Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
347/23.8T8PRD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA OLÍVIA LOUREIRO
Descritores: DISPENSA DE AUDIÊNCIA PRÉVIA
DESPACHO SANEADOR
CONHECIMENTO DO MÉRITO DA CAUSA
NULIDADE
Nº do Documento: RP20240122347/23.8T8PRD.P1
Data do Acordão: 01/22/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não está prevista a possibilidade de dispensa da audiência prévia quando o juiz pretenda decidir do mérito da causa em sede de saneador;
II - Nesses casos, estribando-se a dispensa da audiência prévia no exercício dos poderes/deveres de adequação processual, deve ser facultado o prévio contraditório quer quanto à adequação consistente na dispensa da audiência prévia quer quanto à decisão a proferir.
III - A decisão proferida com dispensa de contraditório em situações em que o mesmo não podia ser dispensado é nula, podendo tal nulidade ser arguida em sede de recurso.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo número 347/23.8T8PRD.P1, Juízo Central Cível de Penafiel, Juiz 2.


Relatora: Ana Olívia Loureiro
Primeira adjunta: Eugénia Cunha
Segundo adjunto: José Eusébio Almeida





Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:
1. AA e BB propuseram, em 13-02-2023, ação declarativa a seguir a forma de processo comum contra CC e DD pedindo o reconhecimento de propriedade de imóvel, que identificam, a favor da Autora mulher e a declaração de que do mesmo faz parte uma parcela de terreno adquirido em negócio de permuta celebrado com os anteriores proprietários do imóvel dos Réus, bem como que aquele imóvel dista, a sul, cerca de um metro de uma construção existente em prédio dos Réus. Descrevem a linha delimitadora dos dois imóveis que dizem ser contíguos e pedem a sua demarcação e a autorização para ali colocarem esteios a definir as extremas.
Juntaram certidão de registo predial de que resulta a inscrição do referido imóvel a favor da Autora, descreveram os atos de uso e aproveitamento do mesmo que ambos os Autores sobre ele praticam bem como relataram o teor de processo judicial em que foi proferida sentença que, segundo alegam, reconheceu a favor de Autora e Réus a propriedade de cada um desses imóveis e julgou válida uma permuta que os antecessores dos Réus celebraram com os Autores, que incidiu sobre duas parcelas de terreno primitivamente pertencentes a cada um dos dois imóveis, pelo que, também em consequência dessa sentença, pretendem o reconhecimento de que uma delas, que identificam, pertence agora ao seu imóvel, do que resulta a delimitação do mesmo que descreveram e querem ver declarada.
2. Os Réus contestaram impugnando em parte os factos alegados pelos Autores em sustentação dos seus pedidos, admitindo apenas a propriedade da Autora mulher sobre o prédio descrito na petição inicial, excecionaram o caso julgado decorrente da sentença proferida no processo invocado pelos Autores (de que fazem leitura distinta da por estes defendida) e a prescrição do direito dos Autores. Deduziram reconvenção pela qual pediram o reconhecimento de que os Autores haviam destruído, por terraplanagem, em 1992, a linha demarcação do seu imóvel pelo lado norte, demarcação também pediram que fosse feita judicialmente, pela linha por eles descrita. Pediram, ainda, a condenação dos Autores no pagamento de 10 000 € de indemnização pelos danos patrimoniais e morais que dizem ter sofrido com a sua conduta, que qualificam de persecutória, bem como pretendem a sua condenação como litigantes de má-fé, no pagamento de multa, indemnização e honorários da sua advogada.
3. Replicaram os Autores impugnando grande parte dos factos que sustentaram a reconvenção e pedindo, por sua vez, a condenação dos Réus como litigantes de má-fé.
4. Fixado o valor da ação em 90.000,02€, foi declarada a incompetência do juízo local cível onde os autos pendiam em função desse valor e ordenada a sua remessa ao juízo central cível em 26-04-2023.
5. Após trânsito da referida decisão e remessa ao tribunal julgado competente, foi preferida sentença, a 10-07-2023, pela qual se rejeitaram os pedidos reconvencionais e absolveram os Rés do pedido. Ali se declarou, previamente à decisão de mérito, que “Considerando que a mesma se destinaria apenas a decidir de imediato do mérito da causa, sendo certo que discutidos já nos autos os termos daquela possibilidade, ainda que mediante distinto enquadramento (jurídico) da situação, decide-se dispensar a audiência prévia e passa a proferir-se sentença, adiantando-se que a instância se afigura totalmente válida e regular.”. Foi afirmada a insuficiência da alegação de facto pelos Autores e, qualificados como essenciais os factos em falta, afirmou-se que não podia tal omissão ser suprida por via de convite ao aperfeiçoamento. Absolveram-se os Réus de todos os pedidos

II - O recurso:
É desta sentença que recorrem os Autores, pretendendo a declaração de nulidade da mesma por “excesso de pronúncia”, bem como a declaração da nulidade do processado e a remessa dos autos ao Tribunal recorrido para designação de audiência prévia. Defendem, ainda, ocorrer contradição entre os fundamentos (falta de alegação de factos essenciais) e a decisão proferida (absolvição do pedido) e ocorrer falta de fundamentação para esta decisão que, sublinham, os impede de noutra ação virem a discutir a sua pretensão de demarcação dos dois imóveis. Finalmente entendem os Recorrentes que, a considerarem-se insuficientes os factos alegados deviam ter sido convidados a aperfeiçoar a petição inicial.
Para tanto, alegam o que sumariam da seguinte forma em sede de conclusões de recurso:
“1 – A marcação de Audiência Prévia é obrigatória nos casos em que o Tribunal pretende decidir de imediato do mérito da questão.
2 – Ao dispensar a Audiência Prévia e decidir de imediato do mérito a coberto dessa mesma decisão, o Tribunal a quo comete uma nulidade processual que obriga à revogação da decisão.
3 – A decisão sobre o mérito do pedido, tendo em conta a dispensa da Audiência Prévia, é excessiva, porquanto o Tribunal apenas poderia decidir, no âmbito do saneamento do processo, a propósito das formalidades da instância.
4 – Termos em que deverá sempre, pelo menos, ser designada Audiência Prévia e permitida às partes as alegações de facto e de direito para o Tribunal poder conhecer do mérito da matéria em litígio.
SEM PRESCINDIR,
5 – Os Autores invocaram a Causa de Aquisição (por aquisição derivada) da Parcela que reivindicam: A Permuta entre eles e os proprietários do prédio vizinho.
6 - Permuta que a Sentença no P.º 183/18.3T8PRD, com Autoridade de Caso Julgado, declarou que produziu efeitos, pois seria abuso de direito fazer restituir a realidade jurídica à situação anterior à permuta ocorrer, devolvendo aos Autores a parcela que tinha sido saído da sua posse e propriedade com a permuta, sendo que este é um negócio bilateral sinalagmático.
