Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | PEDRO AFONSO LUCAS | ||
| Descritores: | NOTIFICAÇÃO DA SENTENÇA A ARGUIDO AUSENTE NÃO LEVANTAMENTO DO SIGILO PROFISSIONAL DE ADVOGADO TESTEMUNHO DE ADVOGADO IRRELEVANTE PARA A DESCOBERTA DA VERDADE | ||
| Nº do Documento: | RP202511124926/23.5T9MTS-B.P1 | ||
| Data do Acordão: | 11/12/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE COM1 DEC VOT | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | CONFERÊNCIA | ||
| Decisão: | JULGADO IMPROCEDENTE O INCIDENTE DE QUEBRA DE SIGILO | ||
| Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - A regra do segredo profissional de Advogado pode excepcionar–se, e o Advogado pode ficar desvinculado da obrigação do segredo profissional e de não divulgar os factos que lhe foram confiados ; porém, para que tal terá de ser respeitado o devido procedimento para o efeito, o que, no caso específico da prestação de testemunho por Advogado em sede de processo penal, passa por se suscitar decisão judicial de quebra do segredo ou sigilo nos termos art. 135º do Cód. de Processo Penal. II - Tal impõe ponderar sobre se a protecção do segredo profissional deve ceder perante um interesse prevalente que se demonstre no caso concreto, nomeadamente por via da «imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade», e da «gravidade do crime e [d]a necessidade de protecção dos bens jurídicos» III - A circunstância de o arguido ter faltado ao acto de leitura da Sentença, para o qual estava regularmente notificado, não obviou a essa notificação, que se tem por efectivada nos termos expressos no art. 373º/3 do Cód. de Processo Penal, onde exactamente se prevê que «O arguido que não estiver presente considera-se notificado da sentença depois de esta ter sido lida perante o defensor nomeado ou constituído», abrangendo a eficácia dessa notificação da Sentença, naturalmente, a da ordem ali consignada de entrega da carta de condução ou título equivalente, com a respectiva cominação. IV - Nessa medida, aquilo que a Sra. Advogada possa declarar a propósito do conteúdo do que tenha falado com o arguido após aquela leitura de Sentença, revela–se inócuo para aquilatar do preenchimento indiciário dos elementos típicos do crime de desobediência denunciado, nomeadamente aquele do conhecimento pelo ali condenado da ordem aqui em causa – tal conhecimento deflui da notificação da Sentença que se tem por consumada e eficaz. V - E, nestes termos, o pretendido (pelo Ministério Público) depoimento testemunhal da Sra. Advogada não se reveste de «imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade», gorando–se assim o preenchimento da exigência plasmada no art. 135º/3 do Cód. de Processo Penal para que o segredo profissional daquela pudesse ser dispensado à luz de interesse que se deva ter por prevalente relativamente ao mesmo. (Sumário da responsabilidade do Relator) | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Processo nº 4926/23.5T9MTS-B.P1.P1
Tribunal de origem: Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos - Juiz 1
Acordam em conferência os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO
No âmbito do processo nº 4926/23.5T9MTS, que, em fase de Inquérito, corre termos na 3ª Secção do DIAP de Matosinhos, pelo Mmo. Juiz do Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos – Juiz 1, vem suscitado, ao abrigo do disposto no art. 135º/3 do Cód. de Processo Penal, o presente incidente de quebra de segredo profissional da Exma Sra. Advogada, Dra. AA, com vista à prestação do seu depoimento como testemunha no âmbito do aludido Inquérito.
O Exma. Procuradora-Geral Adjunta neste Tribunal da Relação pronunciou–se no sentido de dever ser julgado procedente o presente incidente de levantamento de segredo, com quebra do sigilo profissional por parte da senhora advogada, referindo o seguinte: « [P]arece-me que se deve autorizar a quebra de sigilo profissional para prestação de depoimento por parte da senhora advogada, Dra. AA, nos termos do que dispõe o artigo 135.º do Código de Processo Penal. Isto porque, parece-me que, no presente caso, está suficientemente demonstrada a imprescindibilidade de tal depoimento para a descoberta da verdade, já que o participado está a ser investigado pela prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, al. b) do Código Penal, que, atenta a sua moldura penal abstrata, é um crime grave e, também, porque existe necessidade de proteção de bens jurídicos que se mostram superiores ao dever de segredo profissional de um advogado, que são, a boa administração da justiça e o dever de descoberta da verdade material. E, se assim é, então estes interesses, de boa administração da justiça e dever de descoberta da verdade, são, no caso, os preponderantes e os que devem prevalecer, em detrimento do dever de segredo profissional da testemunha, enquanto advogada – cf. n.º 3 do citado artigo 135.º do Código de Processo Penal. (…) Assim, o meu PARECER é no sentido de que se deve julgar procedente o presente incidente de levantamento de segredo, com quebra do sigilo profissional por parte da senhora advogada, Dr.ª AA, devendo, por conseguinte, desonera-la e desvincula-la da observância das obrigações de reserva decorrentes do segredo profissional que sobre si impendem e autoriza-la a prestar o seu depoimento no processo de inquérito n.º 4926/23.5T9MTS, a correr termos na 3ª Secção do DIAP de Matosinhos, no sentido de esclarecer se comunicou ao participado BB o teor da sentença proferida no âmbito do processo com NUIPC ..., nomeadamente, a ordem para este entregar a sua carta de condução ou qualquer outro titulo válido que o habilite a conduzir na secretaria do Tribunal Judicial de Matosinhos ou no posto policial da sua área de residência no prazo de 10 dias depois do trânsito em julgado sob pena de cometer o crime de desobediência.» * Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir. * II. APRECIAÇÃO
A questão a decidir nos presentes autos é a de saber se é legítima a recusa da prestação do depoimento pela Sra. Advogada Dra. AA no âmbito do aludido processo nº 4926/23.5T9MTS (que, em fase de Inquérito, corre termos na 3ª Secção do DIAP de Matosinhos), ou se deve ser determinada a prestação de tal depoimento com levantamento do sigilo profissional invocado.
