, este princípio é aplicável a todos os direitos fundamentais e, nesta medida, beneficia do regime relativo aos direitos e liberdades, designadamente, a sua aplicabilidade direta às relações privadas e a respetiva vinculação das entidades públicas, qualquer que seja a sua competência legislativa, administrativa ou judicial.
56. Face ao exposto, a Insolvente entende que o valor estipulado no douto despacho que ora se recorre de 880,00€ não permite a esta assegurar o seu sustento minimamente digno e do respetivo agregado familiar, pelo que este sempre deveria ter sido fixado um SMN para a Insolvente e um SMN para os seus três filhos, o que perfaz a quantia de 1520,00€, só assim se fazendo justiça.
57. Aquando, do requerimento para alteração do valor do rendimento disponível a Insolvente requereu que tal alteração tivesse efeitos retroativos.
58. Afirma-se no despacho ora recorrido que “Desde já se diga que a alteração do valor do rendimento disponível não pode ter efeitos retroativos e servir como meio de extinção da divida gerada, sendo que tal despacho em momento próprio transitou em julgado, assim o montante em dívida deverá ser liquidado pela insolvente no período de exoneração do passivo restante, sem prejuízo do disposto no art. 242º-A do CIRE.”
57. A aqui Insolvente não pode concordar com tal decisão. Em primeiro lugar os efeitos retroativos nunca teriam como intenção ser um meio de extinção da dívida gerada, isto porque a Insolvente com a alteração do valor do rendimento disponível com efeitos retroativos teria ainda assim que entregar quantias para o pagamento dos créditos os credores, como aconteceu anteriormente, tendo já entregue quantias à fiduciária nomeada e em segundo lugar, aquando do trânsito em julgado do despacho que fixou o valor do rendimento disponível a situação económica da Insolvente permitia que esta e o seu agregado familiar vivessem com sustento minimamente digno, daí não ter interposto recurso.
58. Acontece que a sua situação económica alterou, dado que aos seus rendimentos salarias foram somados a pensão de alimentos devidos a filhos menores, paga pelo Fundo de Garantia de Pensão de Alimentos a Menores.
59. Com efeito, a Insolvente desconhecia que tinha que informar o douto Tribunal dessa alteração e, em consequência, que teria nesse momento que requerer a alteração do valor do rendimento disponível fixado, pois a Insolvente sempre pensou que só teria que comunicar caso existisse alteração do valor do seu salário.
60. E diga-se que para a Insolvente conseguir cumprir com o pagamento da quantia de €4.976,28, sempre teria que utilizar o valor da pensão de alimentos dos seus filhos menores, que a estes pertence, não os conseguindo alimentar, vestir, medicar, etc.
61. Assim, deverá o pedido de alteração do valor do rendimento disponível ser alterado com efeitos retroativos à data do despacho inicial sobre o procedimento de exoneração do passivo restante, só assim se garantindo a pretensão de uma Insolvência e da exoneração do passivo restante e, em consequência, fica garantindo o sustento minimamente digno da Insolvente e do seu agregado familiar, bem como, o pagamento ainda que parcial dos créditos dos credores.
Termos em que deve decidir-se pelo provimento da presente apelação e revogar-se o douto despacho, alterando o valor do rendimento disponível para dois salários mínimos nacionais, com efeitos retroativos à data do despacho inicial sobre o procedimento de exoneração do passivo restante, com o que se fará JUSTIÇA.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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A 1ª Instância admitiu o presente recurso como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.

No seguimento desta orientação, a apelante submeteu à apreciação do tribunal ad quem duas questões, a saber:

a- se a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação?
b- se essa decisão, ao alterar o rendimento indisponível fixado em 745,00 euros mensais, por decisão proferida em 26/10/2020, transitada em julgado, que admitiu liminarmente o pedido de concessão do benefício da exoneração do passivo restante para a quantia de 880,00 euros mensais e, bem assim, ao indeferir a pretensão daquela para que se fizesse retroagir a alteração do rendimento indisponível à data da prolação do despacho de 26/10/2020, determinando que a alteração do rendimento indisponível para a quantia de 880,00 euros mensais apenas operaria os seus efeitos legais a partir da data do trânsito em julgado da decisão recorrida, padece de erro de direito e se, em consequência, se impõe alterar o decidido, aumentando o rendimento indisponível para o montante equivalente a duas remunerações mínimas garantidas e fazendo retroagir essa alteração à data da prolação da dita decisão de 26/10/2020?
Note-se que do objeto do presente recurso não faz parte a questão suscitada pela apelante no requerimento de 09/03/2023, em que alegou que “a diferença do valor vindo de referir para o valor apurado pela Exma. Sr.ª Administradora para a média mensal auferida pela Insolvente (no relatório anual sobre o estado da fidúcia relativo ao ano de 2021, junto pela fiduciária aos autos em 30/12/2022, em que apurou um rendimento anual disponível de 4.976,28 euros) trata-se da pensão de alimentos dos seus três filhos paga pelo FGPA e respetivos abonos” – cfr. ponto 8º daquele requerimento de 09/03/2023.
Com efeito, apesar da apelante insistir nessa alegação, designadamente, na conclusão 60ª das alegações de recurso, no despacho recorrido a 1ª Instância não se pronunciou sobre essa questão, a qual, portanto, permanece por decidir, e no âmbito do presente recurso a apelante não submeteu essa questão à apreciação do tribunal ad quem (não invocando, omissão de pronúncia decorrente da 1ª Instância não se ter pronunciado quanto à mesma) posto que, conforme decorre das conclusões de recurso, e do pedido que deduz perante esta Relação, em que se limita a pedir que esta revogue a decisão recorrida, “alterando o valor do rendimento disponível para dois salários mínimos nacionais, com efeitos retroativos à data do despacho inicial sobre o procedimento de exoneração do passivo restante”, esta delimitou o campo de cognição deste tribunal às duas questões supra identificadas em sede de “objeto do recurso”.
Daí que a questão atrás enunciada não faça parte do objeto do presente recurso de apelação, não podendo, por isso, esta Relação dela conhecer, sob pena de incorrer em nulidade por excesso de pronúncia.
Note-se, porém, que perante o teor do relatório anual junto pela fiduciária aos autos e documentos que o instruem e, bem assim, a alegação da devedora (apelante) vertida no requerimento de 09/03/2023 e documentos com que instruiu esse requerimento, é obrigação legal do tribunal de insolvência verificar se os cálculos efetuados pela fiduciária no dito relatório relativo ao 2021, para determinação do rendimento disponível, estão ou não corretos.
Nessa operação, terá a 1ª Instância naturalmente, em sede de julgamento de facto, perante o teor da declaração de rendimentos da devedora para efeitos fiscais do ano de 2021, junta em anexo ao relatório anual apresentado pela fiduciária, e o teor dos documentos juntos pela devedora em anexo ao requerimento de 09/03/2023, e de outros  elementos de prova com que entenda municiar-se ao abrigo dos seus poderes inquisitoriais (art. 11º do CIRE), determinar a fonte dos rendimentos de 4.895,66 euros, concluindo pela prova ou não prova da facticidade que, a esse propósito, se encontra alegada pela fiduciária no identificado relatório e pela devedora no requerimento de 09/03/2023, segundo a qual essa quantia corresponde ao abono de família pago, ao longo do ano de 2021, aos filhos e, bem assim, à pensão de alimentos que lhes foi paga pelo FGA, motivando esse julgamento de facto que venha a realizar, tendo,  em sede de julgamento de direito, caso a tese factual da devedora (apelante)  se venha a apurar, decidir se esse rendimento integra ou não o denominado rendimento disponível da devedora, o que passará por se indagar se esse rendimento pertence efetivamente à devedora e, consequentemente, integra o seu rendimento, integrando o rendimento disponível, ou se antes, apesar lhe ter sido entregue, ao longo do ano de 2021, pela Segurança Social (quanto ao abono dos filhos) e pelo FGA (quanto à prestação alimentar), não integra efetivamente rendimento desta, mas sim dos seus filhos, destinando-se ao alimento dos últimos, não podendo, por isso, integrar o rendimento disponível.
Em suma, em face das razões acabadas de expor, não se conhecerá da questão que se vem enunciando, por a mesma não fazer parte do objeto do presente recurso.
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III- DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

No despacho recorrido a 1ª Instância não fixou os factos que julgou provados e não provados que foram alegados pela apelante no requerimento de 09 de março de 2023, em que requereu que fosse alterado o rendimento indisponível que antes lhe fora fixado em 745,00 euros mensais, por decisão proferida em 26/10/2020, para a quantia correspondente a duas retribuições mínimas garantidas, com efeitos à data da prolação dessa decisão de 26/10/2020, sendo este, aliás, um dos fundamentos pelos quais a apelante assaca ao despacho recorrido o vício da nulidade por falta de fundamentação, a que alude a al. b), do n.º 1, do art. 615º do CPC.
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IV- DA FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

A- Da nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação.