7 – E se a permuta é um negócio bilateral e correspetivo, com sinalagma entre uma e outra prestação, sendo uma contrapartida da outra (e vice-versa), não podendo uma subsistir e a outra falhar, tal significa que se os Réus ficam com a parcela que lhes foi escambada, tem de forçosamente se reconhecer que nesse negócio também emergiu do seu lado a obrigação de entrega da parcela correspetiva, causa aquisitiva derivada da parcela pelos Autores.
8 – Os Réus ficaram com a propriedade da Parcela que adquiriram na permuta (Porque seria abuso de direito anular a Permuta apenas por ter sido acordada pela via oral), e, por isso, também os Autores ficaram com a parcela que naquela permuta lhes foi transmitida, tal como entendeu e assim raciocinou a Sentença no P. º 183/18.3T8PRD com autoridade de caso julgado.
9 – Apesar de apurados na totalidade os termos da permuta, a Sentença do P.º183/18.3T8PRD não condenou os Réus a entregar a parcela por si permutada aos Autores, uma vez que tal decisão ultrapassaria os limites do Princípio Processual do Pedido, mas incentivando os Autores a pedirem-no judicialmente em novo processo caso os Réus não o fizessem voluntariamente.
10 – O que os Autores fizeram no presente processo para aqui ser apreciado e decidido, ainda que sem caso julgado para a decisão final, mas com caso julgado para o pressuposto material de terem adquirido a propriedade pela permuta.
11 – É que a Sentença do P.º 183/18.3T8PRD reconhece, com Autoridade de Caso Julgado, a validade da permuta (o que a sentença recorrida nos fundamentos invocados reconhece!), até porque é este negócio que é base necessária ao silogismo jurídico que permite concluir pelo direito de propriedade dos Réus sobre a parcela que adquiriram por permuta com a parcela transmitida aos Autores nessa mesma permuta, e que no presente processo se reivindica!
12 - Qualquer decisão que não reconheça a eficácia da permuta entre Autores e Proprietários do Prédio dos Réus é necessariamente incoerente e nula por contradizer o decidido na Ação n.º 183/18.3T8PRD, que tem Autoridade de Caso Julgado.
13 – Ora, a eficácia da permuta, judicialmente reconhecida por Sentença transitada em julgado, é fundamento causal da forma derivada do direito de propriedade dos Autores sobre a parcela agora reivindicada (que, como se referiu, é diferente da reivindicada na Ação n.º 183/18.3T8PRD).
14 – Só uma decisão com base nesta premissa é coerente com os fundamentos invocados na Sentença recorrida que, de outro modo, padece de uma contradição insanável entre os fundamentos que invoca e a Decisão que profere de absolvição do pedido.
15 – A Sentença do P.º 183/18.3T8PRD, mesmo que sem autoridade de caso julgado, refere que, uma vez validada a permuta (pois considera ser abuso do direito os Autores invalidarem a permuta por vício de forma), então a permuta teria de valer em ambos os sentidos e aconselhava os Réus, judicialmente reconhecidos como proprietários da sua parcela com fundamento na permuta, a reconhecerem voluntariamente o sinalagma do negócio que fundamenta a sua propriedade em relação à parcela adquirida na permuta, dizendo aos Autores que, caso tal não acontecesse, teriam de propor nova ação judicial para tutelar o seu direito de propriedade.
16 – Em relação à decisão do P.º 183/18.3T8PRD quanto à eficácia aí dada à permuta há autoridade do caso julgado, sendo decisão que necessariamente tem de valer dentro e fora do processo 183/18.3T8PRD, nomeadamente no presente processo.
17 – Não reconhecer a Autoridade desta decisão quanto à validade da permuta corresponderia a permitir que, por exemplo, num qualquer processo futuro, em clara contradição, pudesse ser considerada nula a permuta a que é reconhecida eficácia no P.º183/18.3T8PRD.
18 – De igual modo, é ignorar o carácter necessário da validade/eficácia da permuta como pressuposto sine qua non para a constituição do direito de propriedade dos Réus sobre a parcela que lhes foi entregue, tal como reconhecido no P.º 183/18.3T8PRD enquanto causa aquisitiva do direito de propriedade dos aqui e aí Réus sobre a parcela que os Autores reivindicavam nesse P.º 183/18.3T8PRD.
19 – Os Argumentos expostos na Sentença, na sua fundamentação quanto à Autoridade do Caso Julgado, com os quais, se bem os interpretou, se concorda, são contraditados pela Decisão de Absolvição dos Réus do pedido, gerando uma contradição entre Fundamentos e a Decisão que conduz à sua nulidade interna.
20 – O que deve ser declarado, determinando-se que seja substituída por Sentença que reconheça a Autoridade do Caso Julgado da Sentença do P.º 183/18.3T8PRD quanto à eficácia da permuta, negócio por definição sinalagmático, e se reconheça a posição dos Autores nessa permuta terem adquirido o Direito de Propriedade e forma derivada em relação à Parcela reivindicada.
21- Se esse Direito de Propriedade assim adquirido pelos Autores se mantém na sua titularidade atualmente é o que há a discutir no presente processo.
22 – Deve, portanto, ser reconhecida a posição dos autores como proprietários da parcela reivindicada na sequência da permuta, o seu direito ao processo (conforme previa necessário a Sentença do Pº 183/18.3T8PRD) e o prosseguimento da ação.
23 – Case se continue a considerar que a descrição factual é insuficiente a provar o direito de propriedade dos Autores, com convite ao aperfeiçoamento da sua petição inicial.
Termos em que deve ser declarada nula a sentença produzida neste processo, devendo a mesma ser revogada e, em consequência, serem os autos remetidos à 1ª instância com vista à oportuna designação da audiência prévia que obrigatoriamente tem que ter lugar,
Sem prescindir que, pela incoerência entre os seus fundamentos (Autoridade do caso julgado) e a Decisão tomada, bem como pela correta interpretação do Pº 183/18.3T8PRD, deve obrigatoriamente ser dado como provada a existência de uma permuta válida entre a parcela aí reivindicada e a parcela aqui reivindicada, com o consequente efeito translativo sinalagmático das respetivas propriedades.
Deve ainda ser reconhecida a falta de fundamento do Tribunal a quo para proferir uma decisão de mérito (absolvição dos Réus do pedido, impedindo os autores de propor nova ação, quando, por exemplo, a situação dos limites dos prédios continuará por definir e o Direito por satisfazer).
Assim se fazendo inteira e sã Justiça.”.
*
Os Recorridos defenderam a procedência da pretensão dos Recorrentes de remessa dos autos à primeira instância para realização de audiência prévia, cuja não realização entendem tê-los, também, prejudicado, e sustentaram que a decisão proferida impediu a resolução definitiva do litígio entre as partes que deve passar pela demarcação entre os dois imóveis, como ambas pediam.