Revestem-se de relevo para a decisão do presente incidente os seguintes factos e ocorrências processuais:
1º, por Sentença proferida no processo n.º ..., que correu termos no Juízo Local Criminal de Matosinhos, Juiz 3, em 11/05/2023, e lida na mesma data, foi o ali arguido BB condenado, pela prática de uma contraordenação estradal, além de mais, na sanção acessória de inibição de conduzir veículos com motor pelo período de 2 meses;
2º, o arguido não esteve presente no acto de leitura da Sentença, para o qual estava devidamente notificado, considerando–se o mesmo notificado na mesma data na pessoa da ali Defensora oficiosa, a Senhora Advogada Dra. AA, que estava presente;
3º, a Sentença transitou, assim, em julgado no dia 12/06/2023;
4º, do Dispositivo da Sentença proferida consta expressamente o seguinte: «Notifica–se o arguido para, tendo em vista ao cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir, veículos com motor pelo período de 2 (dois) meses, entregar a sua carta de condução, ou qualquer outro título válido que o habilitasse a conduzir, na secretaria do Tribunal Judicial de Matosinhos ou no posto policial da sua área de residência, no prazo de 10 dias, sob pena de cometer o crime de desobediência» ;
5º, pelo menos até 13/11/2023 o arguido não entregou a sua carta de condução (ou título equivalente nos termos ali determinados);
6º, nessa conformidade, foi determinada a extracção de certidão da aludida Sentença, com nota de trânsito, com vista à instauração contra o mesmo BB de processo–crime por se indiciar a prática de um crime de desobediência previsto nos termos do art. 348º/1/b) do Cód. Penal, certidão que foi remetida ao Ministério Público e deu origem ao actual processo nº 4926/23.5T9MTS, onde se suscita o presente incidente ;
7º, neste processo, e ainda em sede de Inquérito, o Ministério Público, por entender desconhecer–se se o participado BB efectivamente teve ou não conhecimento da ordem para entregar a sua carta de condução naquele processo, determinou a inquirição como testemunha da sua Defensora naqueles autos, a Dra. AA, a fim de esclarecer se transmitiu ou não o conteúdo da sentença, incluindo a acima referida ordem para entrega da carta de condução.
8º, em 11/03/2025, na ocasião designada para a tomada do seu depoimento, a Sra. Dra. AA invocou o sigilo profissional de advogado, recusando-se a responder a quaisquer perguntas;
9º, nessa sequência, o Ministério Público promoveu, ao abrigo do disposto no art. 135º/3 do Código de Processo Penal, a quebra do sigilo profissional da referida advogada, com fundamento no princípio da prevalência do interesse preponderante, o que fez nos seguintes termos: «O presente processo foi suscitado corn a remessa ao Ministério Público de uma certidão provinda do processo com NUIPC ..., que correu termos no Juízo Local Criminal de Matosinhos, Juiz 3 e onde o aqui participado BB foi condenado, além de mais, na sanção acessória de inibição de conduzir veículos com motor pelo período de 2 meses por sentença transitada em julgado, a qual foi notificada ao participado no dia 11/05/2023 na pessoa da defensora oficiosa, a Ex.ma Sra. Dra. AA, uma vez que o participado não se encontrava presente nesta diligência. Além do mais, nesta sentença determinou-se a notificação ao aqui participado para entregar a sua carta de condução ou qualquer outro título válido que o habilite a conduzir na secretaria do Tribunal Judicial de Matosinhos ou no posto policial da sua área de residência no prazo de 10 dias sob pena de cometer o crime de desobediência. Sucede que, pelo menos até 14 de novembro de 2023 O arguido não cumpriu a ordem do tribunal. Abstratamente considerados, os factos acima descritos integram a prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, b) do Código Penal. Os factos acima descritos encontram fundamento na certidão de fls. 3 a 14, onde se encontra a sentença supra referida, e na cópia da ata da audiência de julgamento onde se procedeu à leitura da sentença de fls. 42 e 43. Apesar de formalmente o aqui participado ter sido notificado da sentença acima referida na pessoa da sua defensora oflciosa, a Ex.ma Sra. Dra. AA, materialmente, desconhece–se se teve ou não conhecimento da ordem que foi proferida pela Meritíssima Juíza de Direito titular daquele processo para entregar a sua carta de condução naqueles autos. Nem se poderá efetuar tal presunção por flagrante violação do princípio da culpa. Ou seja, apenas a Ex.ma Sra. Dra. AA poderá esclarecer se transmitiu ou não o conteúdo da sentença — incluindo a acima referida ordem para entregar a carta — ao arguido. Inquirida, além do mais, com este objetivo, & Ex.ma Sra. Dra. AA entendeu que as suas eventuais respostas violariam o sigilo profissional de advogado — cfr. depoimento de fls. 44 e 45. Não existe no processo qualquer outro elemento que permita perceber se o aqui participado teve ou não conhecimento da ordem proferida pela Meritíssima Juíza de Direito titular do processo com o NUIPC ... para entregar a sua carta de condução e, nesse sentido, de perceber se violou ou não esta ordem. Assim, como resulta evidente dos autos, o depoimento da Ex.ma Sra. Dra. AA é essencial para se aferir dos factos participados pois trata-se da única testemunha que poderá esclarecer se o participado teve ou não conhecimento da sentença acima referida. Desta forma, importa fazer intervir o mecanismo processual previsto no artigo 135º, n.