A apelante assaca ao despacho recorrido o vício da nulidade por falta de fundamentação, previsto na al. b), do n.º 1, do art. 615º do CPC, advogando que o tribunal a quo não especificou os fundamentos de facto nem de direito em que ancorou a decisão nele proferida, ou seja, o comando injuntivo que consta da respetiva parte dispositiva.
Como temos reiteradamente escrito nos acórdãos que vimos relatando, as decisões judiciais – estando nesta expressão compreendidas as sentenças (art. 615º, n.º 1 do CPC, a que se reportam todas as disposições legais a que se venha a fazer referência, sem menção em contrário), os acórdãos (art. 666º, ex vi, art. 615º, n.º 1) e os despachos (art. 613º, n.º 3, ex vi, art. 615º, n.º 1) - proferidas pelos tribunais no exercício da sua função jurisdicional podem ser viciadas por duas causas distintas, obstando qualquer delas à sua eficácia ou validade: a) por se ter errado no julgamento dos factos e/ou do direito, sendo então a respetiva consequência a sua revogação; e b) como atos jurisdicionais que são, por se terem violado as regras próprias da sua elaboração e/ou estruturação, ou as que balizam o conteúdo e/ou os limites do poder à sombra do qual são decretadas, sendo então passíveis de nulidade, nos termos do art. 615.º do CPC[1].
As causas determinativas de nulidade das decisões judiciais encontram-se taxativamente enunciadas  no n.º 1 do art. 615º do CPC e, conforme decorre das diversas alíneas desse n.º 1, reportam-se a vícios formais da sentença, acórdão ou despacho em si mesmos considerados, decorrentes de na sua elaboração e/ou estruturação o tribunal não ter respeitado as normas processuais que regulam essa elaboração e/ou estruturação e/ou as que balizam os limites da decisão neles proferida (o campo de cognição do tribunal fixado pelas partes e de que era lícito conhecer oficiosamente não foi respeitado, ficando a decisão aquém ou indo além desse campo de cognição, em termos de fundamentos, ou seja, causa de pedir, o que se reconduz à nulidade por omissão e excesso de pronúncia, respetivamente, e/ou de pretensão (pedido), o que se traduz na nulidade por condenação ultra petitum), tratando-se, por isso, de defeitos de atividade ou de construção da própria sentença, acórdão ou despacho em si mesmos considerados, ou seja, reafirma-se, vícios formais que os afetam de per se e/ou os limites à sombra dos quais são proferidos[2].
Diferentes desses vícios são os erros de julgamento (error in judicando), os quais contendem com erros em que o tribunal incorre em sede de julgamento da matéria de facto e/ou em sede de julgamento da matéria de direito, decorrentes de, respetivamente, o juiz ter incorrido numa distorção da realidade factual que julgou provada e/ou não provada, em virtude da prova produzida impor julgamento de facto diverso do que realizou (error facti) e/ou ter incorrido em erro na identificação das normas aplicáveis à relação jurídica material controvertida sobre que versam os autos, na interpretação que fez dessas mesmas normas jurídicas e/ou na sua aplicação à facticidade que julgou provada e/ou não provada (error juris).
Nos erros de julgamento assiste-se, assim, ou a uma deficiente análise crítica da prova produzida e/ou a uma deficiente enunciação, interpretação e/ou aplicação das normas jurídicas aplicáveis aos factos provados e não provados, sendo que, esses erros, por já não respeitarem a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença, acórdão ou despacho em si mesmos considerados (vícios formais) ou aos limites à sombra dos quais são proferidos, não os inquinam de invalidade, mas sim de error in judicando[3].
Precise-se que, embora atualmente, na sequência da revisão ao CPC operada pela Lei n.º 41/2013, de 26/06, o julgamento da matéria de facto se contenha na sentença, os erros de julgamento da matéria de facto não constituem, em regra, causa de nulidade das decisões judiciais, nomeadamente, por omissão ou excesso de pronúncia ou por falta de fundamentação, uma vez que esse julgamento encontra-se sujeito a um regime de valores negativos – a deficiência, a obscuridade ou a contradição da decisão ou a falta da sua motivação -, a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação, não constituindo, por norma, causa de nulidade da sentença, acórdão ou despacho, mas antes sendo suscetíveis de dar lugar à atuação pela Relação dos poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto operada pela 1ª Instância, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do art. 662º do CPC.
De resto, não falta quem advogue que os erros de julgamento da matéria de facto nunca por nunca constituem causa de nulidade da sentença, continuando válida a distinção que na versão anterior à revisão ao CPC, operada pela Lei n.º 41/2013, se impunha fazer entre erros de julgamento da matéria de facto e sentença propriamente dita, a qual versava apenas quanto ao julgamento da matéria de direito (mérito)[4].
Porém, em face das alterações ao CPC introduzidas pela mencionada Lei n.º 41/2003, em que a decisão sobre a matéria de facto passou a integrar a própria sentença, na senda da doutrina sufragada por Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, entendemos que se é certo que a deslocação da decisão da matéria de facto e da sua fundamentação para a própria sentença não afasta a distinção que se impõe realizar entre decisão sobre a matéria de facto e decisão  sobre a matéria de direito,  nem o regime específico do art. 662º, n.ºs 1 e 2 do CPC a que se encontram subordinados os vícios que afetam o julgamento da matéria de facto e a respetiva fundamentação/motivação, não se pode concluir que os erros de julgamento da matéria de facto, em caso algum, constituam causa de invalidade da sentença nos termos do art. 615º, uma vez que esses erros poderão assumir tal gravidade que acabem por se reconduzir a um dos tipos (vícios formais) de nulidade da própria sentença, acórdão ou despacho, enunciados no n.º 1 do art. 615º do CPC, que levem à invalidação destes, como é o caso de uma sentença em que o juiz omita totalmente a declaração e a discriminação dos factos que julgou provados e/ou em que omita totalmente a discriminação dos factos que julgou não provados e/ou em que omita totalmente a motivação do julgamento da matéria de facto que realizou[5].
Posto isto, o dever de fundamentação das decisões judiciais que não sejam de mero expediente é uma imposição constitucional decorrente do art. 205º, n.º 1 do CRP, o qual remete para a lei ordinária quanto ao modo como esse dever deverá ser concretizado.
Daí que, densificando esse comando constitucional, estabelece o art. 154º do CPC que as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas (n.º 1), não podendo essa fundamentação consistir na simples adesão dos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade (n.º 2).
Por sua vez, em sede de estruturação da sentença, estabelece o art. 607º do CPC que a sentença começa por identificar as partes e o objeto do litígio; de seguida,  enuncia as questões que ao tribunal cumpra solucionar (n.º 2); seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final (n.º 3); na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência (n.º 3).
Decorre do regime legal que se acaba de enunciar que, ainda que o pedido não seja controvertido ou que a questão a decidir não suscite qualquer dúvida, todas as decisões judiciais têm de ser fundamentadas de facto e de direito por imposição constitucional e infraconstitucional, dado que destinando-se as decisões judiciais a solucionar conflitos e, assim, a promover a paz social, esse desiderato apenas logrará ser atingido quando o juiz, através da fundamentação, logre demonstrar que a decisão que proferiu não é um mero ato arbitrário, mas a concretização da vontade abstrata da lei aplicada ao caso particular submetido à apreciação jurisdicional, passando de convencido a convincente.
Acresce dizer que a fundamentação exerce a função primordial de autocontrolo do próprio tribunal, ao forçá-lo a ter de exteriorizar e motivar os fundamentos probatórios e o raciocínio que a partir deles fez ou não fez para chegar à decisão de facto que proferiu e, bem assim, ao ter, em sede de julgamento de direito,  de exteriorizar as normas jurídicas que elegeu, a interpretação que fez dessas mesmas normas e o modo como as aplicou aos factos que se quedaram como provados e não provados no caso concreto, dando-os a conhecer às partes para que estas possam ajuizar do bom (ou mau) fundamento do decidido e da viabilidade de utilizarem os meios de impugnação da decisão legalmente previstos, caso não se conformem com o nela decidido e, em caso de recurso, permitindo ao tribunal superior conhecer desses fundamentos para que os possa sindicar.
Conforme antedito, a exigência de fundamentação das decisões judiciais pode não ser tão intensa no campo dos despachos interlocutórios, uma vez que neles autoriza-se o juiz a fundamentar a decisão por remissão para os fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, desde que a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.
No entanto, esse dever de fundamentação é compreensivelmente intenso na sentença, sabendo-se que, nos termos do n.º 2, do art. 152º, a sentença é o ato pelo qual o juiz decide a causa principal ou algum incidente que apresente a estrutura de uma causa, pelo que é nela que o tribunal dirime o conflito que lhe foi submetido pelas partes à sua apreciação e decisão e daí que nela o juiz tenha o dever legal de fundamentar a decisão quer de facto quer de direito e de motivar o julgamento de facto que realizou, assim como o julgamento de direito.
Em sede de fundamentação da matéria de facto, nos casos em que a prova de determinado facto controvertido esteja submetida a regras de direito probatório material, em que a apreciação da prova tem de ser feita, por imperativo legal, de acordo com as injunções constantes das referidas normas de direito probatório material, que fixam o valor probatório de determinado meio de prova, sem deixarem qualquer margem de subjetivismo ao julgador (última parte do n.º 5 do art. 607º)[6], na sentença, o juiz terá, em sede de motivação do julgamento da matéria de facto, de identificar o concreto meio probatório que considerou para considerar determinado facto como provado ou não provado, o dispositivo legal de direito probatório material que considerou ser aplicável a esse meio de prova, a interpretação que fez dessa norma legal e a aplicação que realizou do mesmo em relação ao facto controvertido (ou seja, identificando essa norma, interpretando-a e aplicando-a ao concreto facto controvertido) que lhe impõe, reafirma-se, sem qualquer margem de subjetivismo, o sentido da decisão da matéria de facto a proferir.
Já quanto a facticidade controvertida submetida ao princípio da livre apreciação da prova, que é a regra no âmbito do processo civil, porque livre apreciação da prova não equivale a arbitrariedade, o juiz tem o dever constitucional e infraconstitucional de fundamentar/motivar os factos controvertidos que julgou provados e não provados, o que implica a obrigação de ter de especificar os fundamentos que foram decisivos para formar a sua convicção sobre a prova ou falta de prova dos factos, indicando “fundamentos suficientes, para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade da sua convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz deve passar de convencido a convincente”, o que “pressupõe conhecer o seu conteúdo (por exemplo, o depoimento da testemunha), determinar a sua relevância (…) e proceder à sua valoração (por exemplo, através da credibilidade da testemunha ou do relatório pericial)”[7].
Dito por outras palavras, a obrigação de fundamentar o julgamento da matéria de facto submetida ao princípio da livre apreciação da prova implica que o julgador exteriorize, indicando-os, quais os concretos meios de prova que considerou e quais as razões objetivas e racionais pelas quais tais meios probatórios obtiveram no seu espírito credibilidade, de molde a compreender-se o itinerário cognoscitivo seguido para a consideração de determinado facto como provado ou não provado[8]. “É assim que o juiz explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim que, por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, as hesitações que não teve (ou teve), a naturalidade e a tranquilidade que teve (ou não)”[9].
Quanto à motivação /fundamentação do julgamento da matéria de direito impende sobre o juiz a obrigação constitucional e infraconstitucional de, na sentença, acórdão ou despacho, identificar as concretas normas que avocou, a interpretação que fez dessas normas jurídicas e a aplicação que das mesmas fez aos concretos factos que julgou provados e não provados.
O incumprimento do dever de fundamentação de facto e/ou de direito, nos termos do disposto no art. 615º, n.º 1, al. b), implica que a sentença seja nula, regime que, conforme já referido, é extensivo aos despachos (art. 613º, n.º 3) e aos acórdãos (art. 666º, n.º 1).
Contudo, importa ter presente ser pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial segundo o qual apenas a falta absoluta de indicação dos fundamentos de facto e/ou de direito e a absoluta ausência de motivação do julgamento de facto, em que se alicerçou a decisão proferida pelo tribunal na parte dispositiva da sentença, despacho ou acórdão é geradora de nulidade, e não apenas a mera deficiência da identificada fundamentação/motivação[10].
Na verdade, não deve confundir-se a falta absoluta de fundamentação com a fundamentação deficiente, medíocre ou errada e menos ainda com fundamentação divergente. “O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade”; e por “falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto”[11].
Destarte, apenas a total falta de fundamentos de facto e de direito, ou a total omissão da motivação do julgamento da matéria de facto realizado pelo juiz, e não apenas uma especificação incompleta, sumária ou errada daqueles fundamentos de facto e/ou direito e da motivação do julgamento da matéria de facto, gera a nulidade da sentença, acórdão ou despacho.
Porque assim é, compreende-se que padecendo o julgamento da matéria de facto do vício da deficiência, no sentido de o tribunal não ter julgado provados ou não provados factos essenciais integrativos da causa de pedir alegada pelo autor na petição inicial, ou das exceções deduzidas pelo réu na contestação, ou de contra exceção invocada pelo autor, na réplica, não sendo esta admissível, na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final (arts. 584º, 587º e 3º, n.º 3), ou de factos complementares que, ainda que não alegados, a respetiva prova tenha resultado da instrução da causa e tenha sido observado quanto aos mesmos o princípio do contraditório, ou de factos instrumentais que, ainda que não alegados, a respetiva prova tenha resultado da instrução da causa (art. 5º, nºs 1 e 2), esse vício não determine a nulidade da sentença, acórdão ou despacho, designadamente, por omissão de pronúncia ou por falta de fundamentação, mas traduza erro de julgamento da matéria de facto, na vertente de deficiência, que terá de ser suprido pela Relação sempre que o processo contenha todos os elementos probatórios que, com a necessária segurança, lhe permita suprir esse vício do julgamento da matéria de facto (arts. 665º, n.º 1, 662º, n.ºs 1 e 2, al. c), este a contrario); de contrário, deverá anular a sentença, acórdão ou despacho e remeter os autos à 1ª Instância para que amplie o julgamento da matéria de facto à concreta facticidade em relação à qual ocorre o vício de deficiência (art. 662º, n.º 2, al. c))[12].   E igualmente se compreende que se preveja, na al. d), do n.º 2 do art. 662º do CPC, que sempre que determinado facto essencial para o julgamento da causa não esteja devidamente fundamentado, a Relação não deve anular o julgamento de facto, mas antes determinar a baixa dos autos à 1ª Instância para que esta o fundamente devidamente, tendo em conta os depoimentos gravados e registados.