III – Questões a resolver:
Em face das conclusões dos Recorrentes nas suas alegações – que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635º, números 4 e 5 e 639º, números 1 e 2, do Código de Processo Civil -, são as seguintes as questões a resolver:
1 – Apreciar se da dispensa da audiência prévia decorre nulidade processual ou da sentença, por não ter sido previamente facultado às partes o contraditório sobre tal possibilidade de dispensa nem sobre o sentido da decisão a proferir; em caso negativo,
2 – Aferir se sentença é nula por contradição entre os seus fundamentos e a decisão proferida ou por falta de fundamentação; ainda em caso negativo,
3 – Apurar se deve ser dirigido aos Autores convite ao aperfeiçoamento da petição inicial.

IV – Fundamentação.
A sentença recorrida não elencou factos provados ou não provados e os relevantes para a decisão do recurso são os que resultam do histórico do processo acima sumariado no relatório.
A primeira questão levantada, sobre a qual ambas as partes manifestam o mesmo entendimento, prende-se com a dispensa da audiência prévia sem que, previamente, o tribunal tenha facultado às partes contraditório sobre tal possibilidade, ou sobre o sentido da decisão que entendia poder proferir de imediato.
Prevê o artigo 591º do Código de Processo Civil o seguinte:
“1 -Concluídas as diligências resultantes do preceituado no n.º 2 do artigo anterior, se a elas houver lugar, é convocada audiência prévia, a realizar num dos 30 dias subsequentes, destinada a algum ou alguns dos fins seguintes:
a) Realizar tentativa de conciliação, nos termos do artigo 594.º;
b) Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa;
c) Discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate;
d) Proferir despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595.º;
e) Determinar, após debate, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º;
f) Proferir, após debate, o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º e decidir as reclamações deduzidas pelas partes;
g) Programar, após audição dos mandatários, os atos a realizar na audiência final, estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e designar as respetivas datas.
2 - O despacho que marque a audiência prévia indica o seu objeto e finalidade, mas não constitui caso julgado sobre a possibilidade de apreciação imediata do mérito da causa.
3 - Não constitui motivo de adiamento a falta das partes ou dos seus mandatários.
4 - A audiência prévia é, sempre que possível, gravada, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 155.º”.
É manifesto que se fixou, com a redação deste preceito, a obrigatoriedade da audiência prévia[1]. O que se torna mais evidente quando o mesmo é cotejado com o disposto nos artigos 592º, 593º e 597º do Código de Processo Civil, estabelecendo o primeiro as exceções legalmente previstas a tal regra - as ações não contestadas ou quando se conheça de exceção dilatória que ponha fim ao processo e a mesma já tenha sido discutida em sede de articulados –, e os segundos os casos em que o juiz pode dispensá-la.
Cabe, assim, averiguar se a dispensa da audiência prévia era possível no caso dos autos, nomeadamente à luz dos poderes deveres de adequação processual convocados pela Mmª Juíza a quo e, em caso negativo, aferir qual a consequência dessa dispensa.
Estatuindo o artigo 591º, número 2, alínea b) como um dos fins da audiência prévia o de facultar às partes a discussão de facto e de direito quando o juiz “tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa”, resulta que a dispensa da audiência prévia em ações de valor superior ao de metade da alçada da relação, como é esta, não está prevista para quando a audiência prévia se destine a tal fim (cfr. número 1 do artigo 593º que apenas prevê a dispensa quando o fim da audiência prévia seja um dos previstos nas alíneas d), e) e f) do artigo 591º, número 1).
Todavia, contraditoriamente, da alínea d) do referido número 1 do artigo 591º conjugada com o número 1 do artigo 595º, para que remete, parece que poderia também dispensar-se a audiência prévia quer quando o juiz pretenda conhecer de exceções dilatórias ou nulidades processuais (alínea a) do número 1 do artigo 595º), quer quando entenda poder conhecer imediatamente do mérito ou de alguma exceção perentória (alínea b) do mesmo preceito).
É que a finalidade da audiência prévia prevista no artigo 591º, número 1 d) do Código de Processo Civil - de “proferir despacho saneador, nos termos do número 1 do artigo 595º” -, não distingue entre as duas alíneas do referido número 1, do que poderia decorrer que o legislador não pretendeu fazer tal distinção. Ou seja, em face desta redação, poder-se-ia defender que também nos casos de conhecimento do mérito ou de exceção perentória o legislador afastou a obrigatoriedade da audiência prévia que já afastara, por via do artigo 592º, nos casos em que se vai decidir da procedência de exceção dilatória que ponha fim ao processo e tenha sido debatida nos articulados.
Sucede, porém, que na hermenêutica da lei, embora devendo partir do princípio de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9º, número 3 do Código Civil) o intérprete está, também obrigado a não considerar um “pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso” (cfr. número 2 do mesmo artigo). Ou seja, admite o legislador que possa, nalguns casos, exprimir imperfeitamente o seu propósito pelo que, quando verificada essa falta de sintonia entre o significante - o vocabulário ou texto adotado -, e o significado, ou seja, o sentido pretendido, é este que o intérprete deve buscar.
Como já afirmado, é evidente a contradição entre a previsão da possibilidade de dispensa da audiência prévia quando se destine a proferir despacho saneador nos termos do artigo 595º, número 1 do Código de Processo Civil (por via da remissão do artigo 593º, número 1 para a alínea d) do número 1 do artigo 591º), nomeadamente quando ali se prevê que o mesmo pode destinar-se a conhecer do mérito ou de alguma exceção perentória, e a expressa estatuição da alínea b) do artigo 591º número 1 que obriga a que se convoque audiência prévia para facultar o contraditório quando ao juiz cumpra conhecer exceções dilatórias ou quando tencione decidir, imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa ou de alguma exceção perentória. A alínea b) do número 1 do artigo 595º prevê, portanto, um dos fins da audiência prévia que não pode ser afastado por via da dispensa judicial permitida pelo número 1 do artigo 593º.
A nosso ver a melhor interpretação destes dois preceitos, aparentemente contraditórios, é a que afasta a possibilidade de dispensa da audiência prévia quando o juiz entenda que pode conhecer de imediato do mérito ou de alguma exceção perentória com isso pondo fim a ação, no todo ou em parte.
Desde logo, lançando mão do elemento sistemático (que o apelo do artigo 9º, número 1 do Código Civil à “unidade do sistema jurídico” impõe como via hermenêutica), essa é a única interpretação que reverencia ao princípio do contraditório previsto no artigo 3º, número 3 do Código de Processo Civil, que expressamente afirma não ser lícito ao juiz, salvo em caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de facto ou de direito sobre que as partes não tenham tido a possibilidade de se pronunciarem. O disposto no artigo 591º, número 1 b) do Código de Processo Civil concretiza a forma como tal princípio do contraditório se manifesta nos casos em que o juiz “tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa”. Nesses casos, deve ser convocada a audiência prévia para facultar contraditório prévio a tal decisão.