º 3 do Código de Processo Penal, nos termos do qual, atendendo ao princípio da prevalência do interesse preponderante, deve o Tribunal imediatamente superior, in casu, o Tribunal da Relação do Porto, determinar a quebra do sigilo profissional e a prestação das informações pretendidas. Em conformidade com o exposto, e ao abrigo do disposto no artigo 135º, n.º 3 do Código de Processo Penal, promovo que seja notificada a Ex.ma Sra. Dra. AA para prestar depoimento no presente processo relativamente aos factos acima descritos, devendo esclarecer se comunicou ao participado BB o teor da sentença proferida no âmbito do processo com NUIPC ..., nomeadamente, a ordem para este entregar a sua carta de condução ou qualquer outro título válido que o habilite a conduzir na secretaria do Tribunal Judicial de Matosinhos ou no posto policial da sua área de residência no prazo de 10 dias depois do trânsito em julgado sob pena de cometer 0 crime de desobediência. Promova ainda que seja extraída certidão de fls. 3 a 14, 42 a 45, da presente promoção e do despacho que sobre ela recair e, autuada, seja a mesma remetida ao Tribunal da Relação do Porto, para decisão do incidente suscitado, solicitando-se a essa instância superior que dispense do sigilo profissional a Ex.ma Sra. Dra. AA, para prestar depoimento no presente processo relativamente aos factos acima descritos. Remeta os autos ao Meritíssimo JIC.»
10º, Foi então, e ao abrigo do nº4 do art. 135º do Cód. de Processo Penal, ouvido o organismo representativo da respectiva profissão, através do Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados, tendo o mesmo, através de parecer datado de 14/07/2025, concluído nos seguintes termos: «As razões da escusa apresentada pela Sra. Dra. AA prendem-se, sumariamente, com a circunstância dos factos terem advindo ao seu conhecimento no exercício da sua profissão e por causa dela. Quando um advogado conhece factos e a sua consciência lhe diz que são sigilosos, está na sua determinação requerer, ou não, o levantamento do segredo profissional ao Presidente do Conselho Regional respetivo. Este, verificando a natureza sigilosa dos factos, deverá fazer uma apreciação do requerido no sentido de averiguar se os factos, cuja revelação o advogado pretende, são absolutamente necessários à defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado, seu cliente ou representante. Esta possibilidade de dispensa está regulamentada no Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional e está sujeita, ela própria, aos requisitos da essencialidade. atualidade, exclusividade e imprescindibilidade do meio de prova sujeito a segredo In casu, a Sra. Dra. AA não solicitou a dispensa de segredo profissional a fim de prestar depoimento. Em alternativa, o levantamento do sigilo profissional poderá ocorrer por iniciativa da autoridade judiciária, nos termos do disposto no artigo 135º nº 2 e nº 3 do C.P.P.. Dito isto, à Ordem dos Advogados cabe, num primeiro momento, pronunciar-se sobre a legitimidade da escusa apresentada pelo advogado e, num segundo momento, sobre a justificação da quebra do segredo profissional. Sem esquecer que à Ordem dos Advogados não cabe libertar o advogado do sigilo que sobre ele impende, numa perspectiva exclusiva de descoberta da verdade. A Ordem dos Advogados compete fazer uma análise da observância dos pressupostos constantes do E.0.A. e do Regulamento de Dispensa do Segredo Profissional, procurando averiguar, em primeira linha, se há matéria sujeita a segredo e, em segunda linha, se estão em causa os interesses do próprio advogado, do seu cliente ou seu representante, e, finalmente, verificar se a quebra de sigilo se mostra justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade e a necessidade de protecção de bens jurídicos. (…) De relevante para este processo cumpre, desde logo, concluir que os factos de que a Sra. Dra. AA tem conhecimento e sobre os quais o depoimento é solicitado são factos sujeitos a sigilo profissional e daí a legitimidade da escusa apresentada. Dito isto, no que respeita à pronúncia ora formulada, ou seja, quanto à justificação da quebra do