Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4064/23.0T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE MARTINS RIBEIRO
Descritores: PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
CONVOLAÇÃO EM PROCESSO TUTELAR CÍVEL
SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA
Nº do Documento: RP202405064064/23.0T8VNG.P1
Data do Acordão: 05/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Independentemente de, perante o processado, ser, ou não, provável que se atinja um acordo tutelar cível no âmbito da conferência prevista nos artigos 112.º e 112.º A da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, L.P.C.J.P., a conferência deve ser realizada, pois só assim se saberá, ao certo, se o acordo é, ou não, atingido.
II - Assim, a realização da conferência justifica-se, entre o mais, porque, arquivando-se os autos, ocorrerá um período de tempo em que a criança fica sem a proteção conferida pela medida cuja vigência seja declarada cessada, com o subsequente arquivamento dos autos; mesmo que, de facto, eventualmente a criança possa continuar na situação em que está, removida do perigo, o que é certo é que juridicamente está desprotegida perante eventual decisão de quem, exercendo as responsabilidades parentais, a expunha ao perigo, por exemplo, os pais dela.
IIISe na conferência não se chegar a um acordo tutelar cível, o processo de promoção e proteção é convolado em processo tutelar cível nos termos do art.º 112.ºA, n.º 2, da L.P.C.J.P. (para se aproveitar os atos, por economia processual) e profere-se decisão de regulação do exercício das responsabilidades parentais (por exemplo, a serem exercidas por terceira pessoa, nos termos do art.º 1907.º do Código Civil, C.C.) a título provisório, ao abrigo do disposto no art.º 28.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, R.G.P.T.C.
IVSendo a prossecução do superior interesse da criança o objetivo (e princípio mor) da intervenção, o princípio da intervenção mínima previsto na al. d) do art.º 4.º da L.P.C.J.P. tem de ser interpretado e harmonizado com o da proporcionalidade e atualidade da intervenção, previsto na al. e) do mesmo artigo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO N.º 4064/23.0T8VNG.P1

SUMÁRIO (art.º 663.º, n.º 7, do C.P.C.):

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Acordam os Juízes na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, sendo

Relator: Jorge Martins Ribeiro;
1.ª Adjunta: Anabela Mendes Morais e
2.ª Adjunta: Ana Paula Amorim.


ACÓRDÃO


I – RELATÓRIO

Nos presentes autos de promoção e proteção de criança, instaurados pelo Ministério Público no âmbito da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (L.P.C.J.P.), Lei 147/99, de 01/09, na redação em vigor, a criança é AA, nascido aos .../.../......, sendo requeridos os seus progenitores, BB e AA, residentes na Rua ..., Casa ...- ...


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Procedemos agora a uma síntese do processado, e factual, destinada a facilitar a compreensão do objeto do presente recurso:


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A) Os presentes autos começaram com o requerimento inicial do Ministério Público, apresentado aos 12/05/2023, a favor da criança AA, nascido no dia ../../2016.


B) No requerimento o Ministério Púbico pediu a aplicação de uma medida de promoção e proteção da criança por ter sido considerado, nos termos nele expostos, que a criança se encontrava numa situação de perigo:

Atenta a situação descrita, e uma vez que a criança se encontra numa situação de real perigo, mostra-se indispensável a eventual aplicação de uma medida de promoção e proteção, que se venha a revelar adequada e suficiente durante a instrução dos presentes [autos].

Está, assim, em perigo a formação, educação, o desenvolvimento psicossocial e a saúde do AA -cfr. arts. 3.º, n.ºs 1 e 2, als. c) e g) e 34.º, als. a) e b), da LPCJP([1]).

C) No dia 13/06/2023, em sede de conferência, foi aplicada, por acordo de promoção e proteção, a medida prevista no art.º 35.º, n.º 1, al. b), da L.P.C.J.P., apoio junto de outro familiar, pelo período de seis meses, a executar junto da avó materna, CC.