Procurando reconstituir o pensamento do legislador a partir dos textos legais – como também imposto pelo artigo 9º, número1 do Código Civil -, descobre-se na Exposição de Motivos da Proposta de Lei 113/XII/2ª[2] a seguinte afirmação: “O novo figurino da audiência prévia, designação ora dada à audiência a realizar após a fase dos articulados, assente decisivamente num princípio de oralidade e concentração dos debates, pressupondo a intervenção ativa de todos os intervenientes na lide, com vista a obter uma delimitação daquilo que é verdadeiramente essencial para a sua plena compreensão e justa resolução, conjugado com a regra da inadiabilidade e com a programação da audiência final, é suscetível de potenciar esse resultado desejável.
(…) No que respeita à tramitação da ação declarativa, as alterações introduzidas visam assegurar a concentração processual, em termos de a lide, cumprida a fase dos articulados, se desenvolver em torno de duas audiências: a audiência prévia e a audiência final.
Há um manifesto investimento na audiência prévia, entendida como meio essencial para operar o princípio da cooperação, do contraditório e da oralidade. Tem-se presente que a audiência preliminar, instituída em 1995/1996, ficou aquém do que era esperado, mas há também a convicção de que, além da inusitada resistência de muitos profissionais forenses, certos aspectos da regulamentação processual acabaram, eles próprios, por dificultar a efetiva implantação desta audiência no quotidiano forense.
(…) A audiência prévia é, por princípio, obrigatória, porquanto só não se realizará nas ações não contestadas que tenham prosseguido em regime de revelia inoperante e nas ações que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma exceção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados.”.
Acresce que enquanto é manifesta a intenção do legislador, expressa no número 1 do artigo 593º, quando restringe a possibilidade de dispensa da audiência prévia apenas aos casos em que a mesma se destine aos fins previstos nas alíneas d), e) e f) do número 1 do artigo 591º - excluindo, assim, a referida dispensa nos casos previstos na alínea b) -, já não se mostra tão clara tal intencionalidade quando, porventura por imponderada opção de redação, acaba por se fazer incluir a possibilidade da decisão de mérito ou de conhecimento de exceção perentória por via de uma dupla remissão: do artigo 593º, número 1 para a alínea d) do número 1 do artigo 595º e do artigo 593º, número 2 a) para o mesmo artigo 595º, número 1.
O tribunal a quo estribou a sua opção pela dispensa da audiência prévia nos princípios da gestão processual e da adequação formal, sem indicação do respetivo fundamento legal, mas que têm assento nos artigos 6º e 547º do Código de Processo Civil, e afirmou ser clara a possibilidade de decisão imediata de mérito. Donde, ao que parece, também na decisão recorrida se opta pelo entendimento acima expresso de que não está legalmente prevista a dispensa da audiência prévia quando o juiz entenda poder conhecer de imediato do mérito, como fez o tribunal a quo, caso em que seria dispensável a sustentação dessa decisão nos poderes/deveres de adequação processual.
Quanto à possibilidade de dispensa da audiência prévia (ou de postergação de qualquer ato ou fase processual obrigatória) ao abrigo dos poderes deveres de adequação processual, entendemos que: por um lado, esse recurso deve ser usado com parcimónia de forma a que se não atinja, por via dele, uma alteração da lei adjetiva, ou seja, de forma a que não se permita que o julgador se substitua ao legislador criando uma tramitação diversa da legalmente prevista com que as partes não podiam contar; e por outro, entroncando nesta última afirmação, consideramos que nunca a adequação processual consistente na alteração da tramitação legalmente prevista pode ser feita sem que, também sobre ela, seja facultado contraditório.
O processo civil visa, como qualquer lei adjetiva, regular a tramitação de um litígio judicial que se desenrola entre partes pretendendo-se que esse devir do processo seja previsível e garanta o exercício dos direitos daquelas. A expressão da “necessidade da contradição” no artigo 3º do Código de Processo Civil, e a proibição de decisões surpresa, que decorre do seu número 3, mais não são do que a expressão da natureza, ou, se se preferir, da finalidade do processo que é a de decisão de um litígio que deve ser apreciado em dialética, ou seja, que deve proporcionar um diálogo de contraposição de factos e entendimentos das partes com vista a que se atinja a sua solução de acordo com o direito.
Assim, salvo em caso de manifesta desnecessidade, nomeadamente por se tratarem de decisões de mero expediente, evidentes ou com que as partes manifestamente já podiam contar, não deve dispensar-se esse “diálogo” com as partes, muitas vezes visto como retardador da marcha do processo, mas que é possibilitador de melhor entendimento das pretensões, da sua correção, em certa medida, e até de consensos que, sem essa tarefa de audição das partes ficam arredados.
Nas palavras de Luís Correia de Mendonça “(…) acresce que a celeridade que o processo ganha, evitando-se submeter às partes as questões oficiosas, mesmo quando possa parecer que com isso se poupa um inútil formalismo, acaba por perder-se com o recurso interposto da decisão, por error in procedendo.”[3]. É o que sucede nos presentes autos, como seria de prever.
Ora, no caso em apreço, as partes não podiam manifestamente contar nem com a decisão de dispensa da audiência prévia, nem com a decisão de mérito que veio a ser proferida – pois havia factos controvertidos alegados por ambas as partes e a solução de direito adotada, como a própria decisão admite é diversa das defendidas nos articulados. Tampouco podiam as partes contar com a não admissão dos pedidos reconvencionais, já que os Autores não se haviam pugnado pela sua inadmissibilidade e, salvo o devido respeito, os mesmos não são manifestamente de rejeitar, como se afirma em primeira instância após afastamento da aplicabilidade das alíneas a) a c) do número2 do artigo 266º, mas sem qualquer menção ao disposto na alínea d) do mesmo artigo.
Acresce que o tribunal a quo não só não antecedeu a sua decisão de adequação processual de consulta das partes, tendo dispensado a audiência prévia sem que previamente aquelas tenham sido ouvidas sobre tal alteração à tramitação legalmente prevista, como não facultou o contraditório sobre a possibilidade de vir a decidir o mérito, o que fez com base em fundamentação de direito não debatida nos articulados.
Ou seja, a decisão em recurso é uma decisão surpresa.
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O que acima vai dito sobre a interpretação a fazer do artigo 593º do Código de Processo Civil e sobre o exercício do dever de gestão e adequação processual vai de encontro ao que, de forma consistente, a jurisprudência e a doutrina maioritárias, têm defendido a esse propósito.
Sem pretensão de sermos exaustivos, o que, no que toca à jurisprudência seria até desnecessário face à publicação, em suporte digital, de inúmeros acórdãos sobre o tema acessíveis por diferentes motores de busca, não deixaremos de referir algumas das posições em sentido idêntico ao acima adotado, com as quais concordamos.
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A este propósito se pronunciou, por exemplo, este Tribunal em diversos acórdãos como os proferidos a 24-09-2015[4], a 27-09-2017,8[5] bem como o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 16-12-2021[6] onde se pode ler respetivamente:
“I - Entendendo o juiz, após a fase dos articulados, que os autos contêm os elementos necessários a habilitá-lo a proferir decisão de mérito que ponha termo ao processo, deverá convocar audiência prévia para o fim previsto no artigo 591º, nº1, b) do Código de Processo Civil.