segredo, entendemos que não se justifica a quebra do segredo, pelas razões que seguem: Em face dos elementos que nos foram dados a conhecer - designadamente que está em causa a saber se determinada sentença foi efetivamente comunicada pela defensora ao arguido, para que seja possível determinar se este cometeu ou não um crime de desobediência - verificamos que o depoimento da advogada pode não se destinar à defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes. Bem pelo contrário, o depoimento da advogada pode ter como resultado a sustentação da prática de um crime de desobediência por parte do arguido. Neste sentido, há que convocar o douto entendimento do Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão de 12 de outubro de 2011, processo 3559/05.2TAVNG.PI, disponível em https://www.direitoemdia.pt/document/s/5cdfb3 quando afirma: “No caso em apreço, os interesses em conflito são, por um lado, o dever de sigilo dos profissionais do foro, mais concretamente dos advogados, legalmente tutelado e conexamente consagrado como uma das dimensões constitucionais do patrocínio forense, considerado como "um elemento essencial à administração da justiça" [208.º da Constituição] e, por outro lado, o dever e o interesse público do Estado em exercer o seu "jus puniendi" e realizar a justiça penal [202.º da Constituição]. Tanto numa dimensão, como na outra está em causa o direito fundamental e constitucional de acesso ao direito [20.º, da Constituição] que implica, entre outras coisas, o correspondente patrocínio judiciário, com a particular relação de confiança entre o advogado e o seu cliente, a defesa de dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes. Acresce ainda que a plenitude de um Estado de Direito Democrático [2.º Constituição], não só exige um poder judicial independente, como tem subjacente o exercício de uma advocacia livre e responsável, sendo ambas a cara e a coroa da mesma moeda, que é o exercício dos direitos de cidadania…” Para melhor entendimento, e na esteira do nosso Bastonário, Dr. Augusto Lopes Cardoso, “Na segunda hipótese [no caso de haver segredo profissional], a decisão de autorizar ou não a dispensa do sigilo obrigará aqueles mesmas órgãos da Ordem [Presidente do CR e Bastonário] à ponderação criteriosa da superioridade dos valores referidos no CP sobre o valor daquele sigilo, sempre dentro do quadro das normas do ECA sobre segredo profissional. "(Cardoso, 1997: 70-71). O que vale dizer que a bússola orientadora para a Ordem dos Advogados, passa pelo escrutínio dos princípios gerais penais, com relevo para as causas que excluem a ilicitude como sejam o próprio direito de necessidade e os seus pressupostos (designadamente a sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado, e a verificação da necessidade de imposição de um sacrifício em ordem a um valor de natureza ou valor superior ameaçado) (Cardoso, 1997:69). E nessa ponderação, não pode a Ordem dos Advogados olvidar o valor fundamental para a advocacia e para o estado de direito, que é o segredo profissional. Neste caso, feita a ponderação de tudo quanto nos foi dado a conhecer, quer do ponto de vista dos factos de que a advogada tem conhecimento e da natureza desses factos, quer do ponto de vista do interesse fundamental da prossecução da justiça, diremos que não se justifica a quebra do dever de segredo profissional. Na verdade, o depoimento da Advogada não se destina à defesa dos interesses e direitos do seu patrocinado. (…) Nestes termos, é nosso entendimento que é legítima a escusa apresentada Sra. Dra. AA e que não se justifica a quebra do dever de segredo profissional, no processo n.º 4926/23.5T9MTS que corre termos no Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos — Juiz 1, do Tribunal Judiciial da Comarca do Porto.» ;
11º, recolhido tal parecer, foi proferido, em 10/10/2025, despacho pelo Mmo. Juiz de Instrução, no qual aquela recusa foi considerada legitima e fundamentada, e foi suscitado, perante este Tribunal da Relação do Porto, o presente incidente da quebra de sigilo – despacho cujo teor é o seguinte: « Atendendo nomeadamente ao antecedente parecer do Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados, de 14-07-2025, considero justificado o segredo profissional e legítima a escusa invocada pela testemunha AA, atento o disposto no artigo 135.º, n.º 1 e n.º 2, do Código de Processo Penal. Notifique e proceda à instrução do incidente de quebra do segredo profissional com certidão das peças indicadas pelo Ex.mo Senhor Procurador da República, do acima referido parecer e deste despacho, e remeta os autos de incidente ao Tribunal da Relação do Porto, para apreciação nos termos e para os efeitos previstos no artigo 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.».
Cumpre apreciar.