D) Aos 04/07/2023 a medida foi revista, novamente por acordo de promoção e proteção, tendo passado a ser executada, pelo período de seis meses, junto da avó paterna, DD, com a colaboração estreita da sua filha, EE (tia do menor).

E) No dia 09/02/2024 foi junto aos autos o relatório de acompanhamento da medida, efetuado pela Segurança Social.

Da conclusão do mesmo consta o seguinte:

Do acompanhamento efetuado constata-se que a situação do AA evoluiu de forma muito positiva não se verificando, no presente, indicadores de situação de perigo para a criança.

O AA tem os seus cuidados e proteção assegurados junto da avó paterna que diligencia pela manutenção do seu devido acompanhamento em termos escolares, clínicos e sócio afetivos.

Os pais mantêm postura não colaborante e parecem não percecionar as lacunas do ponto de vista dos cuidados ao AA que motivaram os autos e que colocaram a criança em situação de perigo.

Face ao exposto, salvo opinião contrária de Vossa Exa, e atendendo a que não subsiste situação de perigo que justifique a manutenção ou alteração da medida, somos do parecer, que os interesses do AA devem ser acautelados em sede tutelar cível, após o qual propomos o arquivamento dos presentes autos”.

F) Aos 12/02/2024 o Ministério Público efetuou a seguinte promoção:

A criança AA, nascida a ../../2016, encontra-se sob a medida de promoção e proteção de apoio junto de outro familiar, a executar no agregado familiar da avó paterna, DD, aplicada por decisão judicial proferida a 4.07.23.

Importa operar-se a revisão semestral obrigatória da medida, não tendo sido ainda cumprido o disposto nos artigos 84.º e 85.º da LPCJP.

De acordo com o relatório social junto aos autos pela ATT(ISS), o acompanhamento da medida de promoção e proteção revela que a situação do AA evoluiu de forma muito positiva, não se verificando, no presente, indicadores de situação de perigo para a criança.

O AA tem os seus cuidados e proteção assegurados junto da avó paterna que diligencia pela manutenção do seu devido acompanhamento em termos escolares, clínicos e sócio afetivos.

Os pais mantêm postura não colaborante e parecem não percecionar as lacunas do ponto de vista dos cuidados ao AA que motivaram os autos e que colocaram a criança em situação de perigo.

Face ao exposto, importa concluir que já não subsiste situação de perigo que determinou a presente intervenção, pelo que se promove se agende data para realização da conferência a que alude o artigo 112.º-A da LPCJP, para ser formalizada a situação da criança em termos tutelares cíveis, determinando-se, após, o arquivamento dos presentes autos([2]).

G) No dia 19/02/2024 o tribunal a quo determinou que fosse cumprido o disposto no art.º 85.º da L.P.C.J.P., a fim de os intervenientes se pronunciarem.

H) Os progenitores, no dia 01/03/2024, enviaram, cada um, um e-mail referindo: “venho por este contestar sobre a aplicação de revisão do meu filho AA”.

I) Por despacho de 13/06/2024, cujo teor damos por integralmente reproduzido, foi determinada a cessação da medida e o arquivamento dos autos.

Após várias referências aos princípios que regem os processos de promoção e proteção, citação de jurisprudência e considerandos entre a articulação de um processo de promoção e proteção e um processo tutelar cível para regulação do exercício das responsabilidades parentais, o tribunal a quo, decidiu:

O AA tem os seus cuidados e proteção assegurados junto da avó paterna que diligencia pela manutenção do seu devido acompanhamento em termos escolares, clínicos e sócio afetivos (…).

Do exposto, não há, neste momento, risco conhecido para o menor.

Não ocorrem então quaisquer razões justificativas para a continuação da intervenção judicial.

No respeito pelos princípios que presidem ao processo de promoção e proteção, em especial o princípio da intervenção mínima, apenas resta concluir pela cessação da atuação do tribunal junto da criança AA, nos termos dos artigos 4.º, alínea e), 34.º, 35.º, n.º 1, alínea a), 60.º, n.ºs 1 e 2, 62.º, n.ºs 1 e 3, alínea a) e 5 e 63.º, n.ºs 1, alíneas a) e b), da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo.

Em conformidade, determino a cessação da medida aplicada a favor da criança AA e o, consequente, arquivamento dos presentes autos, de acordo com o disposto no artigo 111.º, da LPCJP.

Notifique e comunique à Segurança Social”.

J) Aos 25/03/2024 o Ministério Público interpôs o presente recurso, formulando as seguintes conclusões([3]):

1 – A decisão posta em crise não acautela o superior interesse da criança, que apesar de já ter superado a situação de perigo a que esteve exposta, ficará sem a proteção que a representação legal da avó paterna lhe assegurava, o que se poderá evitar tão só e apenas com a utilização do normativo legal que invocamos para promoção de conferência – artigo 112.º-A da Lei 142/2015, de 8 de setembro, que entendemos ser uma ferramenta legal excelente e muito eficaz para se assegurar a solidificação das situações tutelares cíveis que se vão instituindo nas intervenções judiciais de promoção e proteção, e que são inúmeras e eficazes, que o Legislador quis erigir como norma legal a observar.

2 - No caso em apreço, ainda se torna mais importante que a situação do AA seja devidamente regularizada, já que existem conflitos familiares latentes, que não devem evoluir, o que poderá suceder, caso não se regule, de forma célere, a situação tutelar da criança, que poderá voltar a ser exposta aos perigos elencados no n.º 1 do artigo 3.º, n.º 2, alíneas c) e g) da LPCJP, nomeadamente tendo em conta o problema de saúde de que padece, que requer atenção redobrada à sua alimentação e assistência médica regular.

3 – A solução sugerida na sentença sob recurso, implica a instauração de um novo processo judicial, que conduziria à prática de atos inúteis e à repetição de outros já praticados no presente processo, com graves transtornos e custos para os intervenientes processuais e para a boa administração da justiça.

4 - Não menos relevante será também a apreciação que foi já efetuada pelo Supremo Tribunal de Justiça, em mais de um aresto e face à prolação de decisões contraditórias pelo mesmo tribunal, quanto à mesma questão jurídica, determinando que nada impede a convolação do processo de promoção e proteção em tutelar cível, para que a situação tutelar cível das crianças e jovens seja devidamente acutelada e dessa forma se acautele, neste caso, o superior interesse da criança, nascida a ../../2016.

5 – O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4-07-2019, proferido no processo 5789/18.8T8LRS.L1-S2, de revista excecional, ao abrigo do artigo 672.º, n.º 1, alínea c) do CPC (relator Ilídio Sacarrão Martins), que consultei in www.dgsi.pt, determinou, que:

«as conclusões do M.ºP.º eram procedentes, concedendo provimento à revista, revogando-se o acórdão recorrido, determinando-se o prosseguimento dos presentes autos, com a realização de conferência com vista a alcançar o acordo em matéria tutelar cível».

6 - O recurso de revista visou apreciar a questão controvertida, que havia sido apreciada em outro acórdão da Relação, que estavam em contradição, nomeadamente o proferido pela Relação de Lisboa de 18.10.18, no processo n.º 12958/17.6T8LSR, da 8.º Seção e o proferido no âmbito do processo supra identificado, o que demonstrava a contradição de julgados entre dois acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito, o que legitimou o recurso à revista excecional prevista pelo artigo 672.º, n.º 1, alínea c) que culminou com a harmonização dos julgados.

7 - A argumentação expendida na douta decisão sob recurso, estribada também no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21.02.19, já escrutinado pelo STJ, em recurso de revista excecional, viola os preceitos legais contidos nos artigos 1906.º e 1912.º, do Código Civil, 43.º, n.º 3 da Lei 141/2015, de 8.09, 4.ª, alínea b), 110.º., n.º 1, alínea b) e 112.º - A da LPCJP.

8 - O juiz, de acordo com o preceito legal contido no artigo 112.º-A da LPCJP, uma vez encerrada a instrução, decide o arquivamento do processo; designa data para realização de conferência com vista à obtenção de acordo de promoção e proteção ou tutelar cível adequado, e: «Na conferência e verificados os pressupostos legais, o juiz homologa acordo alcançado em matéria tutelar cível, ficando a constar do apenso».

9 - A argumentação expendida na douta decisão sob recurso não deverá ser confirmada, já que contraria o regime legal introduzido pela Lei 142/2015, de 8.09, que visou, conforme explicitou o legislador: «E para que também nesta área seja possível desburocratizar e simplificar procedimentos, estabeleceu-se a possibilidade de regulação das responsabilidades parentais ser acordada no mesmo processo de promoção e proteção das crianças»; e também neste sentido - Anotação à Lei de Promoção e proteção, Anotada e Comentada, 8.ª Edição, julho de 2017, página 238/239/ Tomé de Almeida Ramião: «Dispensa-se a instauração de um novo processo a decorrer em paralelo e assim resolvem-se mais depressa os conflitos e evita-se até a degradação da própria situação familiar».

10 – Impõe-se, assim, concluir que a decisão judicial apelada não acautela o superior interesse da criança, pelo que, revogando-se a mesma nos moldes que propugnamos se fará, JUSTIÇA”.

K) O requerimento de interposição de recurso foi corretamente recebido por despacho datado de 26/03/2024.

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O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 e n.º 2, do C.P.C., não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (como expresso nos artigos 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vido art.º 663, n.º 2, in fine, do C.P.C.).

Também está vedado a este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, revogação ou anulação.

A questão a decidir é se o tribunal a quo devia ter procedido à cessação da medida de promoção e proteção, determinando o arquivamento dos autos, ou se antes deveria ter convocado uma conferência nos termos dos artigos 112.º e 112.ºA da L.P.C.J.P. com vista à obtenção de eventual acordo tutelar cível.


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II – FUNDAMENTAÇÃO

De facto:

Tendo em conta o disposto no art.º 663.º, n.º 6, do Código de Processo Civil (C.P.C.), os factos a considerar para a decisão do recurso são os constantes da sinopse, processual e factual, efetuada – que, nesta vertente adjetiva, têm força probatória plena.

O Direito aplicável aos factos:

A matéria do recurso é apenas de Direito.

O principal critério decisório (entre outros) nos processos de promoção e proteção (e não só, como nos tutelares cíveis) é o da realização (possível) do superior interesse da criança ou jovem (art.º 4.º, al. a), da L.P.C.J.P.), conceito amplamente tratado na Doutrina e na Jurisprudência.

Em conformidade aos instrumentos legais supranacionais relativos ao Direito das Crianças, ratificados por Portugal, está legalmente consagrado nos artigos 4.º, n.º 1, do R.G.P.T.C. e 4.º, n.º 1, al. a), da L.P.C.J.P. que o principal critério que orienta as decisões judiciais relativas a uma criança ou jovem é a prossecução do seu superior interesse – entre os demais enunciados neste artigo.

Como referido no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 382/2017, de 12/07/2017, relatado por Pedro Machete, “[o] superior interesse da criança é o princípio estruturante dos regimes que têm por objeto a matéria atinente aos direitos das crianças, incluindo o direito ao seu desenvolvimento integral (cfr. o artigo 3.º, n.º 1, da Convenção sobre os Direitos da Criança, assinada em Nova Iorque, em 26 de janeiro de 1990, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 20/90 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 49/90, de 12 de setembro). A reforma do direito e da justiça de menores de 1999 traduziu-se, fundamentalmente, na separação da intervenção tutelar de proteção (com cariz civil, e que foi objeto da LPCJP) da intervenção tutelar educativa (com cariz para penal, objeto da Lei Tutelar Educativa, aprovada pela Lei n.º 166/99, de 14 de [setembro]. Mas e daí a subsidiariedade da LPCJP, também existem normas de proteção das crianças e jovens no Código Civil: desde logo, aquelas dirigem o exercício das responsabilidades parentais em função da proteção dos interesses dos filhos: por exemplo, as normas respeitantes à inibição (artigo 1915.º) ou à limitação do exercício (artigos 1918.º e 1919.º) de tais responsabilidades, a efetivar por via da adoção de providências tutelares cíveis nos termos do processo tutelar cível (cfr. o artigo 3.º, alínea h), do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de setembro)”([4]).

Ainda de origem supranacional, importa destacar a Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos das Crianças, que vigora na ordem jurídica portuguesa desde 01/07/2014([5]), da qual, logo no art.º 1.º, n.º 1 e n.º 2, consta o seguinte: “1 - A presente Convenção aplica-se a menores de 18 anos. 2 - A presente Convenção, tendo em vista o superior interesse das crianças, visa promover os seus direitos, conceder-lhes direitos processuais e facilitar o exercício desses mesmos direitos, garantindo que elas podem ser informadas, diretamente ou através de outras pessoas ou entidades, e que estão autorizadas a participar em processos perante autoridades judiciais que lhes digam respeito”([6]).

Ao nível jurisprudencial, citamos ainda (dada a abrangência da síntese aí efetuada, no atinente à definição do critério superior interesse da criança) o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães n.º 253/10.6TMBRG-A.G1, de 16/06/2016, “[p]or se tratar de um conceito jurídico indeterminado, o princípio só adquire relevância quando referido ao interesse de cada criança ou jovem, em concreto, defendendo-se mesmo que haverá tantos interesses quantos forem os menores. O interesse de uma criança não se confunde com o interesse de outra criança e o interesse de cada um destes é, ele próprio, suscetível de se modificar ao longo do tempo, já que o processo de desenvolvimento é uma sucessão de estádios, com características e necessidades próprias. [Caberá], pois, ao julgador densificar valorativamente este conceito, de conteúdo imprecisamente traçado, apreendendo o fenómeno familiar na sua infinita variedade e imensa complexidade e, numa análise sistémica e interdisciplinar da situação concreta de cada criança, decidir em oportunidade pelo que considerar mais justo e adequado. No fundo, significa que deve adotar-se a solução mais ajustada ao caso concreto, de modo a oferecerem-se melhores garantias de desenvolvimento físico e psíquico da criança, do seu bem-estar e segurança e da formação da sua [personalidade]”([7]).

Ou seja, o superior interesse da criança ou do jovem é aferível sempre concretamente em função das circunstâncias de cada caso, havendo que determinar qual é o motivo pelo qual ele poderá estar a ser prejudicado e, uma vez determinado, ser tomada a decisão mais adequada a removê-lo.

No caso, foi a negligência dos pais, a falta de assertividade e capacidades parentais para modelarem o comportamento da criança, desleixo com os cuidados de saúde (incluindo alimentação e controlo da glicose, por a criança ser diabética) e com a frequência escolar, entre outros.

A situação foi debelada pelos cuidados que vêm sendo prestados pela avó paterna, com quem a criança está a viver (convivendo esta, diariamente, com os pais, que vivem no rés do chão do mesmo edifício).

Outro princípio orientador dos constantes no art.º 4.º da L.P.C.J.P. a ter em conta no caso é o da proporcionalidade e atualidade, previsto na al. e). O decurso do tempo, bem como o processado, acaba(m) por ganhar importância factual, em sentido estrito, por se constituírem eles mesmos em factos. Assim, e acima de tudo, a relevância do princípio da atualidade prende-se com a necessidade de acompanhamento da evolução ou involução da situação, não havendo como que uma cristalização das decisões ao longo do processo, que podem tornar-se desadequadas em função da situação.

Ao referir-se expressamente a atualidade das decisões o que se pretende é uma atuação dinâmica do tribunal em função dos factos que, a cada momento, são conhecidos, daí que a norma refira que “a intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou jovem se encontram no momento em que a decisão é [tomada]([8]).

Repare-se que os pais da criança “mantêm postura não colaborante e parecem não percecionar as lacunas do ponto de vista dos cuidados ao AA que motivaram os autos e que colocaram a criança em situação de perigo”, sendo igualmente de ter presente que a avó paterna enfrenta a dificuldade de os pais da criança viverem no rés do chão e, por vezes, interferirem (negativamente) no acompanhamento que vem prestando ao neto...

Assim, in casu, a argumentação do tribunal a quo fundada, entre o mais, no princípio constante da al. d) do mesmo artigo (princípio da intervenção mínima, “[a] intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas entidades e instituições cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança ou jovem em perigo”) tem de ceder perante os da prossecução do superior interesse da criança e da proporcionalidade e atualidade da intervenção; de outro modo, desprotege-se a criança…

Ademais, deve ser tido em conta, também, o disposto no art.º 6.º (em epígrafe, dever de gestão processual), n.º 1, 1.ª parte, do Código de Processo Civil (C.P.C.), “[c]umpre ao [juiz], dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento [célere]”, tendo em vista o fim a atingir: como em todos, uma decisão conforme ao Direito, pautada pela celeridade, evitando a prática de atos inúteis (tendo em conta o disposto no art.º 130.º do C.P.C.) – ou seja, obrigar à partida à interposição de uma ação tutelar cível quando existe a possibilidade (maior ou menor, é certo) de, no processo em curso, ser atingido um acordo tutelar cível que seja homologado, como previsto no art.º 112.ºA, n.º 1, da L.P.C.J.P. – Mas, mesmo que assim não suceda, pode convolar o processo em curso, deixando de ser de promoção e proteção para passar a ser de regulação de exercício das responsabilidades parentais, aproveitando o processado, o processo existente (que, de outro modo, ficaria arquivado, para nada…).

É certo que esse acordo pode não acontecer e que a convolação do processo de promoção e proteção em processo tutelar cível se torne necessária([9]) mas, para se saber tal, tem de se realizar a conferência: que tanto pode acabar com um acordo homologado, como sem acordo…, como dissemos já.

Sobre o já mencionado aproveitamento dos atos e convolação do processo de promoção e proteção em ação tutelar cível, nos termos do art.º 112.º A, n.º 2, da L.P.C.J.P., citamos o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de revista excecional, datado de 04/07/2019, proferido no processo n.º 5789/18.8T8LRS.L1.S2, o juiz pode “decidir sobre a regulação do exercício das responsabilidades parentais, ordenando a convolação do processo de promoção e protecção em processo tutelar cível([10]) ([11]).

Por fim, realçamos o seguinte: uma criança não pode ficar juridicamente desprotegida, com um hiato temporal em que não está ao abrigo de um regime protetivo, seja ele a vigência de uma medida de promoção e proteção, seja um regime provisório de exercício das responsabilidades parentais, a proferir após a referida convolação em ação tutelar cível, por referência ao disposto no art.º 28.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, R.G.P.T.C.

 Em consequência do acabado de dizer, é de concluir que a decisão em crise, ao determinar a cessação da medida, coloca a criança numa situação de desproteção jurídica, na medida em que, se é certo que em termos factuais até poderá continuar aos cuidados da avó paterna, também o é que tal está sujeito à contingência de os pais da criança (que formalmente exercem as responsabilidades parentais) estarem de acordo, podendo, de um dia para o outro, tomarem a decisão de retirarem o filho dos cuidados da avó paterna.

Se tal acontecer (e tendo em conta que foi decidida a cessação da medida e o arquivamento dos autos), a criança fica novamente em perigo (e não em risco, como referido pelo tribunal a quo, pois que o mero risco não legitima a intervenção judicial…), voltando tudo ao começo, com a inerente obrigação de o Ministério Público interpor novo processo de promoção e proteção (pois que a reabertura de um processo nos termos do art.º 111.º da L.P.C.J.P. apenas é possível se se verificar a hipótese dessa norma, ou seja, quando o processo foi arquivado sem que alguma medida tenha chegado a ser aplicada, “[o] juiz decide o arquivamento do processo quando concluir que, em virtude de a situação de perigo não se comprovar ou já não subsisti([12])), ou então ter de interpor uma ação tutelar cível em que, sem prejuízo de requerer de imediato a prolação de um regime provisório de exercício das responsabilidades parentais, nos termos do art.º 28.º, n.º 1, do R.G.P.T.C.([13]), requeira também, eventualmente, a atribuição de natureza urgente ao processo, nos termos do art.º 13.º do R.G.P.T.C.([14]).

Ou seja, não se justifica, é desperdiçar (e ignorar) a oportunidade legal consagrada no art.º 112.ºA da L.P.C.J.P.

III – DECISÃO

Pelos motivos expostos, e nos termos das normas invocadas, acordam os juízes destes autos no Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso de apelação interposto pelo Ministério Público e, revogando-se o despacho recorrido, deverão os autos prosseguirem os seus termos, em conformidade ao disposto no art.º 112.º e no art.º 112.ºA da L.P.C.J.P.

Sem custas por isenção subjetiva do recorrente, art.º 4.º, n.º 1, al. a), do R.C.P.


Porto, 06/05/2024.

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Este acórdão é assinado eletronicamente pelos respetivos:
Relator: Jorge Martins Ribeiro;
1.ª Adjunta: Anabela Mendes Morais e
2.ª Adjunta: Ana Paula Amorim.
__________________________
[1] Interpolação nossa.
[2] Itálico nosso.
[3] Aspas no original.
[4] O acórdão está acessível em:
TC > Jurisprudência > Acordãos > Acórdão 382/2017 (tribunalconstitucional.pt) [25/04/2024] (interpolação nossa e citação de bibliografia no original).
[5] Aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 7/2014, de 27/01; ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 3/2014, de 27/01, e publicada no Diário da República I, n.º 18, de 27/01/2014.
Esta Convenção está acessível em:
https://www.ministeriopublico.pt/instrumento/convencao-europeia-sobre-o-exercicio-dos-direitos-das-criancas-0 [25/04/2024].
[6] Itálico nosso.
[7] Acessível em http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/-/FC8CA6ACD58221628025802E004A9E59; aspas e indicação de bibliografia no original e interpolação nossa.
Ainda sobre o conceito, cf., entre outros, o acórdão do S.T.J. n.º 1431/17.2T8MTS.P1.S1, de 17/12/2019, acessível em:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/82b170206b04b075802584d3005bc3fa?OpenDocument [25/04/2024].
[8] Itálico e interpolação nossa.
[9] Como previsto no n.º 2 do mesmo artigo: “[n]ão havendo acordo seguem-se os trâmites dos artigos 38.º a 40.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de setembro”.
[10] O acórdão está acessível em:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/cff1910ad748de9b8025842d0057d1b4?OpenDocument [25/04/2024].
[11] Este aresto é citado nas conclusões de recurso; também a referência bibliográfica constante das conclusões é mencionada pelo Supremo Tribunal de Justiça.
[12] Referimos, no entanto, que este entendimento não é pacífico na jurisprudência, dado que em alguns arestos se defende que, ao abrigo do princípio da economia processual, se se justificar, deve reabrir-se um processo arquivado no qual tinha sido aplicada uma medida protetiva que depois foi cessada.
Tal entendimento, cremos, não é o mais consentâneo com a estrutura do processo de promoção e proteção, enfrentando também, frequentemente, a questão ou obstáculo, como se queira, provocado pelo prazo máximo das medidas em meio natural de vida constante do art.º 60.º, n.º 1, da L.P.C.J.P. (um ano, prorrogável no máximo até 18 meses), lido em conjugação com o disposto no art.º 63.º, n.º 1, al. a), da mesma Lei, “[a]s medidas cessam quando: [decorra] o respetivo prazo de duração ou eventual prorrogação”(interpolação e itálico nosso).
[13] “[E]m qualquer estado da causa e sempre que o entenda conveniente, a requerimento ou oficiosamente, o tribunal pode decidir provisoriamente questões que devam ser apreciadas a final, como ordenar as diligências que se tornem indispensáveis para assegurar a execução efetiva da decisão”.
[14] “Correm durante as férias judiciais os processos tutelares cíveis cuja demora possa causar prejuízo aos interesses da criança”.