II - A não realização desse acto processual só será consentida no âmbito do exercício do dever de gestão processual, a título de adequação formal, se o juiz entender que a matéria a decidir foi objecto de suficiente debate nos articulados, justificando a dispensa dessa diligência. Sobre o propósito de dispensar a audiência prévia deverá, porém, ouvir as partes, de acordo com o disposto nos artigos 6º, nº1 e 3º, nº3, ambos do Código de Processo Civil.
III - A não realização de audiência prévia, impondo a lei a sua realização, constitui nulidade processual, podendo ser arguida em sede de recurso, conduzindo à anulação da decisão que dispensou a sua convocação e do saneador-sentença que se seguiu a essa decisão.”;
“I - O art. 591.º do CPC estabelece a regra: realização da audiência prévia; os artigos seguintes ocupam-se das excepções: o art. 592.º dos casos em que a audiência prévia não tem lugar, o art. 593.º dos casos em que a audiência prévia pode ser dispensada.
II - Quando a acção houver de prosseguir (i.é., não deva findar no despacho saneador pela procedência de excepção dilatória que já tenha sido debatida nos articulados) e o juiz pretenda decidir de imediato, no todo ou em parte, do mérito da causa (ou apreciar excepção dilatória que não tenha sido debatida nos articulados ou que vá julgar improcedente) deve realizar-se audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito que importe para esse conhecimento.
III - A não realização da audiência prévia nos casos em que a mesma tem lugar e não pode ser dispensada gera uma nulidade processual, não obstando a isso a circunstância de previamente à decisão o juiz ter anunciado às partes que se julgava em condições de decidir de mérito.
IV - Mesmo que se admita que se as questões a decidir forem muito simples e a decisão sobre elas for pacífica na jurisprudência e na doutrina, o juiz poderá, no uso do poder de simplificação e agilização processual e adequação formal, não realizar a audiência prévia, a decisão de não a realizar deverá ser fundamentada e precedida do convite prévio às partes para se pronunciarem sobre a possibilidade de o fazer e, querendo, alegarem por escrito o que iriam sustentar oralmente na audiência se esta tivesse lugar.”.; e
(…) VII - A dispensa pelo juiz da realização da audiência prévia, nos casos em que é obrigatória, nos termos do artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, como forma de proporcionar às partes o exercício de faculdades processuais concedidas por lei, está ela própria igualmente sujeita ao contraditório, evitando-se assim decisões surpresa, expressamente vedadas pelo artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil.
VIII – O respeito pelo princípio do contraditório, genericamente consagrado no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, não depende de um juízo subjectivo do juiz quanto à necessidade, segundo o seu entendimento pessoal, de ouvir ou não ouvir as partes, aquilatando se elas ainda têm algo a dizer-lhe que ache relevante para o que há a decidir, mas é, bem pelo contrário, substantivamente assegurado pela imposição do dever processual, que especialmente lhe incumbe, de garantir às partes o direito (que lhes assiste) de dizer aquilo que, no momento processualmente adequado (definido previamente pela lei), ainda entenderem ser, do seu ponto de vista, relevante.”.
Na doutrina, entre outros, defende Abílio Neto que a realização da audiência prévia “(…) é tendencialmente obrigatória, porquanto, por um lado, só em casos contados a lei permite que ela não se realize (art. 592.º) e, por outro, só nas hipóteses contempladas no art. 593.º fica ao critério do juiz dispensar a sua realização”.[7]
Segundo Paulo Pimenta, “É de toda a conveniência que o juiz não decida o litígio sem um debate prévio no qual os advogados das partes tenham oportunidade de produzir alegações orais, de facto e de direito… (…). “A convocação das partes para a audiência prévia no contexto da al. b) do n.º 1 do artº 591º, é pertinente a vários títulos. Antes de mais, impede que as partes venham a ser confrontadas com uma decisão que, provavelmente, não esperariam fosse já proferida, isto é, evita-se uma decisão-surpresa (art.º 3º 3). Depois, são acautelados os casos em que a anunciada intenção de conhecimento imediato do mérito da causa derive de alguma precipitação do juiz, tanto mais que não é frequente a possibilidade de, sem a produção de prova, ser proferida já uma decisão final. Desse modo, a discussão entre as partes tanto poderá confirmar como infirmar a existência de condições para o tal conhecimento imediato do mérito (…). Por outro lado, sabendo as partes que, no caso de o juiz pretender decidir o mérito da causa logo no despacho saneador, serão convocadas para uma discussão adequada, não terão de preocupar-se em utilizar os articulados para logo produzirem alegações completas sobre a vertente jurídica da questão. A solução consagrada permite, portanto, que os articulados mantenham a sua vocação essencial (exposição dos fundamentos da ação e da defesa), ao mesmo tempo que garante a discussão subsequente, se necessária, em diligência própria.”[8].
Também Delgado de Carvalho[9] defende que “(…) quando o juiz pretenda, no despacho saneador, conhecer imediatamente de questão substancial que põe termo ao processo, as partes podem ser notificadas para habilitarem o juiz a conhecer do mérito da causa, de modo a influenciarem a sua decisão. A notificação das partes, com a finalidade de estas poderem influenciar o juiz na discussão do mérito da causa, dispensa a realização da audiência prévia, se as partes concordarem com essa dispensa.
A dispensa da audiência prévia, para garantia da equidade processual e a igualdade das partes, fica, contudo, dependente de o juiz prevenir as partes, de forma fundamentada, sobre a solução do litígio, o que implica a enunciação das questões a solucionar e a sua comunicação às partes, como decorrência da boa-fé processual e da recíproca cooperação entre as partes e o juiz. A comunicação da visão perspetivada pelo juiz é também importante para permitir confirmar ou infirmar a existência de condições para, sem mais provas, o juiz poder conhecer do mérito da causa.
Este procedimento é, indiscutivelmente, uma boa técnica de agilização e simplificação processual, como instrumento de organização de todo o serviço do juiz, e evitaria a deslocação das partes e seus mandatários ao tribunal apenas para a realização, a maior parte das vezes, das alegações finais.”.
Quanto ao conteúdo dos poderes/deveres de adequação processual defende Teixeira de Sousa que “O que importa assegurar é que a tramitação alternativa continue a garantir um processo equitativo, pelo que há que determinar qual é o standard mínimo que resulta da tramitação legal e que deve ser respeitado em qualquer procedimento alternativo definido pelo juiz. Nesta perspectiva, pode dizer-se que em qualquer tramitação tem de estar assegurada a possibilidade de as partes alegarem as suas razões de facto e de direito e de realizarem a prova dos factos controvertidos, bem como a oportunidade de o tribunal se pronunciar tanto sobre a matéria de facto, como sobre a de direito e, quanto a esta última, quer numa perspectiva processual, quer numa óptica substantiva. Respeitado este standard mínimo, toda a tramitação determinada pelo juiz está em condições de ser válida.”[10]
Também Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[11] em anotação ao artigo 593º, afirmam que a “(…) adequação processual tem sempre como limite as normas imperativas e os princípios fundamentais do processo civil”.
Maria José Capelo[12], por sua vez, entende que a audiência prévia “(…) revelar-se-á como um momento privilegiado de diálogo entre as partes e o juiz, ao promover um prévio debate à tomada de decisões, sejam estas de gestão ou adequação do processado, atinentes aos factos carreados pelas partes e a todos aqueles que sejam de conhecimento oficioso”; defendendo cautela na opção pelo desvio à opção legal que institui a regra de obrigatoriedade da sua convocação e destaca “(…) neste desvio ao regime legal, a necessidade de consulta prévia das partes (cfr nº 3 do artigo 3º ).”.
Finalmente (nesta breve resenha doutrinal que, como anunciado, está longe de ser exaustiva), convoca-se o entendimento expresso por Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa[13], que afirmam ser “(…) de toda a conveniência que o juiz não decida, no todo ou em parte, aspectos materiais do litígio sem um debate prévio, no qual os advogados das partes tenham a oportunidade de produzir alegações orais acerca do mérito da causa.”.
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Afirmados quer a interpretação do disposto nos artigos 593º, número 1 e número 2 a) do Código de Processo Civil acima exposta - de que não está prevista a dispensa da audiência prévia quando o juiz pretenda decidir do mérito da causa ou de alguma exceção perentória -, quer o entendimento de que a dispensa dessa diligência ao abrigo dos poderes/deveres de gestão e adequação processual deve ser usada com parcimónia – por forma a não permitir soluções que o legislador quis expressamente afastar -, e deve ser antecedida de audição das partes quer sobre tal adequação, quer sobre o teor da decisão a proferir, cabe aferir qual a consequência da dispensa da audiência prévia efetuada nos autos nos termos em que o foi.
A questão é a de saber se a decisão-surpresa é uma nulidade processual nos termos nos termos previstos no artigo 195º, número 1 do Código de Processo Civil ou uma nulidade da sentença, prevista no artigo 615º, nº 1, alínea d).

Os Recorrentes mostram alguma dificuldade em optar por uma única consequência para tal opção da julgadora, ora afirmando a nulidade do processado, ora a da sentença que dizem padecer de excesso de pronúncia.
Tal hesitação compreende-se na medida em que também não tem sido pacífica a discussão jurisprudencial e doutrinal sobre as consequências decorrentes da omissão de concessão de contraditório prévio havendo quem configure a invalidade daí decorrente como uma nulidade autónoma e quem a trate como uma nulidade derivada.
No debate parlamentar da proposta de Lei número 113/XII, já supra referida, o Partido Comunista Português propôs a seguinte redação do número 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil : “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, sob pena de nulidade, salvo casos de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”[14].
Não tendo passado para o texto adotado a menção proposta (“sob pena de nulidade”), tal terá decorrido, a nosso ver, da desnecessidade dessa cominação, por tal nulidade resultar já dos preceitos gerais que a regulam.
Sumariando (de forma muito concisa), as posições que se vêm perfilando para o tratamento das consequências das decisões surpresa, há quem defenda que as decisões assim preferidas são, elas mesmas, feridas de nulidade, bem como há quem trate a questão como uma nulidade do processado. Neste segundo entendimento encontra-se quem defenda que a nulidade processual deve ser arguida em sede de recurso e quem propugne a sua arguição perante o juiz da causa nos termos previstos no artigo 199º, número 1 do Código de Processo Civil.
A opção por uma ou outra das soluções é, em muitos casos, muito relevante já que, neste segundo caso, para quem defenda que nulidade terá de ser alegada autonomamente, a sua arguição está sujeita a prazo mais apertado do que o fixado para o recurso da decisão. Também as consequências de tal nulidade poderão ser diversas caso se opte por situá-la ao nível da decisão ou do processado prévio à mesma (ainda que essa anterioridade não seja, na maioria das vezes, decorrente de dois distintos momentos de decisão).
Vejamos, com mais detalhe, o que podem ser (e têm sido) os argumentos esgrimidos a favor das enunciadas soluções:
A afirmação de que a falta de concessão de contraditório (prévia à decisão em que tal contraditório não podia ser dispensado) se consubstancia em nulidade processual (e não da decisão em si mesma), tem por base uma cisão entre o teor da decisão e o do processado que a antecede (ou, no caso, do processado omitido). A nulidade consistiria, então, na omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreve (no caso em recurso, decorre quer do artigo 3º, número 3, quer no artigo 519º, número 1 b) do Código de Processo Civil que o conhecimento do mérito da causa deve ser antecedido de contraditório que, de acordo com o segundo preceito, deve ser facultado em audiência prévia), tal como previsto no artigo 195º número 1 do Código de Processo Civil. Assim, não facultado o contraditório, seria essa omissão cominada com nulidade, a arguir no próprio ato se a parte ou o seu mandatário estiverem presentes, ou no prazo de 10 dias, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 195º, número 1 desde o seu conhecimento. Tal nulidade não seria, assim, de conhecimento oficioso e seria sanável, bem como só ocorreria se a omissão fosse suscetível de influenciar o destino da causa. Da referida nulidade apenas decorreria a nulidade dos termos subsequentes do processo que dependessem “absolutamente” do ato anulado (cfr. artigo 195º, número 1 do Código de Processo Civil).
Ainda que qualificando a nulidade decorrente da omissão de contraditório como processual, há também quem entenda que tal vício só se consuma com a prolação da decisão que é proferida na sequência dessa omissão, pelo que deve ser arguido em sede de recurso da referida decisão[15]. Adiantando já que é este o entendimento que seguimos, melhor o detalharemos adiante.
Já quem situa a invalidade em apreço ao nível do teor da decisão socorre-se do previsto no artigo 615º, número 1 d) do Código de Processo Civil (como fazem os Apelantes quando defendem a nulidade da sentença por excesso de pronúncia). Neste caso, a nulidade da decisão pode ser fundamento de recurso também se admitindo a sua arguição autónoma apenas quando a decisão não seja recorrível por força do previsto no artigo 615º número 4 do Código de Processo Civil[16].
No presente caso estamos perante várias decisões - formalmente expressas no mesmo despacho -, em que o Tribunal recorrido começou por afirmar a dispensa da audiência prévia com recurso ao uso dos deveres de adequação processual, de seguida rejeita os pedidos reconvencionais e, depois, conheceu do mérito para o que recorre a fundamentação de direito não discutida em sede de articulados e com que as partes não podiam, de todo, contar.
Nenhuma destas decisões foi antecedida de prévia audição das partes que não podiam legitimamente esperar a dispensa da audiência prévia – muito menos quando a mesma se destinaria, afinal, ao conhecimento do mérito -, nem com a rejeição dos pedidos reconvencionais bem com o referido conhecimento do mérito (?) em sede de sentença, com base em solução jurídica não discutida em sede de articulados consubstanciada na falta de alegação de factos essenciais.