O art. 135º do Cód. de Processo Penal, sob a epígrafe «Segredo Profissional», dispõe no respectivo nº1 que «Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo profissional podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos», aditando–se no nº 2 que «Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento». A decisão do Tribunal sobre a legitimidade da escusa em depor está sujeita ao escrutínio da instância judiciária nos termos previstos no nº 3, onde exactamente se prevê que «O tribunal superior àquele onde o incidente se tiver suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência, do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento». Prevê entretanto o nº4 que «Nos casos previstos nos nºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável». Como resume Maia Gonçalves (em «Código de Processo Penal – Anotado e Comentado», 11ª ed., pág. 338), «o sistema agora estabelecido é simples: as entidades referidas no n.º 1 podem escusar-se a depor sobre factos cobertos pelo segredo profissional, mediante a invocação deste segredo. A autoridade judiciária perante o qual depoimento deve ser prestado procede a averiguações sumárias. Se após estas, concluir pela manifesta inviabilidade da escusa, ordena o depoimento que não pode ser recusado Se concluir pela viabilidade da escusa, prescinde do depoimento ou requer ao tribunal superior que o ordene, usando para isso do processo aqui regulado.» Em termos gerais, o segredo profissional deverá ser entendido como a reserva que todo o indivíduo deve guardar dos factos conhecidos no desempenho das suas funções ou como consequência do seu exercício. Com efeito, o exercício de certas profissões exige, pela própria natureza das necessidades que visam satisfazer, que as pessoas que a elas tenham de recorrer revelem factos que interessam à sua esfera íntima (quer física, quer jurídica). Sempre que estejam em causa profissões (como é o caso do exercício da advocacia) de fundamental importância colectiva, designadamente porque grande maioria das pessoas carece de as utilizar, a inviolabilidade dos segredos conhecidos através do seu exercício constitui condição indispensável de confiança nessas imprescindíveis actividades e, nessa medida, reveste-se de um elevado interesse público. Nessa medida, a violação da obrigação a que ficam adstritos certos profissionais de não revelarem factos confidenciais conhecidos através da sua actividade é punível não só disciplinarmente mas também criminalmente. Como explica Santos Cabral (em “Código de Processo Penal Comentado”, 2ª edição, pág. 499), «pressuposto do correcto desempenho da advocacia é a confiança que o cliente deposita no advogado e que este deve fazer por merecer não revelando factos ou exibindo documentos abrangidos pelo segredo profissional. Não havendo confiança absoluta no advogado para lhe revelar todos os factos, o mesmo não poderá, obviamente, exercer cabal e eficazmente a sua profissão”. A protecção do segredo profissional do advogado assume, assim, interesse e ordem pública, compreendendo–se que o respectivo âmbito seja entendido em termos amplos, que a mesma se imponha como regra, e que não se limite às relações advogado/cliente. Contudo, tal regra pode excepcionar–se, e o advogado pode ficar desvinculado da obrigação do segredo profissional e de não divulgar os factos que ao abrigo desse dever lhe foram confiados ; porém, para que aconteça tal quebra do sigilo profissional, terá de ser respeitado o devido procedimento para o efeito, sob pena de responsabilidade disciplinar ou criminal (cfr. art. 195º do Cód. Penal), e, noutra perspectiva, de ineficácia do valor probatório do conteúdo daquilo que divulgue (cfr. art. 92º/5 do EOA) Desde logo, o advogado pode ser dispensado desta obrigação desde logo por expressa decisão de autorização pelo Presidente do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados, ou pelo seu Bastonário, em caso de recurso da decisão daquele. Assim, a norma do nº1 do art. 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados prevê que «o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços» – enumerando o conjunto de factos que o profissional deve respeitar no contexto desse mesmo segredo profissional –, aditando o nº 2 que «A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço». Ora, resulta do disposto no art. 92º/4 do EOA, onde se estabelece que a quebra ou cessação do dever de sigilo profissional do advogado, só existirá e será autorizada, «quando se mostre absolutamente necessária para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do seu cliente ou dos seus representantes». Além disso – e é a vertente que aqui releva –, e no caso específico da prestação de testemunho em sede de processo penal, tal dispensa pode ser também decidida, e obtido o depoimento do advogado como testemunha mediante quebra do segredo ou sigilo, nos termos do supra aludido art. 135º do Cód. de Processo Penal, isto é, por via da intervenção do tribunal jurisdicionalmente competente na fase processual em que se suscite a pretensão de inquirir um advogado como testemunha – e, como vimos, do tribunal superior àquele, se a escusa assente no segredo for considerada legítima pelo primeiro –, intervenção essa que deverá ocorrer em termos de ponderação de direitos, isto é, sem esquecer que especifica a lei que uma situação destas ocorrerá, em regra, quando a situação concreta assim o exija «tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção dos bens jurídicos». Por todos, ensina o Professor Germano Marques da Silva (em «Curso de Processo Penal – Vol. II», 4ª edição, pág. 169) que na ponderação de uma tal excepção «estão em causa dois interesses públicos conflituantes: o interesse na descoberta da verdade para a realização da Justiça, por uma parte, e o interesse também público do dever de segredo relativamente a certos estados ou profissões, segredo que se destina a garantir o pleno exercício da função ou profissão, por outra”, acrescentando em seguida, de forma lapidar, que «a questão essencial reside assim em determinar no caso concreto qual dos interesses deve prevalecer». Em suma, a quebra do segredo do advogado depende da verificação de requisitos específicos e cumulativos, que, no caso de ocorrer no âmbito do regime previsto no art. 135º do Cód. de Processo Penal, incluem a exigência de que a autoridade judiciária, antes de proferir a decisão, atente ao parecer proferido pela Ordem dos Advogados, ainda que tal parecer não seja vinculativo.