Destarte, em suma, apenas se verifica a falta de fundamentação da al. b), do n.º 1, do art. 615º, determinativa de nulidade da sentença, acórdão ou despacho, quando neles o tribunal, em sede de julgamento da matéria de facto, omita totalmente a indicação e a discriminação dos factos julgados provados, e/ou omita totalmente a indicação dos factos julgados não provados, e/ou omita totalmente a fundamentação/motivação do julgamento da matéria de facto que realizou, e/ou, em sede de julgamento da matéria de direito, omita totalmente a indicação das normas legais que avocou, a interpretação que fez dessas normas jurídicas e/ou a aplicação que delas fez à facticidade julgada provada e não provada, e não quando o julgamento da matéria de facto padece tão só do vício de deficiência, a motivação desse julgamento da matéria de facto se revele apenas escassa ou sumariamente motivado e/ou se omita a motivação apenas quanto a algum ou alguns dos factos julgados provados ou não provados ou, quando o julgamento da matéria de direito, se revela meramente incompleto, sumário, deficiente ou errado. Todos esses vícios que se acabam de enunciar não afetam o valor legal da sentença, acórdão ou despacho, não determinando, portanto, a nulidade por falta de fundamentação da al. b), do n.º 1, do art. 615º.
Assentes nas premissas que se vem enunciando, é indiscutível que o despacho recorrido padece do vício da nulidade por falta de fundamentação, previsto no art. 615º, n.º 1, al. b), ex vi, art. 613º, n.º 3, uma vez que nele a 1ª Instância omitiu totalmente a indicação e a discriminação dos factos que julgou provados que foram alegados pela apelante no requerimento entrado em juízo em 09 de março de 2023, com fundamento nos quais pretende que o rendimento indisponível antes fixado em 745,00 euros mensais, por decisão de 26/10/2020, seja alterado para quantia equivalente a duas remunerações mínimas mensais garantidas, conforme lhe é imposto pelos art. 607º, n.ºs 3 e 4, ex vi, arts. 613º, n.º 3, o que determina a nulidade desse despacho por falta de fundamentação.

Nesta conformidade, sem mais, por desnecessárias, considerações, julga-se procedente o presente fundamento de recurso invocado pela apelante e, em consequência, declara-se nulo o despacho recorrido por total falta de fundamentação do julgamento da matéria de facto nele realizado pela 1ª Instância, nos termos da al. b), do n.º 1, do art. 615º, ex vi, arts 607º, n.ºs 3 e 4 e 613º, n.º 3.

B- Superação do vício da nulidade do despacho recorrido por total falta de fundamentação do julgamento da matéria de facto.

O vício da nulidade do despacho sob sindicância por falta de fundamentação, decorrente de total falta de indicação e discriminação dos factos julgados provados e por total falta de indicação dos factos julgados não provados, não tem como consequência invariável a remessa dos autos à 1ª Instância para que supra esse vício.

Com efeito, conforme antedito, nos termos dos arts. 662º, n.ºs 1, 2, al. c) e 665º, sempre que o tribunal ad quem disponha de todos os elementos probatórios que lhe permitam efetuar com a necessária segurança o julgamento da matéria de facto omitido pelo tribunal a quo, terá de, nos termos do disposto nos arts. 662º, n.ºs 1 e 2, al. c), a contrario, e 665º, n.º 1,  fazendo uso dos seus poderes de substituição, proceder à valoração autónoma desses meios de prova e realizar esse julgamento de facto e motivá-lo[13].

No caso em análise, considerando o teor da certidão de nascimento da apelante, junta ao processo físico a fls. 10 verso a 11, onde se vê que esta se divorciou, por sentença transitada em julgado em 10/01/2017, proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Família e Menores ..., Juiz ...; o teor das certidões do assento de nascimento dos filhos da apelante, juntas aos autos a fls. 47 verso a 51 do processo físico, onde se vê que, na sequência desse divórcio, o exercício das responsabilidades parentais desses três filhos foi regulado, tendo estes sido confiados à apelante, com quem residem e a quem foi confiado o exercício das responsabilidade parentais; os factos julgados provados no despacho proferido em 26/10/2020, transitado em julgado, em que se deferiu liminarmente o pedido de concessão do benefício de exoneração do passivo restante deduzido pela apelante e se fixou o rendimento indisponível desta em 745,00 euros mensais, junto ao processo físico a fls. 71 a 72; e o teor dos documentos juntos pela mesma, em anexo ao requerimento de 09/03/2023, em que requereu, além do mais, a alteração do rendimento indisponível antes fixado em 745,00 euros mensais para quantia mensal equivalente a duas remunerações mínimas nacionais, temos que esses elementos probatórios, quando submetidos às regras da experiência comum, permitem ao tribunal ad quem efetuar com a necessária segurança o julgamento de facto quanto à facticidade alegada pela apelante neste último requerimento e, assim, suprir o vício da nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação.

Destarte, suprindo o vício da nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação, julgam-se provados os seguintes factos:

A- Por sentença proferida em 15/04/2020, transitada em julgado, AA foi declarada insolvente – cfr. sentença de fls. 44 a 45 do processo físico.
B- Por despacho de 26/10/2020, transitado em julgado, determinou-se o encerramento do processo de insolvência por inexistência de ativo e qualificou-se a insolvência da devedora EE como fortuita – cfr. despacho de fls. 71 a 72 do processo físico.
C- AA nasceu em .../.../2001 e é filha de AA e de FF – cfr. certidão do assento de nascimento junta a fls. 48 verso a 49 do processo físico.
D- AA nasceu em .../.../2004 e é filho de AA e de FF – cfr. certidão do assento de nascimento junta a fls. 49 verso a 50 do processo físico.
E- AA nasceu em .../.../2011 e é filho de AA e de FF – cfr. certidão do assento de nascimento junta a fls. 50 verso a 51 do processo físico.
F- O exercício das responsabilidades parentais relativas aos jovens identificados em C, D e E, foi regulado, por sentença proferida em 07 de junho de 2017, pelo Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Família e Menores ..., Juiz ..., tendo os jovens sido confiados à mãe, com quem residirão e a quem compete o exercício das responsabilidades parentais – cfr. certidão dos assentos de nascimento de fls. 48 verso a 51 do processo físico.
G- Por despacho proferido em 26/10/2020, transitado em julgado, deferiu-se liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela apelante, AA, e fixou-se em 745,00 euros mensais o rendimento indisponível, tendo, nesse despacho, sido julgada provada a facticidade que se segue:
a- A insolvente aufere um salário mensal de € 635,00.
b- A insolvente apresenta as seguintes despesas:
- renda no valor de 350,00€;
- gás no valor de 7,15€;
- luz no valor de 14,90 euros;
- água no valor de 25,02€;
- ... telecomunicações no valor de 42,99€;
- propina da filha mais velha na Universidade ..., no valor de 69,70€;
- despesas de autocarro da filha mais velha para deslocação à universidade no valor de 62,80€;
- atletismo do filho mais novo no valor de 26,00€;
-  despesas medicamentosas no valor de 54,78€;
- tem ainda a insolvente as despesas mensais correntes com alimentação e produtos de higiene no valor de 250,00€.
c- Tem a insolvente despesas mensais correntes no valor total de 903,34€ (novecentos e três euros e trinta e quatro cêntimos).
d- A Requerente habita com os seus 3 filhos, sendo 2 dos quais menores – cfr. despacho de fls. 71 a 72 do processo físico.
I- Em 09/03/2023, o agregado familiar da devedora EE continuava a ser constituído pela própria e pelos três filhos identificados em C, D e E.
J- Os filhos mais velhos da devedora (os filhos CC e GG) estudam na Universidade ..., enquanto o filho BB estuda na Escola ... ....
K- Em março de 2023, a devedora EE suporta com o seu agregado familiar as seguintes despesas mensais médias:
- 350,00 euros de renda de casa;
- quantia não apurada, mas superior a 250,00 euros mensais, em despesa de alimentação e de higiene do agregado familiar;
- 59,38 euros de despesas com telecomunicações;
- 80,26 euros de eletricidade e água;
- 165,00 euros de propina do centro de estudo frequentado pelo filho BB;
- 24,30 euros na aquisição de medicação para o filho BB;
- 69,70 euros de propina da filha CC;
- 47,90 euros na aquisição de passe mensal de transporte para a filha CC;
- 69,70 euros de propina para o filho GG;
- quantia não apurada na aquisição de vestuário, calçado e despesas de saúde;
L- A filha HH tem necessidade de usar lentes de contacto e em 20/04/2022, a devedora EE despendeu 110,00 euros na aquisição de lentes de contacto para essa filha.
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Por sua vez, julga-se não provados os seguintes factos:

1- o filho BB tenha dificuldades de aprendizagem pelo facto de sofrer de dislexia, necessitando de maior acompanhamento escolar;
2- a devedora EE despenda mensalmente, em média, 12,00 euros em alimentação escolar do filho BB;
3- as despesas de vestuário e calçado do agregado familiar da devedora EE ascendam a 300,00 euros de seis em seis meses;
4- Os filhos CC e DD da devedora EE tenham necessidade de usar óculos e a devedora despenda cerca de 500,00 euros de três em três anos na aquisição de óculos para aqueles; e
5- a devedora EE despenda 25,00 euros mensais em alimentação do filho DD, que este toma na universidade.
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Fundamentação.