Claro está que a decisão da causa é permitida no momento do saneamento, não sendo essa a questão que se coloca, sendo também pacífico que quanto ao direito o tribunal não está vinculado à posição das partes (artigo 5º, número 3 do Código de Processo Civil).
Contudo, não só a dispensa da audiência prévia não podia ter sido decidida, com base no uso de poderes de gestão e adequação processual, sem prévia audição das partes, como a prolação do saneador-sentença sem a realização de audiência prévia, se consubstancia, também, na realização de um ato sem o prévio contraditório.
A pretensão de Recorrentes e Recorridos é convergente e clara: a de poderem debater em audiência prévia as suas posições sobre o conteúdo da decisão a proferir.
É para nós incontestável, pelas razões já acima afirmadas, que a decisão de adequação do processado não podia ter sido proferida sem audição das partes a esse respeito. A pretensão do tribunal, de dispensar a audiência prévia por pretender decidir de mérito no saneador, não consubstancia um caso de “manifesta desnecessidade” de contraditório prévio como previsto no número 3 do artigo 3º.
A sua omissão, por sua vez, pode ter manifesta influência na decisão da causa, já que o sentido da decisão foi totalmente inesperado e não abordado nos articulados das partes. Discorda-se, desde logo, da afirmação feita na sentença recorrida de que se afigura “clara a possibilidade de decisão imediata do mérito da causa”.
Pelo contrário, em face das pretensões de ambas as partes (sendo a dos Réus, em parte com vista a obter o “mesmo efeito jurídico” pretendido pelos Autores, de verem definidas as extremas entre os dois imóveis), a afirmação de que não estão devidamente alegados os termos da permuta que foi objeto de outra ação que se entendeu estar apenas descrita por remissão para o teor da respetiva sentença[17], e a declaração de que tal insuficiência de factos não é suscetível de sanação por via de convite ao aperfeiçoamento, são inesperados, sobretudo se se tiver em conta a consequência daí extraída, de conhecimento do mérito, absolvendo-se os Réus de todos os pedidos.
Às partes foi tolhido o direito de pugnarem pelo prosseguimento dos autos, como ambas pretendiam, e de se pronunciarem sobre os efeitos que o Tribunal entendeu retirar da afirmada insuficiência de alegação de factos essenciais à procedência da ação.
Segundo Lebre de Freitas, o legislador adotou uma formulação do princípio do contraditório, “(…) entendida como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.”[18]. Temos por certa esta afirmação pelas razões acima já expostas.
Sem quebra do devido respeito pelas demais posições doutrinais e jurisprudenciais acima sumariadas, entendemos que a nulidade em causa – que ocorre porque se omitiu uma obrigação que a lei prescreve, consistente na concessão de contraditório prévia a qualquer decisão, salvo em caso de manifesta desnecessidade -, é uma nulidade do processado, embora, na maioria das vezes, consumada e revelada na própria decisão. Daí a adoção generalizada da expressão “decisão surpresa” para se referir o fenómeno em análise.
O entendimento de que ocorre excesso de pronúncia na decisão que conhece de questões sobre as quais não foi facultado o contraditório não se nos afigura, de facto, como o mais correto já que não está em causa o cotejo entre o teor da decisão e os poderes de conhecimento do juiz (extravasando aquele o conteúdo destes), mas, tão-só, o facto de a decisão ter sido proferida na sequência de omissão de ato obrigatório, suscetível de influenciar o seu sentido. Apesar da redação dada à alínea d) do número 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, onde se comina com nulidade a sentença em que o juiz conheça de questões “de que não podia tomar conhecimento”, parece-nos que esta expressão, no contexto em que se insere (após a descrição do vício de nulidade decorrente também de o juiz deixar de se pronunciar sobre questões de que “devesse apreciar”), visa abarcar situações em que se profiram decisões sobre questões vedadas ao juiz (vg. o conhecimento de exceções que não são de conhecimento oficioso e não foram alegadas) e não o conhecimento de questões que podem ser conhecidas, mas sobre as quais não foi exercido contraditório. Neste segundo caso, a tónica incide sobre a preterição de uma formalidade obrigatória prévia e não sobre o sentido ou conteúdo da decisão em si mesma, como nos parece inculcar a redação da referida alínea d). Ou seja, o vício, embora consumado e revelado na decisão, é decorrente da omissão de ato obrigatório e não assenta no teor da decisão em si mesma.
Recorrendo, de novo, ao exemplo acima referido, se o juiz conhece questão não suscitada pelas partes que é de conhecimento oficioso, a sua decisão será nula caso as mesmas não sejam ouvidas previamente (salvo em caso de manifesta desnecessidade), por incumprimento do disposto no artigo 3º, número 3 do Código de Processo Civil. Já se o juiz conhecer, ainda que observado o contraditório, de questão que não foi alegada e não é de conhecimento oficioso, estamos caídos na estatuição do artigo 615º, número 1 d) do Código de Processo Civil onde, salvo o devido respeito pelas posições que o defendem, não caberão as duas situações descritas, a nosso ver claramente distintas.
Este entendimento, não obsta, contudo, a que tal vício seja invocado em sede de recurso, pois a omissão de contraditório consuma-se e revela-se apenas na decisão viciada.[19] No caso, quer na afirmação da dispensa da audiência prévia, quer na decisão de mérito proferida. A nulidade não se encontra, assim, no conteúdo, ou seja, no teor das decisões proferidas (no caso, a apreciação desse teor e da nulidade da sentença por outras causas, intrínsecas, também invocada, ficará prejudicada), mas no facto de ter sido proferida sem prévia audição das partes[20] . Dizendo de outra forma, fosse qual fosse o conteúdo da sentença a mesma seria nula, por ter sido omitido ato obrigatório.
Tal nulidade, inominada, é a prevista no artigo 195.º, e decorre da violação do princípio do contraditório previsto no artigo 3.º, número 3. Da mesma decorre a nulidade das próprias decisões, proferidas sem a prévia audição das partes, enquanto atos processuais que são, tendo as partes prejudicadas pela omissão – no caso ambas -, direito a argui-la por via da impugnação das duas decisões em causa: a de dispensa da audiência prévia e a de conhecimento do mérito em saneador sem audiência prévia e sem prévia audição das partes sobre o conteúdo da decisão, com que não podiam contar pois a solução de direito adotada não fora discutida em sede de articulados.
Ou seja, no caso, estamos perante uma nulidade que só se verifica e revela por via de um despacho judicial. Como ensinava Manuel de Andrade estando a nulidade “(…) coberta por uma decisão judicial que ordenou, autorizou ou sancionou, expressa ou implicitamente, a prática de qualquer acto que a lei impõe, o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente a interpor e a tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. Trata-se em suma da consagração do brocardo: “dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se”[21]. Ou seja, não se estando perante um dos casos de nulidade da sentença (que são apenas os tipificados no artigo 615º do Código de Processo Civil) ou do despacho (por força da remissão do artigo 613º nº 3 do Código de Processo Civil), estaremos, nos casos de decisões surpresa, perante uma nulidade cometida com a sua prolação pelo que tal vício pode ser arguido como fundamento do recurso.
Em consequência, julga-se nula a decisão que dispensou a audiência prévia bem como a subsequente sentença proferida, devendo os autos regressar à primeira instância com vista à designação de audiência prévia, seguindo-se os termos subsequentes do processado.
Nestes termos, por força da sua nulidade, fica prejudicado o conhecimento das demais questões acima enunciadas e relativas ao teor da sentença.

V – Decisão:
Julgando-se procedente o recurso, anula-se a decisão recorrida, devendo os autos regressar à primeira instância com vista à designação de audiência prévia, seguindo-se os ulteriores termos do processo.

Custas por Recorrentes e Recorridos, nos termos do previsto no artigo 527º, número 1 do Código de Processo Civil, uma vez que a decisão do recurso aproveitou a ambos.


Porto, 22-01-2024
Ana Oliveira Loureiro
Eugénia Cunha
José Eusébio Almeida
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[1] Neste sentido, Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Almedina, Volume II, página 113.
[2] Disponível em https://app.parlamento.pt/.
[3] O contraditório e a proibição das decisões-surpresa Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, ano 82, volume1-2 (Jan.-Jun. 2022), páginas. 185-239. Disponível em https://portal.oa.pt/media/135588/luis-correia-de-mendonca.pdf, página 215.
[4] Proferido no processo 128/14.0T8PVZ.P1 e disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/eada11200db474b280257ed6004813e8?OpenDocument.
[5] No processo 136/16.6T8MAI-A.P1 disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/3271cbae21e34567802581b80030a4ff?OpenDocument.
[6] Proferido no processo 4260/15.4T8FNC-E.L1.S1 e disponível em:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1911a76a869c1fc1802587ad0055ed8d?OpenDocument.
[7] Novo Código de Processo Civil – Lei n.º 41/2013 – Anotado, Ediforum, página 216.
[8] Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, páginas 230 e 231.
[9] Em estudo titulado “A dispensa da audiência prévia como medida de gestão processual: para lá dos receios do legislador”. Disponível em https://blogippc.blogspot.com/2016/06/a-dispensa-da-audiencia-previa-como.html.
[10] Apontamento sobre o princípio da gestão processual no novo Código de Processo Civil, Cadernos de Direito Privado número 43, 2013, página 6.
[11] Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, Almedina 3ª edição, página 472.
[12] A Relevância da Gestão Processual na Fase da Audiência Prévia”, Boletim da Faculdade de Direito, Volume XCVI, Tomo I, Coimbra 2020, páginas 161 a 168.
[13] Código de Processo Civil Anotado, Almedina, Volume I, página 687.
[14] Disponível em: https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.PDF?path=6148523063484d364c793968636d356c6443397a6158526c6379395953556c4d5a5763765130394e4c7a464451554e45544563765247396a6457316c626e527663306c7561574e7059585270646d46446232317063334e68627938785a6a51354f5745794e5331684d6d45324c5451794f475174596a49334e6930345a474e684d4451794d544d78596a6b7555455247&fich=1f499a25-a2a6-428d-b276-8dca042131b9.PDF&Inline=true.
[15] Neste sentido, entre outros, Rui Pinto[em artigo de maio de maio de 2020, intitulado “Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (artigos 613.º a 617.º)” disponível na Revista Julgar Online, pág. 31 (https://julgar.pt/os-meios-reclamatorios-comuns-da-decisao-civil-artigos-613-o-a-617-o-do-cpc/)] afirma que “como qualquer outro ato processual, a própria decisão judicial pode padecer das nulidades inominadas do artigo 195, n.º 1. Assim, suponha-se que a sentença ou decisão é proferida parcialmente no início da audiência de julgamento, antes da produção de prova ou das alegações, ou que constitui uma decisão surpresa, com violação do artigo 3.º, n.º 3, ou que se trata de um despacho que ordena a citação do requerido para um procedimento cautelar que não admite citação prévia (cf. artigo 378). A decisão não pode deixar de ser nula.” (…) “Porém, o juiz não pode conhecer da arguição da nulidade de decisão surpresa, pois esta é atinente ao objeto da causa, salvos os casos em que esta também constitua excesso de pronúncia. Efetivamente, quando isto não suceda – nomeadamente por a “surpresa” se situar em matérias de conhecimento oficioso, como, por ex., factos instrumentais e a qualificação jurídica (cf. artigo 5.º, n.ºs 2 e 3) – trata-se de nulidade inominada do artigo 195.º, por violação do princípio do contraditório do artigo 3.º, n.º 3. Identicamente, o juiz não pode conhecer da nulidade da decisão que ordenou a citação em procedimento de restituição provisória da posse pois diz respeito à validade do objeto desse mesmo despacho de citação. Nestas segundas eventualidades, a nulidade apenas poderá ser invocada como fundamento de recurso, nos termos gerais, caso ele seja admissível.”.
[16] Neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, em comentário a Acórdão desta Relação, de 2.3.2015 onde afirma que “o proferimento de uma decisão-surpresa é um vício que afecta esta decisão (e não um vício de procedimento e, portanto, no sentido mais comum da expressão, uma nulidade processual) ”; Segundo tal autor, até à prolação da decisão, “não há nenhum vício processual contra o qual a parte possa reagir”. É entendimento do mesmo que“o vício que afecta uma decisão-surpresa é um vício que respeita ao conteúdo da decisão proferida; a decisão só é surpreendente porque se pronuncia sobre algo de que não podia conhecer antes de ouvir as partes sobre a matéria”. Disponível em publicação de 23/03/2015, https://blogippc.blogspot.com/2015/03/jurisprudencia-105.html.
[17] O que não nos parece poder ser afirmado tendo em conta, nomeadamente, o teor dos artigos 59 a 62 da petição inicial.
[18] Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à Luz do Novo Código, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2013, págs. 124 e 125.
[19] Neste sentido o já citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16-12-2021 (nota 5), de onde se lê: “(…) quando está em causa o cometimento de uma nulidade processual coberta pela decisão judicial que a acolhe (in casu, o saneador-sentença recorrido), o meio adequado para invocar tal infracção às regras do processo é o recurso contra essa decisão, a apresentar junto da instância superior (se for admissível), e não a sua reclamação directamente perante o juiz a quo.”
[20] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, op. cit., página 249, afirmam, a propósito que: “A reclamação e o recurso não são meios de impugnação concorrentes, cabendo à parte reclamar previamente para suscitar a prolação de despacho sobre a arguida nulidade. Mas se houver um despacho a ordenar ou autorizar a prática de um acto ou se determinada decisão (maxime sentença) for precedida de nulidade do conhecimento oficioso ou tiver faltado alguma formalidade de cumprimento obrigatório, ajustar-se-á a imediata interposição de recurso.”.
[21] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora,1993, pág. 183. No mesmo sentido, lê-se no Manual de Processo Civil de Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Coimbra Editora, 2ª edição, página 393, que: “Se entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão.”.