Revertendo ao caso dos autos, temos pois, e em síntese, que na sequência de recusa em prestar nos presentes autos depoimento como testemunha pela senhora Advogada Dra. AA – por entender estar a mesma tutelada pelo segredo profissional derivado da sua intervenção, enquanto Defensora do arguido BB, no âmbito do processo nº ... –, e recolhido o devido parecer ao Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados – que se pronunciou pela inexistência de fundamento para a dispensa ou quebra da obrigação de segredo profissional –, veio tal recusa a ser considerada legítima pelo Tribunal competente, sendo por este suscitado o presente incidente, ao abrigo do disposto no art. 135º/2 do Cód. de Processo Penal.
A primeira questão que cumpre clarificar é a de saber se estamos, de facto, perante uma situação de sujeição ao segredo ou sigilo profissional por parte da Sra. Advogada, cujo depoimento como testemunha é pelo Ministério Público pretendido nos autos. O Parecer nº 56/94 do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República[[1]] conclui que «o segredo profissional é a proibição de revelar factos ou acontecimentos de que se teve conhecimento ou foram confiados em razão e no exercício de uma actividade profissional». Trata–se de uma noção que se crê adequada ao âmbito de quanto releva para delimitar as balizas materiais do dever de segredo, pois que reporta – mais do que à mera existência de uma relação profissional formal – à protecção do conhecimento de factos que se revelem nucleares directamente imanentes da relação estabelecida entre o advogado (no caso) e o cliente, e não por exemplo de factos paralelos e sem relação intrínseca com tal ligação. Como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 04/05/2005 (proc. 401/05-1)[[2]], «A relação constituída com o mandato forense apenas impõe dever de segredo sobre os factos inerentes ao exercício concreto do mandato, não criando um salvo-conduto para invocação de segredo por factos exteriores a essa relação, nomeadamente daqueles que integrem a prática de um crime. A relação profissional ou de proximidade que se constitui entre duas pessoas, e que justifica, em certos casos, a existência do dever de sigilo, tem um fim e um âmbito específicos, não podendo aquele dever ser alargado a factos nos quais se desempenhe um mero papel secundário, estranho àquela relação, como é o caso de se ser testemunha». Adoptando exactamente esta perspectiva, adverte, de forma elucidativa, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07/07/2010 (proc. 10443/08.6TDPRT-A.P1)[[3]] que «o segredo profissional é um direito e um dever do Advogado. Só um segredo profissional com tais contornos é verdadeiramente o garante de um interesse público que, com ele, a lei visa prosseguir e que tem uma dupla vertente: por um lado, que as partes se façam, sem qualquer receio, aconselhar o Advogado e que este possa, sem constrangimento, ser informado de tudo o que entenda ser necessário ao exercício correcto do seu múnus; por outro, que o Advogado possa, em contacto com a parte contrária ou o Advogado desta, também sem constrangimento, correr o caminho da livre e responsável conciliação de interesses, como forma de reduzir a conflitualidade judicial». Pois bem, no caso em apreço a circunstância de facto que o titular da acção penal entende relevante e sobre o qual pretende ouvir como testemunha a Sra. Advogada, mostra–se claramente delimitada pelo Ministério Público na promoção em que sustenta o afastamento do sigilo profissional da mesma testemunha: trata–se de saber se a Sra. Advogada, após a leitura da Sentença condenatória proferida no âmbito do aludido processo nº ..., deu conhecimento ao arguido BB do conteúdo da mesma Sentença, em especial da menção, na mesma consignada, da obrigação de entrega da carta de condução com a cominação de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência. Julga–se ser fora de dúvida que a circunstância de facto assim delimitada deverá considerar–se abrangida materialmente pelo segredo profissional que se impõe à Sra. Advogada, uma vez que estamos perante matéria que está directa e imediatamente relacionada com o âmbito da relação funcional que manteve com o ali arguido enquanto sua Defensora no processo em causa. Assim o entendeu, e bem, o Tribunal de Instrução Criminal que decidiu pela legitimidade da recusa, assim como, a montante, também dessa forma considerou o Conselho Distrital da Ordem dos Advogados no parecer solicitado nos autos – sendo que sobre tal caracterização não suscita também qualquer dúvida ou reserva o Ministério Público enquanto titular da acção penal e promotor da prestação do depoimento testemunhal em causa.