A facticidade julgada provada nas alíneas A a G, a respetiva prova ancorou-se no teor dos documentos que se identificaram em frente a cada uma dessas alíneas. Trata-se de documentos autênticos (arts. 362º, 363º, n.ºs 1 e 2 e 369º do CC), não arguidos de falsos e que, por isso, nos termos do disposto no art. 371º do CC, fazem prova plena da facticidade que se julgou provada.
No que respeita à facticidade julgada provada nas alíneas I e J, a respetiva prova ancorou-se no teor das certidões de nascimento dos três filhos da apelante, juntas a fls. 48 verso a 51 do processo físico; no teor dos recibos relativos ao pagamento de propinas pela frequência do ensino universitário dos dois filhos mais velhos da apelante, juntas em anexo ao requerimento de 09/03/2023; e no teor do recibo de pagamento de propinas pagas ao centro de estudos que é frequentado pelo filho mais novo desta, o que tudo corrobora a facticidade que se julgou como provada.
Quanto à facticidade julgada provada na alínea K), a respetiva prova ancorou-se nos recibos juntos pela apelante em anexo ao requerimento de 09/03/2023, o que tudo, aliado ao que anteriormente se disse, quanto à circunstância dos dois filhos mais velhos daquela frequentarem o ensino universitário, enquanto o filho mais novo frequenta o ensino secundário, corrobora a facticidade que se julgou provada.
Note-se que apesar de não ter sido feita qualquer prova sobre a concreta despesa mensal média que o agregado familiar da apelante despende em alimentação e higiene, verificando-se que, por decisão transitada em julgado, proferida em 26/10/2020 (cfr. fls. 71 a 72), se provou que em 2020 essa concreta despesa ascendia a 250,00 euros, é inegável que perante o agravamento da inflação ocorrida nos últimos anos, sobretudo ao nível dos géneros alimentares de primeira necessidade, essa despesa do agregado familiar da apelante, constituído pela própria e pelos três filhos, em 2023 é necessariamente superior à dita despesas mensal de 250,00 euros.
No que respeita à facticidade julgada não provada, a respetiva não prova ancorou-se no facto de não ter sido produzida qualquer prova quanto a essa concreta facticidade.
Na verdade, nenhuma prova foi produzida quanto às alegadas dificuldades de aprendizagem do filho mais novo da apelante e do alegado problema de dislexia que o afetará e que reclamarão cuidados acrescidos em termos de educação.
Igualmente nada se apurou (nenhuma prova foi produzida) quanto ao uso de óculos pelos filhos mais velhos da apelante e eventuais quantias despendidas por esta na aquisição de óculos para esses filhos, nem sequer sobre a regularidade com que tem de despender os 110,00 euros que dispôs, em 20/04/2022, na aquisição de lentes para a filha.
Também nenhuma prova foi produzida sobre eventuais quantias despendidas pela apelante na alimentação que os filhos mais velhos tomam na universidade, pondo-se em realce que o doc. n.º ...2, junto em anexo ao requerimento de 09/03/2023, apenas comprova que foi realizada uma transferência de 25,00 euros através da aplicação MB Way, desconhecendo-se, porém, por quem, para quem, e para que efeitos.
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C- Do instituto de exoneração do passivo restante

Embora o processo de insolvência, de acordo com o art. 1º do CIRE, seja um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quanto tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, em que o objetivo primordial do processo é a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores, quanto aos processos de insolvência de pessoas singulares, independentemente de serem ou não titulares de empresas, o CIRE instituiu, nos arts. 235º e segs., o denominado instituto de exoneração do passivo restante que, permite que os insolventes, pessoas singulares, quando a insolvência ocorra em determinadas condições e mediante o cumprimento de determinados requisitos e deveres, se libertem das dívidas que os onerem e que permaneçam insatisfeitas após a liquidação da massa insolvente e no termo do período de cessão,  e recomecem de novo, sem elas, a sua vida económica, assentando o instituto em causa no princípio do “start fresh”, em que, sem esquecer os interesses dos credores, promove-se fundamentalmente os interesses do devedor, pessoa singular, declarado insolvente no respeito pela sua dignidade enquanto pessoa humana.
O princípio do start fresh consubstancia, assim, o princípio fundamental e básico do instituto de exoneração do passivo restante ao permitir ao devedor, pessoa singular, a libertação dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento desse processo (o denominado período de cessão), quando sejam observadas certas condições.
Trata-se de uma inovação no sistema jurídico nacional, que visa conjugar os interesses do insolvente, pessoa singular, com os interesses dos respetivos credores e os gerais da economia[14].
Conforme expende Luís M. Martins, a exoneração do passivo restante constitui “uma medida de proteção” do devedor, pessoa singular, cujo objetivo primordial é reabilitá-lo e dar-lhe “uma segunda oportunidade, para que possa recomeçar a sua vida evitando a indigência que nada beneficia a sociedade”[15], em que é intenção do legislador libertar o devedor, pessoa singular, declarado insolvente, das obrigações que, uma vez findo o período de cessão, permaneçam insatisfeitas,  para que, depois de “aprendida a lição”, possa retomar a sua vida e, se for caso disso, o exercício da sua atividade económica ou empresarial, dando-lhe uma oportunidade de recomeçar do zero[16].
No mesmo sentido escreve Luís Menezes Leitão, que a figura de exoneração do passivo traduz-se num benefício concedido ao insolvente, com a inerente possibilidade de se exonerar “dos créditos sobre a insolvência que não sejam integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos (atualmente, na sequência da alteração introduzida ao CIRE pela Lei n.º 9/2022, de 11/01, três anos) posteriores ao encerramento deste”, visando, desta forma, conceder ao devedor, pessoa singular, um fresh start, “permitindo-lhe recomeçar de novo a sua atividade, sem o peso da insolvência anterior”[17].
O instituto de exoneração  do passivo restante é, assim, um instituto específico da insolvência de pessoas singulares que prossegue preponderantemente os interesses do devedor, pessoa singular, declarado insolvente, sendo uma medida de tutela deste, sem esquecer os interesses dos respetivos credores, ao estimular que o devedor se empenhe, durante o período de cessão, em obter atividade remunerada que lhe permita obter meios para cumprir com as suas obrigações para com aqueles e, bem assim, os interesses gerais da economia, posto que, a existência de semelhante instituto e a possibilidade de recurso a ele provoca naturalmente uma contração imediata do crédito, com impactos positivos na economia, posto que, quanto mais restrito for o acesso ao crédito, mais exigente é quem o concede e mais responsável é quem o pede e menor é o risco de sobre endividamento e menos provável a insolvência dos consumidores e dos empresários em nome individual.  
No entanto, porque o instituto de exoneração do passivo restante consubstancia uma nova causa de extinção das obrigações, extraordinária e avulsa relativamente às que se encontram tipificadas no CC[18], visando salvaguardar os interesses do devedor insolvente, sem esquecer os dos credores e os gerais da economia, assistindo-se nele ao confronto de interesses divergentes - os dos credores e da confiança do tráfego económico, em que norteia o princípio do pacta sunt  servanda, de acordo com o qual, os contratos são, em princípio, para cumprir, e o do devedor/insolvente, com particular relevo pelo respeito pela sua dignidade humana, e  a criação de circunstâncias que promovam a existência de indivíduos economicamente aptos na vida económica -, há que conjugar os diversos interesses em confronto[19].
Daí que o instituto de exoneração não consubstancia, sequer pode consubstanciar, “um brinde ao incumpridor”[20], pelo que esse perdão de dívida não pode ser concedido ao insolvente, pessoa singular, sem critérios mínimos de razoabilidade, sob pena de se banalizar o próprio instituto, ao qual todos recorrem sem qualquer sentido de responsabilidade e sacrifício, pois que não foi manifesto propósito do legislador que este tivesse como escopo a desresponsabilização do devedor, nem que o processo judicial possa ser uma porta aberta para atingir semelhante desiderato.
Deste modo, para que a exoneração do passivo restante seja concedida é que se compreende ser necessário que antes do processo de insolvência, durante este e, bem assim, até ao termo do ano subsequente ao trânsito em julgado da decisão que lhe conceda a exoneração do passivo restante (art. 246º, n.º 2 do CIRE), o devedor tenha de justificar ser merecedor de uma segunda oportunidade, que lhe permita “começar de novo”[21].
Para que a exoneração do passivo restante seja concedida é necessário, além do mais, que o devedor, pessoa singular, declarado insolvente, percorra um processo próprio, que tem natureza incidental em relação ao processo de insolvência, onde se destacam, como principais fases, o pedido de exoneração, o despacho liminar ou inicial e o despacho final.
O pedido de concessão do benefício de exoneração tem de ser deduzido pelo devedor, pessoa singular, no requerimento inicial de apresentação à insolvência, ou no prazo de dez dias subsequentes à citação quando não seja ele que instaure o processo de insolvência (art. 236º, n.º 1 do CIRE), e terá de ser rejeitado quando o devedor, aquando da apresentação de um plano de pagamento, não declare pretender essa exoneração (art. 254º do CIRE).
Nesse requerimento, o devedor tem de declarar expressamente que preenche os requisitos para que lhe seja concedido o benefício de exoneração do passivo restante e se dispõe a observar todas as condições e obrigações decorrentes da concessão desse benefício (n.º 3 do art. 236º).
Perante esse pedido, o juiz, ouvidos os credores e o administrador da insolvência (n.º 4 do art. 236º), profere despacho liminar, pronunciando-se sobre a admissibilidade deste e deferindo ou indeferindo liminarmente a pretendida exoneração do passivo restante e, no caso de deferimento liminar do incidente, fixa as condições a que a concessão desse benefício fica sujeito durante o período de cessão (art. 237º).
Trata-se de um despacho liminar, reclamando apenas do juiz uma análise e ponderação sumárias acerca da existência ou não de condições de admissibilidade liminar ou de indeferimento liminar de exoneração do passivo restante legalmente especificadas: admitirá liminarmente o pedido quando nenhuma circunstância taxativamente enunciada no art. 238º, n.º 1, como obstáculo ao seu deferimento liminar ocorra; indeferi-lo-á liminarmente quando se verifique alguma circunstância apontadas nesse preceito como causa de indeferimento liminar[22].
O despacho inicial tem, assim, como único objetivo a aferição da existência de condições mínimas, a ser emitido segundo um juízo de prognose e prova sumária, para a admissão liminar (ou não) do pedido de exoneração do passivo restante, aferição liminar e sumária essa que se destina a decidir se ao devedor deve ser dada uma oportunidade de se submeter a uma espécie de período de prova (o denominado “período de cessão”) que, uma vez terminado, pode resultar ou não na concessão àquele devedor do benefício de exoneração e, em caso de admissão liminar, fixar as obrigações a que o devedor, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência – período de cessão - fica sujeito (arts. 239º, 244º e 245º do CIRE).
Note-se que, apesar de não existir unanimidade jurisprudencial a esse respeito, é atualmente largamente dominante a corrente segundo a qual não impende sobre o devedor, pessoa singular, requerente da concessão do benefício de exoneração, o ónus da alegação e da prova da não verificação dos requisitos previstos no n.º 1 do art. 238º para o indeferimento liminar do pedido de exoneração, mas é antes sobre os interessados que impende o ónus de alegar e demonstrar factos e circunstâncias que preencham os requisitos de indeferimento liminar do incidente de exoneração taxativamente previstos naquele art. 238º, n.º 1[23].
Deste modo, o deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante não significa que esse benefício venha a ser efetivamente concedido ao devedor/insolvente, pessoa singular, declarada insolvente, mas apenas tem o significado e alcance de que existem condições para proferir o despacho inicial liminar, em que se fixa as condições a ser observadas pelo devedor durante o período de cessão, durante o qual o rendimento disponível deste se considera cedido a uma entidade, denominado fiduciário, e se fixa os comportamentos acessórios daquela obrigação principal a serem observados pelo devedor. Só findo o período de cessão é que o juiz decide, em definitivo, sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante (arts. 239º, n.ºs 2, 3 e 4 e 244º, n.º 1 do CIRE)[24].
O despacho inicial de deferimento liminar do pedido de exoneração “só promete conceder a exoneração efetiva se o devedor, ao longo de três anos, observar certo comportamento que lhe é imposto. A concessão efetiva da exoneração depende, pois, da verificação dessas condições (…) e é decidida no despacho regulado no art. 244º, se, entretanto, não tiver havido cessação antecipada do procedimento de exoneração, nos termos do art. 243º”[25].
Embora a existência do despacho de deferimento liminar do requerimento de exoneração do passivo restante constitua pressuposto para a concessão desse benefício (art. 237º, n.º 1, al. a) do CIRE), o mesmo traduz uma mera promessa em como a exoneração será concedido ao devedor, pessoa singular, caso este cumpra, ao longo do período de cessão, as obrigações que lhe são impostas (al. b), do n.º 1 daquele art. 237º), pelo que condição para que lhe seja concedido esse perdão de dívida é que o mesmo, ao longo desse período de cessão (nos três anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência), cumpra com as obrigações que lhe foram impostas no despacho de deferimento liminar do incidente em causa como condição para a concessão do perdão de dívida.
Na verdade, deferido liminarmente o incidente de exoneração, se se verificar alguma das circunstâncias taxativamente elencadas numa das alíneas do n.º 1, do art. 243º do CIRE para a cessação antecipada do procedimento de exoneração, o juiz, a requerimento de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, tem de declarar cessado antecipadamente o procedimento de exoneração.
E nos casos em que não tenha sido declarada a cessação antecipada do procedimento de exoneração, findo o período de cessão, ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, o juiz tem de recusar a concessão do benefício de exoneração ao devedor sempre que se verifique alguma das circunstâncias taxativamente elencadas numa das alíneas do n.º 1, do art. 243º determinativas da cessação antecipada daquele procedimento (art. 244º, n.ºs 1 e 2).
Note-se que mesmo findo o período de cessão, ainda que o juiz, por decisão transitada em julgado, conceda ao devedor o benefício de exoneração, essa decisão, apesar do seu trânsito em julgado, será revogada se, até ao termo do ano subsequente ao trânsito em julgado da mesma, qualquer credor requerer essa revogação e alegue e prove que o devedor incorreu numa das situações taxativamente previstas no n.º 1, do art. 246º (art. 246º).
           
C.1- Do período de cessão.

O período de cessão que, antes da revisão ao CIRE operada pela Lei n.º 9/2022, de 11/01, tinha uma duração de cinco anos, na sequência da revisão introduzia por este diploma, passou a ter uma duração de apenas três anos, e essa duração é aplicável aos processos de insolvência de pessoas singulares em que tivesse sido requerida a concessão do benefício de exoneração dos passivo restante e nos quais tivesse sido já proferido despacho de deferimento liminar desse benefício aquando da entrada em vigor da identificada Lei, por força do disposto no seu art. 10º, n.º 3.
Destarte, se por força da versão do CIRE que se encontrava em vigor à data da instauração do presente processo de insolvência o período de cessão aplicável à apelante (devedora) tinha efetivamente uma duração de cinco anos, por via daquela alteração legislativa, esse período de cessão que lhe é aplicável tem uma duração de apenas três anos.
O referido período de três anos é de duração fixa, na medida em que foi estabelecido  em benefício dos credores, constituindo o período temporal que o legislador entendeu adequado para lhes ser assegurada uma razoável satisfação dos seus créditos[26].
Esse período inicia-se com o encerramento do processo de insolvência (arts. 235º, 237º, al. b) e 239º, n.º 2).
Durante esse período, o devedor fica obrigado a cumprir a obrigação principal de entregar o seu rendimento disponível ao fiduciário (n.ºs 2 do art. 239ºdo CIRE) e, bem assim, ao cumprimento de um conjunto de obrigações acessórias elencadas no n.º 4 desse art. 239º, as quais têm por escopo assegurar e controlar o cumprimento pelo fiduciário, pelos credores e pelo tribunal da referida obrigação principal que impende sobre o devedor/insolvente de, durante o período de cessão, entregar o seu rendimento disponível ao fiduciário[27].
Ao fim de cada um dos três anos da fidúcia, o fiduciário tem de elaborar e enviar a cada credor e ao juiz um documento com a informação sucinta sobre o seu estado, onde reporte os valores dos rendimentos do devedor, o valor da cessão e o valor do rendimento indisponível, assim como o estado do cumprimento das obrigações fiduciárias pelo devedor (cfr. arts. 61º, n.º 1, 239º, n.º 2 e 240º, n.º 2).
Trata-se de uma obrigação funcional do fiduciário, o qual, para que possa elaborar esse relatório, necessita que o devedor lhe faculte informação sobre os seus rendimentos e património, posto que, sem essa informação o fiduciário não poderá prosseguir os fins essenciais das suas funções, nem sequer elaborar o referido relatório anual.
A recolha dessa informação pelo fiduciário destina-se a comprovar os rendimentos e património do devedor e a conformidade das entregas por este realizadas ou, quando essas entregas sejam inexistentes, a verificar dos motivos que justificam essa ausência de entregas, nomeadamente, se o devedor tem ou não cumprido com o dever acessório a que alude a al. b), do n.º 4 do art. 239º.
Dir-se-á que, o cumprimento de todos os deveres acessórios que se encontram elencados no n.º 4 do art. 239º destina-se a fiscalizar escrupulosamente o cumprimento pelo devedor da obrigação principal de cessão do rendimento disponível à fidúcia durante o período de cessão.
Daí que a falta injustificada pelo devedor de fornecimento dos documentos solicitados pelo fiduciário e/ou pelo tribunal quanto aos rendimentos e ao património daquele indicie a ocultação e a violação do dever principal que impende sobre o mesmo de ceder o seu rendimento disponível ao fiduciário e, como tal, constitua causa de cessação antecipada do procedimento de exoneração, nos termos do art. 243º, n.ºs 1, al. a) e 3.

C.3- Do rendimento (in)disponível.
Durante o período de cessão a obrigação principal do devedor, conforme antedito, consiste em ceder ao fiduciário todo o rendimento disponível, para que este, com esse rendimento, satisfaça os credores da insolvência cujos créditos permaneçam por liquidar na sequência da liquidação da massa insolvente.
Para que se garanta o cumprimento pelo devedor dessa obrigação principal, é-lhe imposto o cumprimento da panóplia de deveres acessórios que se encontram elencados no n.º 4 do art. 239º.
Por “rendimento disponível” entende-se não apenas o rendimento em sentido técnico, mas todos os rendimentos e património que advenham para o devedor durante o período de cessão[28], qualquer que seja a sua fonte e que não estejam excluídos daquele nos termos das als. a e b), do n.º 3 do art. 239º, estando, portanto, englobado no conceito de “rendimento disponível” não só o rendimento em sentido técnico, como é o caso dos rendimentos do trabalho (incluindo-se aqui, para além do salário base, todos os complementos salariais, mas também subsídios de férias e de natal) e pensões de reforma e/ou  por acidentes de trabalho, mas também indemnizações por acidente de viação, prémios de lotaria, juros de dinheiro depositado, proventos de títulos de crédito, rendas de casa, etc., bem como todo e qualquer património que o mesmo receba, a título oneroso ou gratuito,  durante o período de cessão, contanto esses rendimentos e bens sejam suscetíveis de avaliação pecuniária e sejam suscetíveis de serem penhorados, à exceção dos previstos nas als. a) e b) do n.º 3 do art. 239º.
São todos esses rendimentos e património suscetível de avaliação pecuniária e de penhora que o devedor receba, a qualquer título, durante o período de cessão, ou seja, a partir do encerramento do processo de insolvência e até ao termo dos três anos subsequentes, que o mesmo terá de entregar ao fiduciário para que satisfaça os créditos da insolvência que permaneçam por liquidar na sequência da liquidação da massa insolvente.
Para além dos créditos previstos na al. a) do n.º 3, do art. 239º do CIRE, excluem-se do rendimento disponível do devedor, nos termos da al. b), do mesmo n.º 3, os rendimentos que sejam “razoavelmente necessários para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”, o qual não deve exceder três vezes o salário mínimo nacional, salvo decisão fundamentada do juiz (ponto i), al. b) do n.º 3 do art. 239º).
Essa exclusão, assim como a enunciada no ponto ii) da al. b) do mesmo n.º 3, que manda excluir do conceito de rendimento disponível o rendimento que seja razoavelmente necessário para que o devedor possa exercer a sua atividade profissional, conforme ponderam Carvalho Fernandes e João Labareda[29], decorre da chamada função interna do património, enquanto suporte da vida económica do seu titular, visando o legislador obstar que o devedor/insolvente seja privado dos rendimentos razoavelmente necessários para o seu sustento minimamente digno e do seu agregado familiar e, bem assim, dos rendimentos necessários ao exercício da sua atividade profissional, sob pena de, respetivamente, se colocar em crise a subsistência minimamente digna do devedor e do seu agregado familiar e de se impedir aquele de continuar a exercer a sua atividade profissional.
Note-se que a lei não enuncia o que se entender como “sustento minimamente digno” do devedor e do seu agregado familiar, limitando-se a recorrer ao enunciado conceito indeterminado, vago e aberto e, em sede de limite máximo, a fixar que o montante da exclusão não deve exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional.
Apesar das hesitações jurisprudenciais iniciais, é atualmente pacífico o entendimento segundo o qual o legislador limitou-se a estabelecer no art. 239º, n.º 3, al. b), i) um limite máximo objetivo, ao determinar que “o rendimento razoavelmente necessário para o sustento minimamente do devedor e do seu agregado familiar”, em regra, não poderá ultrapassar o montante equivalente a três salários mínimos nacionais, mas que não é um limite absoluto, uma vez que esse limite poderá ser excedido “por decisão fundamentada do juiz”, sempre que as circunstâncias concretas do caso o reclamem.
O sentido e alcance desse limite máximo do “sustento minimamente digno” é, pois, o de que o limite dos três salários mínimos nacionais só pode ser ultrapassado em casos excecionais, face às circunstâncias específicas e concretas do devedor e do seu agregado familiar, que reclamem a ultrapassagem desse limite máximo, exigindo da parte do julgador um acrescido e aprofundado dever de fundamentação, com vista a demonstrar a necessidade de se ultrapassar o critério máximo determinado pelo legislador dos três salários mínimos nacionais[30].
Já quanto ao limite mínimo do rendimento excluído pelo legislador da noção de “rendimento disponível” e que, portanto, integrará o “rendimento indisponível”, ou seja, que o devedor não tem de entregar ao fiduciário, durante o período de cessão, por ser razoavelmente necessário e indispensável para garantir o sustento minimamente digno daquele e do seu agregado familiar, verifica-se que o legislador nada estabeleceu, à exceção do enunciado limite objetivo máximo dos três salários mínimos nacionais, em que apela ao salário mínimo nacional, cumprindo, por isso, ao julgador objetivar o que seja  o “razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar”.  
Essa objetivação dependerá naturalmente das particularidades do caso concreto, nomeadamente, do número de pessoas que integram o agregado familiar do devedor e que sejam dele dependentes economicamente, idade, estado de saúde dessas pessoas, custo de vida, etc.
Na sequência da jurisprudência do Tribunal Constitucional que faz assentar o limite mínimo do “sustento minimamente digno” do devedor e do seu agregado familiar no princípio da dignidade da pessoa humana, previsto nos arts. 1º, 13º, n.º 1 e 63º, n.ºs 1 e 3 da CRP e 25º da Declaração dos Direitos do Homem e, bem assim, no regime fixado pelo art. 738º, n.º 3 do CPC que, em sede executiva, quando o executado não tenha outro rendimento, declara impenhorável a parte líquida de vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado que não excedam o montante equivalente a um salário mínimo nacional, é pacífico o entendimento jurisprudencial de que esse limite mínimo ascenderá, em regra, ao montante equivalente ao salário mínimo nacional[31].
Na verdade, o salário mínimo nacional tem subjacente a condição económica do país, mas representa também, segundo o próprio legislador, o estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador.
Deste modo, embora seja exigível ao devedor/insolvente, pessoa singular, requerente do benefício de exoneração do passivo restante, que durante o período de cessão racionalize e comprima o seu estilo de vida, por forma a acautelar os interesses dos seus credores,  aquele nunca poderá ser privado do rendimento correspondente ao salário mínimo nacional vigente, sob pena de, na perspetiva do próprio legislador, se colocar em crise os limites impostos pela dignidade da pessoa humana, ao privá-lo dos meios económicos necessários à satisfação das suas necessidades básicas, cuja satisfação poderá, inclusivamente, reclamar que, perante as circunstâncias específicas do caso concreto e numa apreciação objetiva e casuística, a fixação de quantia superior ao salário mínimo nacional vigente, como será o caso do devedor ter necessidades específicas acrescidas, decorrentes de problemas de saúde que o afetem, ou decorrentes da sua idade avançada, etc., que demandem despesas acrescidas[32].
Neste sentido lê-se no Ac. do STJ., de 02/02/2016, Proc. 3562/14.1T8GMR.G1.S1, que “se a lei alude ao salário mínimo nacional para definir o limite máximo isento da cessão do rendimento disponível, também se deve atender a esse salário mínimo nacional para, no caso concreto, saber a partir dele, a quantia que se deve considerar incompatível com o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar. (…). O salário mínimo nacional deveria ser considerado o montante mínimo para acudir às despesas inerentes a uma vida que se pretende que seja vivida com dignidade, tendo em conta despesas, essas sim de sobrevivência, como são as relacionadas com habitação, alimentação, vestuário, consumo de bens essenciais (água, luz, transportes e assistência médica)”. E em que se conclui: “(…) consideramos que, em regra, o salário mínimo nacional é o limite mínimo de exclusão dos rendimentos, no contexto da cessão de rendimentos pelo insolvente a quem foi concedida a exoneração do passivo restante, ou seja, nenhum devedor deve poder ser privado de valor igual ao salário mínimo nacional, sob pena de não dispor de condições mínimas para desfrutar de uma vida digna”.
Subscrevendo esta jurisprudência, decorre do que se vem dizendo que, para efeitos de exoneração do passivo restante, é de excluir do rendimento disponível do devedor, pessoa singular, declarado insolvente, os rendimentos necessários a assegurar-lhe e ao seu agregado familiar, de acordo com as circunstâncias concretas e específicas deste, em termos objetivos e casuísticos, um sustento minimamente digno, o que passará por excluir do rendimento disponível, pelo menos e em regra, a quantia equivalente ao salário mínimo nacional que se encontrar em vigor, sem prejuízo das circunstâncias específicas do caso concreto reclamarem que do rendimento disponível seja excluída quantia superior ao do salário mínimo garantido vigente, até ao limite regra dos três salários mínimos nacionais, sem prejuízo desse limite máximo regra poder, inclusivamente, ser ultrapassado nos termos já atrás enunciados, como será o caso daquele ter cônjuge e/ou filhos a cargo.
Com efeito, se o legislador considera, em sede executiva, no art. 738º, n.º 3 do CPC, que o montante equivalente a um salário mínimo nacional é necessário para garantir um sustento minimamente digno do executado e se, portanto, esse salário mínimo nacional corresponde, por norma, ao montante mínimo do rendimento indisponível a fixar, em sede de instituto de exoneração, por ser considerado, ope legis, indispensável ao sustento minimamente digno do próprio devedor, pessoa singular, declarado insolvente, quando o agregado familiar deste integre  outras pessoas sem meios de subsistência próprios e cuja subsistência esteja, assim, dependente daquele, como seja, cônjuge e/ou filhos, impõe-se atender ao custo adicional necessário à sobrevivência digna dessas pessoas.
De resto, é na consideração que se acaba de enunciar que reside o fundamento da jurisprudência já citada que, em caso de dois cônjuges casados no regime da comunhão se apresentarem conjuntamente à insolvência, pedindo a  exoneração do passivo restante, sustenta que terá de ser fixado como rendimento indisponível, pelo menos, o valor equivalente a uma retribuição mínima garantida por cada um (se os dois cônjuges têm rendimentos, nomeadamente, de trabalho, e se ambos se apresentaram à insolvência, impõe-se fixar a cada um deles um salário mínimo nacional, a título de rendimento indisponível, por se tratar da quantia mínima considerada indispensável pelo legislador para salvaguardar a subsistência digna de cada um deles).
E é também nessa consideração que se ancora o entendimento jurisprudencial, pelo menos, maioritário que postula que, em caso de devedor que tenha pessoas a cargo, nomeadamente, cônjuge e/ou filhos, por não disporem de meios de subsistência próprios, se imponha ao salário mínimo nacional (necessário à subsistência minimamente digna do próprio devedor), fazer acrescer, a título de rendimento indisponível, a quantia necessária para garantir a subsistência minimamente digna desses outros elementos do seu agregado familiar dele dependentes e que leva a que parte da jurisprudência, num esforço de objetivação, recorra, na fixação do rendimento indisponível, à denominada “escala de Oxford”, nos termos da qual, na determinação dos rendimentos de um agregado familiar, se tenha de atribuir o índice 1 (um salário mínimo nacional) ao 1º adulto do agregado (o devedor declarado insolvente), o índice 0,7 (70% do salário mínimo nacional vigente) a cada um dos adultos do agregado sem meios de subsistência próprios, e o índice 0,5 (50% do salário mínimo nacional vigente) a cada uma das crianças que integrem o agregado familiar[33].
Revertendo ao caso dos autos, o agregado familiar da apelante (devedora), era à data em que esta se apresentou à insolvência, em 12/04/2020, bem como, em 26/10/2020, aquando da prolação do despacho, transitado em julgado, em que lhe foi deferido liminarmente o pedido de concessão do benefício de exoneração e lhe foi fixado o rendimento indisponível em 745,00 euros, constituído pela própria e por três filhos, agregado familiar esse que continua atualmente a ter a mesma composição (cfr. pontos G, d) e I da facticidade apurada).

C.4- Alteração do rendimento indisponível

Sendo o rendimento indisponível, conforme antedito, correspondente à quantia que seja razoavelmente necessária para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, e tendo esse rendimento de ser fixado no despacho de deferimento liminar do incidente de exoneração, o caso julgado que cobre esse despacho, quanto a este segmento decisório, à semelhança do que acontece com a decisões condenatórias de prestação de alimentos ou a satisfazer outras prestações dependentes de circunstâncias especiais quanto à sua medida ou duração, em que o n.º 2, do art. 619º do CPC, determina que o trânsito em julgado dessas sentenças não obsta à alteração das mesmas sempre que se modifiquem as circunstâncias que determinaram a condenação, bem como, das sentenças proferidas no âmbito dos processos de jurisdição voluntária, em que o art. 988º, n.º 1 do mesmo Código é expresso em estabelecer que as decisões neles proferidas podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração, também a decisão que fixe o rendimento indisponível, em sede de incidente de exoneração do passivo restante, são alteráveis sempre que ocorram circunstâncias supervenientes que imponham essa alteração, isto é, quando surjam novas despesas ou quando as despesas que foram consideradas na anterior decisão, transitada em julgado, sofram alterações que imponham a alteração do rendimento indisponível antes fixado, de modo a torná-lo conforme ao quantitativo necessária a garantir um sustento minimamente digno ao devedor e ao seu agregado familiar.
O trânsito em julgado que cobre, pois, a decisão que fixa o rendimento indisponível ao devedor no âmbito do incidente de exoneração, fica sujeito a uma cláusula “rebus sic standibus”, ou seja, o caso julgado que sobre ela incide é temporalmente limitado, apenas garantindo a incontestabilidade e a imodificabilidade do nela decido na estrita medida em que os pressupostos da decisão proferida não sofra alterações/modificações que demandem a alteração do decidido[34].
A enunciada alterabilidade da decisão que fixa o rendimento indisponível no âmbito do incidente de exoneração, apesar do respetivo trânsito em julgado, decorre não só da própria natureza das coisas, mas da própria lei.
Decorre da própria natureza das coisas quando se pondera que o rendimento indisponível corresponde ao rendimento que o devedor não tem de entregar ao fiduciário durante o período de cessão, por corresponder ao rendimento que é  necessário e indispensável para assegurar o sustento minimamente digno do próprio devedor e do seu agregado familiar; aos critérios legais que presidem à fixação desse rendimento indisponível,  os quais  dependem da composição do agregado familiar do devedor e suas necessidades, fatores esses que não são estáticos no tempo; da circunstância do período de cessão apenas se iniciar com o encerramento do processo de insolvência, e que esse encerramento poderá ocorrer em momentos bem distintos (cfr. art. 230º, n.º 1), e que, por isso, esse período de cessão poderá iniciar-se em momento mais ou menos dilatados no tempo em relação à data da prolação do despacho de deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante e em que, consequentemente, se fixou o rendimento indisponível ao devedor; e, finalmente, quando se pondera que o período de cessão tem uma duração de três anos, período de tempo esse suficientemente amplo, onde poderão ocorrer múltiplas alterações na composição do agregado familiar do devedor e das suas necessidades.
Acresce que, no art. 239º, n.º 3, al. b), iii), prevê-se expressamente integrar o rendimento indisponível “outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior”, o que é bem demonstrativo que na mente do legislador está a alterabilidade da decisão que fixa o rendimento indisponível ao devedor, apesar do seu trânsito em julgado, com fundamento em circunstâncias supervenientes que demandem a alteração desse rendimento.
Essas circunstâncias supervenientes não são naturalmente circunstâncias que já existiam quando o devedor solicitou que lhe fosse concedido o benefício de exoneração do passivo restante, mas que o mesmo não cuidou em alegar, ou que tendo alegado, não provou e, que, por isso, não foram consideradas na decisão antes proferida que lhe fixou o rendimento indisponível.
As circunstância supervenientes que fundamentam a alteração da decisão antes proferida e transitada em julgado, que fixou o rendimento indisponível ao devedor, terão de ser necessariamente factos ocorridos historicamente após a prolação dessa anterior decisão e que, por isso, nela não podiam ser considerados, como é o caso  de uma alteração da composição do agregado familiar do devedor (v.g. nascimento de um filho ou redução de elementos desse agregado, cujo sustento era assegurado pelo devedor, seja por morte, casamento, etc.), da alteração das necessidades do agregado familiar (v.g. um elemento que antes dependia do sustento do devedor, entretanto, arranjou trabalho remunerado e passou a dispor de condições económicas próprias para prover ao seu sustento, ou a situação inversa), o surgimento de novas necessidades do devedor ou do seu agregado familiar (v.g., fruto do avançar da idade, de uma doença, etc.) ou de necessidade já consideradas na anterior decisão mas cuja satisfação demandem agora um custo acrescido ao antes considerado.
Posto isto, no caso em análise, não se discute que as necessidades do agregado familiar da apelante, composto pela própria e pelos três filhos, sofreu uma alteração ao nível das suas necessidades, resultado de um incremento de despesas com que se vê atualmente, em 2023, confrontado, nomeadamente, decorrente de um dos filhos ter passado a frequentar o ensino universitário, e do filho mais novo ter passado a frequentar  o ensino secundário e, bem assim, do aumento do custo de vida que, entretanto, se verificou entre 26/10/2020 (data da prolação da decisão que fixou o rendimento indisponível em 745,00 euros mensais) e 09 de março de 2023, data em que a apelante requereu que se alterasse esse rendimento indisponível antes fixado para quantia mensal equivalente a dois salários mínimos nacionais, com fundamento nos factos que alegou no requerimento de 09 de março de 2023.
Com efeito, reconhecendo esse incremento de despesas do agregado familiar da apelante e das consequentes necessidades, a 1ª Instância aumentou o rendimento indisponível fixado àquela, por decisão de 26/10/2020, transitada em julgado, em 745,00 mensais, para a quantia de 880,00 euros mensais, pelo que a questão de se saber se se encontram (ou não) preenchidos os requisitos legais necessários para a alteração do decidido, porque já respondida positivamente pela 1ª Instância, e essa decisão não foi impugnada, encontra-se transitada em julgado.
O que a apelante discute é da suficiência da quantia de 880,00 euros mensais para assegurar um sustento minimamente digno àquela e aos seus três filhos, imputando ao decidido erro de direito, sustentando que para tal é necessário que lhe seja assegurado um rendimento indisponível mensal equivalente a dois salários mínimos nacionais, o que não podemos deixar de subscrever perante a facticidade que se apurou nas alíneas I a L.
Com efeito, se atualmente o agregado familiar da apelante continua a ser constituído pela própria e por três filhos, tal como já antes se verificava em 26/10/2020, verifica-se que agora a apelante passou a ter dois filhos a frequentar o ensino universitário (quando anteriormente apenas um frequentava esse ensino) e o filho mais novo passou a frequentar o ensino secundário, com o inerente incremento de despesas que se encontram elencadas nas alíneas K e L da facticidade apurada.
Acresce que não convém olvidar o incremento do custo de vida, fruto do elevado nível de inflação, que se tem vindo a sentir nos dois últimos anos, sobretudo, ao nível dos produtos alimentares de primeira necessidade.
Finalmente, dir-se-á que a fixação do rendimento mensal indisponível em dois salários mínimos nacionais para um agregado familiar composto pela apelante e por três filhos, dois dos quais são já pessoas adultas e estudantes universitários, e o outro é um adolescente de  doze anos de idade e estudante, mostra-se perfeitamente necessária à satisfação das necessidades mais básicas de um agregado familiar constituído por três adultos e por um adolescente, em que apenas um dos adultos (a apelante) trabalha, já que os restantes estudam.
De resto, a fixação do rendimento mensal indisponível ao agregado familiar da apelante em dois salários mínimos nacionais mostra-se perfeitamente conforme aos critérios que têm sido seguidos pela jurisprudência nacional nesta matéria, parte da qual, conforme antedito, na fixação do rendimento indisponível tem recorrido à denominada escala de Oxford que, caso fosse aplicada ao agregado da apelante, inclusivamente, excederia o rendimento indisponível mensal de dois salários mínimos nacionais.
Destarte, sem mais, por desnecessárias, considerações, impõe-se concluir pela procedência do presente fundamento de recurso, impondo-se revogar a decisão recorrida, que aumentou o rendimento indisponível do agregado familiar da apelante para a quantia mensal de 880,00 euros e aumentar esse rendimento indisponível mensal para o montante equivalente a dois salários mínimos nacionais.

C.5- Momento a partir do qual a presente decisão que altera o rendimento indisponível produz efeitos legais. 

No requerimento de 09/03/2023, a apelante requereu que a alteração do rendimento indisponível que aí solicitou lhe fosse deferido operasse efeitos retroativos à data do despacho inicial sobre o procedimento de exoneração do passivo restante, ou seja, a 26/10/2020 e, em consequência, se desse sem efeito a entrega da quantia de 4.976,28 euros dela reclamada pela fiduciária a título de rendimento disponível do ano de 2021.
Essa pretensão foi desatendida pela 1ª Instância com o argumento de que “a alteração do rendimento disponível não pode ter efeitos retroativos e servir como meio de extinção da dívida gerada, sendo que tal despacho, em momento próprio, transitou em julgado”, e onde se decidiu que a alteração do rendimento indisponível nela determinada apenas operaria efeitos jurídicos a partir do trânsito em julgado dessa decisão (decisão recorrida).
Imputa a apelante erro de direito ao assim decidido, argumentando que a atribuição de efeitos retroativos à decisão que alterou o rendimento indisponível nunca operaria a extinção da dívida já constituída, dado que a mesma, ainda assim, “teria que entregar quantias para o pagamento dos créditos aos credores”; que só  com a atribuição daquele efeito retroativo se garante o sustento minimamente digno àquela e aos filhos, em virtude da alteração da situação económica do seu agregado familiar e, finalmente, que “desconhecia que tinha que informar o tribunal dessa alteração e, em consequência, que teria, nesse momento, que requerer a alteração do valor do rendimento disponível fixado”, pois “sempre pensou que só teria que comunicar caso existisse alteração do valor do seu salário”, mas, adiante-se desde já, apenas com parcial razão.
Conforme atrás já demonstrado e analisado, requerido o benefício de exoneração do passivo restante, no despacho em que se defira liminarmente esse pedido, o julgador tem de fixar o rendimento indisponível necessário a garantir o sustento minimamente digno do devedor, pessoa singular, declarado insolvente, e do seu agregado familiar.
A fixação desse rendimento é tarefa do julgador, que tal como já se enunciou terá de preencher o conceito indeterminado de “sustento minimamente digno”, por referência às particularidades do caso concreto.
Uma vez fixado o rendimento indisponível, notificada essa decisão ao devedor e aos interessados e decorrido o prazo para a impugnarem, mediante interposição de recurso ordinário ou reclamação, sem que dela recorram ou reclamem, essa decisão transita em julgado, tornando-se incontestável e imodificável, exceto no caso de ocorrerem circunstâncias supervenientes que demandem a sua alteração, por o rendimento indisponível nela fixado se ter tornado insuficiente ou excessivo para garantir uma subsistência minimamente digna do devedor e do seu agregado familiar.
Essas circunstâncias supervenientes, com o sentido e alcance que atrás já amplamente enunciamos, têm de ser alegadas por quem requer a alteração da decisão anterior, transitada em julgado, que fixou o rendimento indisponível.
Para tal, nos termos do disposto no art. 5º, n.º 1 do CPC, o requerente da alteração do rendimento indisponível antes fixado, por decisão judicial transitada em julgado, terá de alegar a pertinente facticidade essencial que demande essa alteração e, bem assim, de juntar aos autos os pertinentes meios de prova, já que, nos termos do n.º 1 do art. 342º do CC, é sobre o mesmo que recai o respetivo ónus da prova.
E será ao julgador que, uma vez observado o contraditório e de produzida a prova apresentada, terá de verificar se se encontram ou não preenchidos os requisitos legais que permitem a alteração da decisão antes proferida que fixou o rendimento indisponível e, no caso positivo, determinar o quantum  dessa alteração, o que tudo passa por realizar o julgamento da matéria de facto quanto à facticidade alegada pelo requerente no requerimento em que requer a alteração do rendimento indisponível antes fixado e quanto à que foi invocada pelos restantes interessados nas oposições eventualmente deduzidas a essa pretensão e por realizar o julgamento de direito, avocando as normas jurídicas pertinentes ao caso, interpretando-as e aplicando-as à facticidade que se venha a provar e não provar, tudo tarefas, porque jurisdicionais, apenas podem ser realizadas pelo juiz, o que a apelante não desconhece, nem sequer pode desconhecer.
Daí que, sob pena de se violar o trânsito em julgado que cobre a decisão proferida em 26/10/2020, que fixou à apelante o rendimento indisponível em 745,00 euros mensais (e independentemente do nela decidido garantir ou não um sustento minimamente digno àquela e aos seus três filhos, o que não mais pode ser questionado e sindicado, por via do trânsito em julgado que cobre aquela anterior decisão), a alteração do rendimento indisponível apenas possa operar efeitos jurídicos, em princípio, a partir do momento em que o tribunal profere decisão determinando essa alteração, ou seja, o momento da prolação da decisão em que conclui encontrarem-se preenchidos os pressupostos fácticos e jurídicos que permitem a alteração do rendimento indisponível e em que, consequentemente, se altera a anterior decisão transitada em julgado[35].
Contudo, o que se acaba de dizer carece de ser conjugado com o facto do rendimento indisponível, em sede de incidente de exoneração, corresponder à quantia necessária para garantir o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, pelo que sempre que seja requerida a alteração do rendimento indisponível antes fixado, por decisão transitada em julgado, com os fundamentos fácticos e jurídicos explanados no requerimento para tanto apresentado e se venha a constatar judicialmente que esses fundamentos se mostram procedentes, alterando-se o rendimento indisponível antes fixado, à medida necessária a garantir ao devedor e ao seu agregado familiar um sustento minimamente  digno, essa decisão que altera o rendimento indisponível tem de produzir efeitos jurídicos desde a data em que foi apresentado o requerimento de alteração, sob pena de se violar o princípio da dignidade da pessoa humana tutelados pelos arts. 1º, 13º, n.º 1 e 63º, n.ºs 1 e 3 da CRP,  25º da Declaração dos Direitos do Homem e  239º, n.º 3, al. b), i), do CIRE e, assim, se incorrer em inconstitucionalidade material, na medida em que se privaria a apelante e os filhos dos meios necessárias a um sustento minimamente digno entre o momento em que a situação daquele agregado familiar se alterou e se tornou necessária a alteração do rendimento indisponível que antes lhe fora judicialmente fixado (data em que a apelante o requereu, em 09/03/2021) e o momento da prolação da decisão que reconheceu essa alteração e necessidade.
Daí que, na nossa perspetiva, a alteração do rendimento indisponível para a quantia mensal correspondente a dois salários mínimos nacionais tenha de produzir os seus efeitos jurídicos desde o momento em que a apelante requereu essa alteração em juízo, ou seja, a partir de 09 de março de 2023.
Decorre do exposto, que na parcial procedência do presente fundamento de recurso, impõe-se revogar o despacho recorrido no que respeita ao segmento decisório nele proferido, em que se determina que a alteração do rendimento indisponível apenas opera efeitos legais a contar do trânsito em julgado da decisão judicial que procede à alteração do rendimento indisponível antes fixado, substituindo-se essa decisão, determinando que a alteração do rendimento indisponível fixado à apelante de 745,00 euros mensais para a quantia mensal equivalente a dois salários mínimos nacionais produz efeitos retroativos a 09 de março de 2023.
*
Sumário (elaborado pelo relator – art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil).

1- Padece do vício da nulidade por falta de fundamentação, a que alude a al. b), do n.º 1, do art. 615º do CPC, o despacho judicial de alteração do rendimento indisponível, proferido em sede de incidente de exoneração do passivo restante, em que a 1ª Instância omitiu totalmente a indicação e a discriminação dos factos que julgou provados e a indicação dos que julgou não provados.
2- Perante esse vício, cumpre à Relação, no uso dos seus poderes de substituição, suprir o vício da nulidade por falta de fundamentação, sempre que o processo contenha todos os elementos probatórios que, com a necessária segurança, lhe permita responder à matéria de facto, julgando-a provada ou não provada. De contrário, terá de anular o despacho recorrido e devolver os autos à 1ª Instância para que responda à matéria de facto e motive o julgamento de facto que realize.
3- A decisão transitada em julgado proferida, no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante, que fixou o rendimento indisponível ao devedor, é suscetível de ser alterada, a requerimento do devedor ou de qualquer interessado, sempre que ocorram circunstâncias supervenientes a essa decisão que demandem novas despesas para o devedor ou a alteração (para mais ou para menos) das despesas consideradas na anterior decisão, sempre que essas circunstâncias supervenientes reclamem o aumento ou a redução do rendimento indisponível antes fixado ao devedor, por forma a torná-lo conforme a um sustento minimamente digno atual deste e do seu agregado familiar.
4- A decisão judicial que altere o rendimento indisponível produz efeitos jurídicos desde a apresentação em juízo do requerimento em que foi requerida essa alteração, sob pena de se incorrer em inconstitucionalidade material por violação do princípio da dignidade humana tutelado pelos arts. 1º, 13º, n.º 1 e 63º, n.ºs 1 e 3 da CRP, 25º da Declaração dos Direitos do Homem e 239º, n.º 3, al. b), i), do CIRE.
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V- Decisão:

Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, sem prejuízo da questão supra identificada, a qual permanece por decidir pela 1ª Instância, acordam em julgar a presente apelação parcialmente procedente e, em consequência:

a- declaram nulo o despacho recorrido por falta de fundamentação;
b- suprindo o vício da nulidade que afeta o despacho recorrido por falta de fundamentação, julgam provada e não provada a facticidade supra identificada e nos termos aí enunciados;
c- revogam a parte dispositiva do despacho recorrido, no segmento em que alterou o rendimento indisponível da apelante para a quantia de oitocentos e oitenta euros mensais e determinou que essa alteração apenas vigoraria a partir do trânsito em julgado do despacho recorrido, e substituem essa decisão, alterando o rendimento indisponível da apelante, fixado por decisão de 26/10/2020, para a quantia mensal equivalente a dois salários mínimos nacionais e determinam que essa alteração produz efeitos retroativos a 09 de março de 2023;
d- no mais, julgam a apelação improcedente.
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Custas da apelação pela apelante, atento o critério do proveito, dado que não foi deduzida oposição à alteração do rendimento indisponível por ela requerido, inexistindo, por isso, “vencido” (arts. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC e 304º do CIRE).
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Notifique.
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Guimarães, 22 de junho de 2023
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores:

José Alberto Moreira Dias – Relator
José Carlos Pereira Duarte – 1ª Adjunta
Pedro Maurício – 2º Adjunto.--

 

[1] Ac. STA. de 09/07/2014, Proc.00858/14, in base de dados da DGSI, onde que constam todos os acórdãos que se venham a enunciar, sem menção em contrário.
[2] Abílio Neto, in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., janeiro/2014, pág. 734.
[3] Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277.
[4] Ac. RC de 20/01/2015, Proc. 2996/12.0TBFIG.C1, em que se lê: “Apesar de atualmente o julgamento da matéria de facto se conter na sentença final, há que fazer um distinguo entre os vícios da decisão de matéria de facto e os vícios da sentença, distinção de que decorre esta consequência: os vícios da decisão da matéria de facto não constituem, em caso algum, causa de nulidade da sentença, considerando além do mais o caráter taxativo da enumeração das situações de nulidade deste último ato decisório. Realmente a decisão da matéria de facto está sujeito a um regime diferenciado de valores negativos – deficiência, obscuridade ou contradição – a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação: qualquer destes vícios não é causa de nulidade da sentença, antes é suscetível de dar lugar à atuação pela Relação dos seus poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto da 1ª Instância”. No mesmo sentido Ac. RL. de 29/10/2015, Proc. 161/09.3TCSNT.L1-2; ainda Ac. STJ, de 24/02/2005, Proc. 04B4594: “A fundamentação a que alude o n.º 2 do art. 653º do CPC não se confunde com a fundamentação a que alude o art. 659º, n.ºs 2 e 3 do mesmo Código, sendo certo que as consequências para a sua omissão num caso e noutro são também diferentes : - no 1º caso, poderá a Relação ordenar a baixa do processo, (…), nos termos e para os fins do n.º 5 do art. 712º do CPC; - no 2º caso, se a falta de fundamentação for absoluta, ocorrerá a nulidade prevista na al. b) do art. 668º do CPC”.
[5] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 3ª ed., Almedina, págs. 707 a 708 e 733 a 734.
[6] Abrantes Geraldes, “Sentença Cível”, janeiro de 2014, pág. 20.
[7] Miguel Teixeira de Sousa, “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, Lisboa 1997, pág. 348.
[8] Ac. RG. de 22/03/2007, Proc. 173/07-1.
[9] Paulo Pimenta, “Processo Civil Declarativo”, Almedina, 2014, pág. 325.
[10] Ac. STJ. 05/05/2005, Proc. 05B839; 12/05/2005, Proc. 05B840; 10/07/2008, Proc. 08A2179. No mesmo sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., Almedina, pág. 199; Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. III, pág. 141; José Lebre de Freitas, “Código de Processos Civil Anotado”, vol. 2.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, págs. 703 e 704; e “A Ação declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013”, 3.ª edição, Coimbra Editora, setembro de 2013, pág. 332.
[11] Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, Coimbra Editora, pág. 140.
[12] Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª ed., Almedina, págs. 293 a 299, advertindo, a fls. 295 que: “Em qualquer dos casos, a anulação do julgamento deve ser sempre uma medida de último recurso, apenas legítima quando de outro modo não for possível superar a situação, por forma a fixar com segurança a matéria de facto provada e não provada, tendo em conta, além do mais, os efeitos negativos que isso determina nos vetores da celeridade e da eficácia”.
[13] Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, ob. cit., págs. 298 a 299 e 322 a 324.
[14] Neste sentido lê-se no Preambulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18/03, que “O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa-fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante». O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não foram integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos (na sequência da nova redação introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11/01, ao art. 237º, al. b) do CIRE) posteriores ao encerramento deste. A efetiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de três anos – designado período da cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento. A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta reta que ele teve necessariamente de adotar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica”.
[15] Luís M. Martins, “Processo de Insolvência”, 2016, 4ª ed., Almedina, pág. 535.
[16] Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina, Lisboa, abril de 2018, pág. 564.
[17] Luís Menezes Leitão, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 4ª ed., págs. 236 e segs.
Em sentido idêntico, Catarina Serra, ob. cit., págs. 102 e 103.
[18] Catrina Serra, ob. cit., pág. 561.
[19] Ac. RG. de 17/12/2019, Proc. 3681/11.6TBBCL-M.G1.
[20] Alexandre de Soveral, “Um Curso de Direito de Insolvência”, 2016, 2ª ed., pág. 584.
[21] Luís M. Martins, ob. cit. pág. 535; Ac. RP. de 06/04/2017, Proc. 1288/12.0TJPRT.P1.
[22] Ac. RP. de 06/04/2017, Proc. 1288/12.0TJPRT.P1.
[23] Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa Anotado”, 3ª ed. Quid Juris, pág. 855.
[24] Ac. RC. de 03/06/2014, Proc. 747/11.6TBTNV-J.C1.
[25] Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 853.
[26] Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 858, nota 3.
[27] Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., págs. 859 e 860.
[28] Note-se que, segundo Carvalho Fernandes e João Labareda, in ob. cit., págs. 858 e 859, nota 4, constitui “rendimento disponível os rendimentos que advenham ao devedor após o despacho inicial, qualquer que seja a sua fonte, que não estejam excluídos nos termos das alíneas a) e b)” do n.º 3, do art. 239º, o que aqui subscrevemos com exceção do facto de defenderem que, no rendimento disponível, se integram todos os rendimentos que o devedor receba após o despacho inicial, ou seja, que venha a receber após e na sequência da prolação do despacho de deferimento liminar do incidente de exoneração, o que salvo melhor opinião, já não merece a nossa adesão. Na verdade, impõe-se conjugar o regime dos arts. 235º, 237º, al. b) e 239º, n.º 2 do CIRE, nos termos do que o período de cessão se inicia com o encerramento do processo de insolvência, com a norma contida no art. 46º, nos termos da qual integram a massa insolvente todo o património do devedor à data da declaração da insolvência, bem como todos os bens e direitos que o mesmo adquira durante a pendência do processo de insolvência, contanto que aquele património, bens e rendimentos sejam suscetíveis de serem penhoráveis e que não se encontrem excluídos de penhora por disposição especial, como é o caso dos arts. 737º a 738º do CPC. Aliás, o que se acaba de concluir é a posição sufragada pelos mesmos autores, in ob. cit., págs. 292 e 293, notas 4 e 5. Daí que, quanto aos bens e rendimentos que o devedor adquira na pendência do processo de insolvência e que sejam suscetíveis de serem penhorados, estes integram a massa insolvente (não o rendimento disponível) e, por isso, devem ser apreendidos pelo administrador da insolvência para a massa insolvente; apenas o rendimento e bens suscetíveis de avaliação pecuniária e de penhora que  o devedor receba durante o período de cessão (que se inicia com o encerramento do processo de insolvência), período esse  que tem a duração imperativa de três anos, integram o rendimento disponível, com exceção do excluído pelo n.º 3, do art. 239º.
[29] Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit. pág. 859.
[30] Acs. RG. de 17/05/2018, Proc. 4047/17.7T8GM.G1.
[31] Acs. RG. de 14/06/2017, Proc. 1557/16.0T8VNF-D.G1; RL. de 18/01/2011, Proc. 1220/10.5YILSB-A.L1-7 e RC de 04/05/2020, Proc. 2194/19.2T8ACB-B.C1, in base de dados da DGSI.
[32] Acs. RG., de 02/03/2023, Proc. 2148/22.1T8GMR.G1 (relatado pelo aqui 1º adjunto); de 02/03/2020, Proc. 4479/22.1T8FNC-C.L1-1, em que se ponderou que residindo o devedor no estrangeiro, o salário mínimo garantido a considerar na fixação do quantitativa necessário ao seu sustento minimamente digno é o salário mínimo garantido do país de residência; RC., de 12/03/2013, Proc. 1254/12.5TBLRA-F.C1; de 22/06/2020, Proc. 6137/18.2T8CBR-B.C1; R.P., de 21/02/2022, Proc. 2083/15.0T8VNG-G.P1; e RL. de 21/03/2023, Proc. 4479/22.1T8FNC-C.L1-1, em que se expende que: “Quando dos devedores casados entre si no regime da comunhão se apresentam conjuntamente à insolvência pedindo a exoneração do passivo restante, terá que ser fixado como rendimento indisponível, pelo menos o valor equivalente a uma retribuição mínima garantida por cada um”.
[33] Acs. R.L. de 07/11/2017, Proc. 712/17.0T8PDL-C; RP. de 2370/22.0T8VNG.P1.
[34] Acs. R.P. de 21/02/2022, Proc. 2083/15.0T8VNG-G.P1; RE., de 14/07/2020, Proc. 4927/12.9T8PTM-H.E1.
[35] Neste sentido, Ac. R.P., de 21/02/2022, Proc. 2083/15.0T8VNG-G.P1 em que se expende que “A data relevante é a data da decisão, porem, se por causas imputáveis ao tribunal, essa decisão for muito dilatada no tempo, há que atender, em prudente arbítrio, à data em que a decisão poderia/deveria ter sido prolatada, considerando os prazos legalmente prescritos”.