Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7632/22.4T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA OLÍVIA LOUREIRO
Descritores: AUTORIDADE DE CASO JULGADO
ÂMBITO
Nº do Documento: RP20251027/7632/22.4T8PRT.P1
Data do Acordão: 10/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A exceção dilatória de caso julgado impede que outra decisão possa ser proferida sobre a mesma questão (efeito negativo do caso julgado) e a autoridade do caso julgado admite que sejam proferidas decisões sobre questões relacionadas entre si por via de prejudicialidade, desde que se dê prevalência ao que foi decidido na primeira (efeito positivo do caso julgado), sendo a decisão em que se extraem efeitos do caso julgado anterior por força da sua autoridade uma decisão de mérito.
II - O âmbito da autoridade do caso julgado abarca a decisão proferida na ação anterior e pode estender-se às questões que sejam preliminares dessa decisão enquanto seu antecedente lógico, sobre as quais o tribunal tenha tomado posição, mas não abarca os factos julgados provados e não provados nessoutra ação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo número 7632/22.4 T8PRT.P1, Juízo local cível do Porto, Juiz 5

Recorrente: AA

Recorrido: BB

Relatora: Ana Olívia Loureiro

Primeira adjunta: Teresa Maria Sena Fonseca

Segundo adjunto: Jorge Martins Ribeiro

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:

1. Em 26-04-2022 AA propôs ação a seguir a forma de processo comum contra BB, seu irmão, pedindo a anulação de testamento lavrado pela tia-avó paterna de ambos CC em 2 de maio de 2019, pelo qual a mesma instituiu o réu como seu único herdeiro. Alegou que a testadora estava incapaz de entender o teor das declarações testamentárias por ser portadora de demência notória que se vinha evidenciando há vários anos, ou, assim não se entendendo, por usura, para tanto alegando ainda que o réu explorou a situação de fragilidade da testadora, levando-a a aceitar lavrar tal testamento.

2. O réu contestou em 29-08-2022, excecionando a caducidade da ação – para o que alegou que a autora já antes intentara ação de acompanhamento de maior a favor da tia-avó, em 09-08-2019, o que fez depois de ter tido conhecimento de que a mesma outorgara testamento a favor do réu - e a ilegitimidade ativa da autora decorrente de estar desacompanhada de duas outras herdeiras da testadora, sendo uma sua irmã e outra sua prima. Impugnou, ainda, parte dos factos constitutivos da sua causa de pedir relativos à incapacidade e situação de dependência da testadora.

3. A autora foi convidada a responder à matéria de exceção por despacho de 14-09-2022, o que fez em 03-10-2022 opondo-se à procedência de ambas as exceções.

4. Em 03-11-2022 foi facultado contraditório sobre o valor a fixar à ação.

5. Em 30-01-2023 foi dispensada a audiência prévia e foi proferido despacho saneador que julgou improcedentes as exceções de caducidade e de ilegitimidade. Ali se decidiu, ainda, suspender a instância, por causa prejudicial (de que o Tribunal a quo declarou que teve conhecimento por “consulta da plataforma Citius”), sendo ela uma ação de anulação da procuração outorgada pela testadora a favor do réu, ação essa intentada também pela aqui autora, em que igualmente alegava o estado de incapacidade da mandante e a sua dependência do mandatário no momento da declaração negocial. Afirmou-se nesse despacho que “se o pedido é diferente, a causa de pedir é a mesma”, já que ali, como nesta ação, se alegava que a mandante/testadora no momento em que outorgou a procuração/testamento “estava impossibilitada de entender o seu alcance, o que era do conhecimento do réu”. Desse despacho consta, ainda, o seguinte trecho: “Estando em causa as mesmas partes, e o mesmo período temporal, entendemos que a procedência de tal ação, com a prova da incapacidade da aqui testadora em compreender o alcance da sua declaração, implicará o conhecimento, nesta fase, do mérito da ação, dando-se aqui como provados os mesmos factos, atento o disposto no artigo 619º, n.º 1 do CPC. Por todo o exposto, tratando-se de acção prejudicial em relação a esta, e nos termos dos artigos 269º, n.º 1, c) e 272º, n.º 1 do CPC, suspendo a instância até ser proferida decisão, transitada em julgado, na acção que corre termos no Juízo Central Cível do Porto, com o n.º 12480/21.6T8PRT.”.

6. Desse despacho recorreu o réu em 12-02-2023, quer quanto à improcedência das exceções quer quanto à suspensão da instância por causa prejudicial, nomeadamente pelo fundamento constante do trecho da decisão recorrida acima transcrito, interpretando-o no sentido de que ali se “decidiu dar como provados na presente ação os factos dados por provados com base em ação não contestada pelo recorrente no processo nº 124801.6T8PRT do Juízo Local Cível Porto – J2”.

7. Os autos continuaram, por força de despacho de 10-03-2023, a aguardar o trânsito da sentença proferida na causa julgada prejudicial e, uma vez ocorrido aquele, foram as partes notificadas para se pronunciarem sobre o teor da decisão ali proferida, por despacho de 24-10-2023.

8. O réu pronunciou-se a 24-10-2023, pedindo a subida do recurso interposto ao Tribunal da Relação do Porto

9. Por despacho de 13-11-2023 foi afirmado que o que “verdadeiramente interessa para os presentes autos é a sentença (de mérito) aí proferida” e que o que já fora decidido com trânsito na causa julgada prejudicial, fora apenas o incidente de falta de citação do ali (e aqui) réu. Pelo que foi ordenado que se solicitasse certidão da sentença proferida naqueles autos em 28-02-2022, com menção de trânsito em julgado.

10. Em 21-11-2023, em face da junção da requerida certidão, foi ordenado que se notificassem as partes sobre os reflexos da decisão proferida naqueles autos na presente ação.

11. Em 27-11-2023, de novo, insistiu o réu pela subida do recurso já interposto.

12. A autora pronunciou-se a 05-12-2023 alegando que deveriam ser julgados como provados os mesmos factos constantes da sentença da ação julgada prejudicial e, consequentemente anulado o testamento a favor do réu.

13. Por despacho de 08-12-2023 foi proferida decisão de não admissão do recurso interposto em 12-02-2023.

14. Por despacho de 24-04-2024 foram, de novo, as partes notificadas para que se pronunciassem sobre os “ulteriores termos processuais” em face da sentença proferida na causa julgada prejudicial.

15. Em 15-06-2024 foi proferido despacho em que se anunciou que se iria “concluir” o despacho saneador, tendo-se ali identificado o tema do litígio e enunciado os temas da prova. Foram admitidos os requerimentos de prova e foi designada data para audiência de julgamento.

16. Esta realizou-se em 27 e 28 de novembro de 2024, 14 de fevereiro de 2025 e 21 de março de 2025.

17. Em 06-05-2025 foi proferida sentença que julgou a ação não provada e se absolveu o réu do pedido.

II - O recurso:

É desta sentença que recorre a autora pretendendo a declaração da sua nulidade por omissão de pronúncia, a alteração do julgamento da matéria de facto por consequência dos efeitos de caso julgado anterior decorrente do trânsito da sentença proferida na causa que havia sido julgada prejudicial e a sua revogação com a consequente declaração de procedência da ação.

Para tanto, alega o que sumaria da seguinte forma em sede de conclusões de recurso:

(…)


*

O réu contra-alegou sustentando a confirmação da sentença de primeira instância.

III – Questões a resolver:

Em face das conclusões da recorrente nas suas alegações – que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635º, números 4 e 5 e 639º, números 1 e 2, do Código de Processo Civil -, são as seguintes as questões a resolver:

1. A nulidade da sentença por omissão de pronúncia sobre os efeitos do caso julgado resultantes do trânsito da sentença proferida no processo número 12480/21.6T8PRT;

2. A contradição entre os factos dados por provados na sentença e os considerados provados na referida sentença e a consequente violação do caso julgado decorrente da mesma;

3. Assim não se entendendo, a existência de fundamentos para a procedência da ação com base na usura.

IV – Fundamentação:

1. Da omissão de pronúncia.

A recorrente sustenta que a sentença tinha que se ter pronunciado sobre os efeitos do caso julgado decorrentes da sentença proferida no processo número ... dada a anterior suspensão da instância com vista a aguardar o trânsito dessa sentença e a declaração prévia, pelo Tribunal, de que essa causa era prejudicial a estoutra.

A alínea d) do número 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil prevê que é nula a sentença quando “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”. Tal preceito é aplicável aos despachos, como o que ora está sob censura, por via do previsto no artigo 613º, número 3 do Código de Processo Civil.

O artigo 608.º, n.º 2 CPC, impõe que se resolvam na sentença todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação. Alberto dos Reis [1] enunciou que “resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação” não significa considerar todos os argumentos jurídicos ou soluções plausíveis de direito. Desde logo porque o julgador não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas”.

Tal artigo prevê, ainda, a obrigação de pronúncia sobre as questões de conhecimento oficioso.

Assim, as questões a que se refere a alínea d) do número 1 do artigo 615º do CPC, por correlação com o artigo 608.º do mesmo diploma, são as questões a resolver: todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que caiba ao juiz conhecer oficiosamente (neste sentido, vide Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[2]).

A jurisprudência tem seguido este entendimento[3] de que o tribunal não tem de apreciar todos e cada um dos factos alegados nos articulados, cabendo apenas apreciar aqueles que, segundo as soluções plausíveis de direito, poderão revelar-se com interesse para conhecer do pedido e/ou da defesa.

No caso dos autos, como o histórico da sua tramitação revela, o Tribunal a quo oficiosamente averiguou e descobriu a pendência de outro processo em que as partes eram as mesmas e ocupavam idêntica posição processual e onde que era pedida a anulação de procuração outorgada pela aqui testadora ao réu, pela qual ela lhe conferia poderes para doar a si mesmo vários imóveis propriedade da mandante. Entendeu o Mmº Juiz a quo, em sede de saneamento dos autos e após conhecimento, pela sua improcedência, das exceções de ilegitimidade ativa e de caducidade, de proferir o seguinte despacho: “Estando em causa as mesmas partes, e o mesmo período temporal, entendemos que a procedência de tal ação, com a prova da incapacidade da aqui testadora em compreender o alcance da sua declaração, implicará o conhecimento, nesta fase, do mérito da ação, dando-se aqui como provados os mesmos factos, atento o disposto no artigo 619º, n.º 1 do CPC.”.

Após, afirmou-se, no mesmo despacho, que a causa cuja sentença teria efeitos de caso julgado neste processo constituía causa prejudicial, pelo que se determinou a suspensão da instância, em 20-01-2023.

Ou seja, o Tribunal anunciou expressamente ser seu entendimento que o caso julgado a formar-se naquela ação teria efeitos nestoutra de tal forma que permitiria, de imediato, o conhecimento do seu mérito, e declarou que iria dar como provados nesta ação os mesmos factos que ali se julgassem provados relativos à incapacidade da testadora.

O artigo 619.º do Código de Processo Civil a que alude o despacho do Tribunal a quo acima transcrito, prevê que “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º”.

O caso julgado, tal como previsto nos artigos 580.º e 581º do Código de Processo Civil é, assim, uma exceção dilatória de conhecimento oficioso que determina a absolvição da instância, nos termos dos artigos 577º, i), 578.º do mesmo diploma e depende da tríplice identidade exigida no seu artigo 581.º, número 1: de partes, de causa de pedir e de pedido. Não obstante a afirmação de que se verificariam os efeitos previstos no artigo 619.º do Código de Processo Civil - que remete para os limites fixados nos artigos 580.º e 581.º, o Tribunal - o que fazia crer que se divisava a ocorrência da exceção dilatória de caso julgado, o Tribunal a quo anunciou de seguida que o trânsito da sentença a proferir/proferida no processo pendente iria permitir o conhecimento do mérito nesta ação, pois se teriam de julgar provados os mesmos factos ali dados por provados. Afirmação que já remete para o possível conhecimento dos efeitos da autoridade de caso nesta ação.

É manifesta, salvo o devido respeito, a confusão de conceitos que é feita no despacho de 30-01-2023, pois a suspensão da instância por causa prejudicial prevista no artigo 272.º, número 1 do Código de Processo Civil não ocorre quando entre as duas causas exista a tríplice identidade de que decorre o caso julgado e, também, a litispendência. É que, ocorrendo essa identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir conducente ao caso julgado, e estando ambas as causas pendentes, ocorreria a exceção de litispendência que deveria levar à absolvição da instância na ação proposta em segundo lugar. E não à suspensão da instância por causa prejudicial.

Depois de proferir despacho que ordenou a suspensão da instância com vista a que transitasse em julgado a sentença proferida em causa julgada prejudicial e de anunciar que a mesma teria efeitos de caso julgado nesta ação que permitiriam o imediato conhecimento do seu mérito, o Tribunal a quo manteve tal instância suspensa até 15-06-2024, momento em que acabou por proferir despacho em que identificou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova, designando data para audiência de julgamento.

O que fez depois de transitada em julgado a sentença proferida na “causa prejudicial”, que julgou a ação procedente em face da falta de contestação do réu e da consequente consideração de que os factos ali alegados pela autora se consideravam confessados, nos termos do artigo 567.º, número 1 do Código de Processo Civil.

Entretanto, e em face dos sucessivos requerimentos do réu para que fosse admitido a subir o recurso que interpusera e que incidia, também, sobre a decisão de suspensão da instância, o Tribunal a quo proferiu novo despacho em que reiterou, a 13-11-2023, que o que “verdadeiramente interessa para os presentes autos é a sentença (de mérito) aí proferida”, referindo-se à ação que julgou prejudicial.

Tendo sido junta a certidão da referida sentença com nota de trânsito em julgado as partes foram notificadas para se pronunciarem sobre o seu efeito nestes autos e a autora pronunciou-se no sentido de que se deveriam julgar provados os factos constantes dessa sentença. O que, diga-se, ia de encontro ao previamente anunciado pelo Tribunal a quo.

Pelo que foi inesperado que, depois desta tramitação, o Tribunal a quo tivesse enunciado, em 15-06-2024, temas da prova a sujeitar a instrução e tivesse designado data para a audiência de julgamento e, depois, proferido sentença sem nunca mais fazer qualquer referência aos alegados efeitos do caso julgado decorrente daquela ação (que já tinha afirmado quais seriam: o conhecimento do mérito por via da prova, nesta ação, dos mesmos factos provados naqueloutra).

Assim, e independentemente do que infra se venha a decidir sobre se há ou não que retirar alguns efeitos do caso julgado decorrentes da sentença proferida na causa considerada prejudicial, tem a recorrente razão quando se insurge contra o facto de na sentença recorrida não ter ocorrido qualquer pronúncia sobre essa questão, pois a mesma foi anunciada pelo próprio Tribunal a quo[4], quando afirmou que outra causa pendente era prejudicial a estoutra determinando a suspensão desta instância com vista a retirar efeitos do que ali viesse a ser decidido.

Todavia, a questão do conhecimento dos efeitos do caso julgado enquanto exceção dilatória de conhecimento oficioso que o Tribunal a quo anunciou que ocorreria apenas seria questão a apreciar na sentença a proferir, caso tal exceção se verificasse.

Ora tal questão, que não fora suscitada por qualquer das partes e nem fazia parte do objeto do litígio, não tinha que ser decidida em sede de sentença porque não ocorre, como se verá, a referida exceção dilatória de conhecimento oficioso.

Teria sido mais correto, é certo, que se tivesse expresso na sentença a razão pela qual o Tribunal a quo acabou por não retirar quaisquer efeitos da causa que tinha considerado prejudicial – e que determinou a suspensão da instância (que perdurou entre 30-01-2023 e 15-06-2024), ainda que o fizesse apenas com vista a justificar a inflexão do entendimento do Tribunal a quo a respeito da dita prejudicialidade.

Todavia, inexistindo qualquer exceção de conhecimento oficioso que o Tribunal estivesse obrigado a decidir ou tivesse sido levantada pelas partes, não ocorre omissão de pronúncia.

Note-se que, como é entendimento do Tribunal da Relação do Porto, em acórdão desta secção, é de admitir o não reconhecimento da autoridade do caso julgado depois da suspensão da instância por causa prejudicial, não estando o tribunal que determinou a suspensão da instância vinculado a retirar da causa julgada prejudicial quaisquer efeitos[5]. Ora, no caso, a exceção de caso julgado, não se verificava por não ocorrer identidade de pedidos entre as duas causas.

E, como veremos infra, nem é de considerar verificada a relação de prejudicialidade conducente ao reconhecimento de efeitos do caso julgado por via da sua autoridade.

Pelo que não ocorre a apontada nulidade por omissão de pronúncia.


*

2. Cumpre, então, conhecer dos alegados efeitos do caso julgado decorrente da sentença proferida nos autos que correram termos sob o número ….

Como se viu, o Tribunal a quo começou por afirmar que daquela sentença haveria que retirar os efeitos previstos no artigo 619.º, número 1 do Código de Processo Civil e por anunciar expressamente que os factos ali provados teriam de ser julgados provados nesta ação, assim permitindo a decisão daquela ação o imediato conhecimento do mérito desta (querendo com isso dizer que o mérito poderia ser conhecido no momento destinado à prolação do despacho saneador, ou seja, que se dispensaria o julgamento).

A autora/recorrente, sustenta agora um entendimento semelhante, alegando que a autoridade do caso julgado impunha que se dessem por provados os factos julgados não provados “relativos ao estado de demência da testadora à data do testamento (2 de maio de 2019)”. Segundo entende, a não prova desses factos contradiz frontalmente a sentença anterior, que deve ser respeitada como antecedente lógico destoutra “com força obrigatória dentro e fora do processo onde foi proferida”. Esta última expressão reproduz parte do teor do artigo 619.º, número 1 do Código de Processo Civil, já acima transcrito.

Cumpre apreciar estes fundamentos do recurso para o que é essencial aferir qual o objeto daqueloutra ação, o que ali foi decidido e até mesmo o que ali se julgou provado.

Recorde-se que a ação já julgada tinha por objeto a anulação de uma procuração outorgada ao aqui e ali réu pela aqui testadora em data posterior à da outorga do testamento que é objeto destes autos.

Ali se alegava, como aqui, que a mandante/testadora, apresentava sinais de demência que se vinham agravando e que passava por largos períodos em que ficava incapaz de se orientar no tempo e no espaço e de reconhecer familiares e amigos, tendo ficado na dependência do aqui réu a partir de outubro de 2018 e durante cerca de oito meses em que o mesmo passou a residir com a mandante/testadora, altura em que o mesmo a influenciou e levou a afastar da família e amigos, após o que a levou consigo para o Brasil onde veio a falecer em 07-08-2020.

Daí fez decorrer a autora naquela e nesta ação a conclusão de que nos momentos de outorga da procuração e do testamento, respetivamente em 1 de julho de 2019 e em 2 de maio de 2019, a mandante/testadora se encontrava incapaz de compreender o significado do ato que estava a realizar, na decorrência da demência cujos sintomas vinham notando.

Naquela ação, por força da não apresentação de contestação, foram julgados confessados, no que aqui releva, os seguintes factos:

“14. Ultimamente, como consequência do agravamento do seu estado de saúde (estado de demência), a de cujus vinha apresentando crescentes, graves e ponderosas dificuldades em ler, escrever e compreender o que a rodeava;

15- Por isso, não foram raras as situações em que, durante o decurso dos anos de 2017, 2018 e 2019, se fechava na sua residência, entrando em pânico e sem ter capacidade para dali sair, sendo necessária a intervenção quer do corpo de Bombeiros, quer da Policia de Segurança Pública para repor a normalidade da situação;

16- Até à data do seu falecimento, CC, passava por longos períodos em que ficava incapaz de se orientar no tempo, espaço, desconhecendo os dias da semana, meses ou estações do ano, ocorrendo situações em que a mesma era incapaz de reconhecer a generalidade de familiares e amigos próximos, desconhecendo o conceito quantitativo de dinheiro e o seu respectivo valor;

17- Nos aludidos períodos, CC, encontrava-se incapacitada de realizar simples cálculos aritméticos, ou, compreender o alcance e sentido de construções frásicas mais complexas, apresentando um quadro clínico de aparente demência ou doença similar, que a incapacitava de sobreviver de modo autónomo, exigindo o apoio contínuo de outras pessoas, e, ficando, amiúde, absolutamente alheada da realidade que a rodeava;

18- Razão, pela qual, a mesma foi beneficiária de uma acção de maior acompanhada (extinta pelo falecimento desta na sua pendencia), atento o seu continuado comportamento, que a impedia de exercer de modo cabal os seus direitos e de cumprir com os seus deveres;

19- Após longo período de ausência no Brasil (cerca de 10 anos sem que houvesse qualquer contacto), o irmão da autora e aqui Réu, BB, retornou a Portugal em meados de Outubro de 2018, e por aqui ficou a residir durante cerca de 8 meses, estabelecendo o seu domicílio na Rua ..., n.º ..., 1.º andar, ... Porto;

20- Durante esse período, fixou residência e hospedou-se na casa da falecida CC;

21- No decurso dessa estadia, o Réu encetou comportamentos influenciadores e de pressão junto da de cujus, que a levaram a afastar-se da restante família e amigos que sempre a auxiliaram e cuidaram até à data em que ocorreu o seu decesso;

22- O réu, apoderou-se da confiança da nonagenária, impedindo-a de conviver regularmente com a demais família e amigos, causando tal comportamento, traduzido numa inusitada ausência de contactos outrora regulares, estupefacção e estranheza junto destes;

23- Sem qualquer aviso prévio, de modo inesperado e contrário ao modo de vida que sempre adoptou, pois era raríssimo viajar, foi a de cujus convencida aos 94 anos de idade, pelo réu, a viajar com este para o Brasil em meados de Julho do 2019, sem definir data de retorno, nem avisar a família e amigos dessa viagem;

24- A de cujus veio a falecer no aludido país, a 07.08.2020;

25- Desde que chegou ao Brasil e até à data do seu falecimento, CC nunca mais pôde ser contactada pelos seus familiares, uma vez não dispor a mesma de qualquer meio de contacto directo, nomeadamente, um telefone que possibilitasse aos seus familiares saber do seu paradeiro e bem-estar;

26- Também o réu não informou onde se encontrava CC, nem informou sobre uma eventual data de retorno daquela a Portugal, apesar da insistência dos seus familiares; (…)

30. No acto da outorga daquela procuração, a CC encontrava-se incapaz de compreender o significado do acto que estava a realizar, bem como as disposições e poderes constantes da procuração que outorgou, por sofrer de demência, cujos sintomas se notavam há vários anos;

31- Atento o estado em que se encontrava CC, era notório e conhecido por todos, que aquela estava incapaz de entender o alcance do que dizia, bem como de compreender o sentido de qualquer declaração escrita, onde se inclui a procuração em crise e daí exercer de modo livre a sua vontade”.”

Afastada a ocorrência da exceção de caso julgado pela razão acima expressa e que é manifesta, dispensando demoradas considerações (a inexistência de identidade entre os dois pedidos formulados), é ainda de concluir que também a incapacidade da mandante/testadora nos momentos das outorgas da procuração e do testamento constituem diferentes causas de pedir, já que se tratam de atos realizados em diferentes momentos, tendo o testamento sido outorgado aproximadamente dois meses antes da procuração. Pelo que, nessa parte, também a causa de pedir das duas ações diverge o que é relevante ter presente para aferir se deve extrair-se algum efeito positivo do caso julgado decorrente daquela sentença.

Pretende a apelante que passem a provados os factos julgados provados naquela ação e que o Tribunal a quo julgou não provados, sob as alíneas 1 a 26, 30, 31 e 33 dos factos enumerados na sentença recorrida.

O que, segundo alega, deve suceder por via daquilo a que comumente se vem chamando de “autoridade de caso julgado”[6].

Ao contrário da exceção de caso julgado, que impede a apreciação de uma causa que já tenha sido decidida (com o mesmo pedido, causa de pedir e partes) e que visa alcançar o que tem vindo a ser apelidado de efeito negativo do caso julgado - que é o de impedir que se repita uma causa -, a autoridade do caso julgado não impede a decisão de uma causa (por falta da tríplice identidade a que alude o artigo 581º do Código de Processo Civil), mas impõe ao julgador que tenha em conta o sentido decisório e os fundamentos de outra decisão, prévia, transitada em julgado, que possam refletir-se no objeto da nova ação.

Trata-se do que vem sendo chamado de efeito positivo do caso julgado, pelo qual se pretende que seja afastada a possibilidade de uma decisão vir a contrariar os efeitos ou mesmo os fundamentos de outra, já transitada.

Neste caso, o juiz deve decidir do mérito da segunda ação com consideração do teor da sentença já transitada[7]. Neste sentido, Teixeira de Sousa define o efeito do caso julgado como o de vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior[8]. Aflorações legais deste efeito positivo do caso julgado são, por exemplo, os artigos 623º e 624º do Código de Processo Civil em que expressamente se regulam os efeitos das decisões penais em ações cíveis, criando presunções relativas ao teor e aos fundamentos das primeiras que se refletirão na decisão de mérito a proferir em processo civil.

A propósito da autoridade do caso julgado se pronuncia Rui Pinto[9] da seguinte forma: “Enquanto o efeito negativo do caso julgado leva a que apenas uma decisão possa ser produzida sobre um mesmo objeto processual, mediante a exclusão de poder jurisdicional para a produção de uma segunda decisão, o efeito positivo admite a produção de decisões de mérito sobre objetos processuais materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão.” (sublinhado nosso).

A decisão que decida retirar efeitos do caso julgado anterior por força da sua autoridade será, assim, uma decisão de mérito pois, quando se deixe atuar tal autoridade na decisão a proferir, a mesma verá os seus efeitos repercutirem-se no sentido da decisão e seus fundamentos.

Ou seja, tal efeito positivo do caso julgado ocorre por via de uma relação de prejudicialidade entre a decisão já transitada e aquela que cumpre proferir. Nas palavras do Supremo Tribunal de Justiça[10]exige(-se) que o caso decidido anteriormente seja prejudicial relativamente ao caso que vai ser julgado e bem assim que se mostre ínsito, ainda que parcialmente, no objeto do processo que vai ser decidido. É este, também, o entendimento na jurisprudência do STJ, que o âmbito objetivo da autoridade do caso julgado se estende à apreciação das questões preliminares que constituam antecedente lógico necessário da parte dispositiva da decisão”. Todavia, como também resulta do mesmo acórdão, “Sobre os factos provados e não provados num dado processo não se forma caso julgado, pois não revestem, em si mesmos, a natureza de decisão definidora de efeitos jurídicos. Tratam-se apenas de juízos positivos ou negativos que integram a decisão de facto, mas não suscetíveis de integrar a decisão definidora de efeitos jurídicos, a qual só se alcança através emissão de um juízo que defina o direito a dirimir entre as partes.”.

Neste sentido, encontram-se, a título meramente exemplificativo, os seguintes acordãos TRP 881/13.8TVNG-A.P1, desta secção, TRG 1478/16.6T8AMT.G2, TRG 2584/20.3 CVT-A.G1 e STJ 3042/21.9T8PRT.S2 lendo-se no sumário deste último o seguinte: “III- A força do caso julgado material abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado. IV. Os juízos probatórios positivos ou negativos que consubstanciam a chamada “decisão de facto” não revestem, em si mesmos, a natureza de decisão definidora de efeitos jurídicos, constituindo apenas fundamentos de facto da decisão jurídica em que se integram. Nessa medida, embora tais juízos probatórios relevem como limites objectivos do caso julgado material nos termos do artigo 621.º do CPC, sobre eles não se forma qualquer efeito de caso julgado autónomo, mormente que lhes confira, enquanto factos provados ou não provados, autoridade de caso julgado no âmbito de outro processo.

Ora, no caso, os fundamentos de direito que sustentaram a sentença anterior respeitam à incapacidade acidental da ali mandante à data da outorga de uma procuração (que, sublinhe-se desde já, ocorreu quase dois meses após a data da outorga do testamento objeto desta ação), ali não se tendo declarado nem a incapacidade permanente da aqui testadora, nem a sua incapacidade acidental na data da outorga do testamento, nem a sua dependência em relação ao réu nesse mesmo momento.

Desde logo porque aqueloutra ação não tinha por objeto e nem decidiu a ocorrência de uma situação de incapacidade permanente da testadora decorrente de doença mental. Ali apenas estava alegado, como aqui, que por força de progressivo declínio das suas faculdades mentais que eram causa de episódios temporários de falta de memória e de confusão, a mandante estava, no dia em que outorgou a procuração, incapaz de perceber o sentido das suas declarações. Alegava-se também ali, como aqui, que tais declarações por igual decorreram do facto de a declarante estar na dependência do réu, por via da sua fragilidade e isolamento, tendo ele tirado proveito desse estado.

Cumpre relembrar que a causa de pedir desta ação se funda no disposto nos artigos 2199º e 282.º do Código Civil, preceitos esses convocados pela autora e que se adequam, enquanto fundamentos de direito, aos factos que articulou. A autora alegou expressamente, no artigo 100.º da petição inicial, que a ação se funda no primeiro dos referidos preceitos porque o mesmo cobre situações transitórias de incapacidades e situações permanentes de incapacidade que ainda não tenham sido declaradas e qualifica a incapacidade da testadora como acidental no artigo 101º da petição inicial, alegando que a mesma não pôde entender o sentido da sua declaração na sequência de doença que já existia e se vinha manifestando em vários episódios temporários. Alegou, ainda, que a testadora se encontrava numa situação de fragilidade que o réu explorou, tendo sido por via disso que declarou o que consta do testamento.

Ou seja, num e noutro dos fundamentos da ação está em causa uma situação (de incapacidade acidental ou dependência) verificada no momento da outorga do testamento. Tal como na anterior ação estava em causa a mesma incapacidade ou dependência, mas verificadas no momento - dois meses após - em que foi outorgada a procuração que foi declarada anulada.

Não era objeto daquela ação, nem é desta, a declaração de uma incapacidade da declarante por motivo de doença mental totalmente incapacitante. E também não foi ali declarado que a outorgante mandante estivesse numa situação de dependência em relação ao mandatário. Ou seja, nenhum desses fundamentos foi objeto de decisão na anterior sentença

Pelo que por ali decidido não tem de ser aqui declarada a situação de incapacidade acidental ou dependência da testadora no momento da outorga do testamento. E, como se viu, a autoridade do caso julgado não se estende aos fundamentos de facto da sentença antes proferida.

De todo o modo há que sublinhar que até os factos relevantes e dados por provados na primeira sentença são diversos dos relevantes para a decisão desta ação, pois se reportam ora a uma situação concreta de incapacidade ou dependência, num concreto momento, diverso daquele em que foi outorgado o testamento, ora à circunstância de ter sido por força de uma ou de outra dessas razões que foram feitas as declarações de vontade constitutivas dos dois negócios jurídicos que se querem anular.

O artigo 2199º do Código Civil, que tem por epígrafe “Incapacidade acidental”, prevê a anulabilidade do testamento quando o testador esteja incapacitado de entender o sentido da sua declaração e/ou não tinha o livre exercício da sua vontade: “É anulável o testamento feito por quem se encontrava incapaz de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória”.

Como há muito vem sido afirmado em inúmera jurisprudência que convoca a interpretação do artigo 2199º do Código Civil, a incapacidade acidental para testar não decorre de qualquer deficiência mental, alcoolismo ou outra perturbação da saúde do testador existente ao tempo da feitura do testamento, mas apenas dos padecimentos dessa natureza que suprimam o seu entendimento e capacidade de formar livremente a sua vontade no momento em que o outorgue[11].

Assim, os factos necessários à aplicação do referido artigo devem permitir concluir que o testador se encontrava privado de capacidade cognitiva para perceber o ato que praticava e para formar a sua vontade, na data da outorga do testamento.

E tal conclusão obviamente não podia ter sido alcançada na ação previamente decidida desde logo porque que era outra declaração, proferida noutra data (posterior), que ali estava em causa.

Segundo Galvão Telles[12]: “A permanência da situação de incapacidade não é incompatível com a existência de intervalos lúcidos por parte da pessoa demente, cabendo ao interessado na manutenção do acto jurídico em causa a prova dessa lucidez aquando da realização do acordo. Provado o estado de demência em período que abrange o acto anulando, é de presumir, sem necessidade de mais, que na data do mesmo acto aquele estado se mantinha sem interrupção. Corresponde ao id quod plerum accidit; está em conformidade com as regras da experiência. À outra parte caberá ilidir a presunção demonstrando (se puder fazê-lo) que o acto recaiu num momento excepcional e intermitente de lucidez.”.

Não é, contudo, qualquer quadro demencial do testador que justificará que se conclua com recurso a regras da experiência, da normalidade (e da probabilidade até), que no momento da feitura do testamento o testador não tinha capacidade intelectual e volitiva bastante para declarar o que consta do testamento[13].

O Supremo Tribunal de Justiça[14] tem vindo a entender que: “Ocorrendo uma situação de incapacidade acidental decorrente de um estado clínico demencial ou de doença evolutiva e degenerescente das capacidades de percepção, compreensão e intelecção do mundo circundante e vivencial, a questão a equacionar deverá ser se o peticionante da anulabilidade deverá ser constrangido a provar que no exacto momento em que o declarante materializou o acto jurídico ajuizado, o estado de incapacidade acidental se mantinha ou era verificável”. Pensamos, como ali se defendeu, que tal exigência de prova nem sempre será de fazer, pois esse facto presumido poderá impor-se em resultado dos demais factos provados. Todavia, a mera prova de uma situação de perda de capacidade cognitiva da testadora a partir de uma certa data, visível em episódios e dificuldades específicas e limitadas no tempo não equivale à declaração de que a mesma padecia de doença mental incapacitante, o que não foi objeto de decisão na anterior ação.

Não tendo ali sido declarada a existência de tal doença incapacitante – o que não era objeto daquela ação, mas um mero facto alegado com vista à sua sustentação -, não poderia a autora ser dispensada de aqui provar tal incapacidade, apenas nessa circunstância sendo de exigir ao réu provar que a outorga do testamento foi feita num momento de lucidez dentro desse quadro de doença prévia.

Ou seja, concorda-se com o entendimento expresso no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que vimos seguindo de perto, de que uma vez provada uma doença incapacitante da testadora com manifestação ao nível da capacidade para a formação da vontade e para a sua expressão, existente e estabilizada na data da declaração que se quer invalidar, teria de ser a feita prova tendente convencer o tribunal de que, não obstante esse quadro perene de incapacidade, o testamento fora celebrado num momento de lucidez.

Ora, no caso dos autos, ainda que se aderisse à pretensão da apelante e se julgasse provada a existência de doença prévia incapacitante nos termos em que ficou provada em anterior ação, é de notar que o réu logrou convencer o Tribunal do estado de lucidez da testadora no momento da outorga do testamento, pelas razões constantes da motivação da decisão da matéria de facto que aqui parcialmente convocamos: “há depoimentos testemunhais prestados que se nos afiguram como relevantes, o que é o caso do depoimento prestado por DD, advogado. A falecida CC procurou a sua ajuda profissional, por volta de 2019, querendo revogar um testamento anterior e intentar uma ação de despejo. Diz que se reuniu com ela uma dúzia de vezes.

Caraterizou CC como alguém desembaraçado, que estava muito bem fisicamente e em termos psicológicos, uma pessoa proactiva e com pujança, pese embora a sua idade (à data, já tinha ultrapassado os 90 anos). Conversaram muito, nesses encontros, frisando que CC era uma pessoa muito pragmática, sabia muito bem o que queria e o que não queria.

Diligenciou pela revogação do testamento, em cartório notarial.

Diz ainda que, mais tarde, ficou agradavelmente surpreendido com um postal que recebeu de CC, à data com 94 anos de idade, enviado do Brasil e que incluía uma fotografia sua na praia.

Terminou o seu depoimento, dizendo que a falecida lhe revelou que numa altura com que se deparou com um problema financeiro, o Réu tinha vindo do Brasil em seu auxílio e que, por essa razão, ela estava agradecida (ao Réu) por esse gesto.

E, com impacto determinante na fixação da matéria de facto provada, o depoimento testemunhal prestado por EE, amiga da falecida e que a conheceu em 1959. Afirmou que a sua amiga tinha uma adoração muito grande pelo Réu, sendo a sua madrinha; aliás, foi a enfermeira responsável pelo parto do Réu.

Não ficou surpreendida com o teor do testamento outorgado, dado que, mesmo antes de conhecer o Réu, já a sua amiga lhe tinha falado várias vezes do Réu, sempre favoravelmente. Acrescentou que a sua amiga, até à aproximação do Réu em 2018, passava os natais sozinha.

É possível assim concluir, com arrimo mais que suficiente na prova testemunhal, que o Réu esteve (mais) presente na vida de CC, pelo menos nos últimos anos, o que não pode deixar de ser congruente com a vontade de o (ao Réu) querer compensar, testando a seu favor.

(…) à luz das regras da experiência comum e da lógica humana, não há qualquer obstáculo a aceitar como verdadeiro que o quadro clínico de CC se foi agravando com o avançar da sua idade, sendo consentâneo com o quadro clínico e a sua idade [nasceu em ../../1925 e estes factos ocorreram, sobretudo, nos anos de 2018 e 2019, quando contava com 93/94 anos de idade] que a mesma tivesse falhas de memória, nada havendo de anormal ou inusitado em tal situação, sendo certo que pessoas bem mais novas também as têm, e, do mesmo modo, que a mesma tivesse alguns episódios de confusão e desorientação, incluindo alucinações e perdas de chaves [como resulta patente dos documentos nºs 19, 20 e 21 da petição inicial]2.

Todavia – e isto é o cerne da questão – não resulta demonstrado o comprometimento, em termos permanentes, da capacidade de querer e entender da testadora e não resulta dos autos que as ditas patologias (que reputamos como comuns à idade de CC, à luz das regras da experiência comum) correspondessem “à condição normal, recorrente, diária da testadora e que, por isso, a mesma estivesse, em termos permanentes e/ou regulares, numa situação de incapacidade para entender e querer as suas decisões, em particular quanto aos seus bens”.

Ou seja, ainda que se pudessem – e não podem -, considerar provados os factos ali e aqui alegados relativos à doença prévia e progressiva da declarante[15], sempre tal prova não conduziria à procedência da ação por ter o réu convencido de que, no momento da outorga do testamento e quando formou a vontade nele expressa, a testadora estava capaz de querer e entender.

Por tudo o que vem de expor-se não há qualquer razão para extrair da anterior sentença os efeitos pretendidos pela apelante, não havendo fundamento legal para dar aqui como provados os factos que ali foram julgados provados.


*

Pelo que se mantém o seguinte elenco de factos julgados provados e não provados:

Provados:

1. A testadora CC nasceu em ../../1925 e faleceu em 7/8/2020, sem descendentes, em ..., Estado de Pernambuco, República Federativa do Brasil.

2. A Autora nasceu a ../../1965, fruto da relação matrimonial entretanto dissolvida de seu pai, FF, e sua mãe, GG, sendo esta natural do Estado do Rio de Janeiro, Brasil.

3. Por sua vez, FF (que também usava o nome de HH, por ser natural do Brasil), é filho de II e de JJ.

4. Posteriormente, o pai da Autora celebrou um novo matrimónio com KK.

5. Em 5/10/2013, o pai da Autora faleceu na freguesia ..., Porto.

6. Os avós paternos da Autora também já faleceram, sendo que a sua avó paterna, JJ é filha de LL, que, por sua vez, era mãe de CC.

7. CC não celebrou casamento, civil ou católico, nem deixou qualquer descendente (filhos/netos).

8. A falecida CC vivia sozinha.

9. Não trabalhava e não tinha qualquer atividade remunerada, subsistindo a expensas da sua reforma, bem como de rendimentos prediais, já que arrendava alguns dos vários prédios de que era proprietária.

10. O rendimento obtido pela falecida com as rendas relativas ao prédio sito na rua ... ajudava-a a custear as suas despesas.

11. O Réu, irmão da Autora, regressou a Portugal em meados de outubro de 2018, residindo na casa da CC, sita na rua ..., nº ..., 1º andar, ... Porto.

12. Em 2/5/2019 foi lavrado um testamento público, junto do Cartório Notarial da Notária MM, sito na rua ..., nº ..., 2º andar, sala ..., ... Vila Nova de Gaia, através do qual a testadora CC instituiu seu único e universal herdeiro o Réu – conforme documento nº 18 da petição inicial, que se dá aqui por reproduzido.

13. CC, em 1/7/2019, no Cartório Notarial de NN, declarou constituir o Réu, seu sobrinho, como seu procurador, a quem confere os necessários e especiais poderes para doar, nos termos e condições que entender convenientes, a favor daquele, os seguintes bens imóveis: (…) conforme documento nº 23 apresentado com a petição inicial, que se dá aqui por reproduzido.

14. A aludida procuração conferia ainda ao Réu o poder de outorgar e assinar a respetiva escritura e suas eventuais retificações, para além de a poder representar junto de quaisquer repartições públicas, podendo tratar de qualquer assunto relativo ao negócio vertido neste mandato, nomeadamente nas Conservatórias do Registo Predial competentes, requerer quaisquer atos de registo, provisórios e definitivos, averbamentos, cancelamentos, em quaisquer serviços de finanças, participar a doação e prestar declarações complementares, requerendo, praticando e assinando tudo quanto necessário se torne aos fins mencionados; o mandatário (o Réu) fica ainda expressamente autorizado a celebrar negócio consigo mesmo, nos termos do disposto no artigo 261º do Código Civil.

15. O Réu, dois dias depois da outorga da procuração, no uso e âmbito dos poderes conferidos pelo mandato, promoveu uma doação a seu favor, doação essa que incidiu sobre o imóvel de maior valor patrimonial da falecida e a sua fonte de rendimento – o prédio urbano sito na rua ..., freguesia ..., concelho do Porto, melhor descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e respetivas frações que compõem a propriedade horizontal, a saber: fração A); fração B), fração C) e fração D), no valor patrimonial de € 221.100,20 – conforme escritura de doação de 3/7/2019, junta como documento nº 24 e que se dá aqui por reproduzida.

16. A Autora, em 19/8/2019, instaurou ação de maior de acompanhado, que correu termos no Juízo Local Cível do Porto – Juiz 2 sob o nº ..., entretanto extinta pelo falecimento, na sua pendência, da aí Requerida CC.

17. CC permaneceu no Brasil até ao seu falecimento, em 7/8/2020.

18. A Autora intentou processo de inventário, para partilha dos bens deixados por óbito de CC, que corre termos no Juízo Local Cível do Porto – Juiz 3 sob o nº ....

19. No âmbito desses autos, a Autora foi nomeada cabeça de casal, em 29/4/2021.

20. Em momento anterior à instauração do inventário, a Autora intentou, em 11/11/2020, uma providência cautelar de arrolamento dos bens da falecida CC e perante a prova produzida, sem prévia citação do aqui Réu, foi proferida sentença que decretou o arrolamento dos bens pertencentes à falecida, bem como de um bem doado por aquela ao Réu, infra descritos: (…).

21. Posteriormente, foi o procedimento cautelar em questão apensado aos autos de inventário acima referidos sob o apenso A.

22. O Réu foi citado no âmbito do aludido procedimento cautelar, tendo deduzido oposição, notificada que foi à Autora em 7/2/2022.

23. Após produção de prova, a sua oposição foi declarada improcedente, mantendo-se a providência anteriormente decretada.

24. A Autora instaurou ação declarativa de condenação, que correu termos no Juízo Central Cível do Porto, Juiz 2, sob o nº 12480/21.6 T8PRT, tendo peticionado que fosse emitida sentença a declarar a anulabilidade da procuração outorgada por CC, a favor do Réu, em 1/7/2019, bem como se declare nula a escritura pública de doação, celebrada a 3/7/2019, junto da Segunda Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, perante a Conservadora OO d`Andrade, pelo aqui Réu enquanto procurador de CC.

25. No processo nº 12480/21.6 T8PRT foi proferida sentença, no dia 2/3/2022, já transitada, com o seguinte dispositivo:

“Em conclusão, tudo ponderado e ao abrigo das disposições legais supra referidas, julgo a ação procedente e, em consequência, nesta ação em que é autora AA e em que é réu BB, ambos com os demais sinais dos autos, decido: A) Declarar anulada a procuração outorgada por CC, a favor do Réu, a um de julho de 2019, com termo de autenticação notarial realizado junto do Cartório Notarial de NN, sito na Avenida ..., n.º ..., 3.º andar, sala ..., Porto; B) Em consequência, declarar também anulada a doação, celebrada a 3 de Julho de 2019, junto da Segunda Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia, perante a Conservadora OO d`Andrade, pelo aqui Réu enquanto procurador de CC, relativa ao prédio (…)

26. O Réu, subsequentemente, celebrou contratos de arrendamento com terceiros, recebendo as respetivas rendas.

27. A falecida CC, não obstante a sua idade, cuidava sozinha da sua higiene, tomando banho, lavando o cabelo e cuidando das unhas e das lides domésticas.

28. Fazia as compras para sua alimentação e preparava e cozinhava as suas refeições.

29. Passeava a pé, lia livros e via televisão.

30. Deslocava-se à igreja próxima da sua residência sem o auxílio de terceiros.

31. Encontrava-se com a sua amiga EE e com ela passeava e almoçava, para além de conviver sobretudo aos domingos com a sua irmã PP e com o marido desta.

32. Reconhecia todos os que com ela privavam com regularidade e os familiares mais próximos. 33. O médico neurologista da falecida, Dr. QQ, exarou a seguinte informação, datada de 24/10/2019:

34. A falecida CC ficou fechada dentro de casa, por perder as chaves, algumas ocasiões, sendo necessária a intervenção dos Bombeiros e da Polícia de Segurança Pública.

35. Era ela que pagava as contas da água e da eletricidade, que recebia as rendas dos arrendatários e que emitia os recibos das rendas e era também ela que acertava os montantes das rendas com os arrendatários.

36. CC outorgara testamento a favor do filho da Autora, RR, em 26/2/2018, que depois revogou, por escritura de 13/11/2018, no cartório da Notária SS.

Factos não provados

“1. Que a falecida CC, de há um longo tempo a esta parte, seguramente há mais de 5 anos, atravessava longos períodos de estado de demência, ficando, continuadamente, nesses períodos, incapaz de compreender ideias complexas, perdendo, inclusivamente, orientação espácio-temporal;

2. Que há muitos anos que a falecida CC era regular e continuadamente assistida na gestão do dia a dia por RR, filho da Autora, por ser muitas das vezes incapaz de realizar tarefas mais complexas;

3. Que, ultimamente e como consequência do agravamento do seu estado de saúde (estado de demência), a falecida vinha apresentando crescentes, graves e ponderosas dificuldades em ler, escrever e compreender o que a rodeava, adotando atitudes comportamentais que evidenciavam desorientação e de alheio da realidade;

4. Que não foram raras as situações em que, durante os anos de 2018 e 2019, se perdia no caminho para casa;

5. Que CC, até à data do seu falecimento, passava por longos períodos em que ficava incapaz de se orientar no tempo, espaço, desconhecendo os dias da semana, meses ou estações do ano, ocorrendo situações em que a mesma era incapaz de reconhecer a generalidade de familiares e amigos próximos, desconhecendo, inclusivamente, o conceito quantitativo de dinheiro e o seu respetivo valor;

6. Que, nos aludidos períodos, CC encontrava-se incapacitada de realizar simples cálculos aritméticos, ou compreender o alcance e sentido de construções frásicas mais complexas, apresentando um quadro clínico de aparente demência ou doença similar, que a incapacitava de sobreviver de modo autónomo, exigindo o apoio contínuo de outras pessoas, e, ficando, amiúde, absolutamente alheada da realidade que a rodeava;

7. Que o Réu surgiu em Portugal após longo período de ausência no Brasil - cerca de 5 a 10 anos sem qualquer contacto;

8. Que o Réu, no decurso da inesperada e esporádica estadia em Portugal, na casa de CC, encetou comportamentos influenciadores e de pressão junto da falecida, que a levaram a afastar-se da restante família e amigos que sempre a auxiliaram e cuidaram até à data em que ocorreu o seu falecimento;

9. Que o Réu se apoderou da confiança da falecida, impedindo-a de conviver regularmente com a demais família e amigos, apropriando-se totalmente da vida da falecida, com ela almoçando, jantando, fazendo compras, chegando ao ponto de a levar ao cabeleireiro por ele escolhido;

10. Que a falecida CC, de um momento para o outro, deixou de ter vida própria, sendo sempre acompanhada e totalmente controlada pelo Réu;

11. Que este comportamento da falecida se traduziu numa ausência de contactos outrora regulares com os demais amigos e familiares, causando enorme estupefação e estranheza junto destes;

12. Que não foram raras as vezes em que o Réu se recusava a abrir a porta a diversos familiares que a visitavam, sob pretexto de a falecida não os querer ver, inventando para o efeito as mais variadas e inusitadas “desculpas”;

13. Que tal alteração comportamental causou consternação e preocupação junto dos vizinhos e familiares;

14. Que a falecida, de um momento para o outro, sem que nada o fizesse prever, alterou os seus hábitos diários e distanciou-se daqueles que sempre lhe foram próximos e sempre que com estas pessoas convivia esporadicamente, fazia-o sempre na presença do Réu;

15. Que, sem qualquer aviso, de modo absolutamente inesperado e contrário ao modo de vida que sempre adotou, pois era raríssimo viajar, quanto mais para um pais tão distante, foi a falecida convencida pelo Réu, aos 94 anos de idade, a viajar com este para o Brasil em meados de julho de 2019, para conhecer os filhos deste e depois voltar;

16. Que a falecida, quando questionada pelos amigos e vizinhos sobre a possibilidade de viajar para o Brasil na companhia do Réu, não raras vezes disse não pretender ir;

17. Que, ao contrário do que transmitia, embarcou com o Réu, tendo como destino o Brasil e nem sequer avisou a família e amigos de tal viagem;

8. Que a falecida não adquiriu voo de regresso, nem definiu data de regresso;

19. Que desde que chegou ao Brasil e até à data do seu falecimento, CC nunca mais pôde ser contactada pelos seus familiares, uma vez que não dispunha de qualquer meio de contacto direto, nomeadamente um telefone que possibilitasse aos seus familiares saber do seu paradeiro e bem-estar;

20. Que o Réu não cuidou de informar onde se encontrava CC, nem tão pouco informou sobre uma eventual data de retorno daquela a Portugal, apesar da insistência dos seus familiares e dos continuados cuidados de saúde de que uma pessoa de idade tão avançada era carenciada;

21. Que esta súbita ausência do país já tinha causado alguma estranheza junto dos seus familiares, atenta a surpreendente e repentina decisão de viajar, sem data de retorno;

22. Que a falecida outorgou a procuração de 1/7/2019 sem nunca em momento anterior ter demonstrado qualquer intenção junto dos seus familiares e amigos:

23. Que junto da demais família se instalou um sentimento de estranheza, preocupação e profunda consternação, considerando o estado mental de CC, a ausência de notícias da mesma desde a chegada do Réu a Portugal, bem como os comportamentos inesperados e repentinos adotados por aquela;

24. Que esses sentimentos se agravaram pelo modo inesperado como tomaram conhecimento da súbita viagem, quando conjugado com o conhecimento a posteriori da procuração outorgada a favor do Réu;

25. Que CC, desde que o Réu chegou a Portugal, além de deixar de conversar ou falar com a Autora e demais família, adotou, ainda, comportamentos despropositados e contrários aquilo que sempre foi a sua manifestação de vontade, relativamente ao seu acervo imobiliário, pois sempre demonstrou ser sua intenção repartir a quase totalidade do património por todos os seus parentes sucessíveis, após a sua morte;

26. Que a falecida, quer no ato da outorga da procuração, quer da outorga do testamento público, considerando o seu quadro mental, já se encontrava-se incapaz de compreender o significado dos atos que estava a realizar, bem como as disposições lá constantes, por sofrer de demência, cujos sintomas se notavam há vários anos;

27. Que CC nunca manifestou em vida e até à chegada do Réu, a intenção de o instituir como seu procurador ou herdeiro universal, e muito menos tinha demonstrado qualquer intenção de, em vida, doar quaisquer imóveis, muito menos aquele que era a sua principal fonte de rendimento;

28. Que toda a situação da procuração de 1/7/2019 era despropositada e contraditória quer à vontade sempre evidenciada pela falecida, pois empobreceu rapidamente, quer mesmo quanto ao defendido e propalado pelo Réu;

29. Que o Réu fez com que a falecida deixasse de receber rendas de valor baixo, para passar a não receber qualquer renda;

30. Que também na outorga do testamento, atento o estado em que se encontrava CC, o que era notório e conhecido por todos, esta estava incapaz de entender o alcance do que dizia, bem como de compreender o sentido de qualquer declaração escrita, onde se inclui o testamento em crise;

31. Que CC não tinha, na data em que o subscreveu, a capacidade de compreender o sentido da sua declaração, não correspondendo aquela à sua real vontade da testadora;

32. Que até à chegada do Réu, em meados de novembro de 2018, a falecida nem sequer falava ou manifestava qualquer espécie de afeto pelo Réu, junto do círculo de amigos, quase que ignorando a sua existência, atento o longo afastamento que existia e inexistentes contactos que realizava;

33. Que o Réu, desde que chegou a Portugal, inibiu CC com os amigos e familiares, apoderando-se integralmente do dia a dia daquela, conseguindo condicionar o livre exercício da sua vontade, explorando a situação de necessidade e estado mental da falecida de modo a obter para si benefícios económicos absolutamente excessivos;

34. Que a Autora intentou ação de acompanhamento de maior com pedido de fixação de medidas cautelares e urgentes, em 9/8/2019, após ter tomado conhecimento de que CC tinha feito testamento público a favor do Réu, em 2/5/2019, e outorgado procuração a favor do Réu em 1/7/2019, até porque no mesmo Cartório Notarial onde foi outorgado o testamento, encontrava- se a correr termos processo de inventário por óbito do pai da Autora e do Réu, HH, falecido em 5/10/2013, sob o nº 161/2018 e tinha também sido aí feita a escritura de habilitação de herdeiros;

35. Que a família da Autora e do Réu sabia que CC tinha revogado o testamento anterior feito a favor do filho da Autora, RR em 26/2/2018, por escritura de 13/11/2018, no cartório da Notária SS e, meses depois, fizera novo testamento e outorgado procuração a favor do Réu e a doação do prédio sito na rua ..., Porto, em 3/7/2019.

36. Que a família da Autora e do Réu deu conhecimento à Autora da celebração da ecritura de doação do prédio da rua ..., dias depois, a qual iniciou as diligências no sentido de anular os atos da procuração, da doação e do testamento;

37. Que CC se deslocava diariamente à igreja;

38. Que CC se deslocasse às compras todos os dias;

39. Que CC fazia caminhadas diárias;

40. Que CC cuidava da limpeza da casa, lavava e passava a roupa, deixando apenas as limpezas mais custosas, de lavagem de vidros, carpetes, soalhos e casas de banho para uma empregada doméstica que ia uma vez por semana a casa fazer as limpezas;

41. Que CC fazia as compras todos os dias de pão, frutas, legumes, e carne para sua alimentação e preparava e cozinhava as suas refeições;

42. Que os encontros com as amigas EE e TT ocorriam quase todos os sábados;

43. Que CC perdeu a chave de casa numa única vez;

44. Que CC, após perder a chave e por se encontrar sozinha em casa, contactou os familiares para a auxiliarem, na abertura da porta, pelo exterior e que a Autora entrou em histeria e fez com que o seu filho telefonasse para os Bombeiros e para a Polícia de Segurança Pública com o intuito de se deslocarem à casa de CC;

45. Que CC fazia as reparações dos eletrodomésticos;

46. Que CC também procedia anualmente ao envio das cartas para atualização das rendas;

47. Que CC, por ocasião da estadia do Réu em Portugal no ano de 2019, lhe pediu para apurar o valor de mercado para arrendamento de um espaço de garagem do prédio e constatando que a renda paga pelo arrendatário era inferior ao valor devido pelo espaço, procedeu ao envio de comunicação ao arrendatário a solicitar atualização do valor da renda, sob pena de não renovar o contrato no termo do prazo que se verificava em 31/7/2019;

48. Que como o arrendatário não aceitou a alteração da renda nos termos propostos por CC, esta mandatou o seu advogado, Dr. DD, para proceder à instauração de procedimento judicial tendente à entrega do arrendado, o que veio a acontecer e mais tarde, em 9/9/2019, encontrando-se no Brasil, escreveu diretamente ao arrendatário a pedir que indicasse o IBAN para devolver dinheiro que depositara na sua conta da renda e reiterando o seu propósito em não renovar o contrato de arrendamento; que, nessa sequência, CC intentou processo judicial, com sentença procedente, ante a revelia do aí Réu, já transitada em julgado.”


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A autora/apelante sustentava a pretensão de revogação da sentença na alteração deste quadro factual, que não ocorreu.

Ora, da exiguidade dos factos provados não se pode concluir que a testadora se encontrava, no momento a outorga do testamento, num tal estado de degradação da sua saúde mental que não podia compreender o ato de testar, formar a sua vontade livre e esclarecida e de prestar as suas declarações no sentido do que efetivamente pretendia. Pelo que não há fundamento para a anulação do testamento à luz do previsto no artigo 2199.º do Código Civil.


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3 – Também quanto à alegada situação de dependência explorada pelo Réu não foram julgados provados factos bastantes a que se conclua, como quer a apelante, pela procedência da sua pretensão com base no disposto no artigo 282.º do Código Civil de que decorre a anulabilidade dos negócios jurídicos quando alguém, “explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados”.

Ora, ao contrário do que conclui a recorrente (conclusões XXII a XXVI) não está provado qualquer facto de que decorra a vulnerabilidade da testadora, ou que a mesma tenha sido levada a outorgar o testamento pelo réu explorando este a sua fragilidade ou dependência. Pelo contrário, os factos que a autora alegou com vista a sustentar tal causa de pedir subsidiária foram dados por não provados sob as alíneas 8 a 20, 27 a 29 e 33.

A procedência dessa pretensão subsidiária também não decorre automaticamente do facto de ter sido anulada a procuração emitida a favor do réu pela testadora dois meses antes da outorga do testamento. É que a procedência desse pedido na ação previamente decidida não decorreu do reconhecimento da existência de qualquer situação de dependência/exploração, mas apenas da incapacidade da autora do testamento para formar a sua vontade quando apôs a sua assinatura na procuração ali em apreço.

Pelo que por falta de prova de qualquer facto revelador de que o réu tenha aproveitado a dependência, estado mental ou fraqueza da testadora para a levar a nomeá-lo seu único e universal herdeiro por via testamentária e não tendo tal questão sido objeto de conhecimento e decisão na ação anterior, também essa via recursória improcede, sendo de confirmar a sentença recorrida.


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As custas do recurso são a cargo da recorrente que nele decaiu inteiramente, como decorre do artigo 527.º do Código de Processo Civil.

V – Decisão:

Julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida

Custas pela recorrente.


Porto, 27 de outubro de 2025
Ana Olívia Loureiro
Teresa Fonseca
Jorge Martins Ribeiro
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[1] Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, vol., V, página 143.
[2] Código de Processo Civil Anotado”, volume 2º, Almedina, 4ª edição, 2019, página 737, em anotação ao artigo 615º do CPC
[3] Vejam-se, a título exemplificativo: os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 03-10-2017, 2200/10.6TVLSB.P1.S1 em cujo sumário se pode ler: “A expressão «questões» prende-se com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir e não se confunde com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia”, e de 12-10-2017, 235/07.5TBRSD.C1.S1 em que se escreveu: “Não incorre em vício de omissão de pronúncia o acórdão da Relação que deixou de apreciar um dos argumentos aduzidos pela recorrente em benefício da pretendida modificação da matéria de facto” e o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05-04-2018, 938/15.0T8VRL-A.G1 cujo sumário é o seguinte: “A nulidade da decisão com fundamento na omissão de pronúncia apenas se verifica quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não ter tido aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão, sem que a sua resolução tenha sido prejudicada pela solução, eventualmente, dada a outras”. Todos disponíveis em https://www.dgsi.pt/.
[4] Embora por juiz diferente do que veio a designar data para audiência de julgamento e a proferir sentença.
[5] Acórdão de 26-06-2025, disponível em TRP 4372/20.2T8PRT.P1.
[6] Em face da não realização de audiência de julgamento no processo que o Tribunal a quo julgou prejudicial, não seria de cogitar a aplicabilidade do disposto no artigo 421.º do Código de Processo Civil.
[7] Neste sentido Acórdão do STJ de 10/5/2023, proferido no processo nº7473/21.6T8PRT.P1.S2, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se lê “Ao contrário da exceção dilatória de caso julgado, cuja improcedência implica a absolvição da instância [arts. 278º, nº1, e), e 576º, nº2, do CPC], a exceção de autoridade de caso julgado é uma exceção perentória, importando, por isso, a absolvição do pedido, nos termos do art. 576º, nº3, do mesmo diploma.”).
[8] O objeto da sentença e o caso julgado material, BMJ, 325, 159.
[9] Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, Revista Julgar online, disponível em https://julgar.pt/excecao-e-autoridade-de-caso-julgado-algumas-notas-provisorias/
[10] De 04-07-2023 disponível em STJ 142/15.8T8CBC.G1.S1
[11] A este propósito, veja-se nomeadamente o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de abril de 2013, disponível em: STJ 1565/10.4TJVNF.P1.S1.
[12] Revista dos Tribunais, ano 72, página 268.
[13] O que se defendeu em acórdão não publicado do Tribunal da Relação do Porto de 17-11-2023, no processo 8522/21.3T8PRT.P1, com a mesma relatora e em que foi também a mesma primeira adjunta.
[14] Em acórdão de 11-04-2013, disponível em STJ 1565/10.4TJVNF.P1.S1.
[15] Note-se que se provou que foi instaurado pela autora processo de maior acompanhado em benefício da testadora em que contudo, nunca veio a ser proferida decisão.