Isto assente, vejamos então se se mostra justificado decidir pelo levantamento do sigilo profissional da Sra. Advogada à luz dos restantes pressupostos materiais impostos para o efeito no art. 135º/1 do Cód. de Processo Penal – o que corresponde, primeiro, a ponderar sobre se a protecção do segredo profissional aqui em causa deve ceder perante um interesse prevalente que se demonstre no caso concreto – e nomeadamente por via da «imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade», e a «gravidade do crime e [d]a necessidade de protecção dos bens jurídicos». Pois bem, a resposta a tal questão, adianta–se, deve ser negativa – e deve sê–lo desde logo por via de se gorar a verificação da primeira vertente nesta ponderação, isto é, porque não se considera que no caso concreto dos autos a prestação do depoimento em causa revista «imprescindibilidade … para a descoberta da verdade». Começa por se fazer presente que, no presente caso, a necessidade de prestação de depoimento testemunhal da Sra. Advogada, suscitada em sede de Inquérito pelo Ministério Público, deflui de esta autoridade judiciária considerar o mesmo necessário para aferir do preenchimento dos elementos típicos objectivos de um crime de desobediência por parte do denunciado nos autos, BB, o que sustenta nos seguintes termos, recortados da sua promoção exarada nos autos: «Além do mais, nesta sentença [proferida no processo nº ...] determinou-se a notificação ao aqui participado para entregar a sua carta de condução ou qualquer outro título válido que o habilite a conduzir na secretaria do Tribunal Judicial de Matosinhos ou no posto policial da sua área de residência no prazo de 10 dias sob pena de cometer o crime de desobediência. Sucede que, pelo menos até 14 de novembro de 2023 O arguido não cumpriu a ordem do tribunal. Abstratamente considerados, os factos acima descritos integram a prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348º, n.º 1, b) do Código Penal. Os factos acima descritos encontram fundamento na certidão de fls. 3 a 14, onde se encontra a sentença supra referida, e na cópia da ata da audiência de julgamento onde se procedeu à leitura da sentença de fls. 42 e 43. Apesar de formalmente o aqui participado ter sido notificado da sentença acima referida na pessoa da sua defensora oflciosa, a Ex.ma Sra. Dra. AA, materialmente, desconhece–se se teve ou não conhecimento da ordem que foi proferida pela Meritíssima Juíza de Direito titular daquele processo para entregar a sua carta de condução naqueles autos. Nem se poderá efetuar tal presunção por flagrante violação do princípio da culpa. Ou seja, apenas a Ex.ma Sra. Dra. AA poderá esclarecer se transmitiu ou não o conteúdo da sentença — incluindo a acima referida ordem para entregar a carta — ao arguido.». O crime de desobediência encontra-se previsto no art. 348º do Cód. Penal, que, no seu nº1, estatui nos seguintes termos: «1. Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação». Sem quaisquer preocupações exegéticas, são requisitos típicos de tal crime na seguinte os seguintes: – a existência de uma ordem ou mandado, – a legalidade substancial e formal dessa ordem, – a competência da autoridade ou funcionário que a emite, – a regularidade da sua transmissão ao destinatário, – e o conhecimento pelo agente dessa ordem. Quer se considere que, no concerto caso dos autos (em que, recorde–se, estará em causa a falta de entrega de carta de condução por agente condenado em sanção de inibição de conduzir pela prática de uma contra–ordenação estradal), estaremos perante a indiciação de um crime de desobediência por via da alínea b) (como aparenta sustentar o Ministério Público titular do Inquérito) ou da alínea a) (como se propugna, entre outros, no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23/06/2010, proc. 1001/08.6TAVIS.C1[[4]], apelando à eficácia da cominação legalmente prevista no art. 161º/3 do Cód. da Estrada), do art. 348º/1 do Cód. Penal, certo é que o que está em causa na invocada necessidade de prestação do depoimento testemunhal da Sra. Advogada é tão apenas apurar do conhecimento que esta terá dado ao arguido do teor da Sentença condenatória proferida – argumentando–se não poder presumir–se esse conhecimento em virtude de o arguido não ter estado presente na respectiva leitura. Sublinha–se, pela determinante relevância de tal aspecto: o facto sobre que se pretende ouvir como testemunha a Sra. Advogada é o de saber se esta terá dado conhecimento do teor da sentença ao arguido – e não, como se julga clarividente, o de saber se lhe deu alguma ordem de entrega da carta e efectuou a correlativa cominação para o eventual incumprimento. Nem poderia, como é evidente, ser de outra forma, pois que a Sra. Advogada não é autoridade competente para decidir e transmitir a ordem e cominação em causa, nos termos e para os efeitos típicos do art. 348º/1 do Cód. Penal. Ora, e se o que está em causa é, afinal, a demonstração do conhecimento pelo arguido da ordem decidida e determinada pelo Tribunal na aludida Sentença, então o depoimento testemunhal da Sra. Advogada para tal efeito revela–se em absoluto desnecessário, uma vez que o ali arguido/condenado BB foi efectivamente notificado da mesma Sentença. Na verdade, a circunstância de ter faltado ao acto de leitura da Sentença, para o qual estava regularmente notificado (sendo ali, aliás, condenado em multa por tal ausência não ter sido justificada), não obviou a essa notificação, que se tem por efectivada nos termos expressos no art. 373º/3 do Cód. de Processo Penal, onde exactamente se prevê que «O arguido que não estiver presente considera-se notificado da sentença depois de esta ter sido lida perante o defensor nomeado ou constituído». Não estamos sequer perante a necessidade de ponderar sobre se se deve presumir se, em tais circunstâncias, o arguido está notificado do teor da Sentença, como aludido pelo Ministério Público na sua promoção de levantamento do sigilo profissional invocado: estamos sim perante uma notificação certa, efectiva e eficaz. O que a jusante daquela leitura e notificação ocorreu no contexto da relação de confiança entre a Sra. Advogada, ali Defensora do arguido, e este último, é questão que poderá relevar em sede de cumprimento dos deveres deontológicos a que estava adstrita a primeira (cfr. arts. 97º e 100º do EOA) – mas não para os efeitos aqui em análise. Que estamos perante uma notificação plenamente eficaz da Sentença proferida comprova–o a circunstância de se mostrar fora de qualquer dúvida que a mesma transitou em julgado decorrido o prazo legalmente previsto para tal efeito sobre a respectiva leitura – o que, aliás, determinou a extracção da certidão que deu origem aos presentes autos com instauração do procedimento criminal pelo Ministério Público. Logo, a eficácia da notificação da Sentença abrange, naturalmente, a da ordem ali consignada de entrega da carta de condução ou título equivalente, com a respectiva cominação – sendo de realçar que, ainda que se entenda estarmos perante a indiciação típica de um crime de desobediência por via da alínea b) do art. 348º/1 do Cód. Penal, e tal como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora 23/01/2018 (proc. 1008/15.7PBSTR.E1)[[5]], «A lei não exige forma especial para a cominação a que se refere a al. b) do n.º 1 do art. 348.º do Código Penal, mas é indispensável que o seu conteúdo seja claro e inequívoco, sob pena de se colidir com princípio da legalidade penal, consagrado, nomeadamente, no art. 1.º do CP e no art. 29.º da CRP». Nesta perspectiva, aquilo que a Sra. Advogada possa declarar a propósito do conteúdo do que tenha falado com o arguido após aquela leitura de Sentença, revela–se inócuo para aquilatar do preenchimento indiciário dos elementos típicos do crime de desobediência denunciado, nomeadamente aquele do conhecimento pelo ali condenado da ordem aqui em causa – tal conhecimento deflui da notificação da Sentença que se tem por consumada e eficaz. E, nestes termos, o depoimento testemunhal da Sra. Advogada não se reveste de «imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade», gorando–se assim o preenchimento da exigência plasmada no art. 135º/3 do Cód. de Processo Penal para que o segredo profissional daquela pudesse ser dispensado à luz de interesse que se deva ter por prevalente relativamente ao mesmo.
Donde, e em conclusão, não se justifica a quebra do segredo profissional, sendo legítima a recusa em prestar depoimento testemunhal pela Sra. Advogada. * * * III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o presente incidente de quebra de segredo profissional, considerando assim legítima a recusa da Sra. Advogada Dra. AA em prestar depoimento como testemunha na fase de Inquérito do processo nº 4926/23.5T9MTS, que corre termos na 3ª Secção do DIAP de Matosinhos. Sem custas. Comunique ao Sr. Presidente do Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados. * Pedro Afonso Lucas Pedro M. Menezes [com a seguinte declaração de voto: «(Acompanho a decisão no pressuposto de que, (1) a achar-se necessário – para além do que a propósito é legalmente exigido – a prova de uma qualquer comunicação pessoal, a um arguido que não esteve presente na data em que a mesma ocorreu, do teor da sentença que contra si foi proferida, ela pode, em princípio, inferir-se da circunstância de que, de acordo com as regras da experiência, nenhum Advogado – ainda para mais conhecendo perfeitamente o teor do preceituado no artigo 373.º, n.º 3, do Código de Processo Penal – deixará de cumprir com o seu dever ético-deontológico básico de dar conhecimento, ao mesmo arguido, dessa decisão, e, concomitantemente, que nenhum arguido, nessas condições, deixará de indagar do resultado do julgamento entretanto realizado, e que (2) de todo o modo, neste caso, não fica impedido novo recurso ao incidente de quebra de sigilo profissional se, em fase posterior do processo, vier a ser alegado que a causídica envolvida no presente incidente não procedeu a tal comunicação, como manifestamente lhe cabia fazer, ou que o arguido de todo se desinteressou da sorte do processo, ao ponto de nem sequer ter tomado conhecimento do seu resultado)».] José Quaresma (Texto elaborado pelo primeiro signatário como relator, e revisto integralmente pelos subscritores – sendo as respectivas assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo da primeira página) ______________ [[1]] Publicado no Diário da República – II Série, nº 64 de 16/03/1995, e disponível em https://www.ministeriopublico.pt/pareceres-pgr/8729 [[2]] Relatado por Anselmo Lopes, acedido em www.dgsi.pt/jtrg.nsf [[3]] Relatado por Eduarda Lobo, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf [[4]] Relatado por Paulo Guerra, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf [[5]] Relatado por Sérgio Corvacho